03 JULGAR Dulce Lopes Igualdade e Não Discriminação Na CE

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  • Coimbra Editora JULGAR - N. 14 - 2011

    A JURISPRUDNCIA DO TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM VISTA LUZ DO PRINCPIO DA NO DISCRIMINAO

    DULCE LOPES

    A autora analisa de forma sistemtica e exaustiva a jurisprudncia do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem no mbito da aplicao do princpio da no discriminao (art. 14. da Conven-o). Em primeiro lugar delimita e concretiza o principio, concluindo que o tribunal transformou a obrigao negativa de no discriminao, numa obrigao para assegurar o respeito pelo princpio da igualdade nas vrias esferas da vida social. Aborda a evoluo da concepo de discriminao (discriminao directa) para uma outra sensvel aos resultados do comportamento discriminatrio (discriminao indirecta). Analisa os problemas probatrios concluindo que, em regra, bastar uma anlise comparativa concreta entre dois indivduos que se encontrem em situaes relevantemente similares e a demonstrao do nexo de causalidade entre a utilizao do critrio proibido e o pre-juzo sofrido, para constatar a existncia de uma discriminao directa.

    Em segundo lugar, aborda as diferenas de tratamento baseadas em caractersticas identi-ficveis da pessoa ou num determinado status (critrios suspeitos), que possam ser includas no conceito de discriminao (diferenas de sexo, etnicidade, religio, origem nacional, e orientao sexual em especial quanto adopo por pessoas homossexuais).

    E, por fim, analisa os critrios que podem, de forma objectiva e razovel justificar a exis-tncia de uma situao de discriminao.

    Concluiu assim que as decises do TEDH ampliaram e aprofundaram os contornos deste direito fundamental, ainda que com algumas hesitaes, sobretudo em matria religiosa.

    1. CONVENO E TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM 1

    Os princpios da igualdade e da no discriminao tm merecido um olhar cada vez mais atento das instncias internacionais que, directa ou indi-rectamente, assumem como misso o respeito pelos direitos humanos.

    Esta ateno justificada, por um lado, pela natureza fracturante que a violao daqueles princpios reveste, reflexo do papel axial que os mesmos tm vindo a cimentar no plano internacional.

    1 O presente texto acolhe, no essencial, a exposio feita pela autora no Curso de Ps-gra-duao sobre Justia Europeia dos Direitos do Homem, organizado pelo CEDIPRE e pelo Ius Gentium (Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra), bem como o enriquecimento resultante das questes e solicitaes apresentadas pelos Auditores. Apesar dos ajustamen-tos feitos, o propsito do presente texto continua a ser dominantemente pedaggico.

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    Por outro lado, tal ateno deve-se extrema volatilidade do fenmeno discriminatrio. Mal se consegue estabilizar o tratamento jurdico a dar a uma situao de discriminao, rapidamente surgem outras a demandar respostas inovadoras.

    Por ltimo, a ateno das instituies internacionais justificada porque, sendo os princpios da igualdade e da no discriminao parmetros jurdi-cos que fazem parte integrante do corpo do direito internacional e europeu dos Direitos do Homem 2, no suficiente, nem desejvel, deixar a sua concretizao meramente aos Estados, no s porque as concepes sobre igualdade vigentes no plano interno podem no corresponder s exigncias do direito internacional, mas tambm porque so muitas vezes aqueles Estados os responsveis pela criao ou manuteno de situaes de dis-criminao.

    O Conselho da Europa tem desenvolvido, desde a sua criao, um labor importante na garantia e promoo do respeito pelos direitos humanos na Europa, evidenciando-se, em particular, o papel da Conveno para a protec-o dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (Conveno Europeia dos Direitos do Homem) e do seu Tribunal: o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem3.

    Estes representam as duas fontes principais, uma de natureza conven-cional e outra de natureza jurisprudencial4, que se tm vindo a complemen-tar reciprocamente na consolidao do direito europeu dos Direitos do Homem, entre outros no domnio da no discriminao.

    Esta complementaridade evidenciada pelo facto de a jurisprudncia daquele Tribunal Europeu, suportando-se, nos moldes que veremos, no cat-

    2 Em geral, sobre o relevo do princpio da no discriminao no direito internacional, cfr. BAYEFSKY, Anne F., The principle of equality or non-discrimination in international law, Human rights law journal, vol. 11, n.os 1-2, 1990, e Non Discrimination in International Law A Hand-book for Pratictioners, KITCHING, Kevin (ed.), INTERIGHTS, 2005 (http://www.interights.org//handbook/index.htm), acesso em 5 de Fevereiro de 2011. Especificamente sobre as relaes entre o direito internacional e os direitos do homem e sobre a especificidade do direito euro-peu e internacional dos Direitos do Homem, cfr. SUDRE, Frederic, Droit Europeen Et Interna-tional Des Droits De L'Homme, 10. ed., Paris: PUF, 2011.

    3 Ao ponto de o Tribunal ter considerado a Conveno Europeia dos Direitos do Homem como um instrumento constitucional da ordem pblica europeia no Acrdo Loizidou contra Turquia, de 23 de Maro de 1995 (40/1993/435/514). Entre ns, MOURA RAMOS, entende que este no apenas um texto mais de entre os muitos que, a um nvel internacional, se debruam sobre a temtica da proteco dos direitos fundamentais, pois tem desempenhado, pelo seu con-tedo material, disposies processuais de tutela e efeitos, um papel insubstituvel no aden-sar da conscincia jurdico-poltica europeia. Rui Manuel Gens de Moura Ramos, A Con-veno Europeia dos Direitos do Homem. Sua posio face ao ordenamento jurdico portugus, Da Comunidade Internacional e do seu Direito Estudos de Direito Internacional Pblico e Relaes Internacionais, Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 103.

    4 POPESCU, Orneliu-Liviu, Le catalogue des droits de lhomme dans la Convention Europenne Une structure fige?, Les Droits Fondamentaux dans LUnion Europenne Dans le sillage de la Constitution Europenne, RIDEAU, Joel (ed.), Bruxelles: Bruylant, 2009, p. 45, considera que o sistema europeu dos direitos do homem reveste uma natureza mista, expri-mindo o princpio da solidariedade entre a fonte convencional e a fonte jurisprudencial.

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    logo de direitos includos na Conveno, no ter cessado de, criativamente, conformar este catlogo e conferir-lhe novas dimenses de relevncia.

    Mas tambm a Conveno tem evoludo, sobretudo por intermdio da aprovao de Protocolos Adicionais, em particular, no que ora interessa, da aprovao do Protocolo n. 12, adoptado em 4 de Novembro de 2000, tentando acompanhar, desta forma, o passo da evoluo em matria de proteco dos direitos do homem e alicerando o seu papel cimeiro neste domnio.

    2. IGUALDADE E NO DISCRIMINAO

    O artigo da Conveno Europeia dos Direitos do Homem que chamar dominantemente a nossa ateno, ainda que no de forma isolada, o 14., de acordo com o qual o gozo dos direitos e liberdades reconhecidos na presente Conveno deve ser assegurado sem quaisquer distines, tais como as fundadas no sexo, raa, cor, lngua, religio, opinies polticas ou outras, a origem nacional ou social, a pertena a uma minoria nacional, a riqueza, o nascimento ou qualquer outra situao.

    Esta disposio encontra-se pejada de sentido, que comea, desde logo, no momento de determinao das situaes de desigualdade que recaem no seu mbito de aplicao.

    Como se depreende da sua epgrafe Proibio de Discriminao o artigo 14. da Conveno Europeia dos Direitos do Homem aplica-se expressamente a situaes de desigualdade qualificada ou de verdadeira discriminao. No se trata apenas de proibir distines irrazoveis ou des-proporcionadas, mas de defender a dignidade da pessoa humana, vedando a utilizao de critrios diferenciadores especialmente censurveis que a coloquem em causa, e que so exemplificativamente indicados no corpo daquele artigo. O que se pretende, enfim, evitar que a igualdade seja afirmada, ao passo que a discriminao a forma mais infame de desigual-dade continue a ser praticada5.

    Tendo como pano de fundo o conceito plurisignificativo de igualdade, que, numa teorizao genericamente aceite6, tem vindo a ser desdobrado em trs dimenses distintas a proibio do arbtrio, a obrigao de dife-renciao e a proibio de discriminao situamo-nos no mbito desta

    5 Neste sentido, OBERDORFF, Henri, Droit de LHomme et Liberts Fondamentales, Paris: LGDJ, 2010, 2. ed., p. 333.

    6 Inclusive pela autora, nos artigos que dedicou a esta temtica [Princpio da No Discrimina-o em Razo do Sexo na Ordem Jurdica Comunitria, Temas de Integrao, nmero 8, 2. Semestre, 1999, e, em parceria com SILVA, Lucinda Dias da, Xadrez Policromo: A Direc-tiva 2000/43/CE do Conselho e o Princpio da No Discriminao em Razo da Raa e Origem tnica, Estudos Dedicados ao Prof. Doutor Mrio Jlio de Almeida Costa, Gomes//Jlio (coord.), Lisboa: Universidade Catlica Editora, 2002]. Cfr., para maiores desenvolvi-mentos, a bibliografia indicada nesses artigos.

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    ltima, precisamente aquela que, em virtude da sua especial gravidade7, mais tem estado na mira das instncias internacionais e europeias.

    A discriminao como teremos oportunidade de analisar tendo por base a jurisprudncia do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem , uma realidade polimorfa, muitas vezes encapotada e difcil de comprovar, sobretudo devido:

    i) ao vasto leque de motivaes que lhe podem dar origem; ii) aos seus mltiplos campos de actuao (emprego, formao pro-

    fissional, segurana social, ensino, habitao, vida privada, pro-priedade, etc.);

    iii) ao seu carcter evolutivo, j que situaes de diferenciao no censurveis ou tolerveis num determinado momento podem, mais tarde, no passar o crivo do princpio da no discriminao.

    No mbito da aplicao da Conveno Europeia dos Direitos do Homem, a temtica da no discriminao adquire acrescida complexidade, essencial-mente por dois motivos:

    i) Em causa est a apreciao de medidas estatais adoptadas, mui-tas vezes, num quadro de ampla discricionariedade, o que levanta o problema do reconhecimento (ou do grau de reconhecimento) da margem de apreciao estatal e, em paralelo, suscita a ques-to do consenso (mais ou menos alargado) que se pode inferir das concepes nacionais e internacionais vigentes sobre deter-minadas situaes discriminatrias. E grandemente do balano destas duas variveis que depende a formao da convico do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, sobretudo nos casos mais difceis com os quais se tem confrontado8.

    ii) O artigo 14. apenas se aplica ao estabelecimento de distines que afectem o reconhecimento ou gozo de quaisquer direitos reconhecidos pela Conveno9.

    7 De facto, o princpio da no discriminao assenta em critrios especialmente reprovveis, implicando uma sistemtica ou relevante preterio dos membros de um grupo ou categoria social (discriminao em funo da origem tnica, nacionalidade, condio social), ou de indivduos que ostentam certas qualidades pessoais, inatas ou adquiridas (discriminao em funo da ascendncia, convices poltico-ideolgicas, sexo).

