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    - Revista dos Alunos do Programa de Ps-graduao em Cincia da Religio - UFJF

    Exu: o mal que se torna bem

    Snia Regina C. Lages*

    Sinopse

    Este ensaio visa apresentar a entidade de Exu atravs de uma anlise dos seus

    mitos coletados por Reginaldo Prandi em Mitologia dos Orixs1, especificamente

    aqueles que tratam diretamente da relao entre Exu e Orunmil ou If. Ele dar

    nfase ao aspecto curativo que essa entidade pode proporcionar a um indivduo

    ou mesmo a uma cultura. Atravs do pensamento junguiano, buscar

    compreender a entidade de Exu como sendo propiciadora do renascimento, da

    harmonia entre o Ay e o Orum e como o elemento essencial na construo de

    novas maneiras de ser.

    Palavras-chave: Exu, Orunmil, Conscincia, Transcendncia dos Opostos,

    Individuao.

    Abstract

    This essay aims at presenting the Exu entity through an analysis of his myths as

    collected by Reginaldo Prandi in Mitologia dos Orixs, specifically of those myths

    dealing directly with the relation between Exu and Orunmil or If. It will give

    emphasis to the healing aspect that this entity can bring onto an individual or even

    a culture. By means of a perspective based on Jungs work, it will try to

    understand the Exu entity as bestowing rebirth, harmony between the Ay and the

    Orum, and as the essential element in constructing new modes of being.

    Key-words: Exu, Orunmil, Consciousness, Opposites Transcendence,Individualization.

    *

    Psicloga, Mestre em Cincia da Religio pela UFJF, Doutoranda em Psicologia na UFRJ,professora na Universidade Estcio de S e na Universo em Juiz de Fora, MG.1 ReginaldoPRANDI, Mitologia dos orixs.

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    I

    Conta o mito dos povos iorubs que em terras africanas existiu um

    mensageiro chamado Exu, ou tambm chamado de Legba, Bar ou Elegu, que

    andava pelas aldeias procura de soluo para os terrveis males que naquela

    ocasio atingiam o mundo, tanto o dos seres humanos quanto o dos orixs.

    Assim, Exu passou a coletar do povo todas as histrias de sofrimento e dramas

    vividos pelos seres humanos, pelas divindades, pelos animais e outros seres que

    habitavam a Terra. Feito isso, o mensageiro passou a ter todo o conhecimento

    sobre a vida e destino de todos os seres viventes que diziam respeito aos

    infortnios, s aflies, s doenas, perda de bens materiais, pobreza, s

    traies e at prpria morte. E tambm, o conhecimento de tudo o que deveria

    ser feito, as providncias e oferendas aos deuses, para que se pudesse dar um

    fim mais feliz aos desafios propostos pelo destino.

    Conta-se que todo esse saber, esse segredo, foi dado a um adivinho de

    nome Orunmil, ou If, que os transmitiu aos seus seguidores, os sacerdotes do

    orculo de If, que so chamados babalas ou pais do segredo. Exu , portanto,

    o mensageiro responsvel pela comunicao entre Orunmil, o deus do orculo, eo mundo dos homens e das mulheres.

    Exu, ento, alm de habitar as fronteiras, os limiares, ocupa tambm este

    lugar nos estudos e na literatura que se debruam sobre a anlise desta figura

    dbia e intrigante.

    As opinies se dividem. De um lado alguns autores compreendem esta

    divindade como portadora do mal cuja funo de infernizar a vida dos humanos

    e dos prprios orixs. Um outro ponto de vista afirma que Exu estaria semprevisando o bem, apesar de suas prticas colocarem em dvida sua moral. Mas no

    fica bem claro que bem esse que foi alcanado em decorrncia de suas

    estratgias maliciosas.

