03. o espelho da vida

28
O E S P E L H O D A V I D A Drama Texto de: JULIO CARRARA Escrita em 1995

Transcript of 03. o espelho da vida

Page 1: 03. o espelho da vida

OOOO EEEESSSSPPPPEEEELLLLHHHHOOOO DDDDAAAA VVVVIIIIDDDDAAAA

Drama

Texto de: JULIO CARRARA

Escrita em 1995

Page 2: 03. o espelho da vida

Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 1111

PERSONAGENS:

DORA

NANDO

GUTO

PALOMA

MÁRCIA

ANALU

GABRIELA

EDUARDO

ALEXANDRE

e

NANDO, GUTO, PALOMA, ANALU, EDUARDO e GABRIELA, quando

crianças.

ÉPOCA: Atual

CENÁRIO: Uma plataforma ocupando toda a parte superior do palco com

mais ou menos um metro e meio de altura. Na frente desta plataforma, dois

praticáveis em diagonal, sendo um do lado direito e outro do lado esquerdo. O

praticável situado à esquerda representa o quarto de Guto e Nando. O

praticável do lado direito, o quarto de Paloma. Uma escada central conduz aos

quartos. Uma mesinha com cadeiras do lado esquerdo central. O cenário a

iluminação deverão possuir uma linha expressionista. Um ciclorama deve

cobrir o cenário inteiramente nas cenas da floresta e da rua e deve desaparecer

em outras cenas. Nesse ciclorama deve ser projetada com auxílio de máscaras

de iluminação, uma mata. Na cena em que as personagens estão brincando na

rua, várias casas espremidas entre os prédios de apartamentos.

Page 3: 03. o espelho da vida

Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 2222

PRÓLOGO

(Black-out. Luz sobe em resistência até meia-luz com o palco na penumbra. Uma jovem

está no centro do palco, de costas para o público. Traja um vestido de gestante e está

prestes a dar à luz. Ela procura um lugar para parir a criança. Sente fortes contrações.

A bolsa estoura. Ela geme. Sua respiração é mesclada com a música que deverá sugerir

mistério e poesia. Fica de cócoras, de costas, e faz o seu próprio parto. O bebê nasce.

Um choro frágil e ao mesmo tempo forte é ouvido no áudio. A mulher, exausta, ergue o

bebê para o alto, depois de cortar o cordão umbilical, como se estivesse apresentando-o

para o mundo. Abraça-o com devoção. Enrola-o numa mantinha, carrega-o nos braços

e vira-se de frente para o público. Abraça-o com ternura. Tira o peito e oferece ao filho.

Depois de amamentá-lo, balança o corpo para frente e para trás, fazendo-o dormir. Luz

desce em resistência, deixando apenas um foco desenhando mãe e filho. Black-out.)

CENA 1

(Uma rua onde brincam crianças de quatro a seis anos: Guto, Paloma, Eduardo,

Gabriela, Analu e Nando. Os dois primeiros são os filhos mais velhos de Dora, a jovem

do prólogo. Nando é o bebê dela. O garoto está com quatro anos e sofre de paralisia. O

único membro que o menino consegue movimentar é somente o pé esquerdo. As

crianças brincam de amarelinha, de pular corda, unha na mula, bafo, carteiro tem

carta, balança caixão, etc. Saem de cena. Mudança de luz. Voltam esses mesmos

personagens, só que agora, mais velhos. Começam a aparecer os conflitos. Eduardo e

Paloma trocando olhares, Analu e Gabriela desprezando Nando; e Guto, sempre

revoltado, num canto. Black-out.)

CENA 2

(Casa de Dora. Paloma e Guto estão estudando numa mesinha. Nando está encostado

na parede, perto da escada que leva aos quartos, observando os irmãos mais velhos

estudarem. Paloma tem uma dúvida.)

Page 4: 03. o espelho da vida

Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 3333

PALOMA

Guto, quanto é vinte e cinco por cento de um quarto?

GUTO

(Pensa.) Vinte e cinco por cento de um quarto? (Ri.) Que pergunta idiota,

Paloma. Vinte e cinco por cento já é um quarto. Não dá pra ter um quarto de

um quarto.

PALOMA

Claro que dá. (Para Nando.) Não dá, Nando?

GUTO

(Irônico.) Ora, Paloma, o que ele sabe?

(Nando pega um giz com os dedos do pé esquerdo.)

PALOMA

(Assustada, chamando Dora.) Mãe, corre aqui, o Nando pegou um giz!

(Entra Dora, bem mais velha que a figura do prólogo.)