    8 A metodologia seguida pelo Tribunal tem vindo a centrar-se numa anlise cruzada entre as disposies nacionais pertinentes e as disposies de direito internacional relevantes no domnio em que se inscreve a questo sub iudicio. Desta forma, tem o Tribunal, na pers-pectiva de LETSAS, George, The Theory of Interpretation of the European Convention on Human Rights, Oxford: Oxford University Press, 2007, p. 74-79, desenvolvido uma noo de consenso hipottico ou autnomo, isto , uma noo que no repousa necessariamente nas perspectivas acolhidas na maioria dos Estados membros, mas numa leitura substancial dos direitos a proteger.

    9 O que leva alguns autores impressivamente a referir-se natureza parastica desta dispo-sio [JANIS, Mark W./KAY, Richard S./BRADLEY, Anthony W., European Human Rights Law Text and Materials, 3. ed., Oxford: Oxford University Press, 2008, p. 457].

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    Efectivamente, dentro do mecanismo disposto na Conveno, o artigo 14. no tem existncia independente, na medida em que necessita de se ligar a um dos direitos ou liberdades previstos na Conveno ou seus Protocolos.

    No entanto, o facto de o artigo 14. ser uma disposio complementar de outras previstas na Conveno no significa que no lhes imprima um especfico e insubstituvel sentido normativo, enriquecendo-as pelo facto de as perspectivar a uma nova luz: luz do princpio da no discriminao10. Nem significa que o artigo 14. no possa, nalgumas hipteses, ser mobilizado isoladamente para firmar uma violao Conveno Europeia dos Direitos do Homem.

    J em 23 de Julho de 1968, no caso Regime Lingustico do Ensino na Blgica (queixas n.os 1474/62, 1677/62, 1691/62, 1769/63, 1994/63 e 2126/64), o Tribunal admitiu que uma medida pode consubstanciar um tratamento dis-criminatrio sem ofender per se qualquer direito consagrado. Basta, para o efeito, que o reconhecimento do direito em causa no seja exigido pela Con-veno (isto , que no se inclua no mbito normativo de um dos direitos ou liberdades nela previstos, como sucede com a no obrigatoriedade, luz da Conveno, de previso de tribunais de recurso), mas que, tendo sido reco-nhecido pelo Estado no seu direito interno, o tenha sido em moldes discrimi-natrios11.

    No se trata, porm, de reconhecer uma total autonomia ao artigo 14. porque a sua actuao encontra-se sempre limitada ao ncleo de direitos e liberdades abrangidos na Conveno e seus Protocolos. Por isso mesmo, nalgumas situaes em foi alegada a ocorrncia de discriminao, o Tribunal optou por interpretar mais amplamente aqueles direitos para poder apreciar a existncia de diferenciaes com base em critrios suspeitos. Por exemplo, no Acrdo Gaygusuz contra ustria, de 16 de Agosto de 1996 (queixa n. 17371/90) considerou que um auxlio de emergncia era anlogo a uma contribuio, de modo a integr-lo no mbito do artigo 1. do Protocolo 1 Conveno e, assim, analisar a subjacente questo discriminatria.

    Quando seja alegada a violao de um direito substancial da Conveno, individualmente ou em ligao com o artigo 14., entende tradicionalmente o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que no tem de considerar o caso de acordo com o disposto no artigo 14., excepto se a situao for de clara desigualdade de tratamento [cfr. Acrdo Dudgeon c. Reino Unido, de 22 de

    10 Daniel MOECKLI chega mesmo a afirmar que, no obstante as limitaes apontadas, na jurisprudncia do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que os elementos da discrimina-o se encontram articulados da melhor forma [MOECKLI, Daniel, Human Rights and Non-Dis-crimination in the War on Terror, Oxford: Oxford University Press, 2008, p. 73].

    11 Cfr., recentemente, o acrdo Carson e o. contra Reino Unido, de 16 de Maro de 2010 (42184/05), em matria de segurana social. Do mesmo modo, pode em causa estar uma derrogao admitida pela Conveno a um dos direitos nela previstos, por exemplo o de liberdade de expresso, mas que apenas aplicada em relao a um ncleo determinado de indivduos.

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    Outubro de 1981 (queixa n. 7525/76)] ou quando o pedido se referir, sobretudo, a uma situao de tratamento discriminatrio [cfr. Acrdo Brauer c. Alemanha, de 28 de Maio de 2009 (queixa n. 3545/04)]. Ser, assim, em regra, suficiente que se firme a violao com base num outro dispositivo da Conveno, dis-pensando-se a anlise da mesma questo luz do artigo 1412.

    Estas limitaes no tm impedido que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tenha vindo, na opinio de Jean-Franois RENUCCI, que compar-tilhamos, a transformar a obrigao negativa de no discriminar que impende sobre os Estados, numa obrigao positiva e forte, de assegurar o respeito pelo princpio da igualdade nas vrias esferas da vida social13.

    Este trajecto jurisprudencial encontrou no Protocolo n. 12 um aliado potencialmente precioso, ainda que, por ora, pouco operativo14. Este Protocolo representa, em definitivo, a autonomizao dos princpio da igualdade e da no discriminao no acervo da Conveno, de modo a permitir o seu escru-tnio relativamente a direitos ou liberdades reconhecidas no direito interno dos Estados-membros, mas que vo alm do mbito normativo da Conveno. Ainda assim, nos termos dispostos no artigo 3. do Protocolo n. 12, este no substitui o artigo 14. da Conveno, antes o completa, em moldes a deter-minar pelo Tribunal15.

    Apesar de neste Protocolo se conceber o direito no discriminao como uma clusula normativa aplicvel por si mesma uma self-standing clause e, por isso, com ela se abranger um conjunto praticamente ilimitado de situaes de alegada discriminao, tal no justifica, a nosso ver, a des-confiana que lhe tem sido dirigida.

    Efectivamente o mesmo no altera os moldes pelos quais as situaes de discriminao tm sido analisadas e afirmadas ou rejeitadas pelo Tribunal, pelo que continua a ser necessrio provar a existncia de uma diferenciao ao abrigo de um critrio suspeito e a ausncia de um fundamento bastante e proporcional para a justificar. E esta anlise, sobretudo quando em causa estejam situaes relativamente s quais no haja suficiente consolidao

    12 Da desnecessidade de apreciao da violao alegada com base no artigo 14. da mesma Conveno resulta, para de BECO, Gauthier, Le Protocole n. 12 la Convention Europenne des Droits de LHomme, Revue Trimmestrielle des Droits de LHomme, 83, 2010, p. 597, uma importncia secundria do discurso da no discriminao, o que contrasta com a impor-tncia deste princpio no domnio dos Direitos do Homem.

    13 RENUCCI, Jean-Franois, Droit Europen des Droits de LHomme Contentieux Europen, 4. ed., Paris: LGDJ, 2010, p. 84.

    14 Este Protocolo apenas foi ratificado por 17 Estados (muitos deles Partes Contratantes recen-tes do Conselho da Europa), estando apenas em vigor nestes. Cfr. lista disponvel em http://con-ventions.coe.int/Treaty/Commun/ChercheSig.asp?NT=177&CM=8&DF=10/31/2008&CL=ENG, acesso em 5 de Fevereiro de 2011. Portugal assinou o Protocolo n. 12, mas ainda no procedeu sua ratificao.

    15 O relatrio de explicao do Conselho da Europa a este Protocolo pode ser consultado em http://www.humanrights.coe.int/Prot12/Protocol%2012%20and%20Exp%20Rep.htm. Entre ns vide os comentrios de BARRETO, Ireneu Cabral, A Conveno Europeia dos Direitos do Homem Anotada, 4. ed., Coimbra: Wolters Kluwer/Coimbra Editora, 2011.

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    doutrinal ou jurisprudencial no plano internacional, no pode deixar de ter em linha de conta as especificidades nacionais, como, alis, tem sido afirmado pelo Tribunal. O que para ns significa que, ao abrigo do Protocolo n. 12 a inter-pretao do Tribunal em matria de no discriminao no ser mais volunta-rista do que j o hoje ao abrigo do artigo 14. da Conveno16.

    Todavia, com o Protocolo n. 12 que dado um passo significativo no sentido da admissibilidade de aces positivas, luz da Conveno Europeia dos Direitos do Homem17. Esta possibilidade resulta da constatao da insu-ficincia de, apenas por intermdio da proibio de discriminao, se obter uma igualdade efectiva, assumindo aquelas aces positivas uma funo correctora e compensadora de determinadas estruturas sociais concebidas com base num paradigma de igualdade formal e no substancial.

    A aproximao seguida , ainda assim, de cautela, pois tais medidas, admitidas pelo Protocolo, para alm de terem de ser adequadas e proporcio-nais ao objectivo a prosseguir sob pena de se converterem num instrumento de acentuao de desigualdades e no da sua correco no podem ser impostas directamente a privados18. As nicas situaes em que as aces positivas podem beneficiar de efeito directo horizontal, de acordo com o rela-trio explicativo ao Protocolo n. 12, so aquelas includas num contexto regulatrio de direito pblico, no qual o Estado assume especiais responsa-bilidades, como sucede no acesso ao trabalho ou a determinados bens e servios.

    16 No obstante esta nossa apreciao, no deixamos de reconhecer que a primeira deciso do Tribunal com base neste Protocolo foi, claramente, assertiva [cfr. Acrdo Sejdic e Finci contra Bosnia e Herzgovina, de 22 de Dezembro de 2009 (queixas n.os 27 996/06 e 34 836/06)]. No entanto, tambm no vemos como poderia ter sido de outra forma, mesmo que a anlise tivesse sido feita luz do artigo 14. da Conveno em face do motivo diferenciador que em causa estava origem tnica , e que exige um nvel de escrutnio particularmente ele-vado.

    17 Note-se, no entanto, que estas aces eram j admitidas, no mbito do Conselho da Europa em textos convencionais, como a Carta Europeia sobre as Lnguas Regionais ou Minoritrias, de 1992 e a Conveno Quadro para a Proteco das Minorias Nacionais, de 1995, ou em actos unilaterais, como a Recomendao de Poltica Geral n. 8 sobre como lutar contra o racismo enquanto combatendo o terrorismo, de 2004, advinda da Comisso Europeia contra o Racismo e a Intolerncia (ECRI).

    DE SCHUTTER, Olivier, Positive Action, Materials And Text On National, Supranational And International Non-Discrimination Law Ius Commune Casebooks for the Common Law of Europe, SCHIEK, Dagmar/WADDINGTON, Lisa/BELL, Mark (eds.), Oxford: Hart Publishing, 2007, p. 794-796, considera mesmo que da Conveno e da jurisprudncia do Tribunal (bem como dos votos de vencido dos juzes deste), se pode retirar, com ou sem o protocolo n. 12, a admissibilidade destas aces positivas, desde que a diferena que delas resulte corresponda a um fim legtimo e as medidas adoptadas lhe sejam proporcionais.