    Essas divergncias oferecem uma pista para a compreenso da

    personalidade dessa entidade. Exu inecaptvel. Como a substncia mercurial

    ele escorregadio, fugidio, de forma mutante. Lembra tambm o deus grego

    Hermes, o mensageiro dos deuses, e tambm como esse deus, o habitante das

    encruzilhadas, dos portais. Ser portador de uma mensagem, de um recado, num

    Sacrilegens, Juiz de Fora, v.1, n.1, p.67-81, 2004 - Snia Lages - http://www.ufjf.br/sacrilegens/files/2009/08/1-6.pdf 8

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    entroncamento de caminhos, nos remete s vrias possibilidades de

    entendimentos. Seguir uma ou outra estrada? Para cada escolha, um destino se

    inscreve. Como nos diz o psiclogo junguiano, James Hillman a respeito de

    Hermes:

    O cosmos de um deus via Hermes abre-se de repente no de

    outro. Enxergamos um ponto de vista a partir do ponto de vista de

    outro. Isso Hermes operando em nossa viso o deus dos

    entremeios, mantendo-nos no mundo e guiando-nos para fora

    dele no mesmo instante.2

    A partir da coletnea que Reginaldo Prandi faz sobre os mitos de Exu, em

    Mitologia dos Orixs, se tentar verificar nos mitos selecionados, essas diversas

    conscincias operando na vida e no destino dos humanos e dos orixs, as

    diversas transformaes que decorrem de suas prticas dbias. Se tentar

    enfatizar nos mitos seus fins ltimos, a trilha que foi seguida, o valor transmutado.

    II

    Chama ateno logo de incio, a amizade e proximidade que tem Exu de

    Orunmil ou If, o Orix do orculo e da sabedoria, sendo que um dos mitos o

    coloca como filho daquela divindade. Apesar de todas as rebeldias e ciladas que

    Legba pratica contra If, em todas as situaes, o final da histria aponta para

    uma reconciliao. E mais ainda, Exu acaba obtendo posio diferenciada e

    referenciada dentro do panteo ou em outros momentos at mesmo como

    salvador daquele Orix.

    Prandi intitula estes aspectos de Legba como: Exu come tudo e ganha o

    privilgio de comer primeiro3, Elegu ajuda Orunmil a ganhar o cargo de

    advinho4, Exu pe Orunmil em perigo e depois o salva5, Exu atrapalha-se

    2 James HILLMAN, O livro do puer, p. 170.3

    Reginaldo PRANDI, Mitologia dos orixs, p. 42.4 Ibid., p. 87.5 Ibid., p. 68.

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    com as palavras6, Elegbara devora at a prpria me7, Exu torna-se o amigo

    predileto de Orunmil8.

    convidativo deter-se um pouco na relao entre essas duas entidades,

    com personalidades to dspares, to opostas e to capazes de transcender e

    superar os conflitos e inimizades. A impresso que se tem que a relao

    mediada por profundo respeito s pontencialidades de cada um e mesmo por uma

    necessidade do aspecto oposto de cada singularidade. Averigemos.

    No mito Exu come tudo e ganha privilgio de comer primeiro e Elegbara

    devora a prpria me, est presente a oralidade devoradora desta divindade:

    Exu comia de tudoe sua fome era incontrolvel.

    Comeu todos os animais da aldeia em que vivia.

    Comeu os de quatro ps e os de pena.

    Comeu os cereais, as frutas, os inhames, as pimentas.

    (...) Quanto mais comia, mais fome Exu sentia.

    (...) Furioso, Orunmil compreendeu que Exu no pararia

    e acabaria por comer at mesmo o cu.9

    Tempos depois nasceu Elegbara, filho de Orunmil.

    Para espanto de todos nasceu falando

    E comendo tudo que estava diante de si.

    (...) Sua fome era insacivel,

    tudo o que pedia, a me lhe dava,

    tudo o que lhe dava a me, ele comia.

    J no tendo como saciar a medonha fome,

    Elegbara acabou por devorar a prpria me.10

    A transgresso comedio para comer, faz com que If castigue Exu.

    6 Ibid., p. 56.7 Ibid., p. 49.8

    Ibid., p. 76.9 Ibid., p. 42.10 Ibid., p. 49.

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    Orunmil pediu a Ogum

    que detivesse o irmo a todo custo.

    Para preservar a Terra e os seres humanos e os prprios orixs,

    Ogum teve que matar o prprio irmo.11

    Ainda com fome Exu tentou comer o pai.

    Mas Orunmil pegou da espada

    E avanou sobre o filho para mat-lo.

    Exu fugiu sendo sempre perseguido pelo pai.

    A perseguio ia de Orum em Orum.

    A cada espao do Cu, Orunmil alcanava o filho,

    Cortando-o em duzentos e um pedaos.12

    Que fome insacivel seria essa de Exu, que quanto mais come, mais

    fome tem? claro que sua necessidade incontrolvel de se alimentar tem um

    carter simblico. Fome, ento, do qu?

    Analisando a cultura popular na Idade Mdia e no Renascimento, atravs

    da obra de Fronoise Rabelais, Bakthin13, se refere grande boca escancarada

    de Pantagruel, personagem rabelaisiano, como uma das imagens centrais,cruciais, do sistema da festa popular. O autor compreende a imagem da absoro

    e da deglutio, como uma imagem ambivalente muito antiga da morte e da

    destruio. A boca a porta aberta que conduz ao baixo, aos infernos corporais,

    e portanto o retorno ao seio da terra, ao renascimento. interessante observar

    que o personagem Pantagruel recebeu esse nome em referncia a um dos

    demnios das diabruras constantes na literatura popular da poca, que na

    linguagem corrente, designava a afonia que se segue a um excesso de bebida(era, portanto, a doena dos bbados).14

    Para compreender melhor, a relao entre a grande boca aberta e o

    renascimento, que prope Bakhtin, ser preciso voltar ao nascimento de

    Pantagruel, que, como Exu, tambm mata sua me:

    11 Ibid., p. 42.12

    Ibid., p. 49.13 Mikhail BAKTHIN,A cultura popular na Idade Mdia e no Renascimento, p. 284.14 Ibid., p. 284.

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    Gargantua, na idade de quatrocentos e oitenta e quarenta e

    quatro anos, engendrou seu filho Pantagruel, de sua mulher,

    chamada Badebec, filha do rei dos amaurotes em Utopia, a qual

    morreu da doena de parto: pois ele era to maravilhosamentegrande e to pesado que no podia vir luz sem assim sufocar

    sua me.15

    Pantagruel, ainda no bero, mama o leite de quatro mil e seiscentas

    vacas, sua papa servida em gamela gigantesca. Um dia, insacivel, ele salta do

    bero e devora duas tetas e a metade do ventre, com o fgado e os rins da vaca.

    Num outro dia ele engole um urso como se engolisse um frango.16 Todas as suas

    faanhas consistem em mamar, devorar, engolir, despedaar.

    Segundo Bakhtin, os temas do parto e da morte, das altas esferas

    celestes ao baixo corporal, desembocam na terra que recebe o corpo morto, os

    dejectos, o sangue, todos os elementos que se deterioram, se transformam e se

    transmutam em elementos frteis. Para o autor, o escatologismo medieval

    rebaixado e renovado nas imagens do baixo material e corporal absoluto.17

    Assim, a imagem da boca aberta est ligada ao de seio materno aberto e tem

    sentido csmico. O ser humano encontra, experimenta e assimila os elementos

    csmicos (terra, gua, ar, fogo) no interior de seu prprio corpo.

    Erich Neumann, psiclogo junguiano, no mesmo sentido de Bakthin, ir

    dizer que o oral smbolo de troca com o mundo, que a boca tem implicaes

    csmicas e mais tarde sociais, que ela uma unidade psicolgica, que ela

    representa uma experincia simblica fundamental de uma abertura para o

    exterior, para o mundo e para o tu e numa conexo com o tu.18 Assim, os atos

    de comer e alimentar significam uma maneira de introjetar, de interpretar o mundo

    e de integra-se nele.

    Exu quer aprender. Aprender sobre os segredos dos ciclos da natureza,

    sobre o incio, o meio e o fim das coisas, sobre a vida e a morte. Legba devora a

    me e quer tambm engolir o pai. Ele quer assimilar, apreender, compreender o

    15 OBRAS, Pliade, p. 177-178; Livro de bolso, vol. I, p. 63. In: Mikhail BAKTHTIN,A culturapopular, p. 288.16

    Ibid., p. 290.17 Ibid., p. 293.18 Erich NEUMANN, Psicologia profunda e nova tica, p. 27

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    mundo, quer entrar em contato com estes grandes arqutipos que regem todos os

    mitos de origem, a Grande Me, o Velho Sbio.

    E justamente este ato desvairado que possibilita a essa divindade o

    conhecimento sobre as coisas, mas um conhecimento que imparcial, que no

    seleciona, no distingue entre o que bom, saudvel, ou no. Exu ao comer um

    animal, ingere tanto sua carne macia e nutritiva quanto suas partes duras,

    gordurosas, as substncias imprprias para a sade. Ao engolir Iemanj, ele

    assimila tanto seu aspecto materno, protetor, frtil, gerador de vida, quanto seu

    poder feminino de destrutividade, disseminador de desavenas, exterminador da

    vida. Assim, Legba domina o saber sobre o bem e o mal, sobre a vida e a morte.

    A experincia religiosa de Exu provoca resistncia e perseguio, pois elepe em risco todo um estilo de vida e universo de valores. Em seu aspecto

    dionisaco, ele o deus do descomedimento. Em sua necessidade de introjetar o

    mundo, ele abole as fronteiras entre o bem e o mal, entre a medida certa das

    coisas e o excesso. Tudo vida e digno de ser vivido.

    Como o deus grego Dionsios, deus do xtase, da orgia, do entusiasmo,

    da transformao, Exu tambm morto e desmembrado. Dionsios, perseguido

    pelo cime de Hera, esposa de Zeus, seu pai, raptado e morto pelos Tits que ofizeram em pedaos e comeram suas carnes. Zeus enfurecido pelo ato dos Tits

    os fulmina com um raio sendo que de suas cinzas nascem os homens, o que

    segundo Juanito Brando, explica no ser humano os dois lados; o bem e o

    mal.19

    Exu tambm morto por Ogum, seu irmo, e em outra ocasio por seu

    prprio pai que o corta em duzentos e um pedaos que se espalham no espao

    sagrado de Orum.

    A morte entretanto no aplacou a fome de Exu.

    Mesmo depois de morto

    podia-se sentir sua fome devoradora,

    sua fome sem tamanho.

    Os homens no tinham mais o que comer

    e todos os habitantes da aldeia adoeceram,

    19 Juanito de Souza BRANDO, Mitologia Grega, p. 117-118.

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    e de fome, um a um foram morrendo.

    Cada pedao transformou-se num Iangui, um pedao de laterita.

    A cada encontro o ducentsimo primeiro pedaotransformava-se novamente em Exu,

    correndo de um espao a outro

    terminaram por alcanar o ltimo Orum.20

    Exu apesar de morto, despedaado, no desapareceu. Seu sumio

    intensamente desejado pela conscincia ocidental-moderna que tem a tendncia

    de negar tudo que diz respeito ao negativo. Mas Exu no some, no isto que

    acontece. Ele vive, continua devastando plantaes e multiplicando-se no espao

    de Orum, preenchendo todos com sua presena, at que

    Um sacerdote da aldeia consultou o orculo de If

    e alertou Orunmil quanto ao maior dos riscos:

    Exu, mesmo em esprito, estava pedindo sua ateno.

    (...) Orunmil obedeceu ao orculo e ordenou;

    Doravante, para que Exu no provoque mais catstrofes, sempreque fizerem oferendas aos orixs devero em primeiro lugar servir

    comida a ele.

    Para haver paz e tranquilidade entre os homens,

    preciso dar de comer a Exu,

    Em primeiro lugar.21

    Como no tinham sada, resolveram entrar em acordo.

    Elegbara devolveu tudo o que havia devorado, inclusive a me.

    Cada Iangui poderia ser usado por Orunmil

    Como sendo o verdadeiro Exu.

    E Iangui trabalharia para Orunmil,

    Levando oferendas e mensagens enviadas pelos homens.

    Em troca, em qualquer ritual,

    Elegbara seria saudado sempre antes dos demais.22

    20

    Reginaldo PRANDI, Mitologia dos orixs, p. 42.21 Ibid., p. 42.22 Ibid., p. 49.

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    Metaforicamente, a insistncia de Elegbara em viver, sua morte e

    renascimento, poder ser compreendida como um pedido da alma para que o ser

    humano no se esquea de sua natureza primeira que abarca tanto os mais altos

    princpios e valores espirituais como tambm os mais baixos e mesquinhos. Ou

    no sentido bakhtiniano, dar comida primeiro a Exu pode ser compreendido como

    um ritual que insere o ser humano no cosmos e lhe d a responsabilidade de

    gerar dentro de si mesmo todas as possibilidades e modos de existncia. O

    alimento ento, dado primeiramente a Exu, pode ser lido como a semente que j

    traz em si mesma a rvore, o fruto. Se erva daninha ou um frondoso carvalho,

    ser o indivduo que ir escolher.Orunmil prescinde de Exu para criar novos mundos, haja visto que Exu

    percorreu todos os Oruns. Trata-se aqui, ento, do nascimento de um novo estilo

    de conscincia necessrio para que o ser humano possa viver de maneira plena

    sua totalidade.

    III

    Orunmil ou If um orix com uma posio de destaque no Candombl,

    tendo seu prprio culto e sacerdotes prprios, ele conhece o passado, o presente

    e o futuro. If concentra toda a sabedoria; ele o portador da cultura e do

    saber.23 If, ao transmitir seu conhecimento atravs da consulta, restitui a

    harmonia entre os dois nveis de existncia. O telogo Volney Berkenbrock diz

    que o papel desse orix corretamente compreendido quando o relacionamoscom a manuteno do equilbrio entre Orum e Aiye.24 Ele continua dizendo que

    atravs de If que as pessoas ficam sabendo qual o seu orix, qual a causa

    desse desequilbrio e que oferenda deve ser feita para a restaurao daquele

    equilbrio que foi perdido.

    Nos mitos de Exu a seguir observados, Elegu ajuda Orunmil a ganhar

    o cargo de advinho, Exu pe Orunmil em perigo e depois o salva e Exu torna-

    23 Volney J. BERKENBROCK, A experincia dos orixs, p. 246.24

    Ibid., p.247.

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    se amigo predileto de Orunmil percebe-se um elemento comum: a salvao

    atravs do aspecto sombrio de Exu, e a partir da o restabelecimento do equilbrio.

    Em Exu atrapalha-se com as palavras a individualidade fruto de uma escolha:

    dada a Exu como morada permanente a encruzilhada.

    A reconstituio da harmonia entre os dois mundos, oferecida por

    Orunmil, Aiye (a existncia no mundo material) e Orum (o nvel sobrenatural mas

    que tambm engloba o Ay), tem a participao ativa de Elegu. O

    restabelecimento da ordem pressupe a ao de duas foras contrrias, seja mal

    e bem, cu e terra, racionalidade e paixo. No entanto, inversamente ao que o

    esprito humano idealiza e fantasia, numa grande maioria das vezes, so as

    foras contrrias que vencem. O que se faz com a derrota que a questo.Orunmil, concorrendo vaga de advinho deixada por Xang (Elegu

    ajuda Orunmil a ganhar o cargo de advinho), se submete s provas de Olofim.

    Nesse momento o mundo desintegra sua harmonia. Existe um orix pobre,

    ansioso por uma profisso, um sem lugar, um sem eira nem beira como

    qualquer ser humano em busca um lugar ao sol. If sabe que a malcia, a viglia

    atenta e constante, podem lhe salvar, por isso ele no prescinde da ajuda de

    Elegu que atua com suas usuais ferramentas: negocia coisas, mente, usa de suaesperteza. E claro, Orunmil consegue o cargo de advinho e passa a ser

    considerado como o nico que sabe ler o futuro corretamente.

    Assim tambm acontece em Exu pe Oruniml em perigo e depois o

    salva. Exu engana o amigo chegando ao ponto de deixar Orunmil ser

    considerado um ladro por roubarobis de uma fazenda, o que no era verdade.

    Mas o veneno que mata o mesmo que pode salvar. Exu reverte a histria e

    salva Orunmil. interessante observar como natural no mito a associao entre o que

    diverso, diferente. Exu, um malandro esperto, negociador, Orunmil um orix

    politicamente correto. Tal associao percebida por esse orix que diz: Como

    possvel que duas pessoas indo em direes opostas se encontrem duas vezes

    na mesma estrada?25 claro que isso foi obra das armadilhas de Exu, mas

    justamente este detalhe que se torna significativo no mito. Orunmil aceita as

    trapaas de Exu.

    25 Reginaldo PRANDI, Mitologia dos orixs, p. 68.

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    O mito Exu torna-se amigo predileto de Orunmil se inicia com uma

    pergunta: Como se explica a grande amizade entre Orunmil e Exu, visto que

    eles so opostos em muitos aspectos?26 e em seguida:

    Orunmil era calmo, e Exu quente como o fogo.

    (...) Orunmil aplainava os caminhos para os humanos,

    enquanto Exu os emboscava na estrada

    e fazia incertas todas as coisas.

    O carter de Orunmil era o destino, o de Exu, o acidente.

    Mesmo assim ficaram amigos ntimos.27

    Os opostos existem, mas no tentam se superar, no adotam posturas

    unilaterais. Orunmil em nenhum momento condena as atitudes de Exu ou o

    destri, ou o confina a um lugar isolado, at mesmo pelo contrrio. O destino de

    Exu a encruzilhada, por onde todos um dia passam. Podemos ver no mito,

    ento, a conscincia transformada que surgiu de um acordo feito entre Exu e

    Orunmil, entre os aspectos sombrios e os iluminados. possvel o trabalho

    conjunto dos orixs. possvel conscincia se libertar de sua prolongada

    identificao apenas com qualidades positivas que predominam nas mentes

    apolneas, racionais, e reassumir uma conscincia unificada, uma imagem de

    mundo unitria, reassumir tambm o inferior, o grotesco, o animalesco.

    Nos mitos que aqui foram analisados foi possvel essa integrao. Exu no

    final da histria um colaborador, ele transforma a relao. A pessoa que passa

    por esse processo de integrao de opostos, a que Jung deu o nome de

    individuao - estado que o indivduo passa a assumir sua condio humana com

    todas as contradies inerentes a ela, tem a possibilidade de viver uma vida mais

    plena e significativa.

    Assim, o equilbrio entre os dois mundos, o interno e o externo, entre

    Orum e Aiye s pode ser reconquistado quando uma pessoa ou cultura capaz

    de provocar uma abertura tal na conscincia que ela capaz de se confrontar

    com o que causa o desequilbrio. S assim se poder reunir a disposio

    26 Ibid., p. 76.27 Ibid., p. 76.

    Sacrilegens, Juiz de Fora, v.1, n.1, p.67-81, 2004 - Snia Lages - http://www.ufjf.br/sacrilegens/files/2009/08/1-6.pdf 7

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    necessria para fazer algo a respeito do que se v, restabelecendo-se novamente

    o equilbrio.

    A reconstruo parte dessa capacidade de reformulao da sombra. Ao

    nitidamente ver todos os aspectos de ns mesmos e dos outros, tanto os

    deformados quanto os divinos, que a luz, a conscincia, poder aflorar:

    Com essa luz penetrante, pode-se ver do outro lado da m ao

    um corao generoso; pode-se vislumbrar um esprito delicado

    esmagado pelo dio; pode-se entender muito em vez de apenas

    sentir perplexidade. Essa luz pode discriminar camadas distintas

    da personalidade, das intenes e das motivaes nos outros. Elapode terminar o consciente e o inconsciente em ns mesmas e

    nos outros. a varinha de condo do conhecimento.28

    Podemos compreender a atitude de Orunmil como uma habilidade da

    conscincia em lidar com as fraquezas do ser humano, com sua capacidade de

    cometer atrocidades, enganar e agir de forma destrutiva para consigo mesmo e

    com o outro. A compreenso de que este aspecto catico do indivduo faz parte

    de processo de formao da sua individualidade. Assim, Orunmil determina:

    Doravante vais viver fora e no dentro da casa.

    E assim tem sido deste ento.

    Exu vive a cu aberto, na passagem,

    Ou na trilha ou nos campos.29

    Vamos retornar a Bakthin e observar o que ele tem a dizer sobre isso.Para o autor no sistema rabelaisiano das imagens, os infernos so a

    encruzilhada, onde se encontram seus elementos diretores, os golpes, as

    grosserias e as imprecaes, a comilana, os elementos do baixo corporal. Nos

    diz Bakthin que os infernos rabelaisianos, como a encruzilhada, so ambivalentes,

    pois tm um aspecto carnavalesco. Se a conscincia crist ortodoxa precipitou ao

    inferno os deuses da mitologia, considerados demnios, condenando-os

    28 Clarissa Pinkola ESTS, Mulheres que correm com os lobos, p. 140.29 Reginaldo PRANDI, Mitologia dos orixs, p. 67.

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    eternamente a serem queimados pelo fogo, tudo num clima de tristeza, pecado e

    culpa, onde nada volta vida e se renova, uma vez que l significa o julgamento

    final, Lcifer, na tradio medieval no passa de um alegre espantalho, a imagem

    do velho poder vencido e do medo que inspira. Pode-se rir das imagens grotescas

    do inferno: Pantagruel lembra que um dia Lcifer teve clicas intestinais por ter

    comido no caf da manh um fricass da alma de um sargento.30 A concepo de

    mundo infernal entregue s chamas regeneradoras do riso, do deboche.

    Exu passa a habitar as encruzilhadas, palco onde o indivduo se defronta

    com sua capacidade de ser mais que um, de ter mais de uma maneira de ser, de

    sentir e agir. A encruzilhada de Exu tambm um tormento para a conscincia

    que tem que escolher. A existncia individual ser construda a partir do confrontode vozes que se alternam e que ora apontam para trilha que segue esquerda e

    cujo caminho levar a uma determinada experincia, ora para a trilha da direita,

    que provavelmente oferecer oportunidades distintas. H a possibilidade, ainda,

    de no se sair do lugar, e ficar petrificado ou parado somente olhando e

    planejando que um dia, qualquer dia, se tomar uma deciso.

    Mas se a encruzilhada onde mora Exu um lugar sombrio, que causa

    medo, insegurana e aflio, pois portadora de escolhas, mudanas de rumos,ela tambm, como em Bakthin, tem um aspecto festivo. L so deixadas as

    oferendas- comidas, bebidas, rosas, pedaos de coisas. So oferecidos ainda, a

    Exu, no terreiro, pontos cantados em meio dana, s palmas e o som do

    tambor. O medo do que causa o infortnio, a insegurana quanto ao futuro, estes

    sentimentos cruzados, so relativizados pelas oferendas. A encruzilhada no

    determina o fim, pelo contrrio, ela abre caminhos.

    James Hillman tambm fala dessa conscincia que escuta atentamenteas diferentes oportunidades que lhe so oferecidas pelos caminhos cruzados e

    diz a respeito da multiplicidade de propostas trazidas por Mercrio:

    Mercrio o mensageiro dos deuses, portanto ele precisa ser

    capaz de ouvir suas mensagens em qualquer coisa que seja dita.

    Este o ouvido hermenutico que escuta atravs, uma

    conscincia das bordas, assim como Hermes era adorado nas

    30 Mikhail BAKTHIN,A cultura popular na Idade Mdia e no Renascimento, p. 342.

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    fronteiras. E as fronteiras aparecem em qualquer lugar assim que

    adentramos aquela duplicidade de mente que escuta dois modos

    ao mesmo tempo.31

    Ningum melhor do que Elegu, que come tudo, que introjetou tanto o

    bem como mal como j foi visto, para discernir qual voz ser ouvida, qual atitude

    ser tomada. S mesmo ele poderia habitar o cruzamento dos dois mundos. Essa

    paisagem entruncada faz parte da condio psicolgica do indivduo de optar,

    escolher, e assim ser o que se , como nos ensina Exu; ou como na leitura

    junguiana, a partir da transcendncia dos opostos, tornar-se um ser nico e

    singular:

    So muitas as tramias de Exu.

    Exu pode fazer contra,

    Exu pode fazer a favor.

    Exu faz o que faz, o que .32

    Referncias bibl iogrficas

    BAKTHIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Mdia e no Renascimento, o

    contexto de Franoise Rabelais. So Paulo: Hutec, 1987.

    BERKENBROCK,Volney J. A experincia dos orixs, um estudo sobre a

    experincia religiosa no Candombl. 2 ed. Petrpolis: Vozes, 1999.

    BRANDO, Juanito de Souza. Mitologia Grega. Petrpolis: Vozes, 1996.

    ESTS, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com os lobos - mitos e histrias

    do arqutipo da mulher selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.

    HILLMAN, J. O livro do Puer, ensaios sobre o Arqutipo do Puer Aeternus. So

    Paulo: Paulus, 1999.

    HILLMAN, James. O mito da anlise. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.

    NEUMANN, Erich. Psicologia profunda e nova tica.So Paulo: 1991.

    31 J. HILLMAN, O livro do puer, p. 169-170.32 Reginaldo PRANDI, - mitos e histrias do arqutipo da mulher selvagem Mitologia dos orixs,p.70.

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    PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixs. So Paulo: Companhia das Letras,

    2001.

    Sacrilegens, Juiz de Fora, v.1, n.1, p.67-81, 2004 - Snia Lages - http://www.ufjf.br/sacrilegens/files/2009/08/1-6.pdf