DORA

Vamos lá, Nando. Escreva o que quiser.

(Nando começa a fazer riscos no chão. Dora e Paloma tentam adivinhar.)

PALOMA

É um Y?

DORA

É um X?

Page 5: 03. o espelho da vida

Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 4444

GUTO

(Olha com desprezo.) Que nada. É só um rabisco!

DORA

Não, não. Ele tá querendo dizer alguma coisa! Eu sei...

GUTO

Não coloque idéias na sua cabeça, mãe. O Nando é um débil-mental. E

ninguém vai conseguir ensinar nada a ele, ouviu? Ninguém... Não se ensinam

retardados.

DORA

(Brava.) Não fale isso do seu irmão, Guto!

GUTO

(Revoltado.) Irmão... Isso aí é um desastre da natureza... Um monte de

carne deformada que teve a infelicidade de vir ao mundo.

DORA

(Furiosa, atinge o rosto do filho com uma violenta bofetada.) Nunca mais fale

isso, ouviu? Nunca mais. Se você repetir mais uma vez o que disse agora, eu

juro por tudo que é mais sagrado neste mundo que arrebento todos os dentes

da sua boca. Agora sobe pro seu quarto e não saia de lá até amanhã. Não

quero mais olhar pra sua cara, hoje!

(Guto olha para o irmão com muito ódio. Sobe para o quarto. Paloma o segue. Nando

faz um beicinho de choro. Dora o abraça.)

DORA

Ô Nando, meu filho. Não liga pro seu irmão, viu? Ele é assim mesmo.

Mas no fundo, no fundo, ele te ama muito. Ele só tá com... medo.

Page 6: 03. o espelho da vida

Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 5555

CENA 3

(Guto e Paloma no quarto, numa conversa bastante tensa.)

GUTO

...Medo, eu?

PALOMA

É... Medo, Guto. Medo!

GUTO

Medo de quê?

PALOMA

De aceitar a verdade.

GUTO

Que verdade?

PALOMA

O seu irmão. Tem medo de aceitar o Nando como ele é. Medo de dar

carinho, de dar um beijo, um abraço nele.

GUTO

Não é medo, não, Paloma. É raiva... Eu quero que ele morra. Ele não

presta pra nada mesmo. Só serve pra foder a vida da gente. Desde pequeno, só

o Nando teve o que quis. O Nando, Nando, Nando, Nando, sempre o Nando...

E a gente acabou na lata do lixo. Por culpa dele, nós sempre tomamos no rabo,

sempre se fodendo por culpa de um bostinha que não presta nem pra limpar a

bunda. Eu odeio o Nando. ODEIO!!! (Dá murros na parede.)

Page 7: 03. o espelho da vida

Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 6666

PALOMA

Você não tá sendo justo, Guto! Você não faz ideia do que a mamãe

passou pra criar sozinha nós três! Depois do chute que o pai deu nela, ela

ralou e muito pra sustentar a gente. Pensa que ela não sofreu? Hein?... Me

diga?... Olhe pra você: um rapaz saudável... Agora faça uma comparação entre

você e o Nando, faça!

GUTO

Não dá nem pra comparar, né!

PALOMA

É claro que não. Você sempre soube que o Nando não é como você e os

outros meninos.

GUTO

(Com a cabeça mais fria.) Sabe o que é? É que não gosto de ouvir em

rodinhas, comentários a respeito dele. Quando saio com ele, percebo que as

pessoas ficam tirando uma dele e da situação fodida da gente.

PALOMA

E você vai se importar com que os outros falam ou deixam de falar? Eles

que se danem. Que vão cuidar de suas vidas.

GUTO

Você tem razão.

PALOMA

(Sorrindo.) Não falei que quando você esfriasse a cabeça, iria pensar

diferente?

(Ambos se abraçam e saem de cena.)

Page 8: 03. o espelho da vida

Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 7777

CENA 4

(Ouve-se a campainha. Dora que estava com Nando na sala, levanta-se e caminha em

direção à porta. Entra Márcia.)

DORA

Que bom que você chegou, Márcia... Você pode tomar conta do Nando?

Eu preciso passar na farmácia.

MÁRCIA

Claro, Dora, com o maior prazer. Pode ir sossegada. Vou cuidar muito

bem do Nando. Muito bem mesmo.

DORA

Eu não vou demorar.

MÁRCIA

Não precisa se preocupar. Ele estará em boas mãos.

DORA

(Já de saída.) Ah, a papinha dele tá no fogão. Você pode alimentá-lo?

MÁRCIA

Claro.

(Dora sai. Márcia caminha até a cozinha e volta com a papinha de Nando. A mulher

olha com asco para a comida. Nando, que estava dormindo, é acordado violentamente

por ela.)

MÁRCIA

Você tá com fome, Nandinho? (O menino balança a cabeça

afirmativamente.) Então vem pegar! (Márcia senta-se do outro lado da sala, de

propósito. Nando vai até ela rastejando-se.) Olha só, parece um verme!

Page 9: 03. o espelho da vida

Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 8888

(Nando chega até ela que começa a dar a papinha para ele. Ela coloca a colher bem

próxima da boca do garoto. Quando Nando abre a boca, ela afasta a colher, se

divertindo com a situação. Isso se repete algumas vezes até que ela enfia uma colherada

atrás da outra na boca do menino que se lambuza todo.)

MÁRCIA

Que coisa feia, Nando! Nem cachorro come desse jeito... Coitada da

Dora, você é a cruz mais pesada que ela carrega. Pobre diabinho! (Nando vira o

rosto de lado e não quer mais comer. Ela insiste, em vão.) Com o resto que você

deixa, daria para alimentar um exército.

(Sai para a cozinha levando o prato. Volta em seguida. Chega perto do menino e olha-o

com desprezo. Ficam assim por um bom tempo. Márcia pega uma revista e começa a

folheá-la. Depois acha uma cartilha e tem uma ideia.)

MÁRCIA

Venha aqui, Nando. Vou te ensinar a ler. Você não vai mesmo conseguir

aprender, mas pelo menos vou fazer algo útil (O menino vai até ela que põe a

cartilha bem próxima ao seu rosto.) ‘A’ de ‘anormal’; ‘B’ de‘burro’; ‘C’ de

‘coitado’; e ‘D’... ‘D’ de ‘débil-mental’. (Destaca bem as sílabas.) ‘Dé-bil-men-tal’.

É o que você é.

(Nando resmunga palavras desconexas. Grita muito e bate o pé no chão, olhando

furioso para Márcia. Dora entra correndo. Está carregada de embrulhos.)

DORA

(Preocupada.) O que aconteceu com o Nando, Márcia?

MÁRCIA

(Sonsa.) Não sei Dora. Eu fui dar a papinha dele. Ele não comeu quase

nada. Depois peguei uma cartilha pra mostrar o alfabeto pra ele e de repente

ele olhou feio pra mim e começou a berrar e a bater o pé no chão.

Page 10: 03. o espelho da vida

Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 9999

(Nando aponta Márcia com o pé, e joga intenção no rosto, com a maior dificuldade.)

DORA

A Márcia? (Nando balança a cabeça afirmativamente.) O que ela te fez? (À

Márcia.) Você maltratou o Nando?

MÁRCIA

(Falsa.) Eu, Dora? Eu jamais faria isso. Eu adoro esse menino.

DORA

(Meio sem jeito.) Ai, Márcia, me desculpe...

MÁRCIA

Desse jeito você me ofende...

DORA

Tô nervosa. Como é difícil entender o Nando...

MÁRCIA

(Olha para o relógio.) Bem, amiga, já tá na minha hora. Preciso ir andando.

(Caminha até Nando e lhe aperta a bochecha “carinhosamente”.) Tchau, Nandinho.

Amanhã eu venho te visitar...

(O menino olha para ela desejando-lhe a sua morte. Dora acompanha Márcia até a

porta da rua e sai com ela.)

CENA 5

(Guto e Paloma entram correndo em direção de Nando. Guto traz nas mãos uma

carrocinha de madeira.)

Page 11: 03. o espelho da vida

Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 10101010

PALOMA

(Empolgada.) Nando, Nando, veja o que o Guto fez pra você?

GUTO

(Brandindo.) Uma carrocinha, Nando. Agora você pode conviver com os

outros meninos até nossa mãe completar o dinheiro pra comprar sua cadeira

de rodas. Não é o máximo, cara? (Nando fica indiferente. Guto se chateia.) O que

foi Nando? Não gostou?

PALOMA

O Guto perdeu a tarde inteira pra construir essa carrocinha pra você e

você trata ele assim, Nando?

GUTO

Deixa, Paloma. Já sei por que ele tá me tratando assim... (Para Nando,

docemente.) Ô Nando, me perdoa. Eu tava nervoso e descontei em você. Você

não tem culpa, cara. Eu é que sou um bosta e que não presta pra nada. (Pausa.)

Bom, se você não quiser a carrocinha, tudo bem, eu vou entender. Você tem

todo o direito de recusar esse presente. Tem todas as razões do mundo pra não

aceitar nada que venha de mim. Mas gostaria que você soubesse de duas

coisas: a primeira é que eu construí isso de coração e a segunda é que eu te

amo muito... Muito mesmo.

(Beija o rosto do irmão, pega a carrocinha tristemente e vai saindo. Nando olha para ele

e balbucia pedindo para ele ficar. Guto corre para o irmão e o abraça fortemente.)

GUTO

Eu sabia que você iria me perdoar. Eu te admiro muito, viu?... Agora

vamos estrear o seu “carro”?

(Guto põe o irmão na carrocinha auxiliado por Paloma. Guto “pilota”. Paloma entra

na frente e Guto vai em direção dela, querendo atropelá-la. Ela desvia. Os três brincam

Page 12: 03. o espelho da vida

Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 11111111

por todo o espaço cênico, fazendo manobras cada vez mais radicais ao som de “Unchain

My Heart”, de Joe Cocker. Os três gritam felizes e saem com esse mesmo pique.)

CENA 6

(Ouve-se a campainha. Dora vai até a porta. Ao abrir, leva um susto. Em sua frente

está Alexandre, seu ex-marido.)

DORA

(Balbucia.) Você?

ALEXANDRE

Por que esse espanto todo, Dora? Vim aqui pra gente conversar. Numa

boa!

DORA

Não tô com a mínima vontade de conversar com você.

ALEXANDRE

Eu queria que você entendesse...

DORA

Não precisa ficar rodeando... Vai direto ao assunto...

ALEXANDRE

(Embaraçado.) É sobre o Nando. Sobre o nosso filho...

DORA

Nosso filho??? Ele é meu filho. Só MEU.

ALEXANDRE

Não complica as coisas. Vim oferecer ajuda, caso o Nando precise.

Page 13: 03. o espelho da vida

Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 12121212

DORA

No momento em que ele mais precisou de ajuda, você me deu um chute,

me jogou pra escanteio. Você não faz ideia do que eu passei pro Nando nascer.

Ninguém quis me ajudar. Ninguém. Todos viraram as costas pra mim. Fui dar

à luz no meio do mato. Sozinha. Sem ajuda de ninguém... E depois do parto

comecei a cuidar daquela criança tão pequena, tão indefesa e com um futuro

incerto. Me dediquei à ele de corpo e alma. Sacrifiquei meus dois outros filhos,

mas não deixei faltar nada pro Nando. E depois de tudo isso, você ainda tem

coragem de vir bater na minha porta com essa cara deslavada e tem a ousadia

de me oferecer ajuda? Você é muito cínico. Eu quero que você pegue todo seu

dinheiro e enfie no seu...

ALEXANDRE

(Corta abruptamente.) Eu queria pelo menos ver os meus filhos.

DORA

Você não vai nem chegar perto deles. Qual é o seu interesse nisso, hein?

Sim, porque prum homem abandonar sua mulher com dois filhos pequenos,

por saber que o terceiro nasceria deficiente, depois de quinze anos

desaparecido, vem procurar esse mesmo filho que rejeitou? O que você

pretende seu covarde? Veio ver o estado em que estou? Ver as rugas do meu

rosto? Ver o quanto engordei? Foi isso?

ALEXANDRE

Dora, você tá sendo cruel.

DORA

Cruel, eu? Você não tem espelho, não?

ALEXANDRE

Você tá fazendo uma tempestade num copo d’água. Eu venho aqui, com

a melhor das intenções, e...

Page 14: 03. o espelho da vida

Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 13131313

DORA

De boas-intenções o inferno tá cheio. Não sei por que tô perdendo o meu

tempo discutindo com você. Vá embora, vá. Um homem sem escrúpulos como

você não deveria nem pisar na minha casa.

ALEXANDRE

Me deixe pelo menos ver o menino. Tenho direito. Sou o pai.

DORA

Pai??? Porra, que pai?! Você não é nada dele.

ALEXANDRE

Queria pelo menos saber do Guto e da Paloma.

DORA

Eles estão muito bem.

ALEXANDRE

Por que você os proíbe de me visitarem?

DORA

Não proíbo. Nunca proibi. É que eles sentiram na pele todo o mal que

você nos causou.

ALEXANDRE

Você fez a cabeça deles contra mim?

DORA

Eu não fiz a cabeça de ninguém. Eles souberam da verdade e a partir

dela acharam o que deveriam achar. Se eles nunca te procuraram, acredito que

tiveram motivos pra isso...

Page 15: 03. o espelho da vida

Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 14141414

ALEXANDRE

(Arrependido.) Gostaria de poder estar junto deles. Acompanhando o

crescimento, o amadurecimento. Queria poder jogar futebol com o Guto, levar

a Paloma andar de bicicleta. Tinha tantos planos pra eles.

DORA

Até que surge um filho deficiente que estraga tudo... Só vou te alertar de

uma coisa. O Guto e a Paloma quando quiserem te encontrar, tudo bem. Não

vou proibir. A cabeça é deles. Eles já são grandes o bastante pra saber o que é

bom e o que é ruim. (Ameaçadora.) Mas se você ousar pisar nesta casa

novamente ou chegar perto do Nando, ai de você... Ai de você... (Vai até a porta

da rua e a abre.) Adeus, Alexandre!

(Alexandre caminha de cabeça baixa até a porta da rua e sai. Dora encara o ex-marido

com desprezo e indiferença. Após a saída do homem, cai num choro. Black-out.)

CENA 7

(Luz sobe em resistência. No centro do palco estão sentados Guto, Paloma, Gabriela,

Analu e Nando em sua carrocinha. Brincam de jogo da verdade.)

ANALU

(Cochichando com Gabriela.) Se o compasso cair no Guto vou perguntar se

ele quer namorar comigo.

GABRIELA

E se cair no Nando ou no Eduardo?

ANALU

Ah, o Nando nem tá no jogo. E se cair no Eduardo, eu pergunto

qualquer coisa sobre a Paloma.

Page 16: 03. o espelho da vida

Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 15151515

GUTO

(Abre o compasso e coloca-o no centro da rodinha.) Comece Analu.

(Analu gira o compasso e o mesmo para justamente na direção de Nando.)

ANALU

(Reage frustrada; sonsa.) Ninguém!!!

PALOMA

Como, ninguém?! Caiu no Nando.

ANALU

Mas o Nando não tá no jogo...

GUTO

(Irônico.) É claro que tá. O compasso tá apontando pra ele.

ANALU

(Levanta-se, vai em direção de Nando e beija-lhe o rosto.) Você, apesar de

tudo, é o único que presta nesse grupo. E tem os olhos lindos...

(Zoeira geral. Guto olha para Analu e sorri maliciosamente. Ela vai saindo, frustrada e

Gabriela a segue.)

GABRIELA

(Para Guto.) Tchau, Guto.

GUTO

(Não responde para Gabriela e provoca Analu, que passa ao seu lado.) Tchau,

Analu.

Page 17: 03. o espelho da vida

Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 16161616

ANALU

(Olha furiosa para ele; estúpida.) Tchau, Guto. Durma bem... (Saem.)

(Guto pega o compasso. Boceja.)

GUTO

Vou pra cama! Boa noite!

EDUARDO

Boa noite!

(Guto pega Nando do carrinho e sobe com ele para o quarto, deixando Eduardo e

Paloma sozinhos. Eduardo verifica se Guto já subiu. Aproxima-se de Paloma e lhe dá

um beijo na boca. Acariciam-se e transam. Black-out.)

CENA 8

(No dia seguinte. Luz sobe em resistência. Em cena estão Eduardo, Gabriela e Analu.

Os três estão impacientes.)

GABRIELA

(Gritando para Paloma, que se arruma no quarto.) Ô Paloma, anda logo que

a gente vai perder a prova da primeira aula...

EDUARDO

(Parado à porta do banheiro.) Ô Guto, o que tanto faz nesse banheiro? Se

for o que eu estou pensando, vou me mandar!

GUTO

(Sai do banheiro e põe uma revista de mulher pelada entre os cadernos.) Que

inferno!

Page 18: 03. o espelho da vida

Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 17171717

(Guto vai saindo e deixa cair uma folha de papel de seu caderno. Eduardo e Guto saem.

Gabriela e Analu esperam ambos saírem. Analu pega a folha do chão.)

ANALU

(Lê o papel; maravilhada.) Veja, Gabi, olha só o que o Guto fez pra mim...

Que desenho maravilhoso. Leia aqui embaixo: “Seus lindos olhos são piscinas

profundas e azuis onde eu mergulho. Te amo, Analu!” Não é lindo? Eu sabia, eu

sempre soube que o Guto era doido por mim. Só ele não queria admitir.

GABRIELA

(Pega o desenho das mãos de Analu.) Deixa eu ver...Esse desenho com essa

frase não foi feito pelo Guto, não.

ANALU

(Estranha.) Como não, se caiu do caderno dele?

GABRIELA

Veja a assinatura: Nando. (Satiriza a amiga.) O aleijadinho é apaixonado

por você. (Nando desce as escadas, rastejando-se.) Falando no doente, aí vem ele.

Por que não tira isso a limpo?

ANALU

É o que vou fazer. (Para Nando.) Foi você que desenhou isso, Nando?

(Nando confirma.) Pode pegar de volta. Eu sei que o que você escreveu é

verdade, mas não vai ser um aleijadinho de merda que vai me conquistar... Se

isso tivesse sido feito pelo gostoso do seu irmão, eu aceitaria com o maior

prazer. Mas como foi você quem fez... (Rasga o desenho e joga na cara do menino.)

Toma! Fique com essa porcaria. (Para o quarto de Paloma.) Ô Paloma, vai logo.

PALOMA

(Desce as escadas.) Estou indo. (Para Nando.) Toma conta da casa, Nando.

(Beija-lhe a face e sai com Analu.)

Page 19: 03. o espelho da vida

Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 18181818

GABRIELA

(Sozinha com Nando.) E diga pro Guto, que... Ah, você não fala... Que

diferença... Você e o Guto são irmãos mesmo? Como vocês podem ser tão

diferentes? Eu acho que você é adotado... (Cínica.) Bye, bye, parasita!

(Sai. Nando começa a chorar. Grossas lágrimas escorrem pelos seus olhos e um soluço

que vem do fundo de sua alma toma conta de todo o seu ser. Black-out rápido.)

CENA 9

(Muda luz. entra Guto, gritando)

GUTO

Nando, comprei um presente pra você.

DORA

(Entra, curiosa.) Presente? Que presente?

GUTO

O que você sempre quis comprar para o Nando, mas nunca pôde?

DORA

(Incrédula.) Não me diga que...

GUTO

Isso mesmo...

DORA

(Abraça o filho, feliz.) Guto, meu filho, você não sabe o quanto tô feliz!

Page 20: 03. o espelho da vida

Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 19191919

GUTO

(Sai e volta com uma cadeira de rodas.) Tá aqui o seu presente, mano. A sua

cadeira de rodas. Não é uma grande coisa, mas dá pra quebrar o galho. (Nando

agradece o irmão dizendo palavras desconexas.) Não precisa me agradecer. Você

merece muito mais. Agora vamos dar um passeio?

(Põe o irmão na cadeira e sai com ele.)

CENA 10

(Alguns dias depois. Dora está na sala quando é despertada por um soluço. Ela

caminha em direção do quarto de Paloma e vê a filha chorando.)

DORA

Paloma, o que aconteceu?

PALOMA

(Abraça a mãe; chorando mais.) Mãe, me perdoa!

DORA

Perdoar o quê?

PALOMA

Juro que não queria mãe, mas estávamos sozinhos na sala, o perfume

dele tomando conta de tudo... ele me tocando...Não deu pra segurar... (Com um

fio de voz.) Aconteceu...

DORA

Você... Você transou com o Edu?

PALOMA

(Envergonhada.) Eu tentei evitar, mas foi mais forte que eu...

Page 21: 03. o espelho da vida

Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 20202020

DORA

Eu também já tive sua idade e sei como são essas coisas. Eu só espero

que vocês tenham se prevenido... (Enxuga as lágrimas que escorrem pelos olhos da

filha.) Agora enxuga essas lágrimas, vai...

PALOMA

(Embaraçada.) A coisa é mais séria!

DORA

Não me diga que você... (Desmonta.)

PALOMA

Eu tô grávida, mãe! Minha menstruação tava atrasada, comecei a sentir

enjoos frequentes, desconfiei logo e fui comprar aquele teste de gravidez na

farmácia. Fiz o teste e deu positivo.

DORA

Uma gravidez, agora?

PALOMA

Eu e o Edu já conversamos e acertamos tudo. A gente precisa se casar o

mais depressa possível.

DORA

Você não faz ideia de como vai mudar sua vida daqui pra frente. O que

você vai pegar no colo daqui a nove meses vai ser um ser humano e não essas

bonecas que enfeitam seu quarto... Mas tudo bem... Já que aconteceu, é

necessário assumir a responsabilidade. À noite a gente conversa com o Guto...

Ele vai entender!

PALOMA

(Abraça a mãe.) Ô mãe, eu amo você!

Page 22: 03. o espelho da vida

Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 21212121

(Black-out.)

CENA 11

(Márcia entra. Nando está sentado em sua cadeira de rodas.)

MÁRCIA

Dora! (Para Nando.) Ô moleque, sua mãe tá aí? (Tenta fazer com que o

garoto preste atenção nela.) Ô garoto, tô falando com você... (Dá um forte tapa na

cabeça do menino.) Ah, esqueci que você não fala... (Dora entra e fica espiando,

escondida.) Olha só: o retardadinho ganhou uma cadeira de rodas. Agora não

vai mais andar naquela carroça imunda. Pelo menos agora não vai ficar se

rastejando no chão como um verme nojento.

DORA

(Furiosa, agarra Márcia.) Verme nojento é a puta que te pariu... (Esbofeteia

Márcia.)

MÁRCIA

(Assustada.) Dora!

DORA

Que amiga fui arranjar: cínica, mentirosa e traiçoeira. Uma cobra

peçonhenta dentro da minha própria casa e fingindo ser minha amiga. Agora

entendi porque o Nando tava agitado aquele dia. Ele queria me alertar a seu

respeito, sua cadela ordinária! (Derruba a mulher no chão e prensa sua cabeça no

assoalho.) Sabe o que eu devia fazer com você? Esmagar sua cabeça como que

se esmaga uma cabeça de cobra! Agora você vai sentir na carne tudo o que o

Nando sentiu quando tava sendo humilhado por você. (Levanta a mulher do

chão. Para Nando.) Veja, Nando. (Dá uma forte bofetada na cara dela.) Esse é por

mim. (Dá mais duas bofetadas.) E esses dois são por você. Agora desapareça da

minha casa. (Abre a porta e empurra a mulher escada abaixo. Márcia grita. Dora vai

Page 23: 03. o espelho da vida

Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 22222222

para perto de Nando.) Nando... eu juro que essa ordinária nunca mais vai chegar

perto de você. Eu juro...

GUTO

(Desce do seu quarto.) Que barulho foi esse, mãe?

DORA

A Márcia, aquela ordinária, que maltratava o Nando... Mas já tratei

disso, e ela nunca mais vai entrar aqui em casa. (Pausa tensa. Muda de assunto.)

Guto, preciso lhe dizer uma coisa...

GUTO

Diga.

(Paloma entra em cena, trêmula.)

DORA

Guto, a Paloma vai se casar com o Edu.

GUTO

(Feliz.) Mas que maravilha! Quando?

DORA

Daqui a um mês, no máximo!

GUTO

Por que a pressa?

DORA

(Embaraçada. Paloma engole em seco.) Porque... Ela tá grávida!

Page 24: 03. o espelho da vida

Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 23232323

GUTO

(Irônico e irado.) Que notícia ótima!!! Quem é o pai? Se é que você sabe

quem é o pai, não é, sua vagabunda?

PALOMA

Não foi culpa minha!

GUTO

E de quem foi então? Minha? (Suas expressões tornam-se cada vez mais

monstruosas.) Mas que maravilha, enquanto a mãe não tem dinheiro nem pra

comprar uma roupa decente, a filha não consegue ficar com calcinha? (Nando

demonstra no rosto sinais de raiva.) Vem aqui, Paloma, que vou te ensinar a

fechar as pernas, sua vagabunda. Vou te quebrar inteira!

NANDO

(Sua raiva vai aumentando.) Eu mato o Guto. (Começa a soltar urros.)

(Dora tenta acalmar Guto defendendo Paloma e Nando. Nando berra e Guto tenta

avançar, até sair de cena, furioso.)

PALOMA

Calma, Nando, calma... Eu vou embora daqui... Vou morar com o Edu.

Cuide bem da mamãe pra mim, viu?

(Os três se abraçam. Congelam em posição de foto. Black-out.)

CENA 12

(Luz sobe em resistência. Estamos na mesma mata em que Dora deu à luz a Nando.

Entra Paloma. Seus passos são milimétricos. Carrega uma mala. Sua respiração está

ofegante, parece que correu muito. Ela caminha pelo proscênio e para no centro. Abre a

mala. Tira uma carta. Lê e chora. Em seguida começa a bater violentamente na barriga.

Page 25: 03. o espelho da vida

Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 24242424

Ela tenta a todo custo, expulsar a criança do seu útero. Num plano acima, está o “feto”

de Paloma. O ator que interpretar o bebê está nu, em posição de fetal. Ele se mexe

conforme Paloma bate em sua barriga. A jovem não encontra mais forças e estressada

desaba no chão. Fica assim por algum tempo. Olha para o lado e vê a mala aberta.

Levanta-se e revira toda a roupa dali de dentro. Por fim encontra uma agulha de tricô.

Pega-a e olha para a agulha. Seus olhos estão fixos naquele objeto como num ritual

macabro. Vai enfiar a agulha na vagina, mas perde a coragem. Segunda tentativa:

tentativa frustrada. Terceira tentativa: olha para a agulha e violentamente dá uma

estocada em sua vagina. Os gritos de dor de Paloma e do bebê são mesclados com o

forte bater de um tambor. Black-out.)

EPÍLOGO

(Luz sobe em resistência. Dora, Guto e Nando estão no centro da sala. Vestem luto por

Paloma.)

GUTO

(Chora. Quebra o gelo.) Eu tava nervoso, mãe. Ela não podia ter ido

embora. Ela sabe como eu sou sempre soube. Como me sinto culpado pela

morte dela.

DORA

(Inconformada.) Não se sinta culpado, Guto. (Tira uma carta amassada do

bolso.) Veja, esta carta foi encontrada junto ao corpo de Paloma. Aqui, o Edu

dizia que não queria mais se casar e principalmente assumir a criança. Ela se

sentiu culpada, perdida, e fez tudo isso.

GUTO

Eu não queria falar daquele jeito com ela. É que eu levei um choque

quando soube... Merda de vida. Nem que eu viva cem anos, vou conseguir

esquecer o que fiz pra ela.

Page 26: 03. o espelho da vida

Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 25252525

DORA

(Fazendo-se de forte.) Filho, não fique assim... aconteceu. Não consigo

explicar o que sinto. Não dá prá dizer com palavras o que uma mãe sente

quando vê o seu próprio filho morto. Preferia mil vezes morrer do que ver um

filho meu num caixão. (Solta um gemido grosso.) Filho, me dê forças pra

continuar vivendo, por favor. Me ajude a criar o Nando. A vida dele depende

da minha. Eu preciso compreender... Promete que vai ficar pra sempre do meu

lado, Guto, promete?

GUTO

Prometo mãe.

DORA

Eu pensei que tava tendo um pesadelo quando vi o caixão da Paloma

entrar no túmulo. Os coveiros enterrando a minha menina... O Edu chegando

ao cemitério e depois de ter certeza que era ela, sair correndo sem dizer uma

palavra. Mas aí fui ver que não era pesadelo, não. Era realidade. A mais pura

realidade.

GUTO

Ela era tão jovem... Cheia de sonhos! Tinha toda a vida pela frente.

Como queria que o tempo voltasse atrás. Como queria estar do lado da

Paloma neste momento.

(Nesse instante, no plano alto, surge o espectro de Paloma. A garota está vestida de

noiva e tem um véu cobrindo seu rosto.)

GUTO

Como queria que ela me perdoasse mãe.

PALOMA

(Com a voz suave.) Eu já te perdoei, Guto.

Page 27: 03. o espelho da vida

Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 26262626

GUTO

(Sente um calafrio.) Mãe, a Paloma...

DORA

O quê?

GUTO

(Místico.) Sinta mãe. Parece que a Paloma tá aqui com a gente.

DORA

Eu não sinto isso, filho. Por quê? Eu queria pelo menos um sinal...

(Nando balbucia.)

GUTO

(Com carinho, para o irmão.) O que, Nando?

NANDO

(Com dificuldade.) Pegue essa carta...

GUTO

Carta? Que carta?

NANDO

Aqui, no meu pé.

(Guto pega uma folha de papel aberta do pé de Nando.)

GUTO

O que é isso? “Para a mamãe”. (Lê em voz baixa e se emociona.) Foi você

que escreveu isso, Nando? (Nando afirma.) É lindo demais, mano!

Page 28: 03. o espelho da vida

Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 27272727

DORA

(Ansiosa.) Fala logo, Guto, o que o Nando diz na carta?

GUTO

(Lê para a mãe.) “Mãe, é necessário encontrar forças, mesmo depois de ter

passado pelo que você passou...”

NANDO

(No áudio ouvimos a voz de Nando, bem articulada.) “Não sei como

descrever o que eu sinto por você. Mesmo sabendo da minha deficiência,

enfrentou tudo e todos para me deixar nascer. Você foi à única pessoa que

nunca se envergonhou de mim. Obrigado por me deixar nascer. Obrigado por

me aceitar assim.” (Guto pega uma flor vermelha que está no bolso da camisa de

Nando e a coloca no pé esquerdo do menino, que oferece para a mãe.) “Aceite essa flor

como prova do meu agradecimento por tudo que você me fez. Te amo!

Nando”.

(Dora, com os olhos cheios de lágrimas pega a flor do pé esquerdo do filho e abraça-o,

emocionada. Guto, também emocionado, abraça os dois. Paloma ri e chora ao mesmo

tempo. Black-out final.)

FIM

Agosto/1995