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PROCURADORIA DE SERVIÇOS PÚBLICOS Rio de Janeiro, 08 de dezembro de 2009. Parecer n° 09/2009- GUB Ementa: Direito de recusa de paciente, que se declara Testemunha de Jeová, quanto ao recebimento de transfusão de sangue total, glóbulos vermelhos, glóbulos brancos, plaquetas ou plasma. Direito fundamental à autonomia privada, consistente na autodeterminação do indivíduo acerca de sua própria vida e seu destino, quanto àquilo que não acarrete dano a terceiros. Direito fundamental à autonomia privada consubstanciado nos direitos fundamentais à privacidade, ao próprio corpo, à liberdade religiosa e à diferença, todos eles integrantes do conteúdo essencial da dignidade da pessoa humana. A vontade do paciente – maior, capaz e devidamente informado – deve prevalecer sobre as prescrições médicas, ainda quando a transfusão sangüínea seja terapêutica que se afigure indispensável e a recusa importe risco de morte. Inocorrência de colisão ou contradição com o direito à vida, que consiste no direito ao modo singular de ser e viver de cada pessoa humana, coerente com suas íntimas convicções ou seus desejos mais recônditos, ainda quando diferentes dos professados pela maioria das pessoas. Inconstitucionalidade do item 2 da Resolução CFM nº 1.021/1980. Exma. Sra. Procuradora-Geral: 1. Trata-se de consulta oriunda do Hospital Universitário Pedro Ernesto – HUPE, unidade integrante da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, acerca do procedimento a ser adotado com relação a paciente que se declara Testemunha de Jeová e manifesta recusa em receber “transfusão de sangue total, glóbulos vermelhos, glóbulos brancos, plaquetas e plasma.” 2. A paciente apresentou documento firmado por ela e duas testemunhas, com firmas reconhecidas, por meio do qual manifesta previamente a sua vontade e nomeia dois procuradores sucessivos, que tomarão decisões sobre seu tratamento médico, caso não esteja consciente para tomá-las por si mesma. 3. Em seu correto pronunciamento, a ilustre Procuradora da UERJ, Professora Rose Melo Vencelau Meireles, registra a inexistência de norma legal sobre a matéria, destacando apenas a existência da Resolução CFM nº 1.021/1980, que disciplina o tema nos seguintes termos: “1 – A transfusão de sangue teria precisa indicação e seria a terapêutica mais rápida e segura para a melhora ou cura do paciente. Não haveria, contudo, qualquer perigo imediato para a vida do paciente se ela deixasse de ser praticada. Nessas condições, deveria o médico atender o pedido de seu paciente, abstendo-se de realizar a transfusão de sangue. Não poderá o médico proceder de modo contrário, pois tal lhe é vedado pelo disposto no artigo 32, letra “f” do Código de Ética Médica: “Não é permitido ao médico: f) exercer sua autoridade de

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PROCURADORIA DE SERVIÇOS PÚBLICOS

Rio de Janeiro, 08 de dezembro de 2009.

Parecer n° 09/2009- GUB

Ementa: Direito de recusa de paciente, que se declara Testemunha de Jeová, quanto ao recebimento de transfusão de sangue total, glóbulos vermelhos, glóbulos brancos, plaquetas ou plasma. Direito fundamental à autonomia privada, consistente na autodeterminação do indivíduo acerca de sua própria vida e seu destino, quanto àquilo que não acarrete dano a terceiros. Direito fundamental à autonomia privada consubstanciado nos direitos fundamentais à privacidade, ao próprio corpo, à liberdade religiosa e à diferença, todos eles integrantes do conteúdo essencial da dignidade da pessoa humana. A vontade do paciente – maior, capaz e devidamente informado – deve prevalecer sobre as prescrições médicas, ainda quando a transfusão sangüínea seja terapêutica que se afigure indispensável e a recusa importe risco de morte. Inocorrência de colisão ou contradição com o direito à vida, que consiste no direito ao modo singular de ser e viver de cada pessoa humana, coerente com suas íntimas convicções ou seus desejos mais recônditos, ainda quando diferentes dos professados pela maioria das pessoas. Inconstitucionalidade do item 2 da Resolução CFM nº 1.021/1980.

Exma. Sra. Procuradora-Geral:

1. Trata-se de consulta oriunda do Hospital Universitário Pedro Ernesto – HUPE, unidade integrante da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, acerca do procedimento a ser adotado com relação a paciente que se declara Testemunha de Jeová e manifesta recusa em receber “transfusão de sangue total, glóbulos vermelhos, glóbulos brancos, plaquetas e plasma.”

2. A paciente apresentou documento firmado por ela e duas testemunhas, com firmas reconhecidas, por meio do qual manifesta previamente a sua vontade e nomeia dois procuradores sucessivos, que tomarão decisões sobre seu tratamento médico, caso não esteja consciente para tomá-las por si mesma.

3. Em seu correto pronunciamento, a ilustre Procuradora da UERJ, Professora Rose Melo Vencelau Meireles, registra a inexistência de norma legal sobre a matéria, destacando apenas a existência da Resolução CFM nº 1.021/1980, que disciplina o tema nos seguintes termos:

“1 – A transfusão de sangue teria precisa indicação e seria a terapêutica mais rápida e segura para a melhora ou cura do paciente. Não haveria, contudo, qualquer perigo imediato para a vida do paciente se ela deixasse de ser praticada. Nessas condições, deveria o médico atender o pedido de seu paciente, abstendo-se de realizar a transfusão de sangue. Não poderá o médico proceder de modo contrário, pois tal lhe é vedado pelo disposto no artigo 32, letra “f” do Código de Ética Médica: “Não é permitido ao médico: f) exercer sua autoridade de

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maneira a limitar o direito do paciente resolver sobre sua pessoa e seu bem-estar.”“2 – O paciente se encontra em iminente perigo de vida e a transfusão de sangue é a terapêutica indispensável para salvá-lo. Em tais condições, não deverá o médico deixar de praticá-la apesar da oposição do paciente ou de seus responsáveis em permiti-la.”

4. Premido, de um lado, pela recusa oposta por determinada paciente e, de outro lado, pelo que dispõe o item 2 da Resolução CFM nº 1.021/1980, o Coordenador de Assistência Médica do HUPE/UERJ formula a presente consulta.

5. É o breve relatório. Passo a opinar.6. Durante muitos séculos, até pelo menos os albores da modernidade, as relações entre

médicos e pacientes fundavam-se no paradigma do paternalismo médico. Tal como se dava na medicina grega, a visão do médico como “filósofo hipocrático” sugeria um modelo de completo alijamento do paciente do processo de tomada das decisões médicas. Em outras palavras, o paciente não era concebido como um sujeito, mas como verdadeiro objeto dos serviços de saúde.1

7. A ruptura do paradigma médico-paternalista e a emergência da autonomia do paciente não ocorrem de forma abrupta ou acelerada. Na verdade, o longo processo de construção da idéia de autonomia do indivíduo – matriz basilar do liberalismo político – projeta-se, lentamente, sobre o campo das relações entre médicos e pacientes, acabando por colocar em xeque o paternalismo médico. Ao lado da valorização da liberdade individual, a universalização gradual do acesso à educação e ao conhecimento, a difusão da informação e a massificação da medicina contribuem decisivamente para a construção do novo paradigma.

8. Passa-se, assim, gradualmente, a valorizar a participação do paciente nas decisões médicas. A crise do estatuto científico da medicina torna imperiosa tal participação, pois as decisões médicas envolvem, além de conhecimentos técnicos, avaliações de escolhas e riscos que devem contar com o consentimento informado do paciente. Como sujeito que suportará as conseqüências da terapêutica, o paciente tem o direito subjetivo de ser informado e de exercer a sua autonomia quanto à aceitação do tratamento.

9. A contrapartida da necessidade do consentimento informado é a interdição do tratamento ao qual o paciente oponha recusa. Como trivialmente aceito pelo mundo afora, a avaliação dos possíveis riscos e ônus da terapêutica devem ser objetivamente expostos pelo médico, mas se sujeita ao veredicto soberano do paciente.

10. Como os processos históricos se interpenetram temporalmente, é natural existirem ainda resquícios do paternalismo médico em determinadas áreas da medicina. Assim deve ser encarado o item 2 da Resolução CFM nº 1.021/1980 – como uma expressão atávica do paternalismo ou beneficência médica. Respeita-se a vontade do paciente até o limite do risco de morte, a partir do qual ela deixa de ser levada a sério; séria é apenas e tão-somente a decisão heterônoma – supostamente técnica, objetiva e asséptica (de subjetividade!) – do médico.

11. Tenho que tal atavismo paternalista não se coaduna com o sistema de direitos fundamentais contemplado na Constituição brasileira de 1988. Erigida em bases liberais e democráticas, a Carta da República encontra no princípio da dignidade da pessoa humana o seu epicentro axiológico, que considera cada homem como um fim em si mesmo, titular de plena autonomia na sua vida privada. Releva de importância, aqui, o princípio liberal da soberania do indivíduo sobre sua vida, seu corpo e seu destino, desde que, no exercício de sua liberdade, não cause dano a outrem.2

1 Sobre o tema, v. Carlos Emmanuel Joppert Ragazzo, O Dever de Informar dos Médicos e o Consentimento Informado, Editora Juruá, 2007, p. 40 e seguintes.2 O princípio do dano foi originalmente formulado por John Stuart Mill na sua majestosa obra On Liberty, 1859.

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12. Os Testemunhas de Jeová entendem que a interdição à transfusão de sangue decorre da interpretação de textos bíblicos, sendo a sua observância condição de salvação. Do ponto de vista jurídico, a recusa à terapêutica se apresenta como verdadeira objeção de consciência, corolário de sua liberdade religiosa, a ser regiamente obedecida pelos médicos, ainda quando houver risco de morte do paciente.

13. A vontade do paciente – validamente manifestada, por pessoa maior, capaz e informada sobre o risco de sua escolha – deve ser respeitada em hospitais e postos médicos, públicos ou privados, como legítima expressão do direito fundamental à autonomia privada do indivíduo. No caso concreto, a autonomia privada consubstancia-se nos direitos fundamentais à privacidade, ao próprio corpo e à liberdade religiosa.

14. Em primeiro lugar, a privacidade representa a prerrogativa de autodeterminação do indivíduo no plano de suas escolhas privadas. Trata-se do direito inalienável a escolher o seu modo de ser e estar no mundo, suas práticas mais recônditas, protegidas de interferências de terceiros. Inclui-se também aqui o direito de estar só, livre e protegido da esfera pública.

15. Pois bem: ainda que não fosse revestido de sentimentos religiosos, o direito à privacidade seria já suficiente para garantir ao paciente a prerrogativa de impedir que se lhe faça qualquer transfusão sangüínea. Nenhuma autoridade ou junta médica poderá sobrepor a sua decisão à vontade livremente manifestada pelo paciente, quaisquer que sejam as suas razões ou conseqüências.

16. O direito ao próprio corpo também milita em favor do paciente. Desde que devidamente informado dos riscos de sua escolha, a decisão do paciente é soberana quanto àquilo que será administrado em seu corpo. Trata-se de um direito fundamental que importa o controle do indivíduo sobre como conduzir-se em relação à materialidade de seu corpo físico.

17. Por fim, cumpre enfatizar que, na espécie, a autonomia privada é ainda qualificada pelo livre exercício da liberdade religiosa. A objeção de consciência exibe, no caso, a característica de um ato de convicção religiosa. O direito fundamental à liberdade de credo e de culto abarca, por evidente, não apenas o direito de prática litúrgica, mas a proteção de escolhas existenciais coerentes com a fé religiosa abraçada.

18. É bem de se ver que não há qualquer colisão ou contradição do exercício da autonomia privada com o direito à vida. Com efeito, o direito à vida consiste no direito ao modo singular de ser e viver de cada pessoa humana, coerente com suas íntimas convicções ou seus desejos mais recônditos, ainda quando diferentes dos professados pela maioria das pessoas. O risco de morte, em situações de grave periculosidade à vida do paciente, deve ser entendido como mais um dentre os inúmeros riscos inerentes ao viver humano.

19. Assim, desde que os riscos sejam conscientemente assumidos por paciente maior, capaz e informado, não caberá ao médico pretender reavaliar a sua escolha existencial, condenando-o a uma existência sem sentido. Não pode o médico – seja ele um particular ou a face prestacional do Estado – arvorar-se em tutor de adultos racionais, donos de sua vida e de seu destino.

20. É possível enxergar ainda, na situação vertente, aplicabilidade ao chamado direito à diferença, vocacionado à proteção das escolhas existenciais de minorias – sejam elas, políticas, culturais, sexuais ou religiosas. Sua tutela constitucional exibe caráter marcadamente contramajoritário, de vez que, por seu intermédio, o Estado é desafiado não apenas a tolerar como também a proteger posições jurídicas havidas, pela maioria das pessoas, como exóticas, burlescas ou simplesmente irrelevantes. Nada obstante, para seus titulares, a proteção jurídica dessas formas de ser e viver representa tudo, a distância entre afirmar-se ou negar-se a si próprio.

21. Não resta dúvida que uma sociedade pluralista, liberal e democrática deve reservar um espaço de proteção para as minorias. De parte seu direito moral à existência, como um valor per se, sua preservação representa também a única forma de assegurar a riqueza da diversidade dos indivíduos e grupos humanos, em sua singularidade.

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22. Vale mencionar, como argumento de autoridade, que diversos juristas, aqui e alhures, têm adotado entendimento semelhante ao que aqui esposado. Gustavo Tepedino e Anderson Schreiber, em substancioso artigo, afirmam que não cabe ao médico substituir-se ao paciente na definição sobre qual aspecto da personalidade seria “mais fundamental” – a liberdade religiosa ou o tratamento da saúde.3 O saudoso Celso Ribeiro Bastos sustentou, em parecer sobre o tema, que, “quando o Estado determina a realização de transfusão de sangue – ocorrência fenomênica que não pode ser revertida –, fica claro que violenta a vida privada e a intimidade das pessoas no plano da liberdade individual.”4 A conclusões idênticas chegou Manoel Gonçalves Ferreira Filho.5

23. Confiram-se, ainda, as decisões judiciais abaixo, no sentido aqui defendido como correto:

Magistrado julga improcedente pedido para autorização de transfusão de sangue em testemunha de Jeová Fonte: TJPA Decisão foi embasada nos incisos II e VI do artigo 5º da Constituição Federal que assegura, dentre outros direitos, a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença. O juiz Marco Antonio Castelo Branco, da 2ª Vara de Fazenda de Belém, julgou improcedente o pedido feito em ação cautelar inominada movida pelo Hospital Ophir Loyola contra a paciente E.T.A. O hospital recorreu à Justiça para obter autorização a fim de proceder transfusão de sangue, considerando ser a paciente portadora de doença grave e apresentar quadro hemorrágico. No entanto, a paciente, que é da religião Testemunhas de Jeová, não autoriza a medida como parte do tratamento, requerendo o devido respeito a sua vontade e autodeterminação. A decisão do magistrado embasou-se em amplo estudo sobre a matéria, citando juristas sobre a inviolabilidade do direito à vida, a dignidade da pessoa humana e a inviolabilidade do direito de consciência e crença. A liminar antes concedida em favor do hospital foi revogada.De acordo com os autos do processo, diante do quadro da paciente, que aponta para uma necessária transfusão de sangue, e da recusa da mesma em receber o procedimento como parte do tratamento, o hospital buscou uma determinação judicial visando resguardar-se de eventuais ações futuras pelo desrespeito à vontade da paciente.Conforme o magistrado, “o direito à vida deve ser compreendido como direito à vida digna e este direito é uma lei fundamental positivada em nosso ordenamento. Uma das mais importantes leis da humanidade é a autodeterminação do ser humano”. O juiz citou ainda o Código de Ética da Medicina, que autoriza a ação do médico em caso de iminente risco à vida do paciente, mas julgou improcedente o pedido do hospital ressaltando o parágrafo 5º da Constituição Federal, que assegura a inviolabilidade do direito à vida, garantindo, em seu inciso II,

3 Gustavo Tepedino & Anderson Schreiber, Minorias no Direito Civil brasileiro, RTDC, vol. 10, 2002.4 Celso Ribeiro Bastos, Direito de recusa de pacientes submetidos a tratamento terapêutico às transfusões de sangue, por razões científicas e convicções religiosas, Revista dos Tribunais, v. 787, maio de 2001, p. 501.5 Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Questões constitucionais e legais referentes a tratamento médico sem transfusão de sangue. Parecer jurídico, Sociedade Torre da Vigia de Bíblias e Tratados, 1994, p. 19.