    18 Sobre esta problemtica, cfr., por todos, ALKEMA, Albert Evert, The third-party applicability or Drittwirkung of the European Convention on Human Rights, Protecting Human Rights: The European Dimension; Studies in honour of Grard J. Wiarda, MATSCHER, Franz/PETZOLD, Her-bert (eds.), 2. ed., Kln: Carl Heymanns Verlag, 1990, e HEYMANN-DOAT, Arlette, Le Respect ds Droits de LHomme dans les Relations Prives, Cinquantime Anniversaire de la Conven-tion Europenne des Droits de l Homme, TEITGEN-COLLY, Catherine (ed.), Bruxelles: Nemesis//Bruylant, 2002.

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    Julgamos, no entanto, que no sero apenas estes os caso em que obri-gaes prximas daquelas so admitidas ou, mesmo, demandadas pela Con-veno. De facto, a jurisprudncia do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem vindo a apurar o conceito de obrigaes positivas 19, enquanto obrigao de disponibilizao de recursos aos indivduos, para que dessa forma se pre-vinam ou reajam contra possveis violaes dos seus direitos, ainda que come-tidas por terceiros. Os Estados so, assim, responsveis, em algumas situa-es, no s por violarem por aco os direitos reconhecidos pela Conveno, mas tambm por no terem criado condies para o seu gozo, nomeadamente assegurando que terceiros no os coloquem em causa.

    Estas obrigaes, ainda que surjam em contextos que no envolvem necessariamente a concorrncia de fenmenos discriminatrios como sucede com a obrigao positiva de investigao ou proteco policial no deixam de a conhecer um mbito de aplicao frutfero20. Isto na medida em que a prpria conceptualizao da discriminao, numa dimenso subs-tancial, impe no apenas o tratamento igual de situaes iguais, mas igual-mente o tratamento desigual de situaes desiguais, na medida dessa desi-gualdade, salvo se, em qualquer um dos casos, houver motivos objectivos e razoveis que permitam concluir em sentido inverso. E esta pluralidade dentro do conceito de discriminao que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem no ignora e tem vindo a acolher de forma expressa em jurisprudn-cia que data de h j uma dcada [cfr. Acrdo Thlimmenos contra Grcia, de 6 de Abril de 2000 (queixa n. 34 369/97)]21.

    Julgamos, no entanto, particularmente impressivo o Acrdo Connors contra Reino Unido de 27 de Maio de 2004 (queixa n. 66 746/01), no qual, o Tribunal considerou violadora do artigo 8. (ainda que sem o aliar ao artigo 14.) a cessao de uma medida de apoio positivo a uma minoria (disponibilizao de espaos para as comunidades nmadas), por considerar que aquela ces-sao colocava considerveis obstculos possibilidade destes prosseguirem

    19 Cfr. o relevante estudo de MOWBRAY, Alastair L, The Development of Positive Obligations under the European Convention on Human Rights by the European Court of Human Rights. Oxford: Hart Publishing, 2004.

    20 O que justifica que alguns autores, inclusive, proponham a diferenciao entre o conceito de discriminao activa e o conceito de discriminao passiva, incluindo neste ltimo as situaes em que o Estado se abstm de tomar as medidas necessrias (positivas) para prevenir ou remediar a ocorrncia de situaes discriminatrias. Cfr. ARNARDTTIR, Oddn Mjll, Equality and Non Discrimination under the European Convention on Human Rights, The Hague: Kluwer Law International, 2003, p. 107-116.

    21 Neste Acrdo considerou o Tribunal que, se at ento o artigo 14. tinha sido mobilizado para censurar as situaes em que os Estados tratavam de forma diferente pessoas em situaes similares sem que houvesse uma justificao razovel e objectiva, teria de ser entendido como abrangendo tambm os casos em que os Estados, sem a mesma justificao, no tratem de forma diferente pessoas cujas situaes eram diferenciadas. E f-lo para considerar que a impossibilidade de contratao de um indivduo por ter sofrido uma conde-nao anterior, sem considerao do tipo especfico de condenao em causa (esta estava relacionada com a recusa de envergar o uniforme militar, motivada pelas convices religio-sas do queixoso), violava o princpio da no discriminao.

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    um estilo de vida nmada, ao mesmo tempo que excluam de proteco os que decidiam adoptar um estilo de vida mais sedentrio22.

    3. DISCRIMINAO DIRECTA E DISCRIMINAO INDIRECTA

    O tratamento jurdico dado aos fenmenos discriminatrios conheceu uma viragem decisiva com a evoluo de uma concepo de discriminao assente apenas no momento inicial/ normativo da diferenciao de tratamento (discriminao directa) para uma outra sensvel aos resultados do comporta-mento discriminatrio (discriminao indirecta).

    Sucintamente, h lugar a discriminao directa quando uma determinada regulamentao estabelece uma diferenciao tendo por base, expressamente ou no, um critrio proibido, que implique a produo de um resultado discri-minatrio. Trata-se, portanto, de uma discriminao aberta, formal ou osten-siva, ainda que no tenha de ser intencional. Esta modalidade de discrimi-nao s afecta negativamente os membros do grupo discriminado, tornando impossvel que qualquer outro indivduo seja prejudicado pela medida adoptada (por exemplo, proibio de entrada num pas por se pertencer a uma espe-cfica etnia ou despedimento por gravidez).

    Por seu turno, a discriminao indirecta resulta do emprego de um cri-trio neutro, mas que produz resultados anlogos aos obtidos pela aplicao de um critrio de distino proibido, uma vez que afecta desproporcionalmente os membros de um grupo, em detrimento dos membros de outro. Esta moda-lidade de discriminao traduz-se num obstculo ou exigncia que se aplica indistintamente a todas as pessoas e que, em abstracto, todas estaro em condies de satisfazer mas que, devido a razes de vria ndole (biolgicas, culturais, econmicas, etc.), ligadas incluso numa categoria suspeita, em concreto, um conjunto menos elevado das pessoas includas naquela catego-ria consegue satisfazer ou ultrapassar.

    22 Pronunciando-se sobre os efeitos positivos resultantes deste acrdo, CAHN, Claude Towards Realising a Right to Positive Action for Roma in Europe: Connors v. UK, Roma Rights Quarterly, n. 1, 2005 (http://www.errc.org/en-research-and-advocacy-roma-details.php?article_id=2208), acesso em 5 de Fevereiro de 2011. J no Acrdo Chapman contra Reino Unido, de 18 de Janeiro de 2001 (queixa n. 27238/95), e em outro quatro Acrdos do mesmo ano, a pronncia do Tribunal foi diversa. Naquele, a requerente alegou que as medidas de planeamento e policiais tomadas relativamente ocupao da sua prpria terra com caravanas violava o artigo 8. da Conveno, em articulao com o artigo 14., por pertencer minoria cigana. Em concreto, a rea adquirida pela requerente encontrava-se situada no cinturo verde metropolitano, no qual eram vedados usos urbansticos. Tambm no existia stio oficial para caravanas nas proximidades. Ainda assim, o Tribunal entendeu que, apesar do crescente apoio internacional sobre providenciar proteco legal a minorias, que conduz a que qualquer margem de apre-ciao nacional deva ser mais estreita do que ampla, o facto de a queixosa pertencer a uma minoria com um estilo de vida diferente do tradicional no lhe confere qualquer imunidade relativamente ao cumprimento de leis gerais pr-ordenadas defesa de interesses da comu-nidade vista como um todo. Concluiu, enfim, que a interferncia com os direitos da requerente era proporcional ao fim legtimo de proteco do ambiente.

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    Esta distino entre discriminao directa e indirecta tem vindo a mere-cer recentes consagraes polticas, legislativas e jurisprudenciais, inclusive no mbito do Conselho da Europa23.

    Tradicionalmente, porm, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem no procedia distino entre estas duas formas de discriminao, aproximando-se mais da teorizao da discriminao directa, o que encontrava justificao na natureza essencialmente individual dos direitos e liberdades reconhecidos pela Conveno24.

    Mas a evoluo da jurisprudncia deste Tribunal tem vindo a fazer-se, decisivamente, no sentido da ampliao das virtualidades do princpio da no discriminao e da individualizao do fenmeno, menos bvio mas frequente, da discriminao indirecta.

    Podemos mesmo situar os primrdios desta individualizao no Acrdo Hugh Jordan contra Reino Unido, de 4 de Maio de 2001 (queixa n. 24 746/94), nos termos do qual where a general policy or measure has disproportionately prejudicial effects on a particular group, it is not excluded that this may be considered as discriminatory notwithstanding that it is not specifically aimed or directed at that group.

    Ainda que neste aresto no se tenha concludo pela violao da Con-veno, lanaram-se as bases para que esta questo viesse ser de novo, e a breve trecho, arguida perante o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.

    No Acrdo Hoogendjik contra os Pases Baixos, de 6 de Janeiro de 2005 (queixa n. 58 641/00), apesar de o Tribunal ter concludo, igualmente, pela improcedncia da queixa, no deixou de acentuar que os dados estats-ticos poderiam ser suficientes para fazer impender sobre os requeridos a justificao do tratamento diferenciado.

    Mas foi no Acrdo Nachova e. o. contra Bulgria, de 6 de Julho de 2005 (queixas n.os 43 577/98 e 43 579/98) e em acrdos posteriores tirados na sequncia da comportamentos e regulamentaes discriminatrias em funo da origem tnica, que o Tribunal desenvolveu, pela positiva, o seu entendi-mento do fenmeno da discriminao indirecta (cfr. infra ponto 5.a.ii.).

    O que no significa que esta dogmtica no possa ser mobilizada, com sucesso, na apreciao de outros critrios suspeitos. Alis, foi precisamente isso que sucedeu no Acrdo Zarb Adami contra Malta, de 20 de Junho de 2006 (queixa n. 17 209/02), no qual Tribunal condenou uma prtica estabelecida (mas no fundada legislativamente) segundo a qual, por via de dispensas ou

    23 Veja-se, por exemplo, a Recomendao de Poltica Geral n. 7 sobre a legislao nacional para lutar contra o racismo e a discriminao racial, emitida pela Comisso Europeia contra o Racismo e a Intolerncia do Conselho da Europa, que distingue expressamente entre discriminao directa e indirecta, fazendo apelo aos ensinamentos colhidos no Direito da Unio Europeia.

    24 Mesmo assim, num caso, recente, em que estaria em causa uma situao tpica de discri-minao directa atinente regulamentao do aborto o Tribunal considerou no ter de analisar esta questo, em face da j afirmada violao do artigo 8. da Conveno [Acr-do A. B. e C. contra Irlanda, de 16 de Dezembro de 2010 (queixa n. 25 579/05)].

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    do modo de formao das listas, os homens eram, de acordo com evidncias estatsticas, chamados muito mais vezes a prestar servio cvico de jri do que as mulheres.

    4. DISCRIMINAO E PROVA

    Os problemas probatrios que a discriminao desperta so uma dimen-so essencial do fenmeno em causa e so a principal razo de ndole pragmtica que justifica a distino entre discriminao directa e discriminao indirecta.

    O processo de afirmao de uma situao de discriminao composto, em qualquer uma destas situaes, por duas fases sucessivas: a deteco de uma eventual diferenciao de tratamento e a demonstrao que, em princpio, o critrio diferenciador aplicado irrelevante para a justificar, por no se fundar em motivos suficientes para o efeito.

    Nos casos de discriminao directa, o essencial da actividade probatria naquela primeira fase traduz-se numa comparao entre casos concretos, pois ao demandante que incumbe alegar ter sido vtima de discriminao, mediante comparao concreta da sua situao com a de um indivduo que no pertena categoria suspeita. Em regra bastar uma anlise compara-tiva concreta entre dois indivduos que se encontrem em situaes relevan-temente similares 25 e a demonstrao do nexo de causalidade entre a utili-zao do critrio proibido e o prejuzo sofrido, para constatar a existncia de uma discriminao directa26.

    A apreciao da similitude ou analogia de situaes leva muitas vezes o Tribunal a comparar, em concreto, as posies jurdicas ou o ncleo de direitos e deveres que compem os status em confronto, para aferir da exis-tncia de uma discriminao. Tal sucedeu no Acrdo Paulik contra Eslov-quia, de 10 de Outubro de 2006 (queixa n. 10 699/05), no qual o Tribunal considerou que, no obstante existam algumas diferenas entre as situaes de paternidade declaradas em juzo e as situaes de paternidade presumida, essas diferenas no eram suficientes para escamotear o facto de o estatuto de pai ser essencialmente o mesmo nos dois casos e, portanto, dever ser

    25 No Acrdo Fredin contra Sucia, de 22 de Janeiro de 1991 (29/1989/189/249), considerou o Tribunal que os queixosos no provaram estar numa situao suficientemente similar queles empresrios cujas licenas de explorao no haviam sido revogadas, uma vez que apenas alegaram, sem mais provarem, terem sido eles os nicos a ver as suas licenas revogadas.

    26 No entanto, situaes complexas h em que a escolha do elemento de comparao (tertium comparationis), no bvia (comparao de um transexual feminino com um transexual masculino ou com uma pessoa do sexo que o transexual ostentava previamente? compara-o de um homossexual feminino com um homossexual masculino ou com um homem heterossexual?) e outras em que no h sequer elemento de comparao, por falta de equi-valncia objectiva do mesmo facto (caso da gravidez).

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    admitida tambm em ambos a possibilidade de impugnao da paternidade. Como se refere excelentemente numa passagem deste aresto, the fact that there are some differences between two or more individuals does not preclude them from being in sufficiently comparable positions and from having suffi-ciently comparable interests.

    Nas hipteses de discriminao indirecta, o processo probatrio envolve uma comparao entre grupos e no apenas entre indivduos, aliando uma anlise sociolgico/estatstica anlise jurdica. Desta comparao deve resultar, para que se firme uma actuao discriminatria, que a disposio, critrio ou prtica aparentemente neutra afecta, em regra, um conjunto con-sidervel ou persistentemente mais elevado de pessoas de um sexo e que aquelas medidas no so adequadas e necessrias para a consecuo de objectivos legtimos no relacionados com o critrio suspeito.

    Em geral, incumbe ao demandante provar que a aplicao de um crit-rio que, embora se aplique indistintamente a ambos os sexos, afecta prepon-derantemente e de forma negativa os membros de um face aos membros de outro. O demandante dever, mediante apelo a critrios suspeitos ou dados estatsticos suficientemente representativos, por exemplo, estabelecer factos que permitam concluir por uma presuno ou aparncia de discriminao indirecta. Ter, por isso, que provar que o nmero consideravelmente mais elevado de pessoas afectado pela medida pertencem a uma determinada categoria ou que existem diferenas menos importantes mas persistentes entre os pertencentes a esta categoria e as demais pessoas. Compete, por seu turno, ao demandado provar que aquelas diferenas so justificadas por um fim legtimo e necessrias para o atingir.

    Estas exigncias de prova de uma situao de discriminao indirecta e os termos da sua repartio tm sido, com efeito, aplicados pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.

    Por um lado, asseverou j aquele Tribunal a irrelevncia da intenciona-lidade ou da vontade de discriminar da parte demandada, como resulta do D. H. e o. contra Repblica Checa, de 13 de Novembro de 2007 (queixa n. 57 325/00). Em contrapartida, passou essencialmente a repousar, para afirmar a existn-cia de uma situao de discriminao indirecta, nos dados estatsticos cons-tantes do processo.

    Mais recentemente, ainda, constata-se a passagem de uma concepo quantitativa para uma leitura qualitativa dos fenmenos de discriminao indirecta, ao ter aquela instncia jurisdicional abdicado da necessria relevn-cia das estatsticas e passado a admitir, com alguma generosidade, outros elementos de prova, sem, contudo, os individualizar (cfr. Acrdo ORU e. o. contra Crocia, de 16 de Maro de 2010 (queixa n. 15 766/03)]27.

    27 Este alargamento no foi visto, porm, sem apreenso por parte de alguns juzes do Tri-bunal, em voto de vencido parcial com que acompanharam o Acrdo, por terem conside-rado que o Tribunal se preocupou mais em teorizar sobre os contornos das situaes de

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    Tambm quanto tarefa probatria que deve ser desenvolvida pelos Estados requeridos, tem vindo o Tribunal Europeu a colocar-se em sintonia com a teorizao da discriminao indirecta. Efectivamente, considerou aquele Tribunal, designadamente no Acrdo Nachova e. o. c. Bulgria, de 6 de Julho de 2005 (queixas n.os 43 577/98 e 43 579/98), que, em face das particulares dificuldades a nvel da produo da prova, o Tribunal pode retirar concluses negativas quanto imposio do nus da prova ao Estado requerido. Na hiptese concreta, considerou que a conduta das entidades de investigao, que esconderam a natureza excessiva da fora policial usada contra duas pessoas de etnia Roma e a omisso dos insultos racistas pronunciados, exi-gia uma mudana do nus da prova. Pelo que corresponderia ao Governo oferecer provas adicionais e evidentes de inexistncia de motivaes e efeitos discriminatrios, o que no sucedeu.

    No mesmo sentido foi o Acrdo Stoica contra Romnia, de 4 de Maro de 2008 (queixa n. 42 722/02), segundo o qual, em face de uma situao de maus tratos relativamente a uma criana de etnia Roma, ocorridos j na presena da polcia, o Tribunal considerou que cumpria s autoridades provar que o incidente foi racialmente neutral, o que no foi feito no caso28.

    J no Acrdo Opuz contra Turquia, de 9 de Junho de 2009 (queixa n. 33 401/02), a requerente alegou que as vrias violaes Conveno em razo de violncia domstica (artigos 2., 3., 6. e 13.), resultavam de uma prtica discriminatria enraizada, da qual resultava que o valor da vida de uma mulher era inferior ao interesse da unidade familiar. Confiando em dados de organizaes no governamentais sobre violncia familiar e analisando os dficits na aplicao da lei (ao nvel policial e judicial), o Tribunal considerou que a queixosa havia provado (com base em dados estatsticos), prima facie, como lhe incumbia, que a violncia afectava dominantemente mulheres, aca-bando por asseverar que a passividade geral e discriminatria dos poderes judiciais turcos conduzia a um clima propiciador da violncia domstica.

    Em qualquer caso, porm, o Tribunal considerado legtimo que quem pretenda beneficiar de um direito reconhecido pela Conveno tenha de provar determinados factos pessoais [por exemplo, o facto de professar uma determi-nada religio, como decidido no Acrdo Kosteski contra A ex-Repblica Jugos-lava da Macednia, de 13 de Abril de 2006 (queixa n. 55 170/00)].

    discriminao indirecta do que em afirmar, com base em provas suficientemente convin-centes, que a mesma existiu.

    28 Estas decises seguem-se ao Acrdo Anguelova contra Bulgaria, de 13 de Junho de 2002 (queixa n. 38 361/97), no qual, numa situao com contornos similares, o Tribunal havia con-siderado que cumpria ao queixoso provar, para alm de uma dvida razovel, que os maus tratos e morte de um indivduo de etnia Roma tinham sido motivados por este facto. Este Acrdo foi acompanhado por um voto de vencido do Juiz Bonello que se insurgiu nos seguintes moldes contra o sentido maioritrio do Tribunal: Kurds, coloureds, Muslims, Roma and others are again and again killed, tortured or maimed, but the Court is not persuaded that their race, colour, nationality or place of origin has anything to do with it. Misfortunes punctually visit disadvantaged minority groups, but only as the result of well-disposed coincidence."

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    5. CRITRIOS SUSPEITOS

    Quer se trate de discriminao directa ou de discriminao indirecta, essencial que se afirme que as diferenciaes introduzidas foram determina-das ou movidas por motivos especialmente odiosos e tico-juridicamente condenveis.

    Todavia, em virtude da ineliminvel dinamicidade destas questes, a maioria dos catlogos anti-discriminatrios no dispem de um campo de aplicao fechado, admitindo que sejam decantados, sobretudo ao nvel juris-prudencial, novos critrios suspeitos.

    isso precisamente que acontece no artigo 14. da Conveno Europeia dos Direitos do Homem (e no artigo 1., n. 1, do Protocolo n. 12), que remetem para a concretizao constitutiva das suas determinaes por parte do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. E diga-se, em abono da ver-dade, que este rgo no se tem escusado de levar a cabo tal tarefa de forma cada vez mais criteriosa, procurando a identificao de diferenas de tratamento baseadas em caractersticas identificveis da pessoa ou num determinado status, que possam ser includas no conceito de discriminao.

    Num grande nmero de casos, esta procura tem levado a uma amplia-o dos critrios suspeitos relativamente aos elencados expressamente no artigo 14.

    Noutras situaes, porm, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem excludo a relevncia dos fenmenos discriminatrios por entender que no h qualquer critrio suspeito que permita lanar a dvida sequer sobre as diferen-as de tratamento em anlise. Neste sentido veja-se o caso Burden contra Reino Unido, de 29 de Abril de 2008 (queixa n. 13 378/05), no mbito do qual aquele Tribunal considerou que a sujeio de irms, que sempre viveram juntas, a um imposto hereditrio no era discriminatrio, tendo por comparao com a ausncia de tal imposto no caso de heranas a favor de esposos.

    Pode ainda individualizar-se um terceiro ncleo de situaes, menos frequentes, mas relevantes, nas quais Tribunal Europeu dos Direitos do Homem lana mo do artigo 14., mas sem que encontre um claro critrio suspeito. caso do Acrdo Beian contra Romnia, de 6 de Dezembro de 2007 (queixa n. 30 658/05), no qual o Tribunal considerou que a mera circunstn-cia de o Sr. Beian ter prestado servio militar numa determinada unidade precludir o auferimento de regalias acessveis a outras unidades, conduzindo pronncia de decises diametralmente opostas, por vezes no mesmo dia e sob a gide de uma mesma legislao, violava o princpio da segurana jurdica. Na verdade, como o prprio Tribunal acaba por reconhecer, no est em causa, nesta situao, uma violao, em sentido estrito, do princpio da no discriminao, mas antes uma diferenciao que, por ser desprovida de fundamento material bastante, viola os princpios da igualdade (na sua vertente mais basilar da proibio do arbtrio) e da segurana jurdica. falta, porm, de uma base textual para a mobilizao destes princpios, considerou o Tribu-nal que a via mais prxima de resoluo da questo (the next best approach),

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    de acordo com as exigncias que dimanam, ainda que de forma no escrita, da Conveno Europeia dos Direitos do Homem e de todo o corpo do direito europeu dos Direitos do Homem, seria a da arguio da existncia de uma situao de desigualdade qualificada.

    Por ltimo, assinale-se que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem no tem tomado em considerao os efeitos cumulativos resultantes de situa-es de discriminao mltipla, na medida em que o seu modus faciendi tem consistido na anlise isolada e no combinada de factores discriminatrios29.

    a) Principais critrios suspeitos elencados no artigo 14.

    De entre os vrios critrios elencados no artigo 14. sexo, raa, cor, lngua, religio, opinies polticas ou outras, a origem nacional ou social, a pertena a uma minoria nacional, a riqueza, o nascimento , todos eles, de forma mais ou menos recorrente, tm sido objecto de interpretao e aplica-o pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.

    Interpretao esta que, normalmente, feita de acordo com critrios autnomos e especificamente delineados pelo Tribunal, do que resulta que o conceito de sexo, por exemplo, para esta Alta Instncia, pode diferir tanto do conceito homlogo previsto na legislao interna dos Estados, como do con-ceito utilizado noutras instncias internacionais30.

    Em funo das limitaes do presente texto, seleccionmos apenas alguns critrios suspeitos para ilustrar a jurisprudncia desenvolvida pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.

    i) Um dos marcos iniciais em matria de no discriminao em razo do sexo representado pelo Acrdo Abdulazis, Cabales e Balkandi contra Reino Unido, de 28 de Maio de 1985 (queixas n.os 9214/80, 9473/81 e 9474/81), no qual a privao ou ameaa de privao do convvio de estrangeiras legal-mente residentes nesse pas com os seus companheiros no britnicos foi considerada discriminatria em razo do sexo, tendo em vista o respeito pela vida familiar (artigos 14. e 8.). Isto uma vez que os motivos aduzidos em juzo proteger o mercado interno de trabalho numa conjuntura de desem-

    29 Cfr., neste sentido, o Acrdo Abdulazis, Cabales e Balkandi contra Reino Unido, de 28 de Maio de 1985 (queixas n.os 9214/80, 9473/81 e 9474/81), no qual so analisados separada-mente vrios critrios suspeitos. GERARDS, Janette, Discrimination Grounds, Materials And Text On National, Supranational And International Non-Discrimination Law Ius Commune Casebooks for the Common Law of Europe, SCHIEK, Dagmar/WADDINGTON, Lisa/BELL, Mark (eds.), Oxford: Hart Publishing, 2007, p. 176-177, considera que o Tribunal adopta uma aproximao interseccional, no mbito da qual a escolha do critrio suspeito muito impor-tante para a deciso do caso, porque os nveis de escrutnio so diferenciados.

    30 Assim no sucede em matria religiosa, na medida em que o Tribunal, reconhecendo que este um domnio objecto de controvrsia acesa entre os Estados membros da Conveno, e assumindo a natureza subsidiria da sua funo, repousa na noo e critrios de religio definidos pelo direito nacional relevante. Cfr., neste sentido, Church of Scientology Moscow contra Rssia, de 5 de Abril de 2007 (queixa n. 18 147/02) e Kimlya e. o. contra Rssia, de 1 de Outubro de 2009 (queixas n.os 76 838/01 e 32 782/03).

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    prego e promover a tranquilidade pblica , apesar de legtimos, no foram considerados suficientemente importantes para justificar essa desigualdade de tratamento.

    A evoluo ocorrida na jurisprudncia do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem , no entanto, particularmente relevante, quando atentos na legi-timidade das prestaes sociais conferidas (ou denegadas) pelos Estados aos membros de apenas um dos sexos31.

    No Acrdo Petrovic contra Austria, de 27 de Maro de 1998 (queixa n. 20458/92), no qual se discutia a legitimidade da reserva de um subsdio relativo a licena parental a mulheres, o Tribunal, apesar de considerar que a igualdade entre os sexos configura um dos objectivos maiores dos Estados Membros do Conselho da Europa e que so necessrias razes muito pon-derosas para que uma diferena destas seja admitida, entendeu que, na altura, no havia um standard comum a este propsito, pelo que no tinha o Estado Austraco excedido a sua margem de apreciao no caso concreto.

    J no Acrdo Wessels-Bergervoet contra Pases Baixos, de 4 de Junho de 2002 (queixa n. 34462/97), entendeu que razes muito fortes tm de ser aplicadas no caso da discriminao em funo do sexo e do estado marital, de forma a justificar a denegao de um benefcio social em razo daqueles critrios. Isto para logo, em 11 de Junho do mesmo ano [Acrdo Willis contra Reino Unido, de 11 de Junho de 2002 (queixa n. 36 042/97)], confirmar que o no auferimento, por parte de um homem vivo, de benefcios financeiros equivalen-tes aos que seriam pagos a uma viva nas mesmas condies, equivalia a uma situao discriminatria, por a recusa de atribuio dos benefcios solicitados se basear exclusivamente no facto de o requente ser um homem32.

    Ainda assim, no Acrdo Stec e o. contra Reino Unido, de 12 de Abril de 2006 (queixas n.os 65 731/01 e 65 900/01), o Tribunal, no obstante a evoluo ocorrida nas condies sociais e econmicas, continuou a con-siderar admissvel a manuteno de medidas protectoras que fixam uma idade diferenciada de reforma e de aquisio de penses aos homens e s mulheres33.

    31 Sobre esta evoluo, cfr. RADACIC, Ivana, Gender Equality Jurisprudence of the European Court of Human Rights, The European Journal of International Law, Vol. 19, n. 4, 2008, p. 841-857

    32 No Acrdo Schmidt contra Alemanha, de 18 de Julho de 1994 (queixa n. 13 580/88), o Tribunal considerou que a aplicao de uma obrigao de servir nos bombeiros ou de pagar uma compensao exclusivamente a membros do sexo masculino, quando se admitia a entrada a mulheres desde 1978 nesse servio, era discriminatria contra o sexo masculino. No entanto, o Tribunal no apreciou as razes avanadas pelo Governo Alemo para jus-tificao da medida a tomada em considerao das exigncias especficas do servio e as caractersticas fsicas e psquicas das mulheres considerando, em contrapartida, que em causa estava apenas, na prtica, o pagamento de um encargo financeiro reservado aos homens.

    33 Sobre esta questo, cfr. KTISTAKI, Stavroula N., The Prohibition of Discrimination in the Grant-ing of Social Benefits: Some Thoughts Arising from the Recent Jurisprudence of the European Court of Human Rights, European Court of Human Rights 50 Years, Atenas: Athens Bar Association, 2010.

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    O Tribunal Europeu tem igualmente vindo a acompanhar ainda que no sem alguma dificuldade as evolues, que na doutrina e demais juris-prudncia, se deram volta da noo de sexo ou, mais amplamente, de gnero, de modo a englobar fenmenos como o da transexualidade.

    No Acrdo Goodwin contra Reino Unido, de 11 de Julho de 2002 (queixa n. 28 957/95), o Tribunal, interpretando a Conveno luz das condies actuais e chamando colao, na falta de uma linha de actuao comum dos Estados-contratantes, elementos claros e incontestveis que mostram uma tendncia internacional para a aceitao social e para o reconhecimento jurdico da nova identidade dos transexuais operados, considerou contrrio mesma a impossibilidade legal de estas pessoas poderem ver o seu estatuto reconhecido e poderem contrair casamento, no podendo o Estado invocar a sua margem de apreciao na matria, seno para escolher os meios que usar para assegurar o reconhecimento do direito protegido pela Conveno. Reverteu, destarte, a linha jurisprudencial por si acolhida no Acrdo Rees contra Reino Unido, de 17 de Outubro de 1986 (queixa n. 95 32/81), no qual adoptou uma posio de conservadora, ao no considerar que a inadmis-sibilidade de mudana de registo e de contrair casamento contrariavam os artigos 8. e 12. da Conveno.

    ii) No foi s, porm, o conceito de sexo que evoluiu na jurisprudncia europeia. A evoluo conceptual mais relevante deu-se, a nosso ver, relati-vamente noo de raa. O Tribunal entende raa e etnia como conceitos sobrepostos, mas enquanto a noo de raa est ligada ideia de classifi-cao biolgica dos seres humanos em subespcies, de acordo com carac-tersticas morfolgicas como a cor da pele, a etnia tem a sua origem na ideia de grupos sociais marcados por uma nacionalidade, filiao tribal, f religiosa, lngua ou tradies e origens culturais comuns. Deste modo, o preenchimento do conceito de origem tnica mais rico, por implicar a mobilizao de ml-tiplos critrios de distinta natureza, tais como a origem nacional ou geogrfica, a lngua, as tradies culturais e o percurso histrico do grupo34.

    Decisivo, neste mbito, foi o Acrdo Timishev contra Rssia, de 13 de Dezembro de 2005 (queixa n. 55 762/00), no qual o Tribunal retomou a linha de pronncias anteriores35, ao considerar as medidas ligadas a uma especfica origem tnica so particularmente insidiosas, pelo que merecem redobrada aten-o e combate e, bem assim, um grau mais elevado de escrutnio judicial.

    34 Neste entendimento, a raa passa apenas a configurar um indcio que pode contribuir para a deteco de uma situao discriminatria com base na origem racial ou tnica, mas que no subsistente autonomamente. Neste sentido, cfr. a Recomendao de Poltica Geral n. 7 sobre legislao nacional para o combate ao racismo e discriminao racial de 2002, adoptada pela Comisso Europeia contra o Racismo e a Intolerncia.

    35 Uma dessas pronncias o importante Acrdo Chipre contra Turquia, de 10 de Maio de 2001 (queixa n. 25 781/94), no mbito do qual o Tribunal considerou que os tratamentos discriminatrios com base na origem tnica, raa e religio so to graves que se equiparam a tratamento desumano, em violao do artigo 3. da Conveno.

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    No entanto, o direito ao ensino que tem sido o principal motor das pronncias do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem quanto a questes de etnicidade. No Acrdo D. H. e o. c. Repblica Checa, de 13 de Novem-bro de 2007 (queixa n. 57 325/00), o Tribunal considerou que a criao de escolas especiais para a colocao dos alunos Roma e de outras etnias, mas que necessitam da aquisio de conhecimentos de base contrria ao prin-cpio da igualdade. Para o efeito apelou expressamente para a doutrina da discriminao indirecta, uma vez que algumas dessas escolas tinham de 80 a 90% de alunos Roma, o que faz nascer uma presuno de discriminao indirecta. Concluiu referindo que o Governo da Repblica Checa no con-seguiu provar satisfatoriamente a proporcionalidade da medida, uma vez que dela no parece decorrer uma avaliao objectiva dos alunos, nem os requi-sitos de consentimento dos pais podem ser considerados genunos.

    No Acrdo Sampanis e outros contra Grcia, de 5 de Junho de 2008 (queixa n. 32 526/05), considerou o Tribunal que a deciso de, perante a presso popular, deslocar alunos ciganos para pavilhes prprios separados das demais salas de aula, permitia presumir a existncia de uma situao discriminatria, que no era infirmada pelo facto de o Governo grego aduzir justificaes pretensamente objectivas, como a necessidade de dar uma aten-o especfica a esses alunos, de modo a integr-los nas classes ordinrias (at porque, em 50 alunos, nenhum tinha conseguido esse desiderato)36.

    Mais recentemente, no caso ORU e. o. contra Crocia (queixa n. 15 766/03), o Tribunal viu-se confrontado com a necessidade de, mais uma vez, precisar a sua jurisprudncia. O que fez (e refez) em dois momentos. No primeiro deles, na deciso em Cmara de 17 de Julho de 2008, o Tribu-nal entendeu que o estabelecimento de classes especiais para alunos Roma, motivada no fraco domnio por parte destes da lingual croata no configurava uma discriminao, por ser uma medida pblica assumida como importante pelo Governo Croata e por a mesma apenas ter motivado a criao de qua-tro escolas especficas precisamente numa provncia que tinha um nmero mais elevado de alunos Roma. Mais recentemente (16 de Maro de 2010), agora em formao plena, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, rever-teu a sua posio, considerando que, muito embora os dados estatstico no sejam expressivos, de modo a fundar prima facie uma situao de discrimi-nao, a mesma pode ser objecto de outros meios de prova, sem, contudo, os avanar no caso concreto (com excepo da evidncia de colocao ape-nas de crianas Roma em classes separadas, com base no seu conhecimento insuficiente da lngua croata). Ao analisar as causas justificativas desta situa-o discriminatria, o Tribunal recordou que estas devem ser lidas da forma o mais restritiva possvel e corresponder, em qualquer caso, a razes muito ponderosas. Assim, no obstante a colocao temporria de crianas em

    36 Sobre estes Acrdos, cfr. OCONNEL, Rory, Substantive Equality in the European Court of Human Rights, Michigan Law Review, vol. 107:129, 2009.

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    salas separadas pelo motivo enunciado conhecimento insuficiente da ln-gua no constitua uma situao automaticamente contrria ao artigo 14. da Conveno, o facto de ela afectar exclusivamente membros de um espe-cfico grupo tnico demanda a previso de garantias apropriadas, o que, no caso, no obstante a boa vontade das autoridades Croatas e a tentativa desenvolvida pelas mesmas de ponderao dos vrios interesses envolvidos, no foi feito em medida suficiente (designadamente pela falta de transparn-cia e clareza quanto s condies de transferncia das crianas Roma para as classes mistas).

    Uma ltima referncia ao acrdo Sejdic e Finco contra Bsnia e Herze-govina, de 22 de Dezembro de 2009 (queixas n.os 27 996/06 e 34 836/06), o primeiro acrdo proferido luz do Protocolo n. 12 Conveno Europeia dos Direitos do Homem. A situao sub iudicio dizia respeito impossibilidade de serem candidados Cmara dos Povos e Presidncia Tripartida todos aque-les que no sejam considerados como pertencendo aos povos constituintes (Bsnios, Croatas e Servios), no caso, um cidado de origem Roma e um cida-do de origem judia. Apesar de o Tribunal ter sido sensvel aos fundamentos que estiveram na base da situao de ineligibilidade mencionada a manu-teno da paz e o estabelecimento do dilogo poltico entre os trs maiores grupos , apoiou-se nos desenvolvimentos positivos ocorridos na Bsnia e Herzegovina aps o Acordo de Dayton designadamente na adeso Parce-ria para a paz da Organizao do Tratado do Atlntico Norte, na assinatura de um acordo de associao e estabilizao com a Unio Europeia, no sucesso da primeira reviso constitucional, na eleio de um membro para o Conselho de Segurana das Naes Unidas e, em especial, na adeso ao Conselho da Europa e ratificao da Conveno e Protocolos sem a formulao de qualquer reserva , para considerar que a manuteno daquela ineligibilidade carecia, nos dias de hoje, de uma justificao objectiva e razovel.

    iii) Esta mesma linha de raciocnio a exigncia de razes ponderosas e estritas para justificar situaes de diferenciao de tratamento pareceria aplicvel, em toda a linha, s discriminaes fundadas em motivos religiosos. Quanto a estas, porm, a anlise do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem ou no tem vindo a ser feita luz do princpio da no discriminao37, ou, quando tal acontece, no tem tido em linha de conta as exigncias de um estrito escrutnio judicial.

    37 Efectivamente, em muitos casos, tem sido considerada suficiente a apreciao do princpio da proporcionalidade de acordo com os critrios dispostos, sobretudo, no artigo 9. da Con-veno Europeia dos Direitos do Homem. Cfr., designadamente, os Acrdos Buscarini e. o. contra So Marino, de 18 de Fevereiro de 1999 (queixa n. 24 645/94), no qual se consi-derou inadmissvel a imposio de um julgamento sobre a Bblia a um no catlico; e Kokki-nakis contra Grcia, de 19 de Abril de 1993 (queixa n. 3/1992/348/421), em que expressa-mente no se analisou o artigo 14. em relao com o artigo 9., por j se ter concludo pela inadmissibilidade da considerao como proselitismo da divulgao pblica feita pelas teste-munhas de Jeov.

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    Acolhendo a apreciao feita por Vincent COUSSIRAT-COUSTERE, a juris-prudncia do Tribunal atravessada por correntes contraditrias: de um lado o reconhecimento do pluralismo religioso e, do outro, a possibilidade de res-trio liberdade individual de manifestar a sua religio, quando tal seja necessrio manuteno da paz social38.

    Efectivamente, no domnio da religio que mais se tem endossado a dimenso colectiva do princpio da no discriminao, como o comprovam os acrdos Relligionsgemeinschaft der Zeugen Jehovas e. o. contra ustria, de 31 de Julho de 2008 (queixa n. 40 825/98) no qual o Tribunal entendeu que sujeitar esta organizao a um perodo excepcional de dez anos de espera para que fosse registada como organizao religiosa e, assim, gozar de um conjunto de regalias pblicas, era discriminatrio, na medida em que se tratava de uma organizao religiosa h muito estabelecida no territrio Austraco , e o acrdo The Canea Catholic Church contra Grcia, de 16 de Dezembro de 1997 (143/1996/762/963), no qual o Tribunal considerou que a impossibi-lidade de esta Igreja aceder aos Tribunais, por no lhe ter sido reconhecida personalidade jurdica, montava numa discriminao religiosa39.

    Em oposio, tambm no domnio religioso que as liberdades indivi-duais mais tm vindo a conhecer restries legtimas luz da Conveno. O acrdo mais emblemtico, neste domnio, o Acrdo Leyla Sahin con-tra Turquia, de 10 de Novembro de 2005 [queixa n. 44 774/98), cujas con-cluses foram mais tarde retomadas nos acrdos Kervanci e Dogru contra Frana, de 4 de Dezembro de 2008 (queixas n.os 31 645/04 e 27 058/05)]. Nestas situaes, relativas ao uso do vu islmico nas universidades, con-siderou o Tribunal que a sua proibio no visava a filiao religiosa da queixosa, mas antes o fim legtimo de proteger a ordem e os direitos e liberdades de outrm, bem como preservar a natureza secular das institui-es educacionais e o pluralismo nas escolas contra o uso ostensivo de smbolos religiosos. Mais longe foi o Tribunal ao considerar que a aplicao de pena disciplinar de expulso no era desproporcional, por os visados poderem continuar a beneficiar do direito ao ensino por correspondncia, para alm de ter reconhecido que, nestas situaes, as entidades mais competentes para avaliar as necessidades da comunidade estudantil eram as escolas e no o Tribunal.

    O que particularmente distintivo nestes acrdos bem como em outros centrados na questo da identificao pessoal40, o facto de o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem considerar que em causa no est, sequer

    38 COUSSIRAT-COUSTERE, Vincent, La manifestation de sa religion vue de Strasbourg La juris-prudence de la Cour Europenne des droits de lhomme, Manifester sa Religion, Droits et Limites, DUARTE, Bernardette (ed.), Paris: LHarmatann, 2011, p. 18.

    39 Sobre a liberdade de organizao e concretizao de cerimnias culto, cfr. ainda o Acrdo Ase of Barankevich contra Rssia, de 26 de Julho de 2007 (queixa n. 10 519/03).

    40 Cfr., designadamente, quanto temtica da identificao, o Acrdo El Morsli contra Frana, de 4 de Maro de 2008 (queixa n. 15 585/06).

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    potencialmente (indirectamente), uma questo de discriminao41, mas apenas uma restrio (admissvel) a um direito reconhecido na Conveno.

    Mais recentemente, sem contrariar esta linha jurisprudencial isto , sem mobilizar o princpio da no discriminao e sem pr em causa os ares-tos previamente emitidos , o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem seguiu uma via mais cautelosa e criteriosa, ao considerar que a proibio geral de utilizao de determinadas vestes em espaos pblicos, com a consequncia de privar os seguidores de um grupo religioso de as envergarem no momento em que se iria iniciar uma cerimnia religiosa, violava o direito liberdade de religio. Para o efeito, teve em linha de conta que estavam em causa meros cidados, no investidos em qualquer funo pblica, pelo que no deveriam estar sujeitos a uma obrigao de discrio ou reserva na expresso das suas convices religiosas na via pblica [cfr. Acrdo Ahmet Arslan e. o. contra Turquia, de 23 de Fevereiro de 2010 (queixa n. 41 135/98)].

    Veremos, em face destas oscilaes, qual ser a deciso do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem quando for chamado e s-lo- certa-mente a confrontar-se com a apreciao da legitimidade, luz da Conveno, da Lei Francesa sobre o vu integral (Loi n. 2010-1192, du 11 octobre 2010 interdisant la dissimulation du visage dans lespace public, cuja conformidade com a Constituio Francesa foi j afirmada pelo Con-selho Constitucional Dcision du Conseil constitutionnel n. 2010-613 DC du 7 octobre 2010).

    iv. A origem nacional, apesar de tocar no ncleo essencial das atribuies essenciais dos Estados a definio, ao nvel poltico, do crculo dos seus cidados no deixa de ser temperada por especiais exigncias provindas do Direito Europeu dos Direitos do Homem, tais como as dispostas no Acrdo Gaygusuz contra ustria, de 16 de Setembro de 1996 (queixa n. 17 371/90). Estava em causa, neste aresto, a apreciao de uma ajuda de emergncia apenas acessvel a quem tivesse nacionalidade austraca. O Governo austraco entendia que o complemento de emergncia no cabia no mbito do Protocolo n. 1, apesar de apenas ser pago a quem tivesse contribudo para os sistemas de segurana social, fundando-se numa responsabilidade especial do Estado para com os seus nacionais, de modo a assegurar-lhes condies mnimas de existncia. O Tribunal, por seu turno, considerou que, apesar da margem de apreciao de que gozavam os Estados para determinar se havia justificao para o tratamento desigualitrio, esta apenas poderia repousar em motivos suficientemente ponderosos para justificar uma diferena baseada exclusiva-mente na nacionalidade, o que no sucedia no caso.

    41 Idntica recusa de analisar a questo luz do artigo 14. da Conveno ocorreu no Acrdo Lautsi e o. contra Itlia, de 18 de Maro de 2011 (queixa n. 30 814/06), no qual o Tribunal, infirmando uma sua prvia deciso, considerou que se incluia na margem de apreciao estatal a definio da admissibilidade de afixao de crucifixos nas salas de aula. RORIVE, Isabelle, Religious Symbols in the Public Space In Search of a European Answer, Cardozo Law Review, Vol. 30, n. 6, 2009, p. 2688.

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    Mais recentemente, no Acrdo Andrejeva contra Letnia, de 18 de Feve-reiro de 2009 (queixa n. 55 707/00), o queixoso, aptrida e residente perma-nente na Letnia, Estado com o qual mantm laos estreitos, pretendia ter acesso a prestaes de segurana social, que lhe foram recusadas mas no o teriam sido caso tivesse a nacionalidade let. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, lanando mo de uma anlise cuidada e faseada do princpio da no discriminao (em conjugao com o artigo 1. do Protocolo n. 1 Conveno), considerou, num primeiro momento, que a diferenciao de tratamento era justificada pelo menos por um fim legtimo, ligado pro-teco do sistema econmico leto (de modo a no comprometer um sistema democrtico recm gerado). No entanto, num segundo momento, ao aferir se haveria uma relao razovel entre aquele objectivo legtimo e os meios gizados para o alcanar, considerou o Tribunal que no havia razes ponde-rosas que justificassem um tratamento desigualitrio com base na nacionali-dade, indo ao ponto de arguir uma obrigao de proteco social por parte do Estado de residncia do queixoso, uma vez que era o Estado com o qual este mantinha relaes mais estreitas42.

    b) Outros critrios

    Analismos j como a expresso qualquer outra situao constante na parte final do artigo 14. permite a constatao da ocorrncia de discri-minao em razo de critrios no se encontram a expressamente previs-tos. E o Tribunal no tem perdido a oportunidade de fazer uso deste segmento normativo, individualizando novos critrios suspeitos, dos quais os mais relevantes continuam a ser, ainda hoje, a orientao sexual e o estatuto familiar e marital43.

    42 Nesta mesma senda, de aplicao de um escrutnio elevado s situaes de discriminao em funo da nacionalidade, cfr. o Acrdo Weller contra Hungria, de 31 de Maro de 2009 (queixa n. 44 399/05) e o Acrdo T!nase contra Moldvia, de 27 de Abril de 2010 (queixa n. 07/08). Neste ltimo, o Tribunal considerou ilegtima, ainda que no luz do artigo 14. da Conveno, a proibio de cidados plurinacionais desempenharem funes de deputados no Parlamento Europeu, apelando, para o efeito, para o contexto das obrigaes internacio-nais assumidas pela Moldvia com a sua adeso ao Conselho da Europa e para as reco-mendaes e concluses das organizaes internacionais relevantes.

    43 H, no entanto, outros critrios relevantes, tais como a residncia [Acrdo Darby contra Sucia, de 24 de Setembro de 1990 (queixa n. 11 581/85), no que se refere a redues de impostos e iseno de pagamento de taxas eclesisticas aplicveis apenas aos residentes nesse pas], e a situao profissional [Acrdo Sidabras e Diautas contra Litunia, de 27 de Julho de 2004 (queixas n.os 55 480/00 e 59 330/00), que respeita impossibilidade de trabalhar no sector pblico e em vrios sectores pblico-privados de 1999 a 2009, por os requerentes terem sido ex-agentes do KGB]. Recentemente, como teremos oportunidade de ver, a incapacidade passou a merecer uma ateno dedicada do Tribunal [vide por exemplo, o Acrdo Glor contra Sua, de 30 de Abril 2009 (queixa n. 13 444/04), no qual o Tribunal considerou violado o direito no discriminao em conjugao com o artigo 8., por ter sido aplicada uma taxa por no sujeio ao servio militar ao Sr. Glor que, em virtude da sua deficincia, no poderia, objectivamente, levar a cabo aquele servio].

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    i) Na ptica do Tribunal, a orientao sexual perspectivada no como um critrio suspeito includo num conceito amplo de sexo, mas antes como uma situao no especificada, ainda que as exigncias de justificao sejam consideradas similares num caso e no outro [expressamente, neste sentido, o Acrdo Salgueiro da Silva Mouta contra Portugal, de 21 de Dezembro de 1999 (queixa n. 33 290/96)].

    A importncia deste critrio suspeito tem vindo a ser apreciada, ao longo dos anos, luz de vrias disposies da Conveno.

    A primeira sede para o efeito prendeu-se com a proibio da criminalizao de actos homossexuais consensuais, decidida j no Acrdo Dudgeon contra Reino Unido, de 22 de Outubro de 1981 (queixa n. 75 25/76) e reapreciada no Acrdo S. e L. contra ustria, de 9 de Janeiro de 2003 (queixa n. 45 330/99), no qual o Tribunal enfatizou a importncia do instrumento vivo que aquela Conveno. Tambm as questes de discriminao laboral prenderam a aten-o do Tribunal, tendo este decidido pela sua inadmissibilidade44.

    Outros litgios, de natureza ainda mais fracturante, foram igualmente submetidos apreciao do Tribunal, em especial os relativos ao estabeleci-mento e regulao de relaes de filiao relativamente a pessoas homos-sexuais, e os respeitantes ao direito a auferir benefcios resultantes da unio de facto entre pessoas homossexuais e o direito a contrair casamento.

    Quanto ao primeiro ncleo de questes, o mote inicial foi dado pelo Acrdo Salgueiro da Silva Mouta contra Portugal, de 21 de Dezembro de 1999 (queixa n. 33 290/96). Nesta situao, o Tribunal apreciou o acrdo do Tribunal da Relao de Lisboa que atribua a guarda de uma criana me alegando a orientao sexual anormal do pai. Considerou que em causa estava uma situao discriminatria que apesar de na aparncia se funda-mentar num fim legtimo: a prossecuo do melhor interesse da criana, no era adequada e proporcional para a obteno desse fim, por o Tribunal da Relao ter usado como ratio decidendi para a tomada de deciso a orienta-o sexual do pai (e reflexamente a proteco do modelo tradicional de famlia portuguesa).

    Todavia, a questo mais debatida, e na qual se deu uma inverso juris-prudencial do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem prendeu-se com a possibilidade de adopo por pessoas homossexuais (e, portanto, com a constituio de relaes de filiao, que no apenas com a regulao das preexistentes). Se no acrdo Frett contra Frana, de 22 de Fevereiro

    44 Num conjunto de casos contra o Reino Unido, o Tribunal decidiu que o despedimento das foras armadas baseado apenas na orientao sexual dos queixosos, constitua uma forma grave de interferncia nas vidas privadas destes que no era justificada por nenhuma razo convincente e ponderosa. Cfr. Acrdos Lustig-Prean e Beckett contra Reino Unido e Smith e Grady contra Reino Unido, ambos de 27 de Setembro de 1999 (queixas n.os 31 417/96 e 32 377/96, e queixas n.os 33 985/96 e 33 986/96) e Perkins e R. contra Reino Unido e Beck, Copp e Bazeley contra Reino Unido, ambos de 22 de Outubro de 2002 (queixas n. 43 208/98 e 44 875/98 e queixas n.os 48 535/99, 48 536/99 e 48 537/99).

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    de 2002 (queixa n. 36 515/97), o Tribunal considerou no violar o artigo 8. da Conveno (por ligao com o artigo 14.), a rejeio de um pedido de adopo por uma pessoa homossexual45, j no acrdo E.B. c. Frana de 22 de Janeiro de 2008 (queixa n. 43 546/02), chegou a uma soluo inversa, tendo considerado discriminatria a prpria considerao e meno da orientao sexual como fundamento para a deciso de no adopo46.

    Quanto ao segundo ncleo de questes, o Tribunal considera em prin-cpio discriminatrio denegar aos casais homosexuais, por esse facto, os privilgios e direitos legalmente reconhecidos s pessoas casadas, uma vez que, apesar de a defesa do modelo de famlia tradicional ser um objectivo legtimo, no deixa de ter de se analisar se os meios para o conseguir so proporcionais, sobretudo em matrias em que, como a presente, a margem de apreciao dos estados deve ser reduzida [acrdo Karner contra ustria, de 24 de Outubro de 2003 (queixa n. 40 016/98)]47. No entanto, idntico raciocnio no se aplica possibilidade de contrair casamento, tendo o Tribu-nal reconhecido, neste domnio especfico, que as enraizadas conotaes sociais e culturais do instituto do casamento, que diferem de pas para pas, justificam a manuteno de uma ampla margem de apreciao estatal e, bem assim, impedem a ingerncia da Conveno e do seu Tribunal [Acrdo Schalk e Kopf contra ustria, de 24 de Junho de 2010, (queixa n. 30 141/04)]. No obstante, foi neste ltimo acrdo que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem reconheceu, pela primeira vez, que a situao de um casal homossexual com-prometido numa unio de facto estvel cai no mbito da noo de vida familiar, tal como aconteceria com um casal heterossexual nas mesmas condies.

    Recentemente, no Acrdo Alekseyev contra Rssia, de 21 de Outubro de 2010 (queixas n.os 4916/07, 25 924/08 e 14 599/09), sobre o direito mani-festao (organizao de uma marcha Gay Pride)48 o Tribunal teve a oportu-nidade de precisar as oscilaes necessrias da sua teoria da margem de apreciao estatal, arguindo que, em cada caso individual, o Tribunal deve

    45 Neste caso, o Tribunal retomou a doutrina da margem de apreciao, alegando a insuficincia de estudos e a falta de consenso cientfico nesta matria, a existncia de poucas crianas em situao de adoptabilidade, o que justifica a tomada de decises de rateamento dos pedidos. Considerou estarem, na situao vertente, mais aptas a decidir as entidades nacionais, por conhecerem as foras vitais e necessidades de regulamentao dos respectivos pases.

    46 Cfr., sobre este tema, BURLESON, Elizabeth, International Human Rights Law, Co-Parent Adop-tion, and the Recognition of Gay and Lesbian Families, Loyola Law Review, vol. 55, 2010, (http://ssrn.com/abstract=1455907), acesso em 5 de Fevereiro de 2011.

    47 Cfr., recentemente, o Acrdo P.B. e J.S. contra ustria, de 22 de Julho de 2010 (queixa n. 18 984/02), e o Acrdo J.M. contra Reino Unido, de 28 de Setembro de 2010, (queixa n. 37 060/06).

    48 Ainda sobre direito manifestao, cfr. o Acrdo B"czkowski e o. contra Polnia, de 3 de Maio de 2007 (queixa n. 1543/06). Neste acrdo, o Tribunal, no obstante no ter excludo liminarmente que pudessem ter existido razes administrativas para a denegao da realiza-o da marcha (no entrega de um plano de trnsito, como requerido), considerou relevantes e suficientemente indicirias do real motivo desta recusa as declaraes pblicas feitas, j com o processo em curso, pelo Presidente da Cmara de Varsvia, de acordo com as quais iria inviabilizar qualquer manobra de propaganda sobre homossexualidade.

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    avaliar ou reavaliar esta questo, pois o reconhecimento maior ou menor daquela margem indissocivel do controlo levado a cabo pelo Tribunal.

    ii) Relativamente ao estatuto familiar e matrimonial, j no Acrdo Marckx contra Blgica, de 13 de Junho de 1979 (queixa n. 6833/74), no qual se con-testavam disposies do Cdigo Civil Belga sobre o modo de estabelecimento da filiao ilegtima, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem entendeu que o estatuto familiar era um critrio suspeito e que o artigo 8. da Conveno dizia respeito tanto s famlias legtimas como ilegtimas49.

    Este entendimento do Tribunal foi confirmado em mltiplas situaes, tendo este apelado para o carcter evolutivo dos direitos reconhecidos na Conveno e para o facto de esta ser um instrumento vivo que deve ser interpretado de forma actualista, para, deste modo, excluir a relevncia jurdica das diferenciaes, rectius discriminaes, fundadas na distino entre filhos legtimos e ilegtimos50, entre filhos biolgicos e adoptados51 ou em distines similares52.

    De entre estas situaes similares no figura, porm, a analisada no Acr-do #erife Yi$it contra Turquia, de 2 de Novembro de 2010 (queixa n. 3976/05), pois nesta a no equiparao do casamento religioso ao casamento civil inviabilizando o pagamento de prestaes sociais acordadas apenas a este , foi considerada admissvel, por respeitar as exigncias de proporcio-nalidade entre o meio seguido e o fim prosseguido (proteco da ordem pblica e dos direitos e liberdades de outrm). Em particular, pesou na con-vico do Tribunal o facto de as regras sobre casamento civil serem claras e acessveis e o seu cumprimento no comportar nenhum encargo suplementar, de tal forma que no haveriam, no caso, legtimas expectativas a salvaguar-dar. Lanou aqui mo o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de um escrutnio menos rgido do que aquele que normalmente aplica a situaes relacionadas com o estatuto familiar e marital, e que se aproxima mais, talvez pela interconexo de critrios suspeitos, daquele que tem vindo a aplicar s distines baseadas na religio.

    6. DISCRIMINAO E JUSTIFICAO

    A admissibilidade de uma situao considerada prima facie de discrimi-nao depende, de acordo com a jurisprudncia do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, da aduo de uma justificao objectiva e razovel.

    49 Cfr., igualmente, o Acrdo Inze contra ustria, de 28 de Outubro de 1987 (queixa n. 8695/79).50 Cfr. o Acrdo Mazurek contra Frana, de 1 de Fevereiro de 2000 (queixa n. 34 406/97).51 Cfr. o Acrdo Pla e Puncernau contra Andorra, de 13 de Julho de 2004 (queixa n. 69 498/01).52 No Acrdo Sahin contra Alemanha, de 8 de Julho de 2003 (queixa n. 30 943/96), o Tribunal

    comparou a impossibilidade de pais de filhos nascidos fora do casamento no poderem, s por esse facto, ter contacto com os seus filhos, com a mesma situao relativa a pais divorciados. Concluiu que esta diferenciao, porque assente numa mera presuno de falta de interesse dos pais no casados nem divorciados de estarem com os filhos, era discriminatria.

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    Para que esta seja aceite , no entanto, necessrio que, por intermdio da medida em crise, seja prosseguido um fim legtimo e que exista uma razovel relao de proporcionalidade entre o meio empregue e aquele fim.

    Este critrio impe que, num primeiro momento, se afira da legitimidade e da importncia dos fins a serem prosseguidos por intermdio da medida diferenciadora.

    A este propsito, verdade que o recurso a objectivos de poltica social ou econmica, por vezes reconduzveis a meras generalizaes, deveriam ter um papel muito reduzido enquanto critrios objectivos de justificao. O Tri-bunal Europeu dos Direitos do Homem tem, porm, vindo a adoptar uma aproximao generosa no momento da aceitao das finalidades aventadas pelos Estados, como se constata com o acolhimento, sem mais, do propsito de defesa do modelo de famlia tradicional ou da sustentabilidade dos sistemas de segurana social nacionais. O que significa, em bom rigor, que o decisivo escrutnio quase sempre feito no momento da averiguao da proporciona-lidade da medida, sendo neste mbito que a jurisprudncia do Tribunal mais tem evoludo.

    Todavia, em casos limite, o Tribunal no tem descartado o relevo das finalidades visadas pelos Estados-membros, concluindo, directamente, por vezes, pela ilegitimidade da medida adoptada. Foi o que sucedeu no Acrdo Chas-sagnou e. o. contra Frana, de 29 de Abril de 1999 (queixas n.os 25 088/94, 28 331/95 e 28 443/95), em que o Tribunal considerou que a incluso forada dos terrenos de pequenos proprietrios no permetro das associaes comunais era discriminatria. Neste caso, a Frana procurou justificar a diferena de tratamento entre os pequenos e grandes proprietrios invocando a necessidade de garantir o agrupamento de pequenas parcelas para favorecer uma gesto nacional dos recursos cinegticos, mas o Tribunal considerou que aquele Estado no havia explicado de maneira convincente como o interesse geral podia ser servido reservando apenas aos grandes proprietrios a faculdade de afectar os seus terrenos a um uso conforme com a sua inteno pessoal.

    Foi igualmente o que aconteceu no Acrdo Timishev c. Rssia, de 13 de Dezembro de 2005 (queixa n. 55 762/00), no qual se discutia a proibio de entrada de um nacional checheno numa Repblica da Federao Russa por um determinado checkpoint, motivando-se os oficiais de fronteira na exis-tncia de uma instruo oral para o efeito. No que se refere justificao do tratamento discriminatrio a que o queixoso foi votado, considerou o Tri-bunal no ter sido este fundado na legislao policial, encontrando-se, por isso, desprovido de base legal, pelo que se tornava intil apurar se a restrio era necessria53.

    53 Segundo BELL, Mark, Direct Discrimination, Materials And Text On National, Supranational And International Non-Discrimination Law Ius Commune Casebooks for the Common Law of Europe, SCHIEK, Dagmar/WADDINGTON, Lisa/BELL, Mark (eds.), Oxford: Hart Publishing, 2007, p. 272-273, deste acrdo resulta uma menor flexibilidade na justificao de situaes de discriminao directa, por o Tribunal ter considetado que uma diferenciao baseada exclu-

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    J quanto aferio da proporcionalidade das medidas adoptadas pelos Estados, deve o Tribunal indagar se a prtica diferenciadora um meio adequado i.e. apto obteno do objectivo legtimo em causa (princpio da adequao), um meio necessrio ou seja, exigvel consecuo daquele fim (princpio da necessidade) e, por ltimo, se um meio proporcional, i.e. se representa uma razovel relao de equilbrio entre os bens jurdicos por ele afectados e por ele prosseguidos (princpio da proporcionalidade em sentido estrito)54.

    Todavia, nem sempre estes sub-princpios so articulados de forma indi-cada, oscilando o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, como j tivemos oportunidade de aludir, entre:

    i) situaes em que sopesa, de forma completa das circunstncias de facto e de direito nela co-envolvidas, pronunciando-se pela desnecessidade da medida em face do fim legtimo prosseguido [cfr., recentemente, o Acrdo Glor c. Sua, de 30 de Abril de 2009 (queixa n. 13 444/04), em que o Tri-bunal censurou o Estado Suo, por no prever alternativas ao servio militar ou civil no caso de pessoas com um grau de incapacidade elevado] ou pela ausncia de uma justa medida ou de adequada ponderao entre a aco adoptada e o direito violado [cfr., tambm recentemente, o Acrdo Alajos Kiss c. Hungria, de 20 de Maio de 2010 (queixa n. 38 832/06), no qual o Tribunal considerou que a induo automtica da incapacidade de voto de uma situao de tutela legal violava o direito no discriminao, em articu-lao com o artigo 3. do Protocolo n. 1 Conveno, por o Estado Hngaro no ter demonstado que ponderou os interesses em presena e analisou a proporcionalidade daquela restrio legal].

    Este ncleo de situaes em que h lugar a uma interveno vigorosa do Tribunal correspondem, em regra, quelas em que um juzo estrito de proporcionalidade demandado tanto em razo da particular natureza insi-diosa dos critrios suspeitos (designadamente o gnero, a origem tnica, a nacionalidade, o estatuto familiar e marital, a orientao sexual e, agora tambm, a incapacidade) como em funo da elevada fundamentalidade e grau de restrio dos direitos violados, como ainda em razo do domnio de poltica social e econmica que est em causa (normalmente, um dom-nio em que no sejam tocados os fundamentos essenciais do Estado e da sociedade)55.

    sivamente na origem tnica de uma pessoa no pode ser objectivamente aceite numa sociedade democrtica. Esta uma leitura possvel mas que, todavia, no tem vindo a ser confirmada pela jurisprudncia do Tribunal, que continua a valer-se dos mesmos critrios de justificao em qualquer caso de discriminao (directa ou indirecta).

    54 Sobre o princpio da proporcionalidade, cfr. a nossa tese de mestrado O Princpio da Propor-cionalidade no Direito Comunitrio Uma perspectiva de Controlo, Coimbra, Policopiada, 2003, e bibliografia a citada. Continua a ser particularmente interessante, a este propsito, o artigo de MCBRIDE, J., Proportionality and the European Convention on Human Rights, Principle of Proportionality in the Laws of Europe. ELLIS, Evelyn (ed.), Oxford: Hart Publishing, 1999.

    55 Uma identificao destes e de outros critrios encontra-se em GERARDS, Janette (nota 29), p. 38-39. Cfr., igualmente, a interessante anlise de SWAIN, Gabriel, Who Uses the European

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    JULGAR - N. 14 - 2011 Coimbra Editora

    ii) e situaes em que o Tribunal se basta com um juzo de adequao ou de mera razoabilidade entre a medida e o fim que com ela se visa pros-seguir.

    Nestes casos a averiguao do princpio da proporcionalidade d lugar a um juzo de censura pouco preciso e, normalmente, no conclusivo do Tribunal. Este, ao reconhecer uma ampla margem de apreciao aos Estados, controlar apenas situaes flagrantes, nas quais a medida adoptada carece de qualquer fundamento razovel56.

    Em regra, esta posio de deferncia judicial redunda na manuteno da medida sindicada, por o Tribunal se recusar a substituir uma sua eventual opinio quela apresentada pelo Estado-membro, entidade mais qualificada, a seu ver, para operar ponderao de bens e direitos para que o caso apela.

    Se este ncleo de casos podem ser vistos, por alguns, como uma decor-rncia natural da subsidiariedade dos mecanismos previstos na Conveno Europeia dos Direitos do Homem relativamente interveno dos Estados membros57, no deixa de impressionar o conjunto de situaes em que recentemente, o Tribunal fez apelo teoria da margem nacional de apreciao, precisamente para a restringir, pondo em evidncia todo um conjunto de textos de direito internacional que conformam, cada vez mais, o modo de exerccio das atribuies estatais.

    7. NOTA CONCLUSIVA

    O carcter evolutivo da jurisprudncia do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem hoje particularmente visvel num conjunto vasto e rico de ares-

    Court of Human Rights, and W