Dissertação - Espelho Ante Espelho

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7/31/2019 Dissertação - Espelho Ante Espelho http://slidepdf.com/reader/full/dissertacao-espelho-ante-espelho 1/245 Universidade de Brasília Instituto de Ciências Sociais Departamento de Antropologia Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social ESPELHO ANTE ESPELHO: A TROCA E A GUERRA ENTRE O NEOPENTECOSTALISMO E OS CULTOS AFRO- BRASILEIROS EM SALVADOR Bruno M. N. Reinhardt Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de Brasília (DAN-UnB) para obtenção de título de mestre Orientadora: Profª. Rita Laura Segato Brasília Novembro de 2006

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    Universidade de BrasliaInstituto de Cincias Sociais

    Departamento de AntropologiaPrograma de Ps-Graduao em Antropologia Social

    ESPELHO ANTE ESPELHO: A TROCA E A GUERRA ENTREO NEOPENTECOSTALISMO E OS CULTOS AFRO-

    BRASILEIROS EM SALVADOR

    Bruno M. N. Reinhardt

    Dissertao apresentada ao Programade Ps-Graduao em AntropologiaSocial da Universidade de Braslia(DAN-UnB) para obteno de ttulo demestre

    Orientadora: Prof. Rita Laura Segato

    BrasliaNovembro de 2006

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    BANCA EXAMINADORA:

    Prof. Jos Jorge de Carvalho (PPGAS/UnB)

    Prof. Otvio Velho (PPGAS/Museu Nacional/UFRJ)

    Profa. Mariza Peirano (suplente) (PPGAS/UnB)

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    Para Letcia e Mathias, como um testemunho, que faz presente (com) um tempo bom.

    Para Salvador: cidade-troca, cidade-guerra.

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    AGRADECIMENTOS:

    Gostaria de agradecer, primeiramente, a todos que me abraaram na volta ao lar que foi este

    projeto de pesquisa, permitindo o meu reencontro com Salvador. Familiares, amigos velhos e

    novos e parceiros de reflexo, com quem pude compartilhar as questes que me levaram cidade.

    Principalmente, Dona Terezinha, ela e os seus braos sempre abertos.

    Margritt e Otto, pela Bahia que fizeram sua.

    ngela Lhning, pelas coordenadas iniciais.

    Patrcia Freitas, por outras coordenadas.

    Ao povo de santo de Salvador, sempre pronto a escutar e a falar, a abraar o estrangeiro como

    um dos seus. Especialmente Jijio e Jaciara, pelo nimo e disponibilidade. Para todos, eupeo Ag.

    Rita Segato, fonte de inspirao, pelas leituras, crticas e insights sempre produtivos e

    instigantes.

    Aos professores Jos Jorge de Carvalho e Otvio Velho, por aceitarem compor a banca e por

    terem sido referncias literrias presentes na concepo e no desenvolvimento deste trabalho.

    professora Mariza Peirano, por aceitar a vaga de suplente da mesma banca e pelos

    ensinamentos fundamentais do seu curso de Anlise de Rituais, presentes de modo

    pulverizado por toda a dissertao e de modo enftico ao longo do primeiro captulo.

    Desde a UFMG, professora La Perez, pea fundamental na minha converso

    antropologia.

    Agradeo tambm a outros professores importantes na minha passagem por Braslia: Wilson

    Trajano Filho e Lus Roberto Cardoso de Oliveira, no Departamento de Antropologia, e

    Gerson Bra, no Departamento de Filosofia.

    minha famlia, pais e irmo, pelo apoio em todos os sentidos. Reforo ainda o

    agradecimento ao meu pai, Mario Reinhardt, pelo amor e fora incondicionais com que tem

    abraado os meus projetos ao longo desta jornada conjunta.

    Letcia, pelas leituras, conversas, delrios e ps no cho, mas, sobretudo, pela doura e

    carinho.

    s companheiras de morada e exlio: Beatriz, Carmela e Rosana.

    Aos companheiros apenas de exlio, sem morada: Luana e Helder.

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    Aos amigos da querida Katacumba: Lvia, Carol, Gonzalo, Homero, Leonardo, Waldemir,

    Lus, Carlos Alexandre, Cristina, Ana Julieta, Rder, Odilon, Paulo, Marcel, Joo Miguel,

    Mrcia, Jlio e Dona Iracilda.

    Dentre estes, sublinho ainda o agradecimento aos amigos Leonardo, Lus e Marcel, pela

    empatia mais intensa em torno dos debates da antropologia.

    s poucas amizades extra-acadmicas de Braslia: Mari, Ada, Sarah e Paloma.

    Cristina Reis, pela amizade imprescindvel.

    Carolina Junqueira, por Magritte e Flusser, alguns dentre tantos espelhos que passaram por

    nossas conversaes.

    E j que aquilo que se escreve tempo, no poderia deixar de agradecer a outros grandes

    amigos de Belo Horizonte, alguns ainda l, outros espalhados pelo Brasil e pelo mundo:

    Gustavo, Rafael, Silvia, Murillo, Marina, Ana, Alain, David, Helena, Lus, Grson e Daniel

    Alves.

    Ao CNPQ, pelo suporte financeiro.

    Rosa e Adriana, pelo apoio administrativo sempre eficiente e gentil.

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    RESUMO:

    Ao longo das ltimas duas dcadas, um importante fenmeno de conflito tem alterado

    profundamente a paisagem religiosa brasileira, de modo a colocar em questo um dos

    principais alicerces sobre o qual tem se assentado historicamente as suas narrativas mais

    oficiais, o sincretismo religioso. Em sua recorrncia no tempo e em sua disseminao pelo

    territrio nacional, as tenses entre denominaes evanglicas neopentecostais e o cultos

    afro-brasileiros acabaram sendo batizadas, pela opinio pblica e pelos especialistas, como a

    guerra santa. O objetivo central desta dissertao abordar a guerra santa a partir de uma

    atualizao particular, em Salvador, e sob uma perspectiva nativa, ou seja, atravs da

    construo textual de uma exegese recproca, preocupada em reconstituir as auto e as alter

    caracterizaes produzidas pelas partes que nela guerreiam. Resulta desta proposta um

    empreendimento textual dividido em duas partes espelhadas. Em um primeiro momento,

    recupero o discurso neopentecostal sobre o demnio afro-brasileiro e as suas implicaes,

    para ento, em um segundo momento, resgatar as diferentes formas do candombl local

    receber e especular sobre a presena ruidosa e violenta do inimigo evanglico. Ambos os

    discursos podem ser pensados como estratgias utilizadas pelos grupos religiosos vinculados

    pelo conflito (pensando enquanto troca e guerra) para lidar com questes concernentes s suas

    prprias gramticas, fazendo do inimigo um dado interno a elas. Como concluso, coloco tais

    estratgias de captura textual do outro sobre o contaste fotogrfico do problema antropolgico

    clssico do individualismo, tendo em vista captar de modo mais explcito os movimentos

    identitrios dinamizados em ambos os grupos por esta nova economia da alteridade em que se

    vem jogados. Por fim, e pensada sob esta tica, a guerra santa passa a mostrar-se como

    uma verdadeira guerra de espelhos.

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    ABSTRACT:

    For the last two decades, an important phenomenon of conflict has altered deeply the

    Brazilian religious scenario, questioning one of the main aspects of its official narratives,

    religious syncretism. In its recurrence in time and in its dissemination throughout the national

    territory, tensions between the neopentecostal evangelical denominations and afro-Brazilian

    cults ended up being called, by public opinion and the specialists, a holy war. The purpose

    of this thesis is to approach the holy war in a particular context, in the city of Salvador, and

    through a native perspective, i.e., through the textual construction of a reciprocal

    exegesis, concerned with the reconstitution of self and alter characterizations produced by

    both parts fighting this war. The outcome of this proposal is a text divided into two mirrored

    halves. In the first part, I describe the neopentecostal discourse about the afro-Brazilian devil

    and its implications, while in a second part I reconstruct the different ways that local

    Candombl receives and speculates about the noisy and violent presence of its new enemy.

    Both discourses might be thought as strategies used by the religious groups articulated by the

    conflict to deal with questions concerning its own grammars, turning the enemy into data

    internal to them. As a conclusion, I place those strategies of capturing the other above the

    photographic contrast of individualism, aiming to observe clearly the identitary movements

    put at work in either group by the new economy of otherness that they have lived in the last

    years. Thought out through this optic, the holy war then shows itself as a war of mirrors.

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    SUMRIO:

    INTRODUOJogos de espelhos: interpretando como a guerra santa interpreta................................ 1

    I.

    Quem guerreia? : a guerra santa como jogo....................................................... 6

    II. Transferindo ausncias: linguagem, discurso, religio e poltica......................... 10

    III. Textualizando as pontes e os saltos gramaticais: guerra-troca / metafrico-metonmico............................................................................................................. 16

    PARTE 1A batalha espiritual e o demnio afro-brasileiro: um mal libertador.............................. 21

    Captulo 1Frente de libertao: performance ritual e economia da pessoa na Sesso doDescarrego........................................................................................................................... 26

    I. A Sesso do Descarrego enquanto sintagma: o espiral das trocas........................ 30

    a) Antes do culto............................................................................................................. 32b) Incio do culto............................................................................................................. 32c) Presentificao do Esprito Santo............................................................................... 33d) Oferta.......................................................................................................................... 34e) Incio da cura espiritual............................................................................................... 36f) O Santurio do Descarrego...................................................................................... 36g)

    Manifestao............................................................................................................... 37

    h) Interrogatrio e tortura do demnio............................................................................ 38i) Testemunho................................................................................................................ 39

    j) Pregao...................................................................................................................... 40k) Dzimo e fim do culto................................................................................................. 41l) Sntese parcial............................................................................................................. 42

    II. A Sesso do Descarrego enquanto paradigma: a troca e a guerra com oterceiro.................................................................................................................... 45

    Captulo 2Frente de ocupao: a disputa pelo cotidiano como territrio inimigo...................... 55

    I. Guerra de informao: a produo confessional do inimigo e a disseminaorumorosa do risco....................................................................................................... 58

    a) Os conflitos amorosos e os riscos da intimidade......................................................... 61b) Inimigo indigesto......................................................................................................... 63c) A fora dos trabalhos: das vtimas aos mediadores pela voz do feiticeiro.............. 64

    II. Marchando sobre as trincheiras inimigas: agresses e invases de terreiro como atosreligiosos..................................................................................................................... 71

    a)

    O embate corpo a corpo.............................................................................................. 75b) Os ataques e as invases aos terreiros......................................................................... 76

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    III. Luta e ocupao no territrio mgico da representao............................................. 84

    a) Panfletando o pavor..................................................................................................... 86b) O Dique do Toror: parque natural, lagoa de Oxum ou celeiro de encostos?.. 90c) Acar, Acaraj ou Bolinho de Jesus?............................................................... 96

    [Sobre Deuses-espelhos: Mirror, de Silvia Plath]......................................................... 106

    PARTE 2Hospedando o inimigo: a batalha espiritual e as velhas e novas configuraes docandombl baiano................................................................................................................ 107

    Captulo 3Especulaes mgico-religiosas: trnsito religioso e transferncia de si........................ 111

    I.

    Trnsito perigoso........................................................................................................ 118II. O transbordamento do ax: doao e controle mgico de si...................................... 125

    III. Um Exu evanglico?.................................................................................................. 134

    Captulo 4Especulaes polticas: rompendo o campo do outro....................................................... 142

    I. O Movimento Contra a Intolerncia Religiosa: do trgico ao utpico na presenado inimigo................................................................................................................. 148

    a)

    O inimigo que faltava............................................................................................. 150b) Morte trgica/ Morte utpica: o caso de Me Gilda.................................................. 160c) Fragmentos de um discurso utpico........................................................................... 164

    II. Candombl e Estado: da represso e das polticas de aliana s polticas doreconhecimento....................................................................................................... 169

    a) A poltica dos antigos: personalismo e mistificao da ordem oficial................... 170b) Das alianas ao reconhecimento............................................................................. 175c) Esboando o telos do reconhecimento....................................................................... 182d) Novas polticas, nova tradio................................................................................... 190

    CONCLUSODeuses de quatro cantos: fices eficazes espalhando espelhos pelo cho doindividualismo...................................................................................................................... 197

    I. A Igreja Universal e a ubiqidade do mal: construindo um cristianismo de/emrisco........................................................................................................................... 205

    II. O candombl e o controle t(n)ico de si ............................................................. 212

    III. A no in-diferena mtua e as duas vias do englobamento................................. 220

    BIBLIOGRAFIA.................................................................................................................. 226

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    O olho cheio sobe no ar, o globo dgua arrebentando, Narciso contempla narciso, no olhomesmo da gua. Perdido em si, s para a se dirige. Reflete e fica a vastido, vidro de p

    perante vidro, espelho ante espelho, nada a nada, ningum olhando-se a vcuo. Pensamento espelho diante do deserto de vidro da Extenso. Esta lente me veda vendo, me vela, medesvenda, me venda, me revela. Ver uma fbula, - para no ver que estou vendo.

    Paulo Leminski - Catatau.

    Ningum deveria deixar espelhos pendurados em casa, assim como no se devem deixarabertos tales de cheque ou cartas que confessam algum crime horroroso.

    Virginia Wolf - A dama do espelho: reflexo e reflexo.

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    INTRODUO:

    Jogos de espelhos: interpretando como a guerra santainterpreta

    Ren MagritteLa reproduction interdite (Portrait dEdward James) 1937 leo sobre tela, 79 x 65,5cm Roterdam, Museum Boymans-van Beuningen

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    Quatorze de agosto de mil novecentos e oitenta e nove, centro de Salvador. Uma

    passeata evanglica desce a Avenida Sete, saindo do Campo Grande e caminhando rumo

    Praa Castro Alves. Cerca de 500 pessoas carregam faixas e cartazes, guiadas por um grande

    carro de som, que serve de suporte para um grito de revolta que, quela ocasio, ainda soava

    excntrico e isolado, mas que demonstraria, no correr dos anos, uma grande capacidade de

    convencimento e de mobilizao dentre a populao da cidade. Em um dos cartazes l-se a

    inscrio: Triste... crianas servem de sacrifcio na macumba! Queremos justia.

    O tom apelativo da manifestao continua. Logo atrs, um conjunto de crianas se

    destaca, carregando uma faixa com um inusitado pedido em letras garrafais: DEIXEM-NOS

    VIVER!. A splica precedida por um grupo de pastores, que, fazendo fundo s crianas,

    portam outros cartazes, esses mais tcnicos, visando demonstrar estatisticamente como os

    cultos afro-brasileiros contribuiriam para as altas taxas de mortalidade infantil do pas.

    O argumento central, que permeia toda a manifestao, o de que o candombl e a

    umbanda seriam cultos satnicos que, atravs de prticas sacrificiais cruis, visariam agradar

    entidades espirituais malficas com o objetivo de alcanar determinados favores materiais e

    espirituais. Esse seria um engano mortal, j que a nica fonte saudvel e legtima de poder

    sobrenatural seria o Deus cristo, e a nica forma de salvar essas pessoas das terrveis

    conseqncias dos seus erros (assim como de salvar as crianas de uma morte violenta) seria

    aproxim-las da palavra de Deus atravs do poder interventor do Esprito Santo1.

    O espetculo acima descrito, prenhe de aspectos trgicos e cmicos, pode ser

    considerado a primeira de uma srie de manifestaes pblicas organizadas pelo segmento

    evanglico baiano, eminentemente pelas denominaes autodenominadas neopentecostais,

    contra os cultos afro-brasileiros. Em sua recorrncia no tempo e em sua crescente divulgaona opinio pblica, esses eventos sinalizavam a processual instalao, justamente na Cidade

    dos Orixs, dos ataques que, quela poca, j eclodiam em vrios cantos do Brasil, e que

    continuariam at os dias de hoje, vindo a receber, por parte da imprensa e dos especialistas, a

    1 Descrio baseada na reportagem Evanglicos protestam atrs do Trio, do Jornal da Bahia de 15/08/89.

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    designao de guerra religiosa, ou ainda de guerra santa 2 (Soares 1990; Soares 1994; Oro

    1997).

    De fato, o belicismo dessas atitudes tende a se acirrar, e o que antes eram apenas

    manifestaes e acusaes pblicas logo se tornam, com o aquecimento das tenses, atos de

    violncia explcita. o que se observa entre o final da dcada de 90 e a primeira metade da

    dcada atual em Salvador, quando foram registradas pelas autoridades policiais e pela

    imprensa local uma srie de agresses fsicas e morais realizadas por evanglicos aos

    praticantes de cultos afro-brasileiros, que frequentemente resultaram em revide e briga.

    Juntam-se a essas agresses pontuais, formas mais concatenadas de ao coletiva, como as

    contnuas invases dos espaos de culto dessas religies, os terreiros, com a finalidade de

    quebrar objetos litrgicos e tirar o diabo das pessoas, lugares e coisas atravs do exorcismo,

    sempre acompanhado por muito sal grosso e enxofre.

    A cabea da manifestao de 1989 reconhecidamente a Igreja Universal do Reino de

    Deus, que chegara cidade havia pouco tempo e que j lotava estdios em seus cultos de

    libertao, onde enfermos eram curados e demnios exorcizados a granel. Adentrando o

    campo religioso baiano de forma radicalmente inovadora, com a abundncia de criaes

    doutrinrias e litrgicas que a caracterizam, a IURD passa a ser - intencionalmente ou no - a

    representante de um grupo de insatisfeitos com a Bahia dos feitios e mistrios.

    Quando classifico essa capacidade representativa como no necessariamente

    intencional, refiro-me s particularidades desta igreja, que se distinguiria dos grupos

    evanglicos mais tradicionais, como tentarei demonstrar, principalmente pela sua nfase na

    libertao ritual em detrimento da perene salvao, administrada atravs do controle tico

    de si. Tal diferena, a princpio fundamental, no impede que a IURD se estabilize, graas ao

    seu proselitismo mais ativo e sua presena pblica mais ostensiva, como a inspiradora de

    um movimento que teria em vista reformular o universo simblico e valorativo sobre o qual

    tem se assentado a identidade coletiva da cidade de Salvador, at ento marcadamentecatlico e, sobretudo, afro-brasileiro.

    Durante uma conversa sobre um dos pilares desta identidade coletiva, o Carnaval, um

    pastor da Assemblia de Deus uma vez me declarou:

    2 De acordo com Giumbelli: A expresso guerra santa surgira nos jornais j no final da dcada de 90 parafazer referncia aos ataques de certas igrejas protestantes desferidos contra os cultos espritas e afro-brasileiros(2003: 172).

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    Ns temos hoje um testemunho numeroso de pessoas que eram do candombl e hoje soevanglicas. Eu poderia lhe dizer que na Bahia pelo menos uns 20% dos evanglicos j foramcandomblecistas. Outros foram catlicos. Os evanglicos foram cooptando pessoas... Nsramos aqui, h 50 anos atrs, menos de 2% da populao, hoje ns somos mais de 15%, houveuma cooptao numerosa. E de onde foi que vieram essas pessoas? Do catolicismo, docandombl, do espiritismo. Grande parte disso foi por causa da IURD. Eles nunca seencaixaram muito bem no que a gente concebe como evanglico, sabe? Mas a gente viu que elapodia contribuir. A idia s vezes partir da IURD, mas depois tentar adequar essas pessoas aoscompromissos que guiam uma vida propriamente evanglica, sabe? Mudar as prticas. Pararde beber, parar de fumar, parar de exercitar a poligamia e outras coisas desse tipo. claro quese a maior parte da populao se converter ao evangelho, o carnaval vai sentir, sem pensar duasvezes n? Isso no quer dizer que o povo vai deixar de fazer festa, mas no ter o tom docarnaval, aquele tom... O carnaval uma festa relativamente violenta, muito regada asensualidade, e essas coisas dentre os evanglicos elas so desestimuladas. Poderamos ter umafesta na poca do carnaval, mas uma festa com caractersticas diferentes.

    A fala evidencia a fora to instvel quanto inevitvel com que a presena da IURD se

    insere no universo das denominaes evanglicas de Salvador, colocando em disputa oprprio sentido da categoria. Nela, a Universal referida como um meio, no to evanglico

    assim, para uma futura e derradeira disseminao deste ethos anti-carnavalesco dentre a

    populao da cidade. A sua necessidade evidente, assim como a sua incompatibilidade com

    o resto da cena religiosa em que se insere.

    Grande parte desta incompatibilidade pode ser devida aos prprios vnculos que

    articulam a IURD aos cultos afro-brasileiros, sempre dotados de forte teor crtico, mas

    tambm de franca apropriao. Essa posio ambgua, que, como quase toda ambigidade,dificilmente gera consenso, acaba por se impor graas sua eficcia na tarefa de atrair fiis de

    outras religies, fundamentalmente por apoiar-se numa textualidade construda em constante

    dilogo com a totalidade conceitual definida por Sanchis (2001) como a religio dos

    brasileiros, especialmente no que tange um dos seus mais importantes traos: o

    espiritualismo (26), uma concepo trgica de pessoa, onde o tomo individualista aparece

    sempre ameaado ou mesmo habitado por foras ou entidades que o superam e com quem ele

    tece alianas.Desse modo, a IURD parece atrair a novidade do avano do evangelismo no Brasil

    para um acordo com a sua tradio. Diante destas condies incontornveis, as opes para as

    outras denominaes evanglicas passam a ser: ou opor-se ao seu campo de influncias, ou

    mimetiz-lo plenamente, ou ainda negociar contextualmente com os termos por ele impostos,

    como pormenoriza o pastor logo acima, estratgias que veremos serem exemplificadas ao

    longo desta dissertao.

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    Se a ancoragem da Universal em solo baiano implicou na desestruturao e na

    conseqente reorganizao semntica e poltica do universo evanglico, isso no se torna

    menos evidente caso atentemos para o universo das religies afro-brasileiras, os inimigos

    em questo. Uma informante do candombl narrou a perplexidade com que recebeu o

    desenrolar da ofensiva neopentecostal:

    Comearam aqueles programas de televiso deles, falando que a gente fazia acordo com odiabo, que fazia trabalho pra matar gente e eu achava at engraado. Quando comearam asinvases, eu olhava aquilo nos jornais e me assustava, parecia que a histria estava andando aocontrrio pra gente, parecia que aquela poca de perseguio, que os antigos falavam, estavavoltando. Mas quando eu fiquei sabendo que eles usavam banho de erva, descarrego e tudomais, a que eu me assustei mesmo! O que era aquilo! O candombl ficou um pouco sem chomesmo depois que eles [a IURD] chegaram aqui, sabe.

    Percebe-se que o fator desestabilizador destacado pela fala no a simples demonizaodo candombl, informao que no ofereceria nenhuma novidade para uma comunidade de

    culto j acostumada com as interpretaes que, historicamente, tm associado as suas prticas

    ao mal. O que de fato tira o cho do candombl de Salvador, segundo a informante, so

    duas mudanas que acompanham essa nova verso de um velho problema. Primeiramente, a

    radicalidade e a organizao com que essa captura textual das religies de matriz africana

    realizada, uma perseguio insistente e racionalizada, diferente dos preconceitos cotidianos e

    pontuais, j que guiada por uma ao visivelmente estratgica, assim como fora a represso

    policial na poca dos antigos. Outro importante deslocamento a insero, nessa mesma

    estratgia, de uma lgica de estmulos contraditrios, uma espcie de double-bind(Bateson

    1958) entre distanciamento demonizador e aproximao e mesmo expropriao ritual e

    cosmolgica.

    Nesses termos, o surgimento da IURD e a estabilizao do seu estilo ambguo e

    agonstico de insero pblica representaram a chegada de uma oposio incomum para o

    candombl de Salvador, j que dotada de indita intimidade com o seu domnio particular de

    ao e pensamento. No entanto, e apesar do estranhamento inicial, veremos como a guerra

    lentamente aceita por setores do povo de santo, passando a ser utilizada como uma via para

    a re-configurao poltica da sua comunidade. Visualizados sob esta tica, os ataques

    evanglicos acabam servindo de suporte para a conformao de um amplo e intenso debate

    pblico acerca da intolerncia religiosa na cidade, expresso que passa a fazer parte do seu

    vocabulrio cotidiano. Obrigado a habitar o interior do campo inimigo desde a sua origem,

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    produzindo com ele alianas, analogias e fuses, o candombl v no debate sobre a nova face

    dos seus algozes a chance de moldar uma nova face para si mesmo.

    I- Quem guerreia? : a guerra santa como jogo

    Na rpida introduo logo acima, tendo o objetivo de apresentar os principais atores que

    comporo a guerra que se desenrolar ao longo das pginas seguintes, acabei revelando que os

    efeitos da presena da IURD em Salvados no foram, sob vrios aspectos, exatamente

    destruidores, mas, acima de tudo, desestruturadores, no sentido de suscitarem, tanto no

    campo evanglico quanto no das religies afro-brasileiras, releituras, revises e reformas. Tal

    situao tenderia a transformar a guerra santa em uma espcie de jogo de espelhos, cuja

    ao colocaria em disputa a prpria reflexividade dos atores em questo, ou a sua ipseidade,

    nos termos de Ricoeur (1987), fazendo com que eles saiam do seu mbito de tenses de modo

    diferente do que nele adentram3.

    Ao assumir o fato dos guerreiros no se situarem como uma presena prvia ao

    acontecimento da guerra, ou seja, como elementos dados que estruturariam a realizao das

    suas disputas, minha inteno destacar que o questionamento acerca de quem nela guerreia -

    a princpio externo, metalingstico, cientfico - configura-se no motivo da guerra mesma.

    Quem guerreia? ser, portanto, a pergunta antropolgica desta investigao, mas tambm a

    pergunta nativa, da prpria guerra, aquela que administra o seu desenrolar, o cho consensual

    mnimo para o salto do dissenso, a pergunta-guerra. ela que circular entre os personagens

    desta dissertao, incluindo o seu autor, propiciando assim encontros no somente entre as

    auto e as alter caracterizaes produzidas pelos dois grupos religiosos em questo, mas

    ainda o contato entre essas mltiplas teorias nativas e a teoria antropolgica, em sua

    tentativa tenaz de produzir com elas algum vnculo de reciprocidade4.

    3 A ipseidade defendida por Ricoeur em detrimento do conceito de identidade, no que tange reflexividade individual. Segundo ele, a ipseidade englobaria a identidade, de modo a inserir, como um dadointerno sua constituio, a instncia da alteridade. Nesses termos, a alteridade (diferena em relao a simesmo) seria intimamente associada identidade (semelhana em relao a si mesmo), constituindo com elauma simultaneidade tencionada denominada ipseidade, o pice do desenvolvimento subjetivo e moral doindivduo: H traos do outro desde o incio, mas apenas ao curso do nosso desenvolvimento que esse outro[emprico] se torna outrem [um outro, uma categoria], na medida em que o indivduo se torna um ipse(1987: 56).4 Pude fazer um debate epistemolgico mais detalhado sobre o estatuto da representao no trabalho de campo ena escrita etnogrfica em Reinhardt e Perez (2004). Por outro lado, desenvolvo melhor a proposta de se utilizar a

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    Assim, se h estratgias e clculo na captura interpretativa do outro, h tambm riscos e

    efeitos inesperados. Se h conflito e afastamento comunicativo, veremos que h tambm

    trocas e entrelaamentos inesperados. essa diversidade de vnculos e circuitos que tentarei

    descrever etnograficamente, interpretando a sua variedade fenomnica (ela mesma

    interpretativa) como rastros deixados pelo trabalho insistente e silencioso, mas nunca

    subjacente, de duas instncias da realidade social, a alteridade e o discurso, ambas

    agregadas em um mesmo campo de batalhas, e l vividas enquanto jogo.

    Ao longo de Verdade e Mtodo, obra em que volta os seus esforos para a busca de uma

    alternativa epistemolgica tanto para o modelo cientificista do mtodo quanto para o

    modelo historicista e psicologizante da empatia, o filsofo hermeneuta Hans Georg-

    Gadamer lana o seu olhar sobre o campo de fenmenos da arte. Contornando o subjetivismo

    inerente noo kantiana hegemnica de gosto, Gadamer lana a pergunta: Ser que no

    deve haver nenhum conhecimento na arte? No h tambm na experincia da arte uma

    pretenso de verdade, diversa daquela das cincias, mas certamente no inferior? (Gadamer

    1997: 149). Algumas pginas adiante, na trilha da resposta, e tendo rejeitado as posies que

    situam a verdade da arte exclusivamente na conscincia esttica ou na experincia da

    recepo, Gadamer afirma: A obra de arte jogo (179).

    Antes de chegar a tal reposta, no entanto, o filsofo mergulha analiticamente na temtica

    do jogo, de modo a captar, atravs de um vai-e-vem reflexivo empiria real-fictcia do faz

    de conta infantil, dos jogos de tabuleiro e de bola e mesmo dos ritos religiosos, definidos por

    ele como jogos sagrados, alguns elementos fundamentais que caracterizariam a verdade do

    jogo. Deste longo e complexo debate, gostaria de reter dois aspectos que foram bastante teis

    para a conformao da perspectiva a partir da qual interpretei e textualizei a guerra santa

    entre os evanglicos e os cultos afro-brasileiros em Salvador: i) a relao entre jogo e

    subjetividade ou, no caso de coletivos, identidade, presente na discusso acerca do modo

    com que o jogo engendra os jogadores; e ii) a natureza particular da verdade do jogo, cujoacontecimento estaria vinculado a um modelo de mediao distinto da noo convencional de

    representao.

    O primeiro desses aspectos pode ser acessado pela seguinte questo: Em que consiste a

    alienao de si que se presentifica no jogo, e que o instaura enquanto presena? Para que

    noo maussiana de reciprocidade para a anlise da relao teoria antropolgica/teoria nativa em Reinhardt(2006).

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    acontea um jogo, no adianta a simples organizao das suas condies materiais. Ele

    demanda um acontecimento especfico da subjetividade, e por isso uma atividade, e no um

    dado. Gadamer resume: O jogo s cumpre a finalidade que lhe prpria quando aquele que

    joga entra no jogo (1997: 155). Em suma, o jogo acontece fora do espectro da conscincia

    jogadora, j que o jogar implicaria num descentramento da subjetividade na relao dela

    consigo mesma. Sendo assim, somente a entrada do jogador no jogo, na situao simultnea

    de agncia doadora e de objeto penhorado, faz com que o ltimo deixe de ser captado

    enquanto objeto e passe a ser, como destacamos acima, o ponto de partida mesmo da

    experincia. A partir de ento, o verdadeiro sujeito do jogo passa a ser o jogo mesmo, fato que

    Gadamer define como o primado do jogo face conscincia do jogador (158).

    Tal caracterstica torna-se ainda mais evidente quando atentamos para o fato de que,

    para que haja jogo, no imprescindvel a existncia de um outro humano. Quando um garoto

    joga uma bola na parede e a recolhe, repetindo esse movimento de modo insistente, e

    produzindo, na sua decorrncia, pequenos desafios, vitrias e derrotas, no h outro, mas h

    uma posio de alteridade, portanto, h jogo. O fundamental aqui a abertura de um crculo

    de troca, a entrada de um terceiro termo na relao reflexiva entre o eu e o self, instncia

    capaz de deslocar o equilbrio da auto-referncia do jogador. O jogo feito, sobretudo, de

    lances e contra-lances, que articulam de modo particular a liberdade de deciso, as restries

    impostas pelas regras (no h jogo sem lei, sem redundncia) e o risco de implicar-se na troca.

    Chega-se, assim, a uma espcie de frmula postulada por Gadamer, que considero sintetizar

    de forma magistral a profundidade da relao entre jogo e subjetividade (ou identidade):

    Todo jogar um ser jogado (160).

    No entanto, se aquilo que se joga no jogo sempre um si mesmo diante de outrem,

    resta a pergunta: Aonde deve se assentar a representao do jogo, se no mais no sujeito

    jogador, ele mesmo descentrado pela ao do jogo? A questo introduz o segundo aspecto que

    gostaria de destacar, abordado por Gadamer em sua defesa do sentido medial do jogo, queseria consumado no momento em que este tomaria a forma de configurao (165). Apesar

    do jogo abarcar tambm o movimento designativo de se representar algo para algum, pode-

    se dizer que seu modo fundamental de ser estaria de fato no movimento performativo de

    representar-se. A auto-representao seria, portanto, um modo de levar a representao ao

    paroxismo, dissolvendo-se qualquer possibilidade de um ser-para-si, ou de uma presena

    subjetiva a ser re-apresentada de forma incua, intelectualista e no-transformadora no

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    acontecer do jogo5. Tal situao faz com que o jogo passe a repousar sobre si mesmo, ou seja,

    passe a no estar mais no lugar de um outro nvel de realidade, mas que seja inteiro e

    imanente em seus circuitos, mesmo estando intimamente ligado ao movimento de apontar

    para um fora-jogo. Essa seria a idia central contida no projeto de se pensar o jogo enquanto

    configurao:

    Essa tese significa: a despeito de sua dependncia do ser representado, trata-se de um todosignificativo, que como tal pode ser representado e entendido em seu sentido repetidas vezes.Mas tambm a configurao jogo porque, a despeito dessa unidade ideal somente alcana oseu ser pleno a cada vez que representada (173).

    Percebe-se que o jogo seria composto por uma representao integrada ao seu objeto de

    forma indissocivel. Ser e representar passam, no acontecer do jogo, a no estarem mais

    vinculados de forma ldica, mimtica ou arbitrria, mas necessariamente transformacional eostensiva, produzindo referncia ao invs de design-la. Essa seria a verdade do jogo, baseada

    em um movimento diferente daquele que visaria alar uma presena dada, e que teria na

    mediao um palco para a sua expresso. Estaramos lidando, antes de tudo, com um

    fenmeno que seria fruto de uma situao de mediao total (177), capaz de levar

    ocorrncia de uma transformao no verdadeiro (167).

    Haveria, ento, algo de inusitado no acontecimento da verdade no jogo, que entendo

    poder ser estendido a uma srie de mbitos da interao social. Nele, e como em um passe demgica, a presena, que asseguraria e autorizaria a sua significao, tenderia a realizar-se

    enquanto um a posteriori da sua prpria re-apresentao, o seu ser constando como um a

    posteriori adiado dos rastros que supostamente teria deixado6. Trata-se de uma inverso

    desconcertante, como se insistissem em nos provar que a fumaa que vista no horizonte

    fosse anterior ao fogo cuja existncia ela apontaria. Essa seria a mgica do jogo, que conteria

    sempre algo de sagrado e miraculoso, mas tambm de poltico: Na representao do jogo

    surge o que (167).

    5 A idia de uma auto-representao encontrada por Dilthey tambm na msica, talvez a mais performativadas linguagens. Segundo ele, por estar existencialmente associada instncia da execuo, ou seja, suarealizao no/enquanto tempo, a msica s representa a si mesma (1976: 235).6 A mesma concepo de uma significao que se d enquanto um movimento de diferir e daiar pode serencontrada na obra de Derrida materializada pelo neologismo diffrance: O grafema diffrance, ento, uma estrutura e um movimento no mais concebidos na base da oposio presena/ausncia. Diffrance ojogo sistemtico de diferenas, de traos de diferenas, de espaos (espaamentos) por meio dos quais elementosesto relacionados entre si. Este espaamento a produo simultaneamente ativa e passiva de intervalos (o ade diffrance indica esta indeciso que concerne atividade e passividade, aquilo que no pode sergovernado por ou distribudo entre os termos desta oposio) sem os quais os termos integrais no significariam,no funcionariam (Derrida 1982: 27).

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    II- Transferindo ausncias: linguagem, discurso, religio e poltica

    O paralelismo entre a guerra santa e o jogo (que, como vimos, sempre jogo de

    espelhos) servir, portanto, como uma sada para interpret-la sem ter que resolv-la em uma

    estrutura identitria prvia sua ocorrncia. Assim como o jogo, a guerra entre evanglicos e

    afro-brasileiros se preserva, enquanto fenmeno social, no desenrolar dos lances e contra-

    lances que a constituem, a sua existncia e a sua verdade se sustentando na rede de efeitos da

    qual ela mesma seria a causa, mas que acaba, como no passe de mgica acima descrito, por

    prescindir da sua existncia enquanto presena original e auto-evidente7.

    Portanto, se Quem guerreia? a pergunta-guerra, fica claro que qualquer resposta

    possvel a ela deva passar pelo crivo do problema do discurso, e muitas vezes nele ficar presa.

    No por acaso, as principais armas de ataque, defesa e contra-ataque que encontrei em campo

    foram palavras, assim como objetos, imagens e gestos, todos compartilhando a condio

    especfica de signos. Atravs do uso articulado desses suportes semiticos, pude ver serem

    desenhados padres hermenuticos em ambos os grupos religiosos, tipos textuais implicados

    em motivaes para a ao e inseres pblicas especficas.

    Baseando-me na terminologia do lingista mile Benveniste (1966b: 130), assumirei

    aqui que discurso seria aquilo que coloca em jogo o ponto de segurana de uma

    linguagem, ou seu carter de virtualidade, movimento uno que se realizaria atravs de trs

    deslocamentos simultneos: i) a colocao desta linguagem no tempo; ii) a sua remisso a um

    locutor e a um estado de coisas; e iii) a sua constituio enquanto uma relao de troca com

    um interlocutor. Outra caracterstica fundamental do discurso estaria no fato dele gerar, ao

    longo deste movimento de circulao e designao, dois efeitos principais: o desejo e a

    referncia.

    Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdies que o atingemrevelam logo, rapidamente, sua ligao com o desejo e com o poder. Nisto no h nada de

    7 A noo gadameriana de jogo pode ser uma sada interessante para a questo fundamental colocada porLatour (2002). Em sua proposta de uma antropologia ps-social, imanentista e contrria noo de crena,assim como a todas as purificaes nela implicadas, Latour lana a pergunta-chave: Como produzimos aquiloque nos supera? Como ele mesmo afirma, destacando a necessidade de se levar a srio a fala nativa: O atorcomum afirma, diretamente, aquilo que a evidncia mesmo, a saber, que ele ligeiramente superado por aquiloque construiu. Somos manipulados por foras que nos superam. Ele poderia dizer, cansado de ser sacudido detodos os lados e de ser acusado de ingenuidade. Pouco importa se as chamamos divindades, genes, neurnios,economias, sociedades ou emoes. Ns nos enganamos talvez sobre a palavra que designaria tais foras, masno sobre o fato de que elas so mais importantes que ns (45).

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    espantoso, visto que o discurso como a psicanlise nos mostrou no simplesmente aquiloque manifesta (ou oculta) o desejo; , tambm, aquilo que objeto do desejo; e visto que isto ahistria no cessa de nos ensinar o discurso no simplesmente aquilo que traduz as lutas ouos sistemas de dominao, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremosapoderar (Foucault 2000: 10).

    Corroborando a fala de Michel Foucault, veremos, ao longo da anlise dos eventos

    comunicativos que constituem a guerra santa, a atualizao do discurso enquanto meio e

    fim, causa e efeito, das lutas que ela mobiliza. Veremos que o poder aplicado e disputado

    nessas lutas , antes de tudo, o poder de textualizar, de textualizar o outro, de textualizar-se

    atravs do outro ou de livrar-se discursivamente da captura de si pelo outro, vindo, ao longo

    desta fuga, a encontrar-se em estado de verdade. Coordenando esse entrelaamento

    discursivo, perceberemos a ao de duas categorias gramaticais fundamentais (linguagem),

    sempre articuladas na forma de enunciados de acusao (discurso): demonaco eintolerante. Portanto, caso venha a ser abordada pela lgica acusatria que a guia

    internamente, a guerra santa pode ser definida como a guerra entre o demonaco e o

    intolerante.

    Demonaco o modo religioso com que o neopentecostalismo textualiza os cultos

    afro-brasileiros, e essa textualizao que tentarei descrever de modo detalhado na primeira

    parte da dissertao. Por sua vez, intolerante o modo poltico com que parte do candombl

    de Salvador (a parte que aceita a guerra) textualiza e capitaliza a presena do inimigo, virandoos ataques ao seu favor, como tentarei descrever no ltimo captulo. Ambas sero tratadas

    aqui como categorias nativas de alteridade, que tornam o inimigo intrnseco, ou seja, que

    articulam o neopentecostalismo e setores do candombl baiano em uma economia identitria

    tencionada, mas interdependente: um jogo de espelhos. A partir desta tica, que intenta

    privilegiar a interpretao nativa, no interessa o debate meta-discursivo acerca da verdade ou

    falsidade da natureza malfica do candombl (mais simples), assim como da natureza

    intolerante do neopentecostalismo (mais complexo).

    Percebe-se que a polaridade real/fictcio, verdadeiro/falso, torna-se desnecessria

    quando aquilo que est em jogo, por meio da representao, a prpria representao.

    Prender-me neste debate seria algo to frutfero quanto estudar o fenmeno religioso a partir

    da questo: Existe Deus?. Existindo ou no, evidente que Deus (entidade), ou mesmo

    Deus (signo, posio numa estrutura textual) faz, e faz muito, sendo gerados, na sua

    circulao discursiva, ou seja, na sua transferncia, no adiamento da dvida e na sua

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    presentificao pontual, efeitos bastante concretos, que servem como os rastros atravs dos

    quais podemos acessar ou mesmo questionar a sua existncia. Sob esse aspecto, a religio,

    assim como a poltica, a outra esfera de interseco da presente discusso, expem claramente

    o inevitvel da sua natureza lingstica e comunicativa: ambos so modos de transferir

    ausncias.

    Em um excelente artigo acerca da comunicao animal, Benveniste (1966c) questiona-

    se sobre a existncia de uma linguagem entre as abelhas. De fato, o complexo sistema de

    comunicao desses insetos revela uma srie de semelhanas com a linguagem humana:

    Esses procedimentos colocam em marcha um simbolismo verdadeiramente rudimentar, pelosquais os dados objetivos so transpostos em gestos formalizados, comportando elementosvariveis e de significao constante. Por outro lado, a situao e a funo so aquelas da

    linguagem, no sentido que o sistema vlido no interior de uma comunidade dada e que cadamembro desta comunidade apto a empreg-lo ou a compreend-lo nos mesmos termos (60).

    Baseado nos estudos do etlogo alemo Karl von Frisch, Benveniste descreve, ao longo

    do texto, como, atravs de um complexo padro de trajetrias de vo, uma abelha consegue

    transmitir para os outros membros da sua colmia a existncia de alimento, informando

    inclusive a direo e a distncia em que ele se encontraria. No entanto, o lingista destaca que

    haveria uma limitao fundamental, que faria do sistema de comunicao das abelhas um

    simples cdigo de sinais (62) e no propriamente uma linguagem: nele no ocorreria a

    transmisso de ausncia: A abelha no constri uma mensagem a partir de uma mensagem

    (61). A frase indica que uma abelha poderia at perceber o alimento e comunicar esse fato a

    uma outra que no o percebeu. No entanto, essa mesma abelha que no o percebeu seria

    incapaz de transmitir a sua presena ausente para uma outra que, assim como ela, no teria

    percebido esse mesmo objeto. Resulta desta incapacidade de transmitir ausncia, ou seja, de

    adiar a questo verdadeiro ou falso?, o fato de que, apesar desses insetos conseguirem

    transferir informao, dados, eles seriam incapazes de produzir e circular dados

    lingsticos, o que impossibilitaria a introduo de entidades e agenciamentos de natureza

    propriamente lingstica no seu universo de interao.

    Confirmando essa mesma tese, Gilles Deleuze e Flix Guattari afirmam: A linguagem

    no se contenta em ir de um primeiro a um segundo, de algum que viu a algum que no viu,

    mas vai necessariamente de um segundo a um terceiro, no tendo, nenhum deles, visto

    (1995: 14). O movimento central aqui no seria comunicar o que se viu, mas transmitir o que

    lhe foi comunicado, defendendo-se assim a existncia de um vnculo originrio entre a

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    linguagem e o discurso indireto: Todo discurso indireto, e a translao prpria da

    linguagem o discurso indireto (13). Nesses termos, a linguagem se sucederia em um

    circuito diacrnico formado no mnimo por trs pessoas: algum que viu algo e algum que

    transmite esse algo sem v-lo para outrem. Demonstra-se, por sua vez, a relao tambm

    ntima entre a linguagem e uma outra modalidade de comunicao e produo de verdade

    bastante presente nas informaes que irei apresentar a seguir: o rumor. A origem da

    linguagem no estaria no dilogo. A origem da linguagem (a origem do) rumor.

    Por sua vez, deixando de fundar a linguagem nas coisas, Deleuze e Guattari no

    apontam a necessidade de fund-la em outra instncia, mas de fazer com que ela se torne

    permevel a uma energia imanente e circulante de produo da presena: o poder 8. Desse

    modo, desvia-se o discurso da relao descritiva e cognitiva com a referncia somente sob a

    condio de que todo o seu campo semntico seja infiltrado a animado pelo poder. Essa

    natureza inerentemente poltica do discurso defendia pelos pensadores franceses atravs da

    noo de palavra de ordem, associada, sobretudo, reproduo por redundncia: Os

    mandamentos do professor no so exteriores nem se acrescentam ao que ele nos ensina. No

    provm de significaes primeiras, no so a conseqncia de informaes: a ordem se apia

    sempre, e desde o incio, em ordens, por isso redundncia (11).

    Assim como o signo se apia em outro signo, ou seja, assim como o discurso vai sempre

    de um segundo para um terceiro e no de um primeiro para um segundo, constituindo-se em

    comunicao antes de ser informao, a ordem apia-se em outra ordem, antes de se

    fundamentar numa autoridade dada, definida como a sua referncia externa. A unidade

    elementar da linguagem - o enunciado - a palavra de ordem (12) 9.

    A partir desses termos, religio e poltica passam a designar recortes nativos feitos

    sobre um corpo de condies lingstico-discursivas fundamentais, deslocamento terico que

    implica na quebra com a equao semntica convencional que entende que religio

    produo de relao com uma presena sobre-natural, poltica produo coletiva deefeitos no mundo e discurso enunciao de informao. Contrariando essa lgica

    8 Na verdade, o prprio movimento vertical de fundar-se em que tentarei evitar nesta dissertao, adotando-se, como alternativa, o movimento horizontal de circulao e de transferncia de ausncia.9 Chamamos palavras de ordem no uma categoria particular de enunciados explcitos (por exemplo, noimperativo), mas a relao de qualquer palavra ou de qualquer enunciado com pressupostos implcitos, ou seja,com atos de fala que se realizam no enunciado, e que podem se realizar apenas nele. As palavras de ordem noremetem, ento, somente aos comandos, mas a todos os atos que esto ligados aos enunciados por umaobrigao social. No existe enunciado que apresente esse vnculo, direta ou indiretamente (Deleuze &Guattari 1995: 16).

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    distintiva, lidarei com os fenmenos polticos e religiosos aqui em questo entendendo-os

    como eventos discursivos, a idia de discurso constando como a nica categoria

    exclusivamente meta-lingstica, ou seja, terica, dentre as trs, as duas outras sendo

    entendidas pendularmente, ora como termos nativos e em disputa, ora como categorias

    antropolgicas.

    No por acaso, vimos que, do mesmo modo que a religio, o discurso tambm se

    realiza enquanto comunicao do que no se viu, ou do que no se v. H sempre algo de

    miraculoso na linguagem, como destaca Wittgenstein, ao criticar o separatismo mentalista

    com que Frazer trata as informaes vindas das sociedades primitivas. Referindo-se a um

    dos conceitos centrais da filosofia moderna, a noo de esprito, sprit, geist, diz ele:

    (..) costuma-se dar pouca importncia ao fato de termos em nosso vocabulrio culto a

    palavra alma, esprito. Comparado com isso, o fato de no acreditarmos que nossa alma

    come e bebe uma bagatela (1979: 10e). Por outro lado, e agora destacando o carter

    fantasmagrico que rondaria todo e qualquer substantivo, Wittgenstein segue:

    Nada to morto quanto a morte, nada to bonito quanto a beleza ela mesma. Aqui, aimagem que usamos ao pensar a realidade que morte, ou ainda beleza uma substnciapura (concentrada), que encontrada em objetos bonitos assim como um ingrediente adicionado a uma mistura (idem).

    Vivemos em meio aos traos incompletos de uma srie de presenas substantivasausentes, fantasmas produzidos a posteriori, que so disseminados e adiados de modo a

    ocupar uma posio de a priori. Apropriando-me da noo defaitiche de Latour (2002), diria

    que Wittgenstein pretende chamara a ateno dos seus leitores para o fato de vivemos em

    meio a feitos que, em sua circulao comunicativa, apagam os seus rastros, e, assim,

    estabelecem a si mesmos enquanto fatos. Submetidas a esse aspecto geral das prticas

    discursivas, todas as grandes partilhas, como real/construdo, cincia/mito, tenderiam a se

    dissolver: Toda uma mitologia est depositada em nossa linguagem (Wittgenstein 1979:

    10e).

    Por outro lado, e agora colocado em paralelo com a noo convencional de poltica, o

    discurso tambm estaria intimamente associado produo de efeitos, tanto no mundo quanto

    no outro ou nos outros que compem a interlocuo. De acordo com Michael Silverstein

    (1997), a dimenso pragmtica das trocas lingsticas tenderia a ser recalcada pela concepo

    hegemnica de linguagem no Ocidente, movida por uma espcie de falcia descritiva que,

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    enfatizando a sua dimenso simblica e referencialista, instauraria uma dicotomia enganadora

    entre comunicao e ao. A fala enuncia algo a algum em determinado contexto ao mesmo

    tempo em que reconfigura no somente os estados subjetivos dos sujeitos que atravs dela

    trocam, mas tambm este mesmo contexto que, a princpio, a estruturaria de fora:

    Juntamente com os atos de referncia ou descrio, a fala consiste em atos concomitantes deindexao, de produo das fronteiras da comunicao elas mesmas, sem descrev-lasnecessariamente num modo referencial: os papis do falante, do ouvinte, da audincia, etc; osatributos socialmente reconhecidos das pessoas; o tempo, lugar e ocasio da comunicao; asfinalidades do evento de fala ele mesmo; e muitos outros fatores (Silverstein 1997: 120).

    Voltando a Deleuze e Guattari, pode-se dizer que este fora seria uma outra faceta do

    dentro da troca lingstica, uma dimenso cujo adiamento ou exteriorizao seria funo de

    um conjunto de variveis pragmticas que compem a linguagem enquanto discurso:Existem variveis de expresso que colocam a lngua em relao com o fora, mas

    precisamente porque elas so imanentes lngua (1995: 21). Ao longo do primeiro captulo,

    introduzirei algumas dessas variveis, que sero utilizadas ao longo de toda a dissertao: os

    diticos, como os demonstrativos e os pronomes pessoais (Benveniste 1966a), a fora

    ilocucionria dos enunciados performativos (Austin 1975) e a distino semitica entre

    smbolo, cone e ndex (Peirce 2000), todas elas envolvidas com o problema central de

    como fazer coisas com palavras e signos em geral.

    Por conseguinte, no decorrer da minha argumentao, assumirei no somente o fato de

    que toda fala poltica contm em si algo de performativo. Indo um pouco alm, tomarei como

    pressuposto que toda fala, justamente por ser potencialmente performativa, contm em si uma

    perene natureza poltica, que se encontraria de modo privilegiado em determinadas variveis,

    responsveis por enraizar as ausncias que a linguagem vincula no cho do real, fazendo-as

    ento frutificar. Portanto, e como alerta Jacques Derrida: (...) se um texto se d sempre uma

    certa representao de suas prprias razes, estas vivem apenas desta representao, isto , de

    nunca tocarem o solo. O que destri sem dvida a sua essncia radical, mas no a

    Necessidade de suafuno enraizante (1999:126, grifos do autor).

    Finalmente, e como um ltimo cruzamento possvel entre as trs categorias aqui em

    questo, pode-se dizer que h sempre algo de poltico na prpria religio, ambos

    comungando da qualidade de entes discursivos, ou, retornando ao debate sobre a comunicao

    animal, dados lingsticos. Logo acima, quando cotejei religio e discurso, afirmei que,

    assim como o discurso, a religio comunicaria aquilo que no se v. Nesse ponto, devo

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    acrescentar que ela de fato comunica aquilo que no foi visto em causa, em origem, em

    presena esttica, podendo vir a comunicar aquilo que essa mesma ausncia gera, ou seja,

    aquilo se v em efeito, em relao, em movimento ou em presentificao. Com esse

    argumento, pretendo descolar a religio da noo metafrica de crena 10, marcadamente

    durkheimiana, inserindo no universo da agncia religiosa a idia metonmica de

    transformao em verdadeiro, apresentada no debate acerca do jogo11.

    Aps o cotejamento crtico das noes convencionais de discurso, religio e

    poltica, pude reuni-las sob a gide do mesmo movimento sinttico e performativo de

    transferncia de ausncias, o mesmo atravs do qual entendo que a guerra santa produz os

    vestgios do seu acontecimento, traos posteriormente desmembrados, codificados e

    capitalizados por seus agentes e assistentes a partir de estratgias de anlise e

    contextualizao. A partir desta postulao, percebe-se que o campo de interesse do presente

    estudo tende a ultrapassar o mbito da antropologia da religio, vindo a focar o problema

    mais geral de como as fices da alteridade (ou do desencontro entre a reflexividade, como os

    coletivos se pensam, e a alteridade, como os outros os pensam) so eficazes, produzindo

    interdependncia e mobilidade identitria. Se, como destaquei no ttulo desta introduo, a

    guerra santa mesma interpreta, constituindo-se em um amplo conflito de interpretaes,

    tal situao de modo algum significa que as suas batalhas, as batalhas entre o demonaco e o

    intolerante, sejam incuas, ou imaginrias, mas, sobretudo, que esta guerra perde-se em si

    mesma ao interpretar os efeitos que ela mesma gera.

    III- Textualizando as pontes e os saltos gramaticais: guerra-troca/ metafrico-metonmico

    Ao longo da seo anterior, pude manifestar teoricamente a ateno especial que tentarei

    dar ao carter performativo dos dados lingsticos, informao central para a minha

    pretenso de abordar os conflitos entre os dois grupos religiosos sob uma tica discursiva.

    10 Como bem destaca Jean Pouillon, em sua anlise do eu acredito (je crois), esse enunciado seria um ndexverbal de distanciamento crtico, e no de adeso: ... fazer a existncia de Deus um objeto de crena, declarar talcrena, abrir a possibilidade da dvida. Ento, poder-se-ia dizer que somente um descrente (unbeliever) podeacreditar que o crente (believer) acredita na existncia de Deus (1982: 2). Para o crente (no podemos escapardesta linguagem), Deus no uma crena (um valor), mas um fato, que deve ser percebido em sua obviedade, ouseja, nos efeitos que a sua existncia produz.11 Corroborando essa faceta performtica do discurso religioso afirma Latour: (...) a religio no fala a respeitode ou sobre coisas (...), mas de dentro de ou a partir de coisas, entidades, agncias, situaes, substncias,relaes, experincias. (Latour 2002: 35).

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    Cabe a mim agora, e como o ltimo dos aspectos introdutrios, apresentar de forma sinttica

    as categorias que utilizarei de modo a textualizar as ligaes e o entrelaamento discursivo

    produzidos pelas gramticas desses dois grupos, categorias que sero mais bem esclarecidas

    no prprio decorrer das anlises. Para isso, farei rpida referncia ao modo com que me

    apropriei aqui das oposies entre guerra e troca e entre metafrico e metonmico.

    A idia de ler a guerra santa como uma guerra de espelhos est diretamente associada

    suposio de uma guerra-troca, ou seja, de um fenmeno social onde o conflito associa-se

    internamente a um movimento de identificao. Antes de constiturem entre si um vnculo

    dicotmico, veremos que os grupos aqui em conflito acabam por se associar atravs de uma

    relao de oposio, permeada por vnculos que estabelecem diferenas ao mesmo tempo em

    que as articulam numa totalidade interdependente.

    Um excelente exemplo etnogrfico desse tipo de fenmeno fornecido por Marcel

    Mauss (2003b) em suas anlises dopotlach, instituio dos ndios do noroeste da Amrica do

    Norte. Ao longo dopotlach,a relao entre tribos rivais renovada e dramatizada atravs da

    disputa pela destruio de bens, atos definidos por Mauss como prestaes totais de tipo

    agonstico (192). Neste caso, o valor circulante no mais a generosidade ritualizada,

    observada pelo mesmo Mauss no kula melansio, mas o desprendimento improdutivo e

    mesmo violento de determinados objetos-signos em grandes fogueiras. Esses eventos de

    destruio mostram-se fortemente paradoxais, j que ao se desfazerem dos signos em torno

    dos quais ocorre a batalha, os indgenas desprezam o ato mesmo de vincular-se, atitude que

    colocaria as partes que rivalizam nopotlach numa relao ambgua, pois fundada na prpria

    negao da relao.

    Atravs da manifestao emprica do potlach, Mauss destaca, portanto, a articulao

    estreita que existiria entre a ddiva e o sacrifcio, funcionando como suporte para uma crtica

    dicotomia excessiva que coordenaria as noes de troca e de guerra no Ocidente. Opotlach,

    e aqui entendo estar o ponto de coincidncia entre ele e os fenmenos tematizados por estadissertao, uma instituio que supe a possibilidade de um conflito vinculante 12.

    12 Essa mesma crtica dicotomia troca/guerra, aliana/conflito, que se d como uma constante no pensamentoocidental (de Clausewitz a Lvi-Strauss e alm), continuada e aprofundada etnograficamente por PierreClastres (2004). Em seus estudos sobre as sociedades amerndias, Clastres encontra povos que, em seu desejo dedisperso, tomariam a fragmentao social resultante das guerras como uma positividade, vindo a instaur-lascomo um elemento fundante da sua organizao social e no como uma ameaa integrao social.

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    No entanto, se troca e guerra aparecem agora como dois modos de se designar

    vnculos, e no mais como indicadores de uma possvel dicotomia entre o vnculo e a sua

    ausncia, as noes de metfora e metonmia me serviro como modos de designar a

    atualizao discursiva desses mesmos vnculos de identificao e conflito. Atravs delas,

    pude textualizar os intervalos estabelecidos entre a gramtica neopentecostal e a do

    candombl, me aproveitando da sua natureza de signos de relao, ou seja, signos de signo

    (um outro nome para relao), para a construo de uma metalinguagem terica capaz de

    captar discursivamente os eventos discursivos que compem a guerra santa.

    Os debates acerca da metfora e da metonmia, termos que hoje fazem parte do senso

    comum da antropologia, remetem a Ferdinand de Saussure (1972), e incidem sobre a sua

    distino analtica entre os dois modos bsicos com os quais coordenamos signos: a seleo e

    a combinao. Articulados, esses modos corresponderiam, sucessivamente, aos dois eixos que

    compem a atividade discursiva: o eixo paradigmtico, uma virtualidade dentro da qual

    seriam selecionadas as unidades das cadeias enunciativas, e o eixo sintagmtico, a

    organizao serial resultante da combinatria concreta e temporal dessas unidades antes

    selecionadas13. Nesse sentido, enquanto o primeiro eixo funcionaria a partir da produo de

    vnculos de analogia, o segundo operaria atravs da produo de vnculos de contigidade.

    Foi justamente a articulao entre metfora e analogia, metonmia e contigidade, bastante

    til aos seus estudos sobre a afasia, que fez com que Roman Jakobson (1987a) realizasse

    aquilo que Paul Ricoeur classificou como um golpe de gnio: o resgate dessas figuras de

    linguagem do campo de debates estril da potica e a sua conseqente elevao ao status de

    operaes fundamentais da significao. O metafrico e o metonmico, no contentes em

    qualificar as figuras e os tropos, qualificam doravante os processo gerais da linguagem

    (Ricoeur 2000: 269).

    Na trilha da tipologia das magias de Frazer (1993), e avanando no insightde Jakobson,

    Lvi-Strauss parece desenvolver de modo mais refinado o paralelismo entre metfora emetonmia e alguns tipos de fenmenos sociais-discursivos. Em Totemismo Hoje, uma

    tentativa de desconstruo crtica do campo semntico denominado totemismo pela

    antropologia de at ento, Lvi-Strauss defende, corroborando Jakobson, que a metfora no

    um tardio embelezamento da linguagem, mas um de seus modos fundamentais (1976: 182).

    Desse modo, o antroplogo parece no encontrar traos empricos em comum que

    13 Associado, para Saussure, suposio do carter linear do significante.

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    sustentariam adequadamente a unidade do fenmeno totmico, remetendo-o, por outro lado, a

    uma espcie de constncia gramatical, que apontaria naqueles costumes fragmentrios o

    trabalho insistente da metfora enquanto uma forma primeira do pensamento discursivo

    (182).

    A compreenso do totemismo como um fenmeno metafrico seria uma condio

    epistemolgica para o seu regate do universo de estudos da antropologia religiosa, tido

    como redutor para Lvi-Strauss. Atravs desse deslocamento, que teria a finalidade de

    enquadr-lo como qualquer outro sistema conceitual (1976: 184), o estudo do totemismo

    evitaria o particularismo da equao durkheimiana entre sagrado e extraordinrio,

    passando a ser abordado como um meio emprico cuja funo seria dar acesso aos

    mecanismos do pensamento (idem). Essa mesma postura rotinizadora aprofundada em O

    Pensamento Selvagem, onde a anlise comparativa do totemismo tem como a sua contraparte,

    o seu simtrico inverso, a cincia, e no o cristianismo. Assim como a cincia moderna, o

    totemismo seria um modo gramatical dos povos ditos primitivos lidarem com o problema da

    relao natureza/cultura, e no necessariamente corresponderia ao que percebemos como uma

    religio: O totemismo repousa em uma homologia postulada entre duas sries paralelas a

    das espcies naturais e as dos grupos sociais das quais, no o esqueamos, os termos

    respectivos no se assemelham dois a dois (...) (1997: 250).

    Por outro lado, se o totemismo estaria associado aos modos analgicos, ou seja,

    metafricos, de associao de sries discursivas (sistemas de diferenas) entre si, o

    sacrifcio serviria como meio emprico para o acesso a um outro campo de fenmenos, estes

    definidos por Lvi-Strauss como metonmicos:

    No sacrifcio, a srie (contnua e no mais descontnua, orientada e no mais reversvel) dasespcies naturais desempenha o papel de intermedirio entre dois termos polares, dos quais um o sacrificador e o outro a divindade e entre os quais, no incio, no existe homologia nemsequer uma relao de qualquer tipo; o objetivo do sacrifcio precisamente instaurar uma

    relao, que no de semelhana mas de contigidade, por meio de uma srie de identificaessucessivas que podem se fazer nos dois sentidos, conforme o sacrifcio seja expiatrio ourepresente um rito de comunho; seja, pois, do sacrificante ao sacrificador, do sacrificador vtima, da vtima consagrada divindade ou na ordem inversa (Lvi-Strauss 1997: 250-1).

    A citao esclarece que o sacrifcio estaria fora do campo intelectualista da

    homologia, ou seja, da colocao em paralelo de diferenas classificatrias, movimento

    conservador que, de acordo com Barthes, coloca na lngua uma eternidade (2001: 170). Seu

    problema central seria a produo de contigidades temporais, assim como a transferncia de

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    qualidades atravs da troca e a constituio de circuitos transformacionais. Esse seria um

    espao tridico, como destaca a frase de Lvi-Strauss, sobre cuja influncia dar-se-ia a

    desestabilizao e a reconstruo de vnculos duais a partir do aparecimento do outro, do

    estrangeiro, seja enquanto um meio para a expiao, seja enquanto um convite comunho.

    Sob esse mbito de fenmenos, valeria a mxima lacaniana: Se necessrio, ao homem, de

    tal forma, usar a palavra para encontrar algo ou para se encontrar, em funo de sua

    propenso natural a se decompor na presena do outro (Lacan 1991b: 261).

    Raciocinando a partir desses plos meta-discursivos, tentarei textualizar as relaes

    tecidas entre o neopentecostalismo e o candombl a partir da localizao, dentre elas, de

    pontes metonmicas e de saltos metafricos. Veremos que atravs de pontes metonmicas

    que o neopentecostalismo engloba os cultos afro-brasileiros como um dado interno sua

    gramtica (Cap. 1 e 2). Por sua vez, corroborando essas mesmas pontes, e mantendo-se no

    mesmo sintagma, que parte do candombl especula acerca das especificidades do poder

    neopentecostal a partir do trnsito de filhos de santo para as suas frentes (Cap. 3). Central para

    a construo e manuteno dessas pontes a corroborao da capacidade performativa da

    linguagem do outro, movimento que se d sobre a instncia da eficcia mgica inimiga.

    Por outro lado, veremos que atravs de um salto metafrico que os novos setores do

    candombl da cidade rompem a sua continuidade com o neopentecostalismo e, desse modo,

    conseguem retirar da presena inimiga um telos para uma indita politizao da religio (Cap.

    4). Central para esse salto, um salto utpico, a fuga do sintagma religioso aberto pelos

    neopentecostais atravs de uma textualizao metafrica dos ataques, que passam a ser

    entendidos sob o registro da raa e da etnicidade.

    De um modo geral, ao longo de guerras e trocas, saltos e pontes, tentarei

    desenhar etnograficamente economias da alteridade associadas a determinados padres de

    insero pblica reforados e amenizados em ambos os grupos em questo. Atravs de uma

    espcie paroxismo da representao, onde ela questionada sobre os seus fundamentos,politizada, demonizada, mas sempre multiplicada, tentarei mostrar como, espelho ante

    espelho, esses grupos colocam em jogo a existncia um do outro em um dado contexto

    histrico e espacial.

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    PARTE 1:

    A batalha espiritual e o demnio afro-brasileiro: um mal

    libertador

    O espelho um ser em oposio. E como tal que funciona. um ser que assumiu umaposio que oposio: uma posio negativa. um ser que nega. por isto que reflete. Nopermite que aquilo que sobre ele incide passe por ele. Refletir negar, e isto a suaestrutura. No pode haver uma reflexo positiva. As respostas que o espelho articula sotodas negativas. So inverses das perguntas que o demandam. As equaes da ticaconfirmaram esta afirmativa. E tambm o confirmaro as analises do pensamento reflexivo.

    Diz essa analise que todas as sentenas do pensamento podem ser reduzidas negaoformalmente. No deve portanto surpreender que o fundamento do espelho seja o nada, essafonte de toda negao possvel. O espelho um ser em oposio justamente porque o seufundo o nada do nitrato de prata. (...) Essa descoberta , como disse, ch e rotineira. Bastavirar o espelho para faz-la.

    Vilm Flusser - Fices filosficas

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    O neopentecostalismo, ou a terceira onda pentecostal brasileira (Freston 1994), um

    importante movimento religioso originado nos anos 1970, que se expande fortemente nas

    dcadas seguintes do sculo XX tendo o Rio de Janeiro como seu centro e a Igreja Universal

    do Reino de Deus (IURD), criada pelo Bispo Edir Macedo, como a sua ponta-de-lana. A

    nomenclatura pentecostalismo autnomo, adotada por Bittencourt (1989), tambm

    adequada aos particularismos observados no pentecostalismo brasileiro ps-1970, que se

    distingue dos pentecostais clssicos, associados ao movimento missionrio norte-

    americano, principalmente por inserir em seu modelo de gesto, sua liturgia e sua viso de

    mundo, cores bastante autctones.

    De acordo com Mariano (1999), as principais caractersticas do neopentecostalismo so:

    i) a influncia da teologia da prosperidade, que potencializa as dimenses econmicas no-

    ascticas do cristianismo pela nfase na realizao cotidiana de milagres tendo em vista uma

    vida abundante 14; ii) a liberalizao dos usos e costumes, que desmonta o controle estrito

    do comportamento, que antes distinguia os pentecostais clssicos como um grupo parte

    ante a sociedade envolvente (fato geralmente ratificado pela aparncia pessoal, pela

    moralizao da esfera sexual e pelas restries de lazer desses indivduos); e iii) o papel

    central ocupado em sua cosmologia pelas entidades demonacas, de onde resulta o freqente

    recurso ritual ao exorcismo e os intensos conflitos com as religies medinicas,

    principalmente as afro-brasileiras, como o candombl, a umbanda e a quimbanda.

    A partir dos trs fios acima descritos, a IURD, assim como outros grupos do seu

    universo de influncias, consegue tecer uma textualidade religiosa bastante eficiente na tarefa

    de dar conta significativamente do campo fenomnico de uma importante fatia da sociedade

    brasileira, rompendo, desse modo, com o sectarismo e o ascetismo tpicos do ethos evanglico

    e pentecostal mais tradicional. Tal abertura para as questes intra-mundanas possibilita

    inclusive a ocupao material e discursiva, por parte desses grupos religiosos, de esferas a

    princpio extra-eclesisticas, como a poltica partidria, os meios de comunicao de massae o mercado de consumo. Esse proselitismo bem-sucedido se v fortemente atrelado a uma

    espcie de democratizao hednica da graa operada pelo neopentecostalismo: o crente est

    destinado a ser prspero, saudvel e feliz neste mundo (...) o principal sacrifcio que Deus

    14Apesar da origem norte-americana da teologia da prosperidade, veremos, ao longo do primeiro captulo,como a IURD insere em sua aplicao ritual a contra-parte de uma lgica de reciprocidade, onde o dzimo dosfiis passa a ocupar a funo de meio intra-religioso dinamizador das trocas com o plo sobrenatural,viabilizando-se assim uma espcie de troca sacrificial mediada pelo dinheiro.

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    exige de seus servos ser fiel nos dzimos e dar generosas ofertas com alegria, amor e

    desprendimento (Mariano 1999: 44).

    Por outro lado, chama a ateno o fato desse movimento de integrao religiosa com o

    senso comum (Geertz 1989), associado ruptura mgica com os alicerces teolgicos da

    rejeio do mundo e da eleio, ser acompanhado pela contra-face fortemente belicosa da

    relao entre o neopentecostalismo e outras religies. A tendncia desse grupo a alimentar um

    ambiente inter-religioso tenso e exclusivista, atitude rotulada por diversos setores da opinio

    pblica brasileira como sendo intolerante, pode ser entendida se atentarmos para o terceiro

    dos aspectos antes destacados: a funo gramatical ocupada pelo mal em sua cosmologia,

    onde se assentaria a noo de batalha espiritual.

    A batalha espiritual pode ser definida como uma meta-narrativa construda atravs da

    bricolagem de elementos clssicos da narrativa bblica, como o maniquesmo e a existncia do

    diabo e das suas hordas, e modos de explicao de infortnios tidos como arcaicos, como a

    feitiaria, a possesso e a transferncia do mal atravs do contato. Unidos numa espcie de

    drama blico, esses elementos textuais teriam a finalidade de encenar metonimicamente a

    subjetividade e o cotidiano dos fiis neopentecostais como um perene campo de batalhas entre

    foras do bem e do mal. Trata-se de uma espcie de padro hermenutico, formalmente

    semelhante ao estudado por Crapanzano (2000), que parte da esfera religiosa, mas que

    tende a projetar-se em outras reas da sociedade, colocando em jogo a prpria definio

    intimista e individualista onde teria se assentado a religio na modernidade.

    Cabe aqui destacar que o debate sobre o grau de legitimidade do discurso e das prticas

    das igrejas neopentecostais, principalmente a IURD, vai muito alm do caso de Salvador.

    Giumbelli (2002), aps um cuidadoso resgate dos argumentos e da repercusso da srie de

    aes jurdicas movidas contra a Universal desde a sua apario15, que implicaram inclusive

    na priso de Edir Macedo em maio de 1992, define o modo de insero paradoxal desse grupo

    na opinio pblica brasileira como sendo de culpa sem condenao (313). Um dos casos demaior impacto, uma espcie de marco desta entrada pouco legitimada da IURD na esfera

    pblica nacional se viu no famoso episdio do chute da santa, de 1995, analisado de forma

    detalhada pelo mesmo Giumbelli numa outra ocasio (2003).

    15 Essas aes judiciais se referem a acusaes de estelionato, charlatanismo e curandeirismo, respectivamenteartigos 171, 283 e 284 do Cdigo Penal Brasileiro.

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    Enquadrada por um campo religioso caracterizado pela intensa circulao de fiis, pelas

    fracas adeses e pela suspeita generalizada (Carvalho 1991: 15), a IURD parece mesmo ter

    optado por uma estratgia explcita de crescimento sem legitimao pblica. Vislumbrando as

    suas rivais como um exrcito uno e malfico, a igreja de Edir Macedo capitaliza com extrema

    habilidade essa lgica da suspeita inter-religiosa, no suspeitando de ningum, ou seja,

    dotando todos de eficcia, mesmo que de uma eficcia negativa, e, por isso, constituindo-se

    no alvo preferencial da suspeita de todos. Talvez a esteja a causa da radical polaridade das

    opinies que tm se voltado para esta instituio, que tende a relacionar-se negativamente

    (apesar de organicamente) com o idioma da pluralidade de busca (Carvalho, 1999: 12),

    retirando a alteridade religiosa do registro metafrico hegemnico da fraude, do falso, do

    inautntico enquanto a sobre-codifica a partir do registro metonmico, mas maniquesta, do

    bem e do mal. Resulta dessa atitude polarizadora o fato de que, no Brasil de hoje, ou se

    est na IURD ou se est contra ela, j que o seu prprio proselitismo anularia qualquer

    possibilidade de neutralidade. Veremos que por potencializar o conflito que a IURD tem se

    tornado bem sucedida, e, talvez por isso, o seu crescimento numrico at hoje nunca tenha

    sido acompanhado por um aumento de legitimidade.

    Ao longo do meu trabalho de campo, realizado entre setembro e novembro de 2005,

    pude voltar as minhas atenes para o processo de instalao desta estratgia discursiva em

    Salvador, cidade que tem nas religies de matriz africana a principal fonte significante a qual

    tem recorrido, ao longo das ltimas quatro ou cinco dcadas, a sua arte, costumes, imaginrio

    e economia, e onde a guerra santa parece tomar implicaes sociais mais amplas. A partir

    de uma srie de relatos, recolhidos atravs de entrevistas e pesquisas em arquivos jurdicos,

    policiais e jornalsticos, consegui separar duas frentes principais da ofensiva neopentecostal: a

    ofensiva ritual, que chamarei nesse trabalho de frente de libertao e a ofensiva territorial,

    ou frente de ocupao, que ser desdobrada em trs frentes secundrias: os ataques pela

    mdia impressa e televisiva, as invases de terreiros e as disputas pelos bens simblicosrepresentativos da identidade da cidade. Apesar de analisar cada elemento acima descrito de

    modo separado, vale destacar que estas duas frentes se desenrolam de modo integrado e

    simultneo, operando como dimenses que se retro-alimentam, e constituindo, desse modo,

    uma mesma estratgia de combate.

    Tendo como base o desenho descritivo e analtico dessas duas dimenses do conflito, a

    minha inteno passa a ser, como concluso parcial, compreender a funo desempenhada

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    pelo demnio afro-brasileiro no padro discursivo defendido e divulgado pela IURD e

    aceito por seus fiis. Tentarei demonstrar com isso como que, dissolvendo-se e se

    encontrando nessas novas teias textuais, o fiel da Universal acaba por visualizar, espelhado

    em um candombl que ele mesmo constri, o seu mal libertador, fazendo da violncia

    direcionada aos praticantes de candombl um ato sagrado e religioso de libertao e de

    ocupao da fonte geradora do mal.

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    Captulo 1:

    Frente de libertao: performance ritual e economia da pessoa na

    Sesso do Descarrego

    Em muitas de nossas reunies, efetivamente, vemos um quadro assombroso; umaverdadeira amostra do inferno. Se algum chegar igreja no momento em que as pessoasesto sendo libertas, poder at pensar que est em um centro de macumba, e parece mesmo.Temos a impresso, muitas vezes, de que aquelas pessoas ficaram loucas; entretanto, apsalguns momentos, quando fazemos a limpeza em suas vidas, quando os demnios soexpelidos e levam com eles todo o mal, a vem a bonana, a paz.

    como se um furaco tivesse passado. Nessas reunies, milhares de pessoas tm selibertado dos exus, caboclo, orixs, ers e outros demnios. Aps a libertao, vem asensao de bem-estar. Aquelas pessoas, antes oprimidas, passam a glorificar a Deus e emseus rostos transparece a alegria da libertao! Algum poder pensar: Como podembaixar esses espritos em uma igreja, uma casa de Deus? importante, antes de mais nada,termos cincia de que os espritos infernais manifestados nas pessoas no foram encontrados

    na igreja: estavam dentro delas.

    Bispo Edir Macedo - Orixs, caboclo e guias: deuses ou demnios?

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    A visita a um dos cultos da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) pode ser uma

    forma fascinante de se observar em ao uma das facetas contemporneas da espiritualidade

    no Brasil. Diante de uma situao de contato vivido com a diversidade comunicativa das suas

    tcnicas rituais, tornam-se claros, como nunca, os limites da concepo clssica de religio,

    que ainda informa o olhar do antroplogo sobre os seus objetos-sujeitos. As combinaes e

    misturas prevalecem, fato que tende a se sobressair, principalmente em uma situao de

    imerso no universo institucional do sagrado, que em sua etimologia - assim como na tese

    basilar de Durkheim (1996) - j conteria o carter de coisa ou ao separada 16. religio

    ordenadora e representante da tradio, ope-se um fluxo complexo e multifacetado de f,

    emoo, sacrifcio e, porque no, clculo utilitrio.

    De fato, a IURD parece fazer ruir grande parte do edifcio durkheimiano, todo ele

    fundado na oposio entre vnculos durveis e utilitrios, religiosos e mgicos. Capitalizando

    as misturas, a IURD cresce nas brechas e, assim, multiplica os seus pontos de fala enquanto

    oscila, na sua insero na esfera pblica nacional, entre a ambigidade e a ambivalncia:

    igreja e/ou empresa, religio e/ou mercado, tenda dos milagres e/ou partido poltico, legtima

    e/ou ilegtima. Graas a essa caracterstica, a existncia da IURD provoca tanto a

    visibilizao do religioso quanto a impresso de que ele est fora de lugar na sociedade

    brasileira atual (Giumbelli 2002: 412).

    Sendo assim, pode-se afirmar que a atuao da IURD retira sua potncia e sucesso

    justamente dos tabus de nosso senso comum e da nossa doxa acadmica, esses ltimos

    personificados, na situao acima descrita, pelo olhar perplexo do antroplogo. Refiro-me

    aqui ao sentido utilizado por parte da tradio antropolgica para designar o termo tabu

    (Leach 2000; Douglas 1976), ou seja, aquilo que estranhamente re-liga os plos apartados

    pelas classificaes, destacando, no sem algum estranhamento, o contnuo que subjaze aos

    quadros rgidos de uma linguagem. Atualizando a base terica apresentada na Introduo,

    diria que tabu seria aquilo que coloca em jogo (Gadamer 1997) uma classificao a partirdo contato travado com algum ente que a ela integrado enquanto posio.

    um constante desafio para qualquer categorizao, essa Igreja-tabu, que articula e

    desarticula as esferas weberianas (supostamente dotadas de autonomia funcional) como um

    malabarista brinca diante da platia paralisada. Da resulta o fato da IURD nunca estar onde o

    16 Segundo Durkheim (1996): () uma religio um sistema solidrio de crenas e de prticas relativas acoisas sagradas, isto , separadas, proibidas, crenas e prticas que renem numa mesma comunidade moral,chamada igreja, todos que a ela aderem (32).

  • 7/31/2019 Dissertao - Espelho Ante Espelho

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    antroplogo, a imprensa, os outros segmentos religiosos, o judicirio ou o Estado pensam que

    ela est. A Igreja-tabu uma presa difcil de ser capturada.

    Ao longo das cerimnias citadas, salta aos olhos o uso em profuso de elementos a

    princpio profanos, que vo desde a iluminao, a msica pop, o clima jocoso de algumas

    pregaes, at a to comentada e criticada presena do dinheiro como fundamento

    cosmolgico, seja na forma da oferta e do dzimo, seja como ndex17 da transformao ritual,

    representante causal da sua eficcia. Trazendo o universo profano de fora de nosso campo

    religioso, a IURD, assim como vrios dos outros grupos do chamado neopentecostalismo,

    enriquecem radicalmente o seu lxico de mediaes com o sobrenatural, abundando o mundo

    com sinais, entidades encantadas, fetiches e milagres cotidianos e rompendo, desse modo,

    com o Deus silenciado e a crtica do significante na doutrina protestante histrica.

    Uma das formas clssicas de se defender esta cosmologia de mediao18 seriam as

    chamadas curas espirituais, um dos tipos de servio mais procurados pelos clientes19 da

    Universal, que evidenciam o carter fortemente mgico e pragmtico da sua proposta

    discursiva. Tais curas acontecem nas chamadas Sesses do Descarrego, que ocorrem toda

    tera-feira em qualquer um de seus milhares de templos espalhados pelo pas. Nelas, percebe-

    se como a abertura neopentecostal para a salvao intra-mudana aproxima-se bem da urgncia

    dos problemas da vida cotidiana, das questes prosaicas que costumam escapar das

    escatologias religiosas e dos grandes discusses existenciais por elas suscitadas. Por outro

    lado, e talvez por causa dessa perspectiva, nota-se uma submisso da estrutura simblico-17 A tipologia de signos utilizada ao longo deste artigo encontra-se em Peirce (2000). Segundo ele, um signo um cone, um ndice (ndex) ou um smbolo. Um cone um sigo que possuiria o carter que o torna significante,mesmo que seu objeto no existisse, tal como um risco feito a lpis representando uma linha geomtrica. Umndice um signo que de repente perderia seu carter que o torna um signo se seu objeto fosse removido, masque no perderia esse carter se no houvesse interpretante. Um smbolo um signo que perderia o carter que otorna signo se no houvesse um interpretante (74). Pode-se dizer que enquanto o cone e o ndex teriam umfundamento concreto (territorializado), sendo constitudos respectivamente por uma associao de semelhana epor uma associao de contigidade, o smbolo teria um fundamento arbitrrio, sendo constitudo por operaes

    analgicas e intelectuais.18 Com a noo de cosmologia de mediao refiro-me no somente mediao objetal e ao conseqenteimanentismo do