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que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, demonstrando o magistrado que “não há lei que force a paciente a se submeter a hemotransfusão”.Também fundamentou sua decisão no inciso VI do mesmo artigo 5º que aponta ser “inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. Dessa maneira, entende o magistrado, que a crença professada pelos Testemunhas de Jeová em nenhum momento prega qualquer doutrina que afronte a vida, que faça apologia ao suicídio, e que a recusa da paciente “tem origem em assentamento doutrinário, que, certo ou errado, falso ou verdadeiro, deve ser respeitado diante da demonstração cabal de que a paciente quer viver a ponto de procurar um hospital a fim de buscar tratamento que lhe permita continuar vivendo. Em vista do prontuário da paciente, não tenho dúvidas que a mesma procurou o hospital com o único intuito de buscar qualquer tratamento que lhe minimize a dor, excetuando o tratamento hemoterápico pela via da transfusão”.

Pedido de autorização judicial para realizar transfusão de sangue é negado Fonte: TJRJ O Juiz André Nicolitt, do Plantão Judiciário, negou o pedido de autorização judicial feito pela Casa de Saúde e Maternidade Joari para realizar uma transfusão de sangue em um paciente que se recusou a passar pelo procedimento. O idoso José Ferreira, de 81 anos, é Testemunha de Jeová, religião que não permite que seus adeptos recebam sangue de outras pessoas. Ele está lúcido e conhece os riscos, mas prefere seguir sua fé, como comprova uma certidão apresentada por seu advogado. O paciente tem insuficiência renal, hemorragia digestiva e graves problemas nas artérias.Sobre a situação do médico que cuida do caso do idoso, o juiz afirmou que "ao proceder à intervenção no intuito de salvar a vida, o médico age em cumprimento ao seu dever ético profissional. Por outro lado, se não age em respeito à liberdade do paciente, sua omissão está respaldada pela Constituição". Segundo o juiz, a liberdade do idoso deve ser respeitada e, por isso, o Estado não deve intervir. O magistrado entende que diminuir o sofrimento do idoso é manter viva a sua crença no paraíso. E afirma que mesmo não comungando das convicções religiosas do paciente, os princípios de justiça e a ordem constitucional conduziram a decisão, ainda que esbarrando em suas convicções intuitivas, culturais e religiosas.Processo nº 2009.205.025742-5

24. Não entendo necessário promover-se a judicialização da questão, uma vez que a decisão do paciente maior e capaz é auto-executória em relação aos médicos, encontrando

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fundamento diretamente nas normas constitucionais que asseguram os direitos fundamentais envolvidos na questão.

25. Por fim, cabe registrar que não enfrentei a questão da recusa à transfusão manifestada por menores de dezoito anos, uma vez que tal situação não foi objeto da consulta. Consigno, tão-somente, que a doutrina mais abalizada tem-se inclinado pela aplicação da teoria do “menor maduro”. Segundo tal teoria, caberá perquirir se o menor tem capacidade de compreender o contexto decisório em que inserido e, só então, sua vontade deverá ser respeitada.6

26. No que se refere à recusa da transfusão, entendo que eventual manifestação de vontade do menor deverá sempre ser submetida ao Poder Judiciário, que deverá proceder à aferição de sua maturidade para a tomada da decisão. Em nenhuma hipótese, no entanto, poderá a família tomar decisão que importe risco de morte do menor de idade, diante do caráter personalíssimo dos bens jurídicos envolvidos. Em outros termos: caso o juiz entenda pela capacidade de escolha do menor, sua vontade prevalecerá; do contrário, deverá ordenar que se realize o tratamento médico imprescindível à preservação da vida e da saúde do menor.

27. Todavia, como já ressaltado, a consulta versava sobre hipótese relativa a pessoa maior e capaz, que opta conscientemente pela recusa à transfusão de sangue. Para tais situações, ainda que isto importe risco de morte, deverá a equipe médica respeitar a vontade livremente manifestada pelo paciente.

É o parecer.

GUSTAVO BINENBOJMProcurador do Estado do Rio de Janeiro

VISTO DIVERGENTE

6 Sobre o tema, v. Bruno Marini, O caso das Testemunhas de Jeová e a transfusão de sangue: uma análise jurídico-bioética, extraído de Jus navigandi, http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6641&p=2, acessado em 07.12.2009.

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Por não estar de acordo, com as vênias devidas, deixo de aprovar o Parecer nº 09/2009-GUB, da lavra do ilustre Procurador do Estado Dr. GUSTAVO BINENBOJM, que, em resposta à indagação formulada neste processo, oriunda da UERJ, entendeu ser constitucional a objeção de consciência de pessoas que se dizem seguidoras da seita Testemunhas de Jeová, sobretudo para impedir que médicos, servidores públicos estaduais que atuam em hospitais públicos, lhes ministre tratamento que envolva transfusão de sangue, ainda que necessário e indispensável para salvar a vida.

O ilustre Procurador do Estado Dr. Gustavo Binenbojm, em abono à sua tese, apresentou fundamentos jurídicos sólidos e importantes, adotados por parte da doutrina brasileira7 e da jurisprudência, quais sejam: (i) direito do cidadão de professar crença religiosa, ainda que as opções por ele externadas, a despeito de seguir o dogma religioso que adota, ponham em risco a sua vida; (ii) direito do cidadão de dispor do próprio corpo, como manifestação do princípio da privacidade; (iii) direito do cidadão de recusar tratamento médico, com fundamento em crença religiosa e também no princípio da autonomia da vontade, o que, à luz da CRFB/88, permite ao cidadão (paciente) o exercício de objeções de consciência; e (iv) o princípio da dignidade humana, que exige seja o homem/cidadão concebido não como um instrumento do direito, mas um fim em si mesmo, destinatário dos direitos fundamentais encartados na CRFB/88, dentre eles o de professar crença religiosa que impeça a continuidade da vida humana caso alguma medida clínica ou médica contrarie seus fundamentos religiosos.

O tema objeto destes autos, conforme se percebe, é complexo, difícil e, afirmo, recheado de divergências doutrinárias e jurisprudenciais. Por isso, necessário ressalvar e ressaltar que não divirjo do ilustre Procurador do Estado Dr. Gustavo Binenbojm, por quem nutro profundo respeito e admiração, por entender que a posição jurídica por ele adotada está equivocada. Longe disso. Minha divergência, após muita reflexão, estudo e pesquisa (inclusive de campo: fui ao CREMERJ para escutar os médicos e o departamento jurídico daquela instituição), estará baseada em posição jurídica com fundamentos e objetivos constitucionais diferentes para responder à indagação surgida nestes autos, mormente a obrigação de proteção à vida humana, dever primordial do Estado.

DELIMITAÇÃO DO PROBLEMA

Este processo foi inaugurado a partir de expediente do Hospital Estadual Pedro Ernesto, dando conta da internação da paciente Francidalva da Silva, de apenas 21 anos de idade, no Centro de Terapia Intensiva (CTI) com quadro de síndrome de angustia respiratória, necessitando receber ventilação mecânica, bem assim de procedimento de biópsia do pulmão, sendo ainda provável – à época - a necessidade de transfusão de sangue, já que a paciente estava classificada como “gravemente enferma”.

Os médicos e professores Drs. Sergio da Cunha (CRM 5239613 1) e Claudia Henrique da Costa encaminharam expediente à Procuradoria da UERJ, solicitando orientação jurídica e/ou a obtenção de ordem judicial para garantir suposto tratamento que envolvesse transfusão de sangue, uma vez que a paciente apresentou ao Hospital documento padronizado, com algumas partes datilografadas e outras preenchidas à mão, por ela assinado juntamente com duas testemunhas, se declarando membro da religião Testemunha de Jeová e que, mesmo se estivesse correndo perigo de morte, não desejava receber transfusão de sangue.

7 De se acrescentar ainda, por todos, em apoio à tese contrária a que se irá sustentar neste trabalho, e para garantir-se a transparência profissional na informação acadêmica, o profundo estudo realizado pelo Professor de Direito Constitucional da PUC-RJ, Doutor Fábio Carvalho Leite, intitulado “Liberdade de Crença e a Objeção à Transfusão de Sangue por Motivos Religiosos”, gentilmente cedido para pesquisa, fruto de sua tese de doutorado defendida na UERJ (título: Estado e Religião).

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Note-se, então, que a jovem paciente, por se declarar publicamente seguidora da seita Testemunhas de Jeová, preferiu a morte a ter que ser submetida à terapia médica que envolvesse transfusão de sangue.

A Procuradoria da UERJ, a exemplo do ilustre Procurador do Estado Dr. Gustavo Binenbojm, entende que os médicos devem respeitar a objeção de consciência apresentada pela paciente, mesmo quando sua vida correr perigo.

Há notícia nos autos, às fls. 18, de que a paciente, em 21/08/2009, não mais estava precisando de se submeter a procedimento de transfusão de sangue. Todavia, o médico e professor Dr. Sergio da Cunha solicitou a adoção de medida judicial que garanta a realização de transfusão de sangue na paciente, caso ela precise, o que transmitiria maior segurança à equipe médica, sobretudo contra eventuais e possíveis responsabilidades.

Ante a posição técnica adotada pela comunidade médica, contrária à manifestação religiosa igual à versada pela Sra. Francidalva Pereira da Silva (que vem acontecendo em vários cantos deste País), mais especificamente pela obrigatoriedade de realização de transfusão de sangue em pacientes que estejam correndo risco de morte, independentemente de crença religiosa, pôs em xeque ou em aparente contradição dois valores constitucionais: direito à crença religiosa e o exercício de seus fundamentos versus o dever do Estado de garantir a intangibilidade e a inviolabilidade do direito à vida humana. Eis o problema a ser enfrentado.

ESTADO LAICO. LIBERDADE DE CRENÇA E RELIGIÃO. TESTEMUNHAS DE JEOVÁ

Conforme conhecimento convencional, o Brasil adotou posição constitucional pela laicidade do Estado. Isto quer dizer que todos os cidadãos são livres para escolher a religião que melhor convier à sua consciência e crença (art. 5º, inciso VI, da CRFB/888). De outro lado, não é possível aos entes federativos adotar religião oficial e, tampouco, fomentar religiões ou opor empecilhos e dificuldade ao livre exercício pelos estabelecimentos religiosos, devotos e seguidores (art. 19, I, da CRFB/889).

Sem dúvidas, a laicidade estatal e o princípio democrático proporcionaram – e proporcionam - o surgimento e a difusão de diversas espécies de religião e seitas no Brasil, que convivem, salvo raríssimas turbulências, de forma harmônica.

Dentre as religiões professadas no Brasil está a seita Testemunhas de Jeová, surgida nos Estados Unidos da América, no final do século XIX. A propósito, confiram-se as lições doutrinárias de MARIA DE FÁTIMA FREIRE DE SÁ e ANA CAROLINA BROCHADO TEIXEIRA, que, inclusive, apresenta os fundamentos teológicos que impedem as Testemunhas de Jeová de receberem transfusão de sangue e também as hipóteses em que se admite o perdão pela transfusão de sangue realizada para salvar a vida do paciente:

“Os testemunhas-de-jeová têm origem no final do século XIX na América do Norte, e hoje possuem seguidores em grande parte do mundo europeu, assim como na América do Sul. Seus integrantes consideram proibida a transfusão de sangue e se baseiam em algumas passagens da Bíblia. Assim, no livro Gênesis (9:3-4) está escrito: “Todo animal movente que está vivo pode servir-vos de alimento. Como no caso da vegetação verde, deveras vos dou tudo. Somente a carne com sua alma -

8 “Art. 5º (...) - VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”.9 “Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”.

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seu sangue - não deveis comer.” Também no Levítico (17:10) outra passagem é aclamada: “Todo israelita ou todo estrangeiro que habita no meio deles, que comer qualquer espécie de sangue, voltarei minha face contra ele, e exterminá-lo-ei do meio de seu povo.” Para esta comunidade religiosa, são três as situações possíveis: 1ª) Se o médico proceder à transfusão de sangue em um indivíduo contra sua vontade, o testemunha-de-jeová não desrespeitou a própria consciência, razão pela qual não se pode condená-lo; 2ª) Se um membro religioso aceita sangue em um momento de debilidade e arrepende-se posteriormente, há que se lhe oferecer ajuda espiritual; e 3ª) Se um testemunha-de-jeová aceitar a transfusão de maneira voluntária, sem dúvidas ou pesar, estará desrespeitando princípio moral de sua fé que, voluntariamente, decidiu seguir, razão pela qual deverá ser excluído da seita. Embora tenha feito tal escolha, caso venha a se arrepender posteriormente, poderá voltar a praticar a fé.10

A seita Christian Science (Church of Christ Scientist), fundada em Boston, em 1879, por Mary Baker Eddy, possui adeptos em mais de cinqüenta países, principalmente na América e Europa ocidental. Também entende não ser possível a transfusão de sangue, mesmo em situação extrema de perigo de vida. Neste caso, o alcance da objeção de consciência é muito mais extenso do que no que se refere aos testemunhas-de-jeová, porque consideram que qualquer doença pode ser curada mediante oração, defendendo a ilicitude de tratamentos médicos generalizados. Somente alguns de seus membros aceitam a ingestão de remédios para alívio da dor”.11

Conforme se percebe, os seguidores da religião e/ou seita Testemunhas de Jeová trazem consigo, como princípio religioso, decorrente de interpretação de passagens bíblicas, a impossibilidade de realização de tratamentos médicos que importem em transfusão de sangue, mesmo que em risco esteja a vida do paciente-crente.

Pergunta importante para se tentar solucionar o problema consiste em saber se é aceitável, do ponto de vista constitucional, que alguém, sob o fundamento de professar crença religiosa, dentro de um hospital (público ou privado) pode impedir o médico de cumprir com sua histórica missão de salvar vidas, valendo-se dos instrumentos, técnicas e tratamentos que a ciência médica lhe oportuniza. Mais: se é aceitável que o médico (sobretudo o servidor público !) se exponha a ser responsabilizado administrativa, civil e penalmente caso venha a atender à manifestação de vontade do paciente, que recusa tratamento clínico com sua crença religiosa.

Com a venia devida aos que pensam de modo diferente, minha opinião jurídica é que as respostas às indagações acima devem ser negativas. Passo a fundamentá-la.

10 CORTÉS, Julio César Galán. Responsabilidad médica y consentimiento informado. Madrid: Civitas Ediciones, 2001, p.239.11 DE SÁ, Maria de Fátima Freire; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Responsabilidade Médica e Objeção de Consciência. RTDC 21/2005, pag. 130.

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REGULAÇÃO JURÍDICA DA TRANSFUSÃO DE SANGUE.Limites da Autonomia da Vontade do Paciente.

Importante registrar que não há norma legal e constitucional que expressamente regule o problema da obrigatoriedade da transfusão de sangue no Brasil.

O Estado do Rio de Janeiro, por meio da Lei Estadual nº. 3.613, de 18 de julho de 2001 (que regulamentou o art. 287, da Constituição do Estado do Rio de Janeiro de 1989), dispôs sobre os direitos dos usuários dos serviços de saúde e, no art. 2º, incisos VII12, estabeleceu ser direito do usuário ter ciência clara e precisa dos procedimentos e tratamentos a que será submetido, para possibilitar-lhe o consentimento ou a recusa. A regra não inova no ordenamento jurídico, vez que repete, conforme será explorado, o que contém no artigo 15 do Código Civil Brasileiro, e em nenhum momento faculta ao cidadão dispor da própria vida, quando em iminente perigo, em hospital público, por razões de ordem religiosa.

Importante registrar que a Lei Estadual 3.613/2001, de forma bastante polêmica, parece permitir, no art. 2º, inciso XXIII, a pratica da distanásia, quando estabelece ser direito do cidadão “recusar tratamentos dolorosos ou extraordinários para tentar prolongar a vida”. A distanásia, a meu juízo, se diferencia sobremaneira da questão tratada neste trabalho, na medida em que não se propõe salvar a vida do doente, que está em iminente perigo, mas sim o seu mero prolongamento com remédios e terapias dolorosas, que apenas trarão mais sofrimento para o paciente e o fará morrer lentamente13.

Enfatize-se, assim, que não há norma legal que permita, expressamente, a objeção ao recebimento de transfusão de sangue com fundamento em crença religiosa.

Todavia, o Conselho Federal de Medicina (CFM) editou a Resolução CFM nº 1.021/80, e estabeleceu que os médicos do Brasil, públicos ou privados, devem, em caso de risco de morte do paciente, não sendo possível qualquer outra técnica alternativa, proceder à transfusão de sangue. Confira-se, por sua importância para o caso em análise, a íntegra da referida Resolução:

“Resolução CFM nº 1.021/80O Conselho Federal de Medicina, usando da atribuição que lhe confere a Lei nº 3.268, de 30 de setembro de 1957, regulamentada pelo Decreto nº 44.045, de 19 de julho de 1958, econsiderando o disposto no artigo 153, parágrafo 2º da Constituição Federal; no artigo 146 e seu parágrafo 3º, inciso I e II do Código Penal; e nos artigos 1º, 30 e 49 do Código de Ética Médica;Considerando o caso de paciente que, por motivos diversos, inclusive os de ordem religiosa, recusam a transfusão de sangue;considerando finalmente o decidido em sessão plenária deste Conselho realizada no dia 26 de setembro de 1980,Resolve:

12 Art. 2º - São direitos dos usuários dos serviços de saúde no Estado do Rio de Janeiro:VII – consentir ou recusar, de forma livre, voluntária e esclarecida, com adequada informação, procedimentos diagnósticos ou terapêuticos a serem realizados;13 O conceito e a compreensão da distanásia nos é fornecido pelo ex-Procurador do Estado do Rio de Janeiro e hoje Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro Renato Lima Charnaux Sertã: “Fenômeno típico da sociedade atual, e decorrente da evolução da medicina, a distanásia ainda não foi bem compreendida, tampouco suficientemente referida e considerada pelos estudiosos ligados à Medicina ou ao Direito.No sentido vernacular, distanásia significa ‘morte lenta, com grande sofrimento’.Em termos médicos, face às circunstâncias de avanço tecnológico antes descritas, o conceito encontra-se hoje ligado, mais do que à própria morte lenta, às suas causas, que protraem de forma dolorosa o momento final da existência.Nesse passo, talvez o conceito mais em voga a respeito da distanásia seja atualmente o de ‘tratamento médico fútil’, quando ministrado em pacientes portadores de graves moléstias, para as quais não há solução facilmente identificável pela ciência médica.” (In A Distanásia e a Dignidade do Paciente. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 32)

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Adotar os fundamentos do anexo parecer, como interpretação autêntica dos dispositivos deontológicos referentes a recusa em permitir a transfusão de sangue, em casos de iminente perigo de vida.Rio de Janeiro, 26 de setembro de 1980.GUARACIABA QUARESMA GAMA

Presidente em ExercícioJOSÉ LUIZ GUIMARÃES SANTOS

Secretário-GeralPublicada no D.O.U.(Seção I - Parte II) de 22/10/80

Parecer Proc. CFM nº 21/80

O problema criado, para o médico, pela recusa dos adeptos da Testemunha de Jeová em permitir a transfusão sangüínea, deverá ser encarada sob duas circunstâncias:

1 - A transfusão de sangue teria precisa indicação e seria a terapêutica mais rápida e segura para a melhora ou cura do paciente.

Não haveria, contudo, qualquer perigo imediato para a vida do paciente se ela deixasse de ser praticada.

Nessas condições, deveria o médico atender o pedido de seu paciente, abstendo-se de realizar a transfusão de sangue.

Não poderá o médico proceder de modo contrário, pois tal lhe é vedado pelo disposto no artigo 32, letra "f" do Código de Ética Médica:

"Não é permitido ao médico:f) exercer sua autoridade de maneira a limitar o direito do paciente resolver sobre sua

pessoa e seu bem-estar".2 - O paciente se encontra em iminente perigo de vida e a transfusão de sangue é a

terapêutica indispensável para salvá-lo.Em tais condições, não deverá o médico deixar de praticá-la apesar da oposição do

paciente ou de seus responsáveis em permiti-la.O médico deverá sempre orientar sua conduta profissional pelas determinações de seu

Código.No caso, o Código de Ética Médica assim prescreve:

"Artigo 1º - A medicina é uma profissão que tem por fim cuidar da saúde do homem, sem preocupações de ordem religiosa...""Artigo 30 - O alvo de toda a atenção do médico é o doente, em benefício do qual deverá agir com o máximo de zêlo e melhor de sua capacidade profissional"."Artigo 19 - O médico, salvo o caso de "iminente perigo de vida", não praticará intervenção cirúrgica sem o prévio consentimento tácito ou explícito do paciente e, tratando-se de menor incapaz, de seu representante legal".Por outro lado, ao praticar a transfusão de sangue, na circunstância em causa, não estará o médico violando o direito do paciente.Realmente, a Constituição Federal determina em seu artigo 153, Parágrafo 2º que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei".

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Aquele que violar esse direito cairá nas sanções do Código Penal quando este trata dos crimes contra a liberdade pessoal e em seu artigo 146 preconiza:"Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda".

Contudo, o próprio Código Penal no parágrafo 3º desse mesmo artigo 146, declara:

"Não se compreendem na disposição deste artigo:I - a intervenção médica ou cirúrgica sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida".A recusa do paciente em receber a transfusão sangüínea, salvadora de sua vida, poderia, ainda, ser encarada como suicídio. Nesse caso, o médico, ao aplicar a transfusão, não estaria violando a liberdade pessoal, pois o mesmo parágrafo 3º do artigo 146, agora no inciso II, dispõe que não se compreende, também, nas determinações deste artigo: "a coação exercida para impedir o suicídio".

CONCLUSÃO

Em caso de haver recusa em permitir a transfusão de sangue, o médico, obedecendo a seu Código de Ética Médica, deverá observar a seguinte conduta:

1º - Se não houver iminente perigo de vida, o médico respeitará a vontade do paciente ou de seus responsáveis.

2º - Se houver iminente perigo de vida, o médico praticará a transfusão de sangue, independentemente de consentimento do paciente ou de seus responsáveis.

Dr. TELMO REIS FERREIRA

Relator”

O Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro – CREMERJ, reiterando a normatização traçada pelo CFM, editou a RESOLUÇÃO CREMERJ nº 136/1999 para regular a matéria controvertida objeto deste estudo. Confiram-se os artigos 1º e 3º:

“Art. 1º O médico, ciente formalmente da recusa do paciente em receber transfusão de sangue e/ou seus derivados, deverá recorrer a todos os métodos alternativos de tratamento ao seu alcance.”“Art. 3º - O médico, verificando a existência de risco de vida para o paciente, em qualquer circunstância, deverá fazer uso de todos os méis aos seu alcance para garantir a saúde do mesmo, inclusive efetuando a transfusão de sangue e/ou seus derivados, comunicando, se necessário, à Autoridade Policial competente sobre sua decisão, caso os recursos utilizados sejam contrários ao desejo do paciente ou de seus familiares.”

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O Código de Ética Médica, instituído por meio da Resolução CFM nº 1.246/88, de 08 de janeiro de 1988, publicada no D.O.U de 26 de janeiro do mesmo ano, por sua vez, estabelece:

“É vedado ao médico”:“Art. 46 - Efetuar qualquer procedimento médico sem o esclarecimento e o consentimento prévios do paciente ou de seu responsável legal, salvo em iminente perigo de vida”.“Art. 56: Desrespeitar o direito do paciente de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente perigo de vida”.“Art. 57 - Deixar de utilizar todos os meios disponíveis de diagnósticos e tratamento a seu alcance em favor do paciente”.

Percebe-se, pois, que à luz da regulação técnica acima transcrita, que a entidade competente para regular a atuação médica, inclusive o seu atuar ético, obriga o médico a proceder ao tratamento clínico – inclusive transfusão de sangue - necessário para salvar a vida do paciente.

Necessário advertir que os Conselhos Federal e Regional de Medicina, a exemplo de outros Conselhos Profissionais têm previsão constitucional (artigos 5º, inciso XIII14, 21, XXIV15 e 22, XVI16, todo da CRFB/88), e exercem, na qualidade de autarquias, o poder disciplinar quanto às suas atividades e sobre seus profissionais17. Por isso é que ouso ponderar que o poder normativo e regulador dos Conselhos Federal e Regional de Medicina emerge da CRFB/88.

A reforçar a posição adotada pelo Conselho Federal de Medicina e pelo Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro, que obrigam o médico a proceder à transfusão de sangue em pacientes que estejam em risco de morte, pode-se citar a regra contida no artigo 15 do Código Civil, assim redigida:

“Art. 15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”.

Ora bem; conforme se extrai da leitura do mencionado dispositivo legal, o Código Civil, editado em 2002, conferiu efetividade ao princípio da autonomia da vontade do paciente,

14 “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”;15 “Art. 21. Compete à União:XXIV - organizar, manter e executar a inspeção do trabalho”;16 “Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:XVI - organização do sistema nacional de emprego e condições para o exercício de profissões”;17 Sobre a qualificação dos Conselhos Profissionais como Autarquias federais, colham-se as lições do Procurador da República Dr. Ronaldo Pinheiro de Queiroz: “Diante disso, a partir da constatação da natureza jurídica de autarquia federal dos conselhos federais, e tomando-a como premissa primária, as conseqüências jurídicas daí decorrentes ficam afetas ao regime jurídico administrativo, trazendo para os conselhos as mesmas prerrogativas e restrições da administração pública indireta.Daí em diante, pode-se concluir que esses entes têm as mesmas vantagens e privilégios da administração, mas também têm os mesmos ônus, devendo realizar concurso público para admissão de seu pessoal, seguir as regras do regime jurídico do pessoal que estabelecer, realizar licitação, dentre outros consectários desse regime de caráter publico.Os conselhos que ainda se portam como entidades privadas deverão se adequar estrutural e funcionalmente para usar a roupagem de autarquia federal, a fim de não perderem a legitimidade de seus atos, pois, se não se conduzirem dessa forma, estarão desrespeitando a própria Constituição”. (QUEIROZ, Ronaldo Pinheiro de. A natureza jurídica dos conselhos fiscais de profissões regulamentadas. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1211, 25 out. 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9082>. Acesso em: 12 jan. 2010).

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permitindo que participe das decisões que digam respeito aos tratamentos que lhe serão ministrados, junto com o médico, estabelecendo claramente o limite de tal conjugação de decisões: até o momento em que a vida do paciente não correr perigo de fenecer. Nesta hipótese, penso, o legislador civil de 2002, em franca interpretação da Constituição Federal de 1988, estabeleceu que, em havendo perigo de morte do paciente, o médico, conhecedor de estudos técnicos, deve sempre atuar para impedir que tal aconteça, cabendo a ele decidir sobre as técnicas médicas disponíveis, independentemente de crenças religiosas, inclusive por parte dos médicos.

Necessário ainda registrar que o Código Civil de 2002, em franca “interpretação autêntica”18 da CRFB/88, trouxe ao ordenamento jurídico duas regras de conduta sobre a autonomia da vontade e os direitos da personalidade, como sói ser a vida humana, que merecem ser destacadas neste trabalho: (i) aduz serem os direitos da personalidade intransmissíveis e irrenunciáveis, e que não podem sofrer limitação voluntária; e (ii) que é vedado ao ser humano a disposição do próprio corpo, inclusive quando importar em permanente diminuição da integridade física. Confiram-se, a propósito, as dicções dos artigos 11 e 13 do referido Código Civil:

“Art. 11. Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária”.“Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes.Parágrafo único. O ato previsto neste artigo será admitido para fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial”.

Consoante as regras acima transcritas, parece que há normas jurídicas vigentes que impedem a objeção de consciência por parte de pessoas que se dizem seguidoras da seita Testemunhas de Jeová para recusarem transfusão de sangue e, assim, disporem do próprio corpo e também do maior direito da personalidade tutelado pela Constituição da República de 1988, qual seja, a vida.

Isto não quer dizer, porém, que os médicos não devam buscar, o quanto possível, as técnicas médicas que não contrariem as crenças religiosas dos pacientes. Devem fazê-lo até o limite em que não se verificar a encruzilhada que responde à indagação: o tratamento contrário à vontade do paciente ou a morte ? Nesta hipótese, penso, deve decidir pelo tratamento contrário à vontade do paciente para preservar o maior e primordial direito fundamental tutelado pela Constituição da República de 1988, qual seja, a vida humana. Esta, ao que parece, é a posição de CARLOS EMMANUEL RAGAZZO, que, escrevendo sobre o problema objeto deste trabalho, aduz:

“No Brasil, a doutrina entende que a recusa deve ser respeitada, desde que não haja risco de vida. A letra do art. 15 do Código Civil vem permitindo essa interpretação, o que, aliás, já era uma posição jurisprudencial mesmo antes da promulgação do novo

18 A expressão interpretação autêntica não está sendo empregado em consonância técnica com a melhor doutrina do Direito Constitucional, mas pretende expressar a interpretação da Constituição da República pelo Poder Legislativo. Nada obstante, confira-se, na lição de Luis Roberto Barroso, a correta conceituação do fenômeno da interpretação constitucional autêntica: “É controvertida a possibilidade de interpretação autêntica da Constituição. Aliás, é controvertida a própria existência da categoria interpretação autêntica, como tal entendida a que emana do próprio órgão que elaborou o ato cujo sentido e alcance ela declara. Pela interpretação autêntica se edita uma norma interpretativa de outra preexistente. A maior parte da doutrina, tanto brasileira como portuguesa, admite a interpretação constitucional autêntica, desde que se faça pelo órgão competente para a reforma constitucional, com observância do mesmo procedimento desta.” (In Interpretação e Aplicação da Constituição: Fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 4ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, pags. 118/119.)

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diploma cível. A prevalência do direito à vida, considerado como verdadeiramente indisponível, sobre o direito de autodeterminação constitui o fundamento das decisões judiciais que permitem a intervenção médica quando há risco iminente de vida”.19

Deste modo, a meu juízo, os artigos 11, 13 e 15, todos do Código Civil, e as regras técnicas dos Conselhos Federal e Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro e, ainda, o Código de Ética Médica, conferiram efetividade ao maior direito fundamental protegido pela Constituição da República de 1988, cuja defesa incessante e intransigente compete ao Estado, isto é, a vida humana, sem a qual (e/ou contra ela) não há razão jurídica para se pleitear o exercício de qualquer outro direito fundamental, inclusive a liberdade religiosa.

DIREITO À VIDA. NECESSIDADE DO ESTADO DE GARANTIR A VIDA HUMANA. CONCEPÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS.

PONDERAÇÃO DE VALORES.

O direito fundamental à vida e à saúde está previsto na Constituição da República de 1988 nos artigos 5º e 6º, que estão assim redigidos:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes”:“Art. 6o São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.”

Conforme se percebe, por expressa disposição constitucional a vida e a saúde são direitos fundamentais e sociais invioláveis do cidadão e, nos termos do artigo 196 da CRFB/88, é dever do Estado protegê-los:

“Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”

Se assim é, e efetivamente o é, a partir da vida e do seu inafastável corolário – existência humana - é que surgirão e que serão interpretados todos os outros direitos fundamentais previstos na CRFB/88, dentre eles o direito à autonomia da vontade para professar crenças religiosas.

Em abono à tese sustentada neste trabalho, confira-se a doutrina de ALEXANDRE DE MORAES:

“A Constituição Federal garante que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade

19 RAGAZZO, Carlos Emmanuel Joppert. O dever de informar dos médicos e o consentimento informado. 1ª ed. (ano 2006), 2ª tir. Curitiba: Joruá Editora, 2007, p. 114.

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do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. O Direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, já que se constitui em pré-requisito à existência de todos os demais direitos.A Constituição Federal proclama, portanto, o direito à vida, cabendo ao Estado assegurá-lo em sua dupla acepção, sendo a primeira relacionada ao direito de continuar vivo e a segunda de se ter vida digna quanto à subsistência.”20

No mesmo sentido, colham-se as sempre autorizadas lições de JOSÉ AFONSO DA SILVA:

“Todo ser dotado de vida é indivíduo, isto é: algo que não se pode dividir, sob pena de deixar de ser. O homem é um indivíduo, mas é mais que isto, é uma pessoa. (...) A vida humana, que é objeto do direito assegurado no art. 5º, caput, integra-se de elementos materiais (físicos e psíquicos) e imateriais (espirituais). (...). Por isso é que ela constitui a fonte primária de todos os outros bens jurídicos. De nada adiantaria a Constituição assegurar outros direitos fundamentais, como a igualdade, a intimidade, a liberdade, o bem-estar, se não erigisse a vida humana num desses direitos. No conteúdo de seu conceito se envolvem o direito à dignidade da pessoa humana (de que já tratamos), o direito à privacidade (de que cuidaremos no capítulo seguinte), o direito à integridade físico-corporal, o direito à integridade moral e, especial, o direito à existência.”21

– itálico do original - grifo meu.

A propósito do princípio da existência como corolário da vida humana, bem assim sua aplicação a situações similares à vertida neste processo, prossegue JOSÉ AFONSO DA SILVA:

“Consiste (o direito à existência) no direito de estar vivo, de lutar pelo viver, de defender a própria vida, de permanecer vivo. É o direito de não ter interrompido o processo vital senão pela morte espontânea e inevitável. Existir é o movimento espontâneo contra o estado morte. Porque se assegura o direito à vida é que a legislação penal pune todas as formas de interrupção violenta do processo vital. É também por essa razão que se considera legítima a defesa contra qualquer agressão à vida, bem como se reputa legítimo até mesmo tirar a vida a outrem em estado de necessidade de salvação da própria.Tentou-se incluir na Constituição o direito a uma existência digna. Esse conceito de existência digna consubstancia aspectos generosos de natureza material e moral; serviria para fundamentar o desligamento de equipamentos médicos-hospitares, nos casos em que o paciente estivesse vivendo artificialmente (mecanicamente), a prática da eutanásia, mas trazia implícito algum risco como, por exemplo, autorizar a eliminação de alguém portador de deficiência de tal monta que

20 MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 15ª ed. São Paulo: Atlas, 2004, pág. 65-66.21 DA SILVA. José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998, págs. 200-201.

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se viesse a concluir que não teria existência humana digna. Por esses riscos, talvez tenha sido melhor não acolher o conceito.”22

Outro não é o entendimento do jurista francês JACQUES ROBERT:

“O respeito à vida humana é a um tempo uma das maiores idéias de nossa civilização e o primeiro princípio da moral médica. É nele que repousa a condenação do aborto, do erro ou da imprudência terapêutica, a não-aceitação do suicídio. Ninguém terá o direito de dispor da própria vida, a fortiori da de outrem e, até o presente, o feto é considerado com um ser humano.”23

Devo argumentar, de outro lado, que o direito fundamental à vida humana deve ser considerado um direito universal quase que absoluto, não podendo ser relativizado e/ou flexibilizado para atender a culturas regionais religiosas e/ou fundamentalistas. Creio que o conceito de direitos fundamentais cunhado por estudos produzidos no acidente, sobretudo para combater as visões do conceito à luz da teoria do relativismo cultural, não autoriza o discurso utilizado para garantir um direito fundamental extremado por uma interpretação religiosa e/ou cultural em detrimento da vida humana. Isto é, à luz da doutrina universalista dos direitos humanos, não é possível que cada cultura – ou ramo dela, tal qual uma religião – tenha liberdade para estabelecer tratamentos prioritários aos direitos fundamentais, segundo suas convicções, crenças e doutrinas. Confira-se, a propósito da discussão acima referida, a doutrina de FLAVIA PIOVESAN:

“Para os relativistas, a noção de direitos está estritamente relacionada ao sistema político, econômico, cultural, social e moral vigente em determinada sociedade. Neste prisma, cada cultura possui seu próprio discurso acerca dos direitos fundamentais, que está relacionado às específicas circunstâncias culturais e históricas de cada sociedade. Neste sentido, acreditam os relativistas, o pluralismo cultural impede a formação de uma moral universal, tornando-se necessário que se respeite as diferenças culturais apresentadas por cada sociedade, bem como seu peculiar sistema moral. A título de exemplo, bastaria citar as diferenças de padrões morais e culturais entre o islamismo e o hinduísmo e o mundo ocidental, no que tange ao movimento de direitos humanos. Como ilustração, caberia mencionar a adoção da prática de clitorectomia e mutilação feminina por muitas sociedades da cultura não ocidental.

Na percepção de Jack Donelly: “Nós não podemos passivamente assistir a atos de tortura, desaparecimento, detenção e prisão arbitrária, racismo, anti-semitismo, repressão a sindicatos e igrejas, miséria, analfabetismo, doenças, em nome da diversidade ou respeito a tradições culturais. Nenhuma dessas práticas merece o nosso respeito, ainda que seja considerada tradição.” (Universal rights in theory and practice, Ithaca, Cornell University Press, 1989, p.235).

22 Idem. Págs. 201-202.23 ROBERT, Jacques. Libertés Publiques. Paris, Éditions Monchréstien, 1971, pág. 234. Apud José Afonso da Silva. Ob cit. Pág. 201

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Nas lições de R.J.Vincent: “O que a doutrina do relativismo cultural pretende? Primeiramente, ela sustenta que as regras sobre a moral variam de lugar para lugar. Em segundo lugar, ela afirma que a forma de compreensão dessa diversidade é colocar-se no contexto cultural em que ela se apresenta. E, em terceiro lugar, ela observa que as reivindicações morais derivam de um contexto cultural, que em si mesmo é a fonte de sua validade. Não há moral universal, já que a história do mundo é a história de uma pluralidade de culturas e, neste sentido, buscar uma universalidade, ou até mesmo o princípio de universalidade clamado por Kant, como critério para toda a moralidade, é uma versão imperialista de tentar fazer com que valores de uma determinada cultura sejam gerais. (...) Há uma pluralidade de culturas no mundo e estas culturas produzem seus próprios valores”. Na visão da Jack Donelly, há diversas correntes relativistas: “No extremo, há o que nós denominamos de relativismo cultural radical, que concebe a cultura como a única fonte de validade de um direito ou regra moral. (...) Um forte relativismo cultural acredita que a cultura é a principal fonte de validade de um direito ou regra moral. (...) Um relativismo cultural fraco, por sua vez, sustenta que a cultura pode ser importante fonte de validade de um direito ou regra moral.

Note-se que os instrumentos internacionais de direitos humanos são claramente universalistas, uma vez que buscam assegurar a proteção universal dos direitos e liberdades fundamentais. Daí a noção de expressões como: “todas as pessoas” (ex: “todas as pessoas têm direito à vida e à liberdade”- art.2º da Declaração), “ninguém” (ex: “ninguém poderá ser submetido à tortura”- art.5º da Declaração), dentre outras. Em face disto, ainda que o direito a exercer a própria cultura seja um direito fundamental (inclusive previsto na Declaração Universal), nenhuma concessão é feita às “peculiaridades culturais”, quando há risco de violação a direitos humanos fundamentais”24.

Ademais, apesar de as doutrinas modernas não estabelecerem um conceito apriorístico e determinado do que seja a dignidade humana como valor a guiar a aplicação e interpretação dos direitos fundamentais, mas estabelecerem que no referido conceito está, certamente, a possibilidade de o cidadão ser responsável pelos destinos da sua existência e vida25, creio que tal concepção não pode ser levada ao extremo, sobretudo em um país como o Brasil, dotado de quantidade imensa de

24 PIOVESAN, Flávia. A universalidade e a individualidade dos direitos humanos: desafios e perspectivas. In Direitos Humanos Na Sociedade Cosmopolita. Org. César Augusto Baldi. Rio de Janeiro, 2004, pags. 58/62. Apenas para registro, consta, na mesma obra, trabalho produzido pela Presidente da International Movement for a Jus World (JUST), na Malásia, e “Senior Fellow” da Universidade da Malásia, Dra. Chandra Muzaffar, criticando ferozmente o conceito de Direitos Humanos cunhado pela doutrina ocidental, de modo a impô-lo às demais comunidades do mundo. Destaco, porém, que o principal direito da humanidade é a vida. Confira-se: “Mais do que qualquer direito político, civil, social, cultural ou econômico, a vida é considerada pelo islã como sendo direito supremo. A vida humana, observa a Declaração Universal Islâmica, “é sagrada e inviolável”, e não se devem medir esforços para protegê-la.” (Islã e Direitos Humanos. Ob. Cit. Pag. 314).25 Neste sentido, manifesta-se a doutrina de Ingo Wolfgang Sarlet. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, pags. 38/40 e 60.

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seitas e religiões, com fundamentos dos mais diversos, para permitir que pessoas, muitas das vezes influenciadas por pregações alheias, mas sem profunda convicção de sua real crença e de suas verdades, atente contra a própria vida. Por outro lado, não posso deixar de reafirmar que o corolário maior da dignidade humana é a vida, sem a qual, repita-se, não há falar-se ou justificar-se o exercício de nenhum outro direito para conferir dignidade a um cidadão; até porque se o destinatário da proteção estiver morto, não será possível pretender proteger a dignidade humana.

Na esteira do que acima se sustenta, penso ser oportuna a transcrição da doutrina dos professores da Universidade Federal de Juiz de Fora RODRIGO IENNACO DE MORAES e RODRIGO ESTEVES SANTOS PIRES, em artigo intitulado “Transfusão de sangue em pacientes testemunhas de Jeová: religião, ética e discurso jurídico-penal”:

“Filiamo-nos à corrente dos que vêem, como pressuposto do princípio da dignidade da pessoa humana, a intangibilidade da vida. Estabelecida essa premissa, a ocorrência de iminente perigo de vida se traduz em autorização constitucional para que o médico, independentemente da vontade do paciente (ou de quem o represente), realize a transfusão, quando cientificamente, observada a lex arte, revele-se como o único meio apto a salvar a vida em iminente perigo de perecimento.Liberdade e vida são bens jurídicos positivados constitucionalmente em nível fundamental. Porém, não se lhes empresta, num raciocínio jusnaturalista, a mesma envergadura. Isso se dá porque, embora se reconheça que sem liberdade pode não haver vida digna, sem vida não faz sentido falar-se em liberdade e não há razão para se discutir dignidade. A vida tem valor absoluto, numa escala de valores que precede a positivação ou o reconhecimento jurídico de tutela de quaisquer outros bens ou interesses.(...)Como dito, sem vida não há dignidade, nem liberdade, nem convicção, nada. E se a vida é valor absoluto, toda e qualquer conduta tendente a sua preservação encontra, iniludivelmente, esteio constitucional.(...)E sem que isso implique a negação da própria liberdade de opção pela morte. Não. Implicará, sim, o reconhecimento constitucional de outro viés da própria liberdade, qual seja, o seu e o nosso direito de intervenção, sempre que possível, em favor da vida, de sua preservação, de sua intangibilidade. Se alguém resolve se matar por convicção religiosa, utilizando-se de qualquer meio, que o faça por seus próprios meios e fora da esfera de intervenção daqueles que, também por convicção religiosa, por dever legalmente previsto, ou simplesmente por amor à vida, não se podem curvar passivamente diante de uma vida que, com a utilização dos meios terapêuticos disponíveis (e, frise-se, quando os meios aceitos pelo paciente não se mostrarem eficazes), provavelmente não se ceifaria.É a dignidade da pessoa humana – que tem na existência da vida seu pressuposto inafastável – o valor fundante de toda e qualquer interpretação constitucional dos direitos fundamentais. A dignidade da vida pressupõe a vida. Somente em atenção à

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vida e enquanto ela durar fará sentido a positivação da tutela de sua dignidade”26.

Reforça-se, com isso, a tese de que em juízo de ponderação de valores27 entre o exercício momentâneo de uma crença religiosa que exponha a risco o direito à vida (e de existência) do cidadão e o dever do Estado de, por meio de seus profissionais da saúde (ou mesmo de médicos privados) de garantir a inviolabilidade do direito à vida (e da existência humana, como expressão maior do princípio da dignidade da pessoa humana), deve, a meu sentir, por força do disposto nos artigos 5º, caput, e 196, ambos da CRFB/88, atuar em defesa da vida e da existência humana (valor fundamental universal), até porque a inação do médico, agente do estado ou não, pode representar, para ele, severas punições administrativas, civis e criminais.

Creio que a liberdade de religião e a laicidade do Estado não podem impedir o Poder Público de agir em defesa da vida humana ao ter ciência de que pessoas estão colocando em risco suas próprias vidas – por fundamento religioso – e podem vir a atingir a esfera jurídica de terceiros (no caso deste trabalho, a dos médicos, que acabam ficando em posição de vulnerabilidade caso deixem de atuar).

Como exemplo, penso que é dever do Estado tentar impedir o suicídio de pessoa que sobe no alto de um prédio público e ameace de lá se projetar para o chão, com o argumento de que pecou contra sua doutrina religiosa. Mais: creio não poderá o Estado permanecer indiferente à certeza de que alguém está se mutilando ou se flagelando em ritual religioso, sob o fundamento de que há de se respeitar a liberdade de crença e do exercício dos dogmas da fé. Também não é possível obstar o Estado de atuar contra determinada religião que, a despeito de interpretar escritos históricos religiosos, professa como pena o enforcamento de cidadão que vier a contrariar um de seus dogmas, incitando-os, verdadeiramente.

Sem dúvida, são situações difíceis que se apresentam no liame entre a liberdade de crença e a possibilidade de intervenção estatal decorrente de sua laicidade. A mim me parece que a liberdade religiosa e o desenvolvimento de seus fundamentos devem ser exercidos de modo razoável e proporcional, sobretudo para não sacrificar o maior bem jurídico, tido por fundamental e inviolável, e, por isso, protegido constitucionalmente, que é a vida e a existência humana. Do contrário, penso que a intervenção estatal se faz necessária, até mesmo como medida de garantia da ordem pública. Neste sentido, sobretudo com fundamento nos princípios constitucionais da razoabilidade e proporcionalidade, colha-se decisão proferida pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região:

“Direito à vida. Transfusão de sangue. Testemunhas de jeová. Denunciação da lide indeferida. Legitimidade passiva da união. Liberdade de crença religiosa e direito à vida. Impossibilidade de recusa de tratamento médico quando há risco de vida de menor. Vontade dos pais substituída pela manifestação judicial. O recurso de agravo deve ser improvido porquanto à denunciação da lide se presta para a possibilidade de ação regressiva e, no caso, o que se verifica é a responsabilidade

26 In http://www.direitopenalvirtual.com.br/artigos/leiamais/default.asp?id=13 e http://www.direitopenalvirtual.com.br/artigos/leiamais/default.asp?id=14. Publicado em 13/12/2006.27 A propósito, confira-se a doutrina de Daniel Sarmento: “Vencida a etapa acima referida, defronta-se o intérprete com a constatação de que determinada hipótese é de fato tutelada por dois princípios constitucionais, que apontam para soluções divergentes.Neste caso, ele deve, à luz das circunstâncias concretas, impor ‘compensações’ recíprocas sobre os interesses protegidos pelos princípios em disputa, objetivando lograr um ponto ótimo, onde a restrição a cada interesse seja a mínima indispensável à sua convivência com o outro.” (SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2000, pág. 102).

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solidária dos entes federais, em face da competência comum estabelecida no art. 23 da Constituição federal, nas ações de saúde. A legitimidade passiva da União é indiscutível diante do art. 196 da Carta Constitucional. O fato de a autora ter omitido que a necessidade da medicação se deu em face da recusa à transfusão de sangue, não afasta que esta seja a causa de pedir, principalmente se foi também o fundamento da defesa das partes requeridas. A prova produzida demonstrou que a medicação cujo fornecimento foi requerido não constitui o meio mais eficaz da proteção do direito à vida da requerida, menor hoje constando com dez anos de idade. Conflito no caso concreto dois princípios fundamentais consagrados em nosso ordenamento jurídico-constitucional: de um lado o direito à vida e de outro, a liberdade de crença religiosa. A liberdade de crença abrange não apenas a liberdade de cultos, mas também a possibilidade de o indivíduo orientar-se segundo posições religiosas estabelecidas. No caso concreto, a menor autora não detém capacidade civil para expressar sua vontade. A menor não possui consciência suficiente das implicações e da gravidade da situação pata decidir conforme sua vontade. Esta é substituída pela de seus pais que recusam o tratamento consistente em transfusões de sangue. Os pais podem ter sua vontade substituída em prol de interesses maiores, principalmente em se tratando do próprio direito à vida. A restrição à liberdade de crença religiosa encontra amparo no princípio da proporcionalidade, porquanto ela é adequada à preservar à saúde da autora: é necessária porque em face do risco de vida a transfusão de sangue torna-se exigível e, por fim ponderando-se entre vida e liberdade de crença, pesa mais o direito à vida, principalmente em se tratando não da vida de filha menor impúbere. Em conseqüência, somente se admite a prescrição de medicamentos alternativos enquanto não houver urgência ou real perigo de morte. Logo, tendo em vista o pedido formulado na inicial, limitado ao fornecimento de medicamentos, e o princípio da congruência, deve a ação ser julgada improcedente. Contudo, ressalva-se o ponto de vista ora exposto, no que tange ao direito à vida da menor.” (AC 200371020001556 - Terceira Turma do TRF-4 – Relatora Desembargadora Federal VÂNIA HACK DE ALMEIDA - DJ 01/11/2006 PÁGINA: 686)

Ainda sobre o dever de respeito do conteúdo e alcance da liberdade de religião, da laicidade do Estado e do exercício das convicções religiosas por um cidadão, desde que de forma razoável, colham-se as lições pertinentes do constitucionalista português JORGE MIRANDA:

“A liberdade religiosa não consiste apenas em o Estado a ninguém impor qualquer religião ou a ninguém impedir de professar determinada crença. Consiste ainda, por um lado, em o Estado permitir ou propiciar a quem seguir determinada religião o cumprimento dos deveres que dela decorrem (em matéria de culto, de família ou de ensino, por exemplo) em termos razoáveis. E consiste, por outro lado (e sem que haja

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qualquer contradição), em o Estado não impor ou não garantir com as leis o cumprimento desses deveres.”28).

Com efeito, e com a licença devida dos que pensam em sentido contrário, penso que não é razoável, à luz dos artigos 5º, caput, e 196, ambos da CRFB/88, que uma pessoa se dirija a um hospital público (ou privado) para receber tratamento médico, isto é, para buscar cura ao mal que lhe aflige, e, sob os argumentos de privacidade, autonomia da vontade e objeção de crença religiosa, imponham o não agir a um médico, impedindo-o de cumprir com sua missão maior que é a de salvar vidas valendo-se das técnicas médicas disponíveis, bem assim expondo-o à sorte de experimentar conseqüências civis (com ações indenizatórias e/ou ações regressivas do Poder Público caso seja o Estado condenado pela omissão médica29), administrativas perante o Conselho de Medicina respectivo e também perante as Comissões Disciplinares do Poder Público a que estiver vinculado, na hipótese de médicos servidores públicos, e penais30, caso se entenda presente delitos penais, tal como omissão de socorro. O meio empregado para conferir, eventualmente, efetividade ao direito fundamental à liberdade de crença religiosa sacrifica o bem jurídico maior tutelado pela CRFB/88, que é a vida. A opção do Testemunha de Jeová viola, assim, o princípio da razoabilidade, na vertente dos subprincípios da necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.31

Não fossem os argumentos acima suficientes para, em minha modesta opinião, em juízo de ponderação de interesses, afastar o exercício do direito à crença religiosa e o direito à autonomia da vontade frente ao valor universal do direito à vida, cujo dever de proteção é do Estado, cabe trazer à colação estudo realizado por MARIA HELENA DINIZ, que, após discutir acerca dos bens jurídicos que devem prevalecer na hipótese de recusa de transfusão de sangue por pessoas seguidoras da seita Testemunhas de Jeová, se posicionou favoravelmente à intervenção médica 28 JORGE MIRANDA. Manual de Direito Constitucional. Tomo IV. 2ª ed. Editora Coimbra, 1998, pg.35929 Devo registrar que entendo não existir responsabilidade civil do Estado na hipótese de o médico, agente público, não considerar a decisão do Testemunha de Jeová e, para salvar sua vida, impor-lhe a transfusão de sangue. Em primeiro lugar porque a conduta do médico não é ilícita, nos termos da fundamentação apresentada neste trabalho, estando, inclusive, autorizada pelo Código Penal. Ademais, o médico estaria agindo no exercício regular de sua profissão e de um direito, fazendo, por isso, incidir a regra do artigo 188, I, do Código Civil. E, por fim, não há falar-se, a meu sentir, em dever de indenizar do Estado por ato lícito, uma vez que tal hipótese é admitida de forma excepcional pela doutrina, somente na hipótese de o ato, nada obstante em conformidade com a Constituição e com as leis, importar para uma pessoa e/ou para um grupo de pessoas sacrifício manifestamente irrazoável e desproporcional de direitos.30 A propósito de possíveis efeitos penais ao médico que se omitir no dever de proceder à transfusão de sangue em pessoas que estejam correndo iminente perigo de morte, necessário informar que o STJ, quando do julgamento do RHC 199800517561, entendeu existir justa causa para o recebimento da denúncia:“Processual Penal. "HABEAS CORPUS". Ação Penal. Trancamento. Falta de justa causa. 1. A justa causa, apta a impor o trancamento da ação penal, é aquela perceptível "ictu oculi", onde a ilegalidade é patente e evidenciada pela simples enunciação dos fatos a demonstrar ausência de qualquer elemento indiciário que dê base à acusação. 2. Impossível a verificação da existência ou não de crime na via estreita do "habeas corpus" em razão da necessidade de análise aprofundada de provas. 3. RHC improvido.Indexação: descabimento, trancamento de ação penal, homicidio, reu, medico, testemunha de jeova, responsabilidade, impedimento, transfusão de sangue, hipotese, denuncia, descrição, crime em tese, inexistencia, prova inequivoca, atipicidade, conduta, falta de justa causa, necessidade, dilação probatoria”. (rhc - recurso ordinario em habeas corpus – 7785. 6ª Turma do STJ. Rel. Ministro Fernando Gonçalves. DJ DATA: 30/11/1998 PG:00209 RTJE VOL.:00169 PG:00285)31 A razoabilidade tem sido entendida como decorrência do princípio do devido processo legal, conforme já pontificou o próprio Supremo Tribunal Federal (ADIN’s 855-2 e 1158-8). Pela noção de razoabilidade deve o agente público pautar sua conduta em padrões aceitáveis do ponto de vista da lógica do razoável, atentando-se para três requisitos: (i) Adequação – em que se analisa a aptidão dos meios empregados para atingir as finalidades desejadas pelo administrador público; isto é, a medida tomada tem de ser adequada para atingir a finalidade perquirida; (ii) Necessidade – por este requisito analisa-se se, dentre os diversos atos possíveis para atingir a finalidade, o que foi escolhido pelo administrador público é o menos gravoso para atendimento dos fins visados; e (iii) Proporcionalidade em sentido estrito – a partir deste requisito analisa-se se a conduta administrativa impõe à sociedade, à luz do estado de coisas vigentes antes de sua adoção, ônus equivalente ao benefício a que se visa proporcionar.

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forçada, com o intuito de salvaguardar o bem jurídico vida, que, em sua opinião, não possui dimensão unicamente singular, mas sim coletiva, vez que sua existência e preservação importa conseqüências em várias pessoas que estão ao seu redor. Confira-se a lição da referida jurista:

“Sendo urgentes e inadiáveis o tratamento médico, a intervenção cirúrgica e a transfusão de sangue não consentida, prevalecem diante da ciência, do valor da vida do paciente e do interesse da comunidade, pois a vida é um bem coletivo, que interessa mais à sociedade do que ao indivíduo. Não se pode, portanto, submeter o médico à vontade do doente ou à de seus familiares, porque isso equivaleria a transformá-lo num simples locador de serviços. Acreditamos que o médico, por seu sentido ético e consciência profissional, deve até mesmo correr o risco pessoal imposto por certas circunstâncias, porque sua profissão é a de socorrer; pessoas, resguardando-lhes a vida e a saúde. Sua missão é proteger a saúde, logo, seus conhecimentos e sua consciência voltam-se para o cumprimento dessa tarefa (Declaração de Helsinque). A questão da saúde tem natureza ético-política por referir-se à opção entre o respeito ou o desrespeito pelo ser humano.O Conselho Regional de Medicina de São Paulo,em 1974, deliberou que: a) se paciente grave, inconsciente e desacompanhado de familiares precisar de transfusão de sangue,ela deve ser feita sem demora; b) se paciente grave, inconsciente e acompanhado de parente que impeça a transfusão, o médico deve esclarecê-lo de sua necessidade e, havendo relutância, recorrer à autoridade policial e judicial; e c) se paciente lúcido se negar à transfusão, deve assinar termo de responsabilidade perante autoridade policial ou judicial,e o médico deve tentar tratamento alternativo.Todavia, cremos que o médico não precisa de autorização policial ou judicial para efetuar a transfusão de sangue, mesmo não autorizada pelo paciente ou familiares, diante de um iminente perigo de vida, por ser seu dever legal salvar vidas humanas, porque isso o levaria a uma espera, que poderia ocasionar pratica do crime de omissão de socorro (CP, art. 135; Código de Ética Médica, arts. 1, 2, 6, 7, 16, 35 e 57). A missão do médico é minimizar o sofrimento humano e resguardar a vida e a saúde, bens supremos da pessoa, sujeitando-se à tutela estatal, pois a Constituição, em seu art. 196, consagra a saúde como direito de todos e dever do Estado. Deveras, Leonídio Ribeiro (citado por Hermes Rodrigues Alcântara In Deontologia e dicologia, São Paulo, ed. Andrei, 1979) pondera: “a única profissão que confere aos que exercem o direito de decidir sobre os destinos de uma vida humana em perigo é a medicina, por isso mesmo, os textos das leis penais e os dispositivos dos Códigos de Éticas são muito rigorosos, quando se trata de punir os danos causados pelos clínicos a seus clientes, sempre que ficar comprovado que eles cometeram erros ou praticaram faltas por negligências, imperícias ou imprudência, no exercício nobre da arte de curar”. Respondem os médicos civilmente

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pelos danos que, no exercício de sua profissão, causem aos seus pacientes. Além disso, há desnecessidade de autorização judicial para cirurgia e transfusão de sangue em paciente necessitado que se recusa à prática desse ato por questão religiosa, por ser isso do estrito cumprimento do dever legal do médico (TJSP, 6ª Câm. De Direito Privado, AC 264.210-1, Suzano, Rel. Testa Marchi, j. 1º-8-1996, v.u.)”32

Ainda de forma mais específica, vez que enfrentou o tema à luz dos hospitais públicos, a Procuradora do Estado do Distrito Federal ROBERTA FRAGOSO MENEZES KAUFMANN se posicionou pela necessidade de intervenção médica para transfusão de sangue, quando iminente o perigo de morte do paciente, independentemente da manifestação religiosa do paciente. Confira-se:

“A hipótese relativa à colisão entre o direito à vida e a liberdade religiosa nos remete a uma análise, ainda que perfunctória, acerca da relativização dos direitos fundamentais. Isto porque, na espécie, estar-se-ia diante de uma colisão de princípios igualmente relevantes no Ordenamento Jurídico, de estatura constitucional.(...)Impende enfatizar, por oportuno, que a renúncia a direitos fundamentais também não se revela absoluta e não pode significar a opção pela morte, sob a responsabilidade do Estado. Tal fato se revela de importância lapidar quando se está diante de situação na qual o paciente submeteu-se, voluntariamente, à tutela estatal, internando-se em hospital público. Nesses termos, o Estado se vincula, por meio do seu dever de proteção, a salvar a vida da paciente, ou a empreender todos os meios possíveis para tal mister. (...)Assim, conclui-se no sentido de que o iminente perigo de vida justifica, plenamente, a existência do estado de necessidade, de modo que a transfusão de sangue deverá ser efetivada, em tais hipóteses. O Poder Público, na medida em que recebe os cidadãos na rede pública hospitalar, assume o importante compromisso de velar pela integridade física dos pacientes, devendo empregar todos os meios necessários ao completo desempenho desse encargo. Em outras palavras: na medida em que tais pacientes ingressam em hospital estatal, relegam a segundo plano a autonomia de decidir e acatam, ainda que de maneira tácita, a conformação dos seus direitos fundamentais pela necessidade estatal de zelar pela sua vida”33.

Outra não parece ser a lição de NELSON NERY JÚNIOR, vez que afirma: “no choque entre direitos fundamentais (vida x liberdade), a opção do legislador é a de prestigiar a vida que corre

32 DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. São Paulo: Saraiva, 2001, p.21333 KAUFMANN, Roberta Fragoso Menezes. Colisão de direitos fundamentais: o direito à vida em oposição à liberdade religiosa. O caso dos pacientes testemunhas de Jeová internados em hospitais públicos. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1455, 26 jun. 2007. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10071>. Acesso em: 10 jan. 2010. A referida Autora é mestre em Direito pela UNB e ex-assessora do Ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal

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perigo. A predominância do valor norteia a ação de quem se encontra, v.g., por dever legal, na contingência de proceder manobras médicas para salvar o que carece de tratamento médico ou de intervenção cirúrgica imediata”.34

Nada obstante as notícias de julgamentos referidas no parecer que ora me manifesto em divergência35, é preciso alertar que os Tribunais do Pais vêm enfrentando a questão jurídica aqui debatida com cautela e, na grande maioria dos casos, decidindo pela licitude da conduta médica que se opõe à crença religiosa de uma pessoa para, no intuito de salvar a vida que está em iminente perigo de fenecimento, obrigar-lhe a receber transfusão de sangue.

A propósito, confira-se decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro:

Agravo de Instrumento. Tutela Antecipada. Testemunha de Jeová. Recusa à transfusão de sangue. Risco de vida. Prevalência da proteção a esta sobre a saúde e a convicção religiosa, mormente porque não foi a agravante, senão seus familiares, que manifestaram a recusa ao tratamento. Asseveração dos responsáveis pelo tratamento da agravante, de inexistir terapia alternativa e haver risco de vida em caso de sua não realização. Recurso desprovido”. (Agravo de Instrumento nº 2004.002.13229 – 18ª Câmara Cível do TJRJ. Rel. Des. CARLOS EDUARDO PASSOS - Julgamento: 05/10/200436)

Importante, a meu sentir, transcrever trecho do voto acima referido, da lavra do eminente Desembargador FONSECA PASSOS:

“(...)Por fim, não obstante o respeito à convicção religiosa de cada um, entre os dois bens jurídicos tutelados, prevalece a vida sobre a liberdade ...(...)”.

No mesmo sentido, seguem decisões do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

“Cautelar. Transfusão de sangue. Testemunhas de Jeová. Não cabe ao Poder Judiciário, no sistema jurídico brasileiro, autorizar altas hospitalares e autorizar ou ordenar tratamentos médico-cirúrgicos e/ou hospitalares, salvo casos excepcionalíssimos e salvo quando envolvidos os interesses de menores. Se iminente o perigo de vida, é direito e dever do médico empregar todos os tratamentos, inclusive cirúrgicos, para salvar o paciente, mesmo contra a vontade deste, de seus familiares e de quem quer que seja, ainda que a oposição seja ditada por motivos religiosos. Importa ao médico e ao hospital é demonstrar que utilizaram a ciência e a técnica apoiadas em séria literatura médica, mesmo que haja divergências quanto ao

34 NERY JUNIOR, Nelson. Código Civil Anotado. 2ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, pag. 160.35 Devo confessar fiquei curioso sobre os destinos do processo referido no Parecer do ilustre Procurador do Estado Gustavo Binenbojm (item 23), quando informou que o Juiz André Nicolitt, no Plantão Judiciário, negou pedido formulado pela Casa de Saúde e Maternidade Joari, para realizar transfusão de sangue em paciente, de 81 anos de idade, que se recusou ao tratamento por ser Testemunha de Jeová. Em pesquisa no sítio do TJRJ (www.tj.rj.jus.br - processo nº 2009.205.025742-5) constatei que o processo foi extinto, sem resolução do mérito, por perda superveniente de objeto, em decorrência do óbito do paciente.36 Deve-se registrar que ficou vencido o Desembargador Marco Antonio Ibrahim.

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melhor tratamento. O judiciário não serve para diminuir os riscos da profissão médica ou da atividade hospitalar. Se a transfusão de sangue for tida como imprescindível, conforme sólida literatura médico-científica (não importando naturais divergências), deve ser concretizada, se para salvar a vida do paciente, mesmo contra a vontade das Testemunhas de Jeová, mas desde que haja urgência e perigo iminente de vida (art. 146, §3°, inc. I, do CP). Caso concreto em que não se verifica tal urgência. O direito à vida antecede o direito à liberdade, aqui incluída a liberdade de religião; é falácia argumentar com os que morrem pela liberdade, pois aí se trata de contexto fático totalmente diverso. Não consta que morto possa ser livre ou lutar pela sua liberdade. Há princípios gerais de ética e de direito, que aliás norteiam a Carta das Nações Unidas, que precisam se sobrepor às especificidades culturais e religiosas; sob pena de se homologarem as maiores brutalidades; entre eles estão os princípios que resguardam os direitos fundamentais relacionados com a vida e a dignidade humanas. Religiões devem preservar a vida e não exterminá-la”. (Ap. Cív. 595.000.373, julgada pela 6ª Câm. Civ. do TJRS, Rel. Des. Sérgio Gischkow Pereira, em 28.03.1995, publicado na RJTJRS 171, p. 384 et seq.)“Apelação Cível. Transfusão de Sangue. Testemunha de Jeová. Recusa de Tratamento. Interesse em Agir.Carece de interesse processual o hospital ao ajuizar demanda no intuito de obter provimento jurisdicional que determine à paciente que se submeta à transfusão de sangue.Não há necessidade de intervenção judicial, pois o profissional de saúde tem o dever de, havendo iminente perigo de vida, empreender todas as diligências necessárias ao tratamento da paciente, independentemente do consentimento dela ou de seus familiares. Recurso desprovido”. (Apelação Cível n. Nº 70020868162-2007/Cível - TJRS- 5ª Câmara Cível , Relator Desembargador DES. UMBERTO GUASPARI SUDBRACK julg. 22-08-07).

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo trilhou o mesmo caminho:

“Testemunhas de Jeová. Necessidade de transfusão de sangue, sob pena de risco de morte, segundo conclusão do médico que atende o paciente. Recusa dos familiares com apoio na liberdade de crença. Direito à vida que se sobrepõe aos demais direitos.Sentença autorizando a terapêutica recusada. Recurso desprovido”. (Apelação Com Revisão 1327204900 – Relator Des. Boris Kauffmann - Quinta Câmara de Direito Privado de Férias - julg. 26/06/2003 - Data de registro: 10/07/2003)

“Ementa: Indenizatória - Reparação de danos - Testemunha de Jeová - Recebimento de transfusão de sangue quando de sua internação – Convicções religiosas que não podem, prevalecer perante o bem maior tutelado peta Constituição federal que é a

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vida - Conduta dos médicos, por outro lado, que pautou-se dentro da lei e ética profissional, posto que somente efetuaram as transfusões sangüíneas após esgotados todos os tratamentos alternativos - Inexistência, ademais, de recusa expressa a receber transfusão de sangue quando da internação da autora — Ressarcimento, por outro lado, de despesas efetuados com exames médicos, entre outras, que não merece acolhido, posto não terem sido os valores despendidos pela apelante - Recurso improvido.” (Apelação Com Revisão 1234304400 3ª Câmara de Direito Privado do TJSP – Relator Des. Flavio Pinheiro – data do registro 18/06/2002)

Penso ainda ser necessário um último argumento em prol da licitude da conduta do médico que, na iminência de fenecimento da vida, impõe a uma pessoa, mesmo que contra a sua crença religiosa, determinado tratamento. O Código Penal Brasileiro, no artigo 146, estabelece claramente que tal situação de fato não constitui crime contra a liberdade individual, excluindo a antijuridicidade ou a tipicidade da conduta. Confira-se:

“Dos Crimes Contra a Liberdade IndividualArt. 146 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda:Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa.Aumento de pena§ 1º - As penas aplicam-se cumulativamente e em dobro, quando, para a execução do crime, se reúnem mais de três pessoas, ou há emprego de armas.§ 2º - Além das penas cominadas, aplicam-se as correspondentes à violência.§ 3º - Não se compreendem na disposição deste artigo:I - a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida;II - a coação exercida para impedir suicídio”.

Conforme se percebe, a legislação penal brasileira propõe, ainda que implicitamente, o dever do médico de proceder à intervenção médica sempre que a vida do paciente estiver correndo perigo, o que, a meu sentir, inclui a hipótese de transfusão de sangue sem o consentimento do paciente por motivação de crença religiosa.

Penso serem cabíveis últimas considerações acerca do problema, notadamente quando envolver crianças e adolescentes menores de idade.

Não fossem os fundamentos acima desenvolvidos suficientes para legitimar a necessidade da intervenção médica – transfusão de sangue - também às crianças e adolescentes filhos de pessoas seguidoras da religião Testemunhas de Jeová – ou mesmo convertidas à referida religião por vontade própria, como decorrência de sua possível “maturidade” -, penso devam ser analisadas as regras jurídicas traçadas pela Lei Federal nº 8.069/90 - Estatuto da Criança e dos Adolescentes (ECA).

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A Lei Federal nº 8.069/90 garantiu às crianças e adolescentes, como não poderia deixar de ser, o direito à liberdade de crença e religião (artigo 16, inciso III37). Todavia, nos artigos 7º e 11, o ECA normatiza, tal qual o fez a CRFB/88, que toda criança e adolescente têm o direito à proteção integral à saúde e à vida38.

Ora bem, se assim é, creio que com mais razão deve o médico público (ou privado) adotar todas as técnicas e meios disponíveis para salvar a vida de uma criança ou de um adolescente, inclusive transfusão de sangue, se necessário e indispensável, independentemente de sua vontade e/ou de seus responsáveis, fundadas em crenças religiosas ou não, conferindo, assim, efetividade ao princípio da proteção integral do menor previsto no artigo 11 acima referido.

CONCLUSÃO

Em razão das considerações acima expostas, mais uma vez pedindo vênia ao ilustre Procurador do Estado do Rio de Janeiro Dr. Gustavo Binenbojm, espero ter bem fundamentado os motivos pelos quais divergi das conclusões apresentadas pelo Parecer nº 09/2009-GUB, salientando tratar-se de questão jurídica difícil e de altíssima indagação.

Nada obstante, estou convencido, à luz das regras constitucionais, legais e regulamentares antes mencionadas, de que os médicos do Estado do Rio de Janeiro, diante de pessoas, maiores ou menores de idade, seguidoras da religião Testemunhas de Jeová e por isso recusam tratamento médico que envolva transfusão de sangue (ou de seus derivados), devem procurar atender à manifestação de crença e religião dos pacientes, empreendo, para tanto, todos os esforços e conhecimento técnicos, salientando, porém, que se não houver alternativa para salvar a vida humana, deve a transfusão de sangue ser realizada, ainda que contra o consentimento do doente, expressado de forma verbal e/ou por escrito.

Penso que cabe ao paciente, Testemunha de Jeová, caso entenda por bem fazer valer a sua crença religiosa frente ao direito fundamental à vida, cujo dever de proteção compete primeiramente ao Estado, buscar decisão judicial que ampare a sua autonomia da vontade.

Sugiro, por fim, sejam todos os médicos e responsáveis pelas unidades de saúde do Estado do Rio de Janeiro, por intermédio da Secretaria Estadual de Saúde e da PG-11, informados da orientação jurídica a ser traçada pela Procuradoria-Geral do Estado.

De igual modo, sugiro sejam encaminhadas cópias da orientação jurídica a ser traçada pela Procuradoria-Geral do Estado ao Ministério Público, à Defensoria Pública, Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, ao Conselho Federal de Medicina e ao Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro.

É como me parece a questão, salvo melhor juízo.Submeto, porém, o caso à deliberação superior da Exma. Sra. Procuradora-Geral do

Estado.

Rio de Janeiro, 15 de janeiro de 2010.

FLÁVIO DE ARAÚJO WILLEMAN

37 “Art. 16. O direito à liberdade compreende os seguintes aspectos:(...)III - crença e culto religioso.”38 “Art. 7º A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência”.“Art. 11. É assegurado atendimento integral à saúde da criança e do adolescente, por intermédio do Sistema Único de Saúde, garantido o acesso universal e igualitário às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde.”

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Procurador do Estado do Rio de JaneiroChefe da Procuradoria de Serviços Públicos

LEGITIMIDADE DA RECUSA DE TRANSFUSÃO DE SANGUE POR TESTEMUNHAS DE JEOVÁ. DIGNIDADE HUMANA, LIBERDADE RELIGIOSA E ESCOLHAS

EXISTENCIAIS39

39 Trabalho desenvolvido com a colaboração de pesquisadores do Instituto Ideias, notadamente o doutorando Eduardo Mendonça e o mestrando Thiago Magalhães Pires. Agradeço a ambos pela contribuição valiosa. Sou grato, igualmente, à Professora Ana Paula de Barcellos, pela leitura atenta e sugestões importantes. O texto se beneficia, muito intensamente, de minha interlocução com Letícia de Campos Velho Martel, de quem fui orientador de doutorado, bem como da pesquisa e das ideias materializadas em sua tese Direitos fundamentais indisponíveis – os limites e os padrões de consentimento para a autolimitação do direito fundamental à vida, mimeografado, 2010, defendida no âmbito do Programa de Direito Público da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e aprovada com nota máxima.

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Ementa: 1. A liberdade de religião é um direito fundamental, uma das liberdades básicas do indivíduo, constituindo escolha existencial que deve ser respeitada pelo Estado e pela sociedade. 2. A recusa em se submeter a procedimento médico, por motivo de crença religiosa, configura manifestação da autonomia do paciente, derivada da dignidade da pessoa humana. 3. A gravidade da recusa de tratamento, sobretudo quando presente o risco de morte ou de grave lesão, exige que o consentimento seja genuíno, o que significa dizer: válido, inequívoco, livre e informado.

I. A HipóteseParte I

Fundamentos teóricos

I. Do paternalismo médico à autonomia do pacienteII. A dignidade da pessoa humana e suas possibilidades de sentido1. Generalidades2. A dignidade humana como autonomia3. A dignidade humana como heteronomiaIII.O exercício de direitos fundamentais: restrições legítimas e possibilidades de

disposição1. A preferência relativa da dignidade como autonomia na Constituição brasileira2. A questão da indisponibilidade dos direitos fundamentaisIV. Os elementos em aparente conflito: valor da vida humana e liberdade de religião1. A vida como direito fundamental e como valor objetivo2. A liberdade religiosa

Parte IIAplicação dos fundamentos teóricos à hipótese examinada

V. Legitimidade da recusa de tratamento médico por fundamento religiosoVI. Condições para o exercício válido da autonomiaVII. Interpretação adequada dos enunciados legais e ético-profissionais pertinentes1. Código Civil2. Código Penal3. O novo Código de Ética Médica

Conclusão

I. A hipótese

1. Trata-se de consulta formulada pela Excelentíssima Senhora Procuradora-Geral do Estado do Rio de Janeiro, Dra. Lúcia Léa Guimarães Tavares, acerca da atitude a ser tomada pelos médicos do Estado em face da recusa de determinados pacientes, testemunhas de Jeová, a receber transfusão de sangue e hemoderivados, por fundamentos religiosos. Ao que noticia o processo administrativo respectivo, o problema tem se repetido com frequência no Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE), motivando o encaminhamento da matéria a esta Procuradoria por parte do Diretor Jurídico da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, Professor Maurício Mota, com pedido de elaboração de parecer normativo.

2. Distribuído o processo à Procuradoria de Serviços Públicos, foi oferecido parecer pelo

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Procurador Gustavo Binenbojm, que se manifestou favoravelmente ao direito de recusa de tratamento40. Submetido à aprovação superior, o parecer recebeu visto divergente do Procurador-Chefe, Flávio de Araújo Willeman, que não reconheceu o direito de recusa de transfusão de sangue por parte de pacientes testemunhas de Jeová41. A divergência de opiniões apenas confirma a complexidade do tema, que suscita debates jurídicos, morais e religiosos em diferentes partes do mundo.

3. O presente estudo será desenvolvido na conformidade do roteiro apresentado no início. Na primeira parte, dedicada aos fundamentos teóricos relevantes para o deslinde da questão, analisa-se a mudança de paradigma na ética médica e exploram-se os sentidos possíveis da ideia de dignidade da pessoa humana, bem como o conteúdo dos dois principais direitos fundamentais que concorrem na hipótese: o direito à vida e a liberdade religiosa. Na segunda parte, faz-se a aplicação das categorias teóricas à situação específica em exame, para concluir que a dignidade da pessoa humana, na sua dimensão de autonomia privada do indivíduo, confere legitimidade à decisão de recusa de tratamento médico por fundamento religioso. Impõem-se, todavia, algumas condições para que a manifestação de vontade nesse sentido possa ser considerada como um consentimento genuíno.

4. A seguir, as razões de meu convencimento.

Parte IFundamentos teóricos

I. Do paternalismo médico à autonomia do paciente

5. Até meados do século XX, as relações entre médicos e pacientes seguiam o que se

40 Após anotar que o paradigma do paternalismo médico vem sendo substituído pela autonomia do paciente, destacou o parecerista, em síntese, que: (i) o item nº 2 da Resolução CFM nº 1.021/80 deve ser visto como “expressão atávica do paternalismo ou beneficência médica”, na medida em que deixa de respeitar a vontade do paciente quando há risco de morte; (ii) a objeção de consciência das testemunhas de Jeová corresponde ao exercício da autonomia privada do indivíduo, materializada nos direitos fundamentais à privacidade – autodeterminação no plano das escolhas privadas –, ao próprio corpo e à liberdade religiosa; (iii) não cabe ao médico substituir-se a um paciente maior, capaz e informado para reavaliar sua escolha existencial; (iv) o direito à diferença exige do Estado que tolere e proteja posições jurídicas, ainda que consideradas exóticas pelos demais; (v) a decisão do paciente, que se recusa a receber tratamento, é autoexecutória em relação ao médico, na medida em que se funda diretamente nos direitos fundamentais envolvidos, de modo que não se exige a judicialização do tema; e, a despeito de a consulta não abranger o ponto, (vi) no caso de a recusa dizer respeito à saúde de menor de idade, sua manifestação de vontade poderia ser submetida ao Poder Judiciário, a fim de se aferir sua maturidade para tomar essa decisão. 41 Segundo o Procurador-Chefe, não seria aceitável que alguém, “sob o fundamento de professar crença religiosa, dentro de um hospital (público ou privado) [possa] impedir o médico de cumprir com sua histórica missão de salvar vidas” (p. 6). Sustenta, em suma, que: (i) a legislação pertinente não faculta às pessoas a disposição da própria vida por razões de ordem religiosa; (ii) as diretivas éticas dos Conselhos de Medicina obrigam os médicos a proceder ao tratamento necessário para salvar a vida do paciente, sem o seu consentimento ou a despeito da sua recusa; (iii) o Código Civil de 2002, “em franca interpretação autêntica da CRFB/88” (p.14), determina a irrenunciabilidade dos direitos da personalidade, bem como a indisponibilidade do corpo humano; (iv) “o direito fundamental à vida humana deve ser considerado um direito universal quase que absoluto, não podendo ser relativizado e/ou flexibilizado para atender a culturas regionais, religiosas e/ou fundamentalistas” (p. 20; destacado no original); (v) o valor da dignidade humana engloba a possibilidade de o ser humano responder pelas suas decisões existenciais, mas “essa concepção não pode ser levada ao extremo, sobretudo em um país como o Brasil, dotado de quantidade imensa de seitas e religiões” (p. 23); (vi) a liberdade religiosa não pode impedir o Estado de “agir em defesa da vida humana ao ter ciência de que pessoas estão colocando em risco as próprias vidas – por fundamento religioso – e podem vir a atingir a esfera jurídica de terceiros”, já que os médicos poderiam estar sujeitos a sanções administrativas, civis e criminais (p. 25; destacado no original); (vii) a liberdade religiosa deve ser exercida de modo razoável e proporcional, e “a opção do Testemunha de Jeová viola (...) o princípio da razoabilidade (...)”, na medida em que sacrifica o seu direito à vida (p. 29; destacado no original); (viii) “a paciente, ao se dirigir ao hospital, optou pela salvação de sua vida, cabendo, portanto, o método e o tratamento final ao médico” (p. 33).

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convencionou chamar de ética hipocrática42. Fundada no princípio da beneficência, ela determinava ao médico que assumisse a postura de “protetor do paciente”, justificando-se qualquer medida destinada a restaurar sua saúde ou prolongar sua vida. Esse paradigma, conhecido como paternalismo médico, legitimava a intervenção do profissional por seus próprios critérios, ainda que sem a anuência do paciente ou contra sua vontade expressa43. O fim da Segunda Guerra Mundial assinala o começo da superação do paradigma do paternalismo. O marco desse movimento foi o Código de Nuremberg44, de 1947, destinado a regular as pesquisas com seres humanos. Fundado no princípio da autodeterminação da pessoa45, o Código estabeleceu o consentimento informado como requisito para a validade ética das experiências médicas46. Essas diretrizes foram posteriormente incorporadas pela Declaração de Helsinki, editada pela Associação Médica Mundial (AMM) em 196447. O modelo estendeu-se, igualmente, às relações médico-paciente.

6. A partir daí, verificou-se uma profunda alteração nos paradigmas da ética médica: o paternalismo e a beneficência deram lugar à autonomia do paciente como fundamento da bioética48. Nesse ambiente, o paciente deixa de ser um objeto da prática médica e passa a ser sujeito de direitos fundamentais. Tais transformações são impulsionadas pelo reconhecimento da dignidade da pessoa humana, que assegura a todas as pessoas o direito de realizar autonomamente suas escolhas existenciais. Daí resulta, como consequência natural, que cabe ao paciente anuir ou não com determinado exame ou tratamento; o médico não pode substituir-se a ele para tomar essa decisão ou

42 Referência ao “Juramento de Hipócrates”, declaração solene tradicionalmente feita pelos formandos em medicina, na qual se comprometem a usar a medicina “para o bem do doente (...),nunca para causar dano ou mal a alguém”. V. http://pt.wikipedia.org/wiki/Juramento_de_Hip%C3%B3crates.43 Heloisa Helena Barboza, A autonomia da vontade e a relação médico-paciente no Brasil, Lex Medicinae – Revista Portuguesa de Direito da Saúde 2:7, 2004: “Desde os tempos de Hipócrates até os nossos dias, busca-se o bem do paciente, ou seja, aquilo que, do ponto de vista da medicina, se considera benéfico para o paciente, sem que esse em nada intervenha na decisão. Esse tipo de relação, apropriadamente denominada paternalista, atribui ao médico o poder de decisão sobre o que é melhor para o paciente. Similar à relação dos pais para com os filhos, foi durante longo tempo considerada a relação ética ideal, a despeito de negar ao enfermo sua capacidade de decisão como pessoa adulta”. V., tb., José Luiz Telles de Almeida, Respeito à autonomia do paciente e consentimento livre e esclarecido , tese de doutoramento apresentada à Fiocruz, mimeografado, 1999, p. 18 e 75; Carmela Salsamendi de Carvalho, Respeito às diferenças (às crenças religiosas): a autonomia do paciente e a oposição dos seguidores da religião “Testemunhas de Jeová” quanto à transfusão sanguínea, Direitos Fundamentais e Democracia 6:7, 2009; Jeovanna Viana Alves, Ensaios Clínicos 8:16, 2003 apud Lydia Neves Bastos Telles Nunes, O consentimento informado na relação médico-paciente: respeitando a dignidade da pessoa humana, Revista Trimestral de Direito Civil 29:101, 2007. 44 O termo “Código de Nuremberg” identifica uma parte da sentença do chamado Julgamento dos médicos (Doctor’s Trial), oficialmente conhecido como United States of America v. Karl Brandt, et al.. Tratou-se de um julgamento por crimes de guerra, realizado por um tribunal militar dos EUA na Alemanha ocupada. Os crimes eram relacionados à experimentação humana durante o regime nazista e vinte dos vinte e três réus eram médicos. V. U.S. National Archives, Records of the United States Nuernberg War Crimes Tribunal: United States of America v. Karl Brandt, et al (Case I) November 21, 1946 – August 20, 1947, 1974. Disponível em: <http://www.archives.gov/research/captured-german-records/microfilm/m887.pdf>. Acesso em: 09.fev.2010. Sobre o caso, v. tb. George G. Annas e Michael A. Grodin, The Nazi doctors and the Nuremberg Code: human rights in human experimentation, 1995, p. 61 e ss..45 Sobre o Código de Nuremberg, Dirce Guilhem e Debora Diniz apontam que os inúmeros experimentos nazistas e “sua ampla divulgação mundial após a Segunda Guerra levaram à elaboração de diretrizes internacionais para a pesquisa científica com pessoas. O objetivo era garantir que princípios dos direitos humanos – em particular a dignidade da pessoa humana e a autonomia da vontade – seriam o ponto de partida de qualquer pesquisa científica envolvendo pessoas. Foi nesse marco da gênese da cultura dos direitos humanos que, em 1947, se elaborou o Código de Nuremberg” (Dirce Guilhem, Debora Diniz, O que é ética em pesquisa, 2008, p. 19). V. tb. Ezekiel J. Emanuel, David Wendler, Christine Grady. What makes clinical research ethical? JAMA: the Journal of the American Medical Association 20:2702, 2008: “(...) the Nuremberg Code was part of the judicial decision condemning the atrocities of the Nazi physicians and so focused on the need for consent and a favorable risk-benefit ratio (…)”.46 Evelyne Shuster, Fifty years later: The significance of the Nuremberg Code, The New England Journal of Medicine 20:1439, vol. 337, 1997.47 Debora Diniz e Marilena Corrêa, Declaração de Helsinki: relativismo e vulnerabilidade, Cadernos de Saúde Pública 3:681-2, 2001.48 Lydia Neves Bastos Telles Nunes, O consentimento informado na relação médico-paciente: respeitando a dignidade da pessoa humana, Revista Trimestral de Direito Civil 29:99-100, 2007.

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impor qualquer espécie de procedimento, ainda que fundado em critérios técnicos49. Antes mesmo do Código de Nuremberg, essa orientação já vinha encontrando acolhida em algumas partes do mundo50. Vale notar, no entanto, que essa nova perspectiva não inverte a equação para sujeitar o médico ao paciente: também o profissional pode se recusar a realizar um procedimento ou a acompanhar um paciente que se recuse a receber tratamento. Dessa forma, preserva-se também o direito do médico de se pautar pelos seus padrões éticos em matéria de cuidado à saúde51.

7. A autonomia, porém, não será real se o consentimento não for genuíno, fruto de uma vontade livre e informada. Isso será tão mais relevante quanto mais graves os efeitos da decisão, como é o caso de recusa de tratamento, com risco de morte. O tema não é desconhecido do direito positivo brasileiro, que o tem disciplinado em questões envolvendo pesquisas clínicas52, assim como em relação aos usuários do sistema em geral. De fato, em 2006, foi aprovada, pelo Ministério da Saúde, a Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde (Portaria nº 675/2006), que disciplina o consentimento ou recusa de procedimentos53, bem como o dever do paciente de assumir a responsabilidade pela decisão tomada54.49 Claus Roxin, A proteção da vida humana através do direito penal. Disponível em: <http://www.buscalegis.ufsc.br/arquivos/C_170707-2.pdf>. Acesso em: 11.fev.2010: “Se o paciente recusa, portanto, a operação que salvaria sua vida, ou a necessária internação numa unidade de tratamento intensivo, deve o médico abster-se de tais medidas e, se for o caso, deixar o paciente morrer. Esta solução é deduzida, corretamente, da autonomia da personalidade do paciente, que pode decidir a respeito do alcance e da duração de seu tratamento”. No mesmo sentido, v. Carmela Salsamendi de Carvalho, Respeito às diferenças (às crenças religiosas): a autonomia do paciente e a oposição dos seguidores da religião “Testemunhas de Jeová” quanto à transfusão sanguínea, Direitos Fundamentais e Democracia 6:9, 2009: “o consentimento livre e esclarecido do paciente ou o seu eventual dissentimento a uma terapia médica resulta do seu direito de autodeterminação, de tomar decisões relativas à sua vida, à sua saúde e à sua integridade físico-psíquica”.50 Nesse sentido foi a decisão da Suprema Corte de Nova York no caso Schloendorff v. Society of New York Hospital, de 1914. Considerado um marco da doutrina da autonomia do paciente, esse caso envolvia um pedido de indenização em face de médico que, sem o consentimento da paciente, procedeu a uma cirurgia de retirada de um tumor abdominal. O pedido foi julgado procedente sob o fundamento não apenas da integridade física do paciente, mas também de seu direito à autodeterminação. Para Manuel Durán, “a decisão do Tribunal de Apelação de Nova York no caso Schloendorff (1914) marca do começo da doutrina segundo a qual a mera intervenção de um médico sem o consentimento do paciente supõe uma agressão (assault), pela qual se pode reclamar legalmente danos (...)” (Manuel Carrasco Durán, Aborto, eutanásia, recusa a tratamento médico e reprodução assistida: Interpretação constitucional e biodireito, Jurisprudência Catarinense 114:34, 2007). Nos termos da decisão: “Todo ser humano de idade adulta e mente sã tem o direito de determinar o que será feito com seu próprio corpo; e o cirurgião que realiza uma operação sem o consentimento do seu paciente comete uma lesão [assault], por cujos danos pode ser responsabilizado” (Schloendorff v. Society of New York Hospital, 211 N.Y. 125, 105 N.E. 92 (1914); tradução livre).51 R. Chua e K. F. Tham, Will no blood kill Jehovah’s Witnesses?, Singapore Medical Journal 47(11):999, 2006: R. Chua e K. F. Tham, Will no blood kill Jehovah’s Witnesses?, Singapore Medical Journal 47(11):999, 2006. Disponível em: <http://www.sma.org.sg/smj/4711/4711me2.pdf>. Acesso em: 12.fev.2010: “(…) é também direito dos médicos não se envolver em algo que considerem como comprometedor dos padrões de cuidado em saúde sem sangue. (...) Se os médicos sentem, por fim, que a recusa à transfusão de sangue vai fazer o procedimento mais difícil, e não querem assumir qualquer risco de um procedimento sem transfusão de sangue depois de pesar os benefícios do procedimento de cura da condição do paciente, eles não devem ser obrigados a realizar o procedimento contra sua consciência e devem ter o direito à objeção de consciência (da mesma forma que outros procedimentos médicos eticamente controvertidos, como a interrupção da gravidez e o tratamento de fertilidade)” (tradução livre).52 V. Resolução CNS nº 196/96, item II.11: “Consentimento livre e esclarecido - anuência do sujeito da pesquisa e/ou de seu representante legal, livre de vícios (simulação, fraude ou erro), dependência, subordinação ou intimidação, após explicação completa e pormenorizada sobre a natureza da pesquisa, seus objetivos, métodos, benefícios previstos, potenciais riscos e o incômodo que esta possa acarretar, formulada em um termo de consentimento, autorizando sua participação voluntária na pesquisa”.53 V. Portaria nº 675/2006, Quarto princípio: “O respeito à cidadania no Sistema de Saúde deve ainda observar os seguintes direitos: (...) V - consentimento ou recusa de forma livre, voluntária e esclarecida, depois de adequada informação, a quaisquer procedimentos diagnósticos, preventivos ou terapêuticos, salvo se isso acarretar risco à saúde pública; VI - o consentimento ou a recusa dados anteriormente poderão ser revogados a qualquer instante, por decisão livre e esclarecida, sem que lhe sejam imputadas sanções morais, administrativas ou legais”.54 V. Portaria nº 675/2006, Quinto princípio: “Todo cidadão deve se comprometer a: (...) V - assumir responsabilidades pela recusa a procedimentos ou tratamentos recomendados e pela inobservância das orientações fornecidas pela equipe de saúde”.

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8. Em suma: o paradigma paternalista deu lugar à autonomia do paciente, nas suas relações com o médico. Ao profissional não se reconhece mais autoridade para impor determinada terapia ou para se substituir ao indivíduo nas decisões essenciais a respeito de sua integridade física e moral. A manifestação de vontade do paciente, no entanto, sobretudo quando importe recusa de tratamento, deve estar cercada de um conjunto de cautelas e exigências.

II. A dignidade da pessoa humana e suas possibilidades de sentido55

1. Generalidades

9. A dignidade da pessoa humana tornou-se, ao final da Segunda Guerra Mundial, um dos grandes consensos éticos do mundo ocidental. Ela é mencionada em incontáveis documentos internacionais, em Constituições, leis e decisões judiciais56. Na Constituição brasileira, a dignidade da pessoa humana vem inscrita como um dos fundamentos da República (art. 1º, III)57. Funciona, assim, como fator de legitimação das ações estatais e vetor de interpretação da legislação em geral. Tais considerações não minimizam a circunstância de que se trata de uma ideia polissêmica58, que funciona, de certa maneira, como um espelho: cada um nela projeta a sua própria imagem de dignidade. E, muito embora não seja possível nem desejável reduzi-la a um conceito fechado e plenamente determinado, não se pode escapar da necessidade de lhe atribuir sentidos mínimos. Onde não há consenso, impõem-se escolhas justificadas e convenções terminológicas.

10. Na sua expressão mais essencial, a dignidade exige que toda pessoa seja tratada como um fim em si mesma, consoante uma das enunciações do imperativo categórico kantiano59. A vida de qualquer ser humano tem um valia intrínseca. Ninguém existe no mundo para atender os propósitos de outra pessoa ou para servir a metas coletivas da sociedade. O valor ou princípio da dignidade humana veda, precisamente, essa instrumentalização ou funcionalização de qualquer indivíduo. Outra expressão da dignidade humana é a responsabilidade de cada um por sua própria vida, pela determinação de seus valores e objetivos. Como regra geral, as decisões cruciais na vida de uma pessoa não devem ser impostas por uma vontade externa a ela60. No mundo contemporâneo, a dignidade humana tornou-se o centro axiológico dos sistemas jurídicos, fonte dos direitos materialmente fundamentais.

11. De fato, no plano dos direitos individuais, ela se expressa na autonomia privada, que decorre da liberdade e da igualdade das pessoas. Integram o conteúdo da dignidade a autodeterminação individual e o direito ao igual respeito e consideração. As pessoas têm o direito de eleger seus projetos existenciais e de não sofrer discriminações em razão de sua identidade e de 55 Muitas das ideias desse tópico foram colhidas em Luís Roberto Barroso e Letícia de Campos Velho Martel, A morte como ela é: dignidade e autonomia no final da vida. In: Tânia da Silva Pereira, Rachel Aisengart Menezes e Heloisa Helena Barboza, Vida, morte e dignidade humana, 2010, p. 175-212.56 Para uma revisão profunda do tema, inclusive quanto a documentos anteriores à Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, v. Christopher Mccrudden, Human dignity and judicial interpretation of human rights, The European Journal of International Law, vol.19, nº 4, 2008, p. 664-71. O autor nota que, em documentos mais atuais, não apenas a expressão ‘dignidade humana’ passou a figurar nos preâmbulos dos documentos internacionais de Direitos Humanos, como também foi introduzida na parte substantiva dos textos.57 CF/88, art. 1º: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) III - a dignidade da pessoa humana; (...)”.58 Nesse sentido, reconhecendo que o conceito de dignidade apresenta diferentes “dimensões” e “elementos”, v. Ingo Wolfgang Sarlet. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. In: Ingo Wolfgang Sarlet (Org.), Dimensões da dignidade: Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional, 2005, p.13-43. Na mesma linha, v. Maria Celina Bodin de Moraes, O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo normativo. In: Ingo Wolfgang Sarlet (Org.), Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado, 2003, p.105-147. 59 Immanuel Kant, Fundamentação da metafísica dos costumes, 2004, p. 68 e s..60 Sobre essas duas “dimensões” ou “princípios” da dignidade – valor intrínseco da vida humana e responsabilidade pessoal –, v. Ronald Dworkin, Is democracy possible here?, 2006, p. 9 e s..

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suas escolhas. No plano dos direitos políticos, ela se traduz em autonomia pública, no direito de participação no processo democrático. Entendida a democracia como uma parceria de todos em um projeto de autogoverno61, cada pessoa tem o direito de participar politicamente e de influenciar o processo de tomada de decisões, não apenas do ponto de vista eleitoral, mas também através do debate público e da organização social. Por fim, a dignidade está subjacente aos direitos sociais materialmente fundamentais, que correspondem ao mínimo existencial62. Todo indivíduo tem direito a prestações e utilidades imprescindíveis à sua existência física e moral, cuja satisfação é pré-condição para o próprio exercício da autonomia privada e pública63.

12. Assim, sem prejuízo das muitas variações existentes sobre o tema, identifica-se um consenso razoável no sentido de se considerar a dignidade humana o fundamento e a justificação última dos direitos fundamentais. A preservação e promoção desses direitos têm uma dimensão individual e outra social. A dimensão individual está ligada ao sujeito do direito, seus comportamentos e suas escolhas. A dimensão social envolve a atuação do Estado e de suas instituições na concretização do direito de cada um e, em certos casos, de intervenção para que comportamentos individuais não interfiram com direitos próprios, de outros ou de todos. A intervenção estatal, portanto, pode ser: (i) de oferta de utilidades que satisfaçam a dignidade; (ii) de restrição a condutas individuais que violem a dignidade do próprio agente; e (iii) de restrição a condutas individuais para que não violem a dignidade de outros ou determinados valores comunitários. As dimensões individual e social da atuação fundada na dignidade humana são também referidas, respectivamente, pelas designações de dignidade como autonomia e como heteronomia64.

2. A dignidade humana como autonomia

13. A dignidade como autonomia é a concepção subjacente aos grandes documentos de Direitos Humanos do século XX65, bem como a inúmeras constituições do segundo pós-guerra. Essa é a perspectiva que serve de fundamento para os direitos fundamentais, dando origem a uma esfera inviolável de proteção à pessoa. A relevância da ideia de autonomia moral para o presente trabalho é intuitiva, uma vez que se cuida de investigar a legitimidade de uma escolha pessoal, baseada em argumento religioso, cujas consequências são potencialmente fatais. Dentre os muitos aspectos envolvidos na noção de autonomia, dois deles, mutuamente implicados, apresentam especial interesse na hipótese. O primeiro é a capacidade de autodeterminação, que constitui o próprio núcleo da autonomia. O segundo é a exigência de que haja condições adequadas para o exercício da autodeterminação, de modo a evitar que ela se converta em mero formalismo ou em justificativa para a violação de direitos fundamentais do próprio indivíduo. Convém desenvolver cada um deles.

14. A dignidade como autonomia envolve, em primeiro lugar, a capacidade de autodeterminação, o direito de decidir os rumos da própria vida e de desenvolver livremente a própria personalidade. Significa o poder de realizar as escolhas morais relevantes, assumindo a responsabilidade pelas decisões tomadas. Por trás da ideia de autonomia está um sujeito moral capaz de se autodeterminar, traçar planos de vida e realizá-los. Nem tudo na vida, naturalmente, depende de escolhas pessoais. Há decisões que o Estado pode tomar legitimamente, em nome de interesses e direitos diversos. Mas decisões sobre a própria vida de uma pessoa, escolhas existenciais sobre religião, casamento, ocupações e outras opções personalíssimas que não violem direitos de terceiros não podem ser subtraídas do indivíduo, sob pena de se violar sua dignidade.61 Ronald Dworkin, Is democracy possible here?, 2006, p. xii.62 A respeito do aspecto material da dignidade humana e seu elo com o mínimo existencial, v. Ricardo Lobo Torres, O direito ao mínimo existencial, 2009; Ana Paula de Barcellos, A eficácia jurídica dos princípios constitucionais – O princípio da dignidade da pessoa humana, 2008; John Rawls, Uma teoria da justiça, 1997. 63 Seria possível estender e aprofundar o debate, a fim de fazer a ligação entre dignidade e direitos de nova geração, como os de natureza ambiental e o direito à paz. Mas o desvio seria excessivamente longo para os fins desse trabalho.64 Sobre autonomia e heteronomia, v. Immanuel Kant, Fundamentação da metafísica dos costumes, 2004, p. 75.65 Deryck Beyleveld e Roger Brownsword, Human dignity in bioethics and biolaw. 2004, p. 10.

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15. O segundo aspecto destacado diz respeito às condições para o exercício da autodeterminação. Não basta garantir a possibilidade de escolhas livres, sendo indispensável prover meios adequados para que a liberdade seja real, e não apenas retórica. Para tanto, integra a ideia de dignidade o denominado mínimo existencial, instrumental ao desempenho da autonomia. Para que um ser humano possa traçar e concretizar seus planos de vida, por eles assumindo responsabilidade, é necessário que estejam asseguradas mínimas condições econômicas, educacionais e psicofísicas. Além de permitir o exercício efetivo da prerrogativa de escolher, as condições da autonomia servem para evitar que decisões com grave repercussão para o indivíduo sejam tomadas de forma caprichosa ou simplesmente desinformada. Ainda quando a vontade pessoal deva prevalecer, é razoável que a coletividade imponha certos requisitos em defesa do valor objetivo da pessoa.

16. A visão da dignidade como autonomia valoriza o indivíduo, sua liberdade e seus direitos fundamentais. Com ela são fomentados o pluralismo, a diversidade e a democracia de uma maneira geral. Todavia, a prevalência da dignidade como autonomia não pode ser ilimitada ou incondicional. Em primeiro lugar, porque o próprio pluralismo pressupõe, naturalmente, a convivência harmoniosa de projetos de vida divergentes, de direitos fundamentais que podem entrar em rota de colisão. Além disso, escolhas individuais podem produzir impacto não apenas sobre as relações intersubjetivas, mas também sobre o corpo social e, em certos casos, sobre a humanidade como um todo. Daí a necessidade de imposição de valores externos aos sujeitos. Surge, então, a noção de dignidade como heteronomia.

3. A dignidade humana como heteronomia

17. A dignidade como heteronomia traduz uma visão da dignidade ligada a valores compartilhados pela comunidade, antes que a escolhas individuais66. Nela se abrigam conceitos jurídicos indeterminados como bem comum, interesse público e moralidade. Nessa acepção, a dignidade não é compreendida na perspectiva do indivíduo, mas como uma força externa a ele, tendo em conta os padrões civilizatórios vigentes e os ideais sociais do que seja uma vida boa. Como intuitivo, o conceito de dignidade como heteronomia funciona muito mais como uma constrição externa à liberdade individual do que como um meio de promovê-la. Inúmeros autores chancelam a noção de dignidade como freio à liberdade, no sentido de obstar escolhas que possam comprometer valores sociais ou a dignidade do próprio indivíduo cuja conduta se cerceia67.

18. Disso se extrai que, na concepção heterônoma, a dignidade não tem na liberdade seu componente central, mas, ao revés, é a dignidade que molda o conteúdo e dá limite à liberdade. Existem algumas decisões que são consideradas emblemáticas para a visão da dignidade como heteronomia. Uma delas, por variados fatores, tornou-se muito conhecida no Brasil: o caso do arremesso de anões68. São também consideradas paradigmáticas para a ideia de dignidade como heteronomia as decisões que consideram ilícitas relações sexuais sadomasoquistas consentidas.

66 Deryck Beyleveld e Roger Brownsword, Human dignity in bioethics and biolaw. 2004, p. 29.67 V. Oscar Vieira Vilhena, Direitos Fundamentais – Uma leitura da jurisprudência do STF, 2006, p. 67. 68 O Prefeito da cidade de Morsang-sur-Orge interditou a atividade conhecida como lancer de nain, atração existente em algumas casas noturnas da região metropolitana de Paris. Consistia ela em transformar um anão em projétil, sendo arremessado de um lado para outro de uma discoteca. A casa noturna, tendo como litisconsorte o próprio deficiente físico, recorreu da decisão para o tribunal administrativo, que anulou o ato do Prefeito por excesso de poder. O Conselho de Estado, todavia, na qualidade de mais alta instância administrativa francesa, reformou a decisão e restabeleceu a proibição, afirmando que a liberdade de trabalho e a liberdade empresarial não poderiam se sobrepor à dignidade da pessoa humana. V. Long, Wil, Braibant, Devolvé, Genevois, Le grands arrêts de la jurisprudence administrative, 1996, p. 790 e s.. Veja-se, em língua portuguesa, o comentário à decisão elaborado pelo Ministro Joaquim Barbosa, O poder de polícia e o princípio da dignidade da pessoa humana na jurisprudência francesa, Seleções Jurídicas ADV 12:17, 1996. Ainda sobre o tema, v. Alexandre dos Santos Cunha, A normatividade da pessoa humana – O estatuto jurídico da personalidade e o Código Civil de 2002 , p. 249. Convém reportar que já houve registro do arremesso de anão também em Portugal e nos Estados Unidos. Nesse sentido, v. Arthur Kuflik, The inalienabilty of autonomy, Philosophy and public affairs, vol 13, nº 4 (autumm, 1984), p. 271-298; e José Carlos Vieira de Andrade, Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976, 2004, p. 333.

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Tanto no Reino Unido69 quanto na Bélgica70, prevaleceu o ponto de vista de que o consentimento não poderia funcionar como defesa em situações de violência física. Outro caso típico de consideração da dignidade como heteronomia refere-se aos chamados peep shows, em que uma pessoa submete-se, como objeto, à vontade de outra71.

19. Entretanto, assim como a dignidade como autonomia, a “dignidade como heteronomia” também possui inconsistências teóricas e práticas. Como críticas principais, é possível compendiar: a) o emprego da expressão como um rótulo justificador de políticas paternalistas72, moralistas e perfeccionistas; b) o enfraquecimento dos direitos fundamentais mediante o discurso da dignidade, especialmente em sociedades democrático-pluralistas; c) perda da força jurídico-política da locução dignidade humana; d) problemas práticos e institucionais na definição dos valores compartilhados por uma comunidade ou sociedade política. Em razão disso – das insuficiências de cada uma das dimensões da dignidade isoladamente – é preciso delinear a convivência entre essas perspectivas da dignidade, de modo a assegurar e promover, na maior intensidade possível, os direitos fundamentais.

20. Relatados os principais conteúdos da expressão dignidade humana, passa-se a discorrer sobre a coexistência dessas duas perspectivas no exercício dos direitos fundamentais.

III. O exercício de direitos fundamentais: restrições legítimas e possibilidade de disposição pelo titular

1. A preferência relativa da dignidade como autonomia na Constituição brasileira

21. Como se acaba de descrever, as perspectivas autônoma e heterônoma da dignidade humana parecem apontar em direções opostas. A dignidade como autonomia traduz as demandas pela manutenção e ampliação da liberdade humana, respeitados os direitos de terceiros e presentes as condições materiais e psicofísicas para o exercício da capacidade de autodeterminação. A dignidade como heteronomia tem o seu foco na proteção de determinados valores sociais e no próprio bem do indivíduo, aferido por critérios externos a ele. No primeiro caso, prevalecem o

69 House of Lords, R. v. Brown. [1993] All ER 75. Disponível em: <http://www.parliament.the-stationery-office.com/pa/ld199798/ldjudgmt/jd970724/brown01.htm> Acesso em: dez. 2008. 70 CEDH, Affaire K.A. et A.D. c. Belgique. (Requêtes nºs 42758/98 et 45558/99), 2005.71 O Tribunal Federal Administrativo alemão considerou atentatória à dignidade humana a realização desse tipo de apresentação. V. Dierk Ullrich, Concurring visions: human dignity in the Canadian Charter of Rights and Freedoms and the Basic Law of the Federal Republic of Germany, Global Jurist Frontiers, vol.3, nº 1, 2003, p. 83. 72 O paternalismo jurídico é um princípio que justificaria a constrição de um direito de liberdade (geral ou específico), autorizando o emprego da coerção, da proibição, do não-reconhecimento jurídico de atos ou de mecanismos análogos para a proteção do indivíduo ou grupo contra comportamentos próprios auto-infligidos ou consentidos, sem contar com o endosso atual dos que são destinatários da medida. São institutos afins: a) o moralismo jurídico: a.1) em sentido estrito: pode ser justificado para o Estado proibir uma conduta por ser ela inerentemente imoral, mesmo que não cause nem dano nem ofensa a terceiros; a.2) em sentido amplo: pode ser justificado para o Estado proibir condutas que causem mal aos outros, sem que causem dano ou ofensa; b) o princípio do benefício aos demais: é justificado ao Estado proibir certas condutas quando a proibição for provavelmente necessária para a produção de algum benefício a terceiros; c) o perfeccionismo: é justificado ao Estado proibir condutas que são provavelmente necessárias para o aprimoramento do caráter dos indivíduos (para que eles se tornem moralmente mais elevados); d) o moralismo jurídico paternalista: o princípio refere-se à manutenção de um ambiente moral em uma sociedade política, ou seja, que uma sociedade, mesmo liberal, deve preservar a ideia de ‘um mundo moralmente melhor’. V. Joel Feinberg, Legal paternalism. In: Rolf Sartorius (ed.), Paternalism, 1987, p. 3-18; Gerald Dworkin, Paternalism: some second thoughts. In: Rolf Sartorius (ed.), Paternalism, 1987, p.105-12; Joel Feinberg, Harm to others – The moral limits of the criminal law, vol. I, 1986; Macário García Alemany, El concepto y la justificación del paternalismo. Tese de doutorado apresentada à Universidade de Alicante, 2005, pp. 160-161. Disponível em: http://www.cervantesvirtual.com/FichaObra.html?Ref=14591&ext=pdf&portal=0 Acesso em: set./2007; Dan Brock, Paternalism and promoting the good. In: Rolf Sartorius (ed.), Paternalism, 1987, pp. 237-260; Manuel Atienza, Discutamos sobre paternalismo, Doxa: Cuadernos de Filosofía del Derecho, nº 5, 1988, p. 203; Ronald Dworkin, A virtude soberana. A teoria e a prática da igualdade, 2005 (especialmente os capítulos 5 e 6); e Ernesto Garzón Valdés, ¿És eticamente justificable el paternalismo jurídico?, Doxa: Cuadernos de Filosofía del Derecho nº 5, 1988.

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consentimento, as escolhas pessoais e o pluralismo. No segundo, o paternalismo e institutos afins, ao lado dos valores morais compartilhados pela sociedade. A liberdade e as escolhas individuais são limitadas mesmo quando não interfiram com direitos de terceiros73. Embora essas duas perspectivas frequentemente se contraponham, há também uma certa complementaridade, na medida em que a formação da personalidade individual é afetada por percepções sociais.

22. Trazendo o debate para o âmbito do sistema jurídico brasileiro, não parece possível adotar, de forma excludente, um ou outro viés da dignidade humana. No entanto, tendo como ponto de partida a Constituição, afigura-se fora de dúvida o predomínio da ideia de dignidade como autonomia. Dentro de uma perspectiva histórica, a Carta de 1988 representou uma ruptura com o modelo ditatorial intervencionista, constituindo o marco inicial da reconstrução democrática do Brasil74. Daí a sua ênfase nas liberdades pessoais, parte essencial de um longo elenco de direitos individuais e garantias procedimentais. A dignidade como heteronomia obteve menos ênfase. Como visto, ela se move em torno de conceitos indeterminados como “moral pública” e “bons costumes”, por exemplo, que nem figuram no texto constitucional brasileiro75. Outras locuções, como “interesse público” e “ordem pública” são mencionados no texto para hipóteses bem contadas e de aplicação específica, que não incluem – ao menos expressamente – a restrição a direitos fundamentais.

23. Na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal há inúmeros julgados que se referem à dignidade humana. Por vezes, o emprego da locução é puramente ornamental. Em muitos casos, ela não é o único ou o principal fundamento de decidir, sendo frequentemente associada a um direito fundamental específico, como reforço argumentativo. Sem embargo, é possível detectar uma predominância da ideia de dignidade como autonomia sobre a dignidade como heteronomia76. A análise dos diferentes votos permite apontar certas formulações recorrentes, que figuram como “consensos sobrepostos”77 na matéria, que podem ser assim sumariados: a) não-instrumentalização

73 Nesse sentido, v. Christopher Mccrudden, Human dignity and judicial interpretation of human rights, The European Journal of International Law, vol.19, nº 4, 2008; Dierk Ullrich, Concurring visions: human dignity in the Canadian Charter of Rights and Freedoms and the Basic Law of the Federal Republic of Germany, Global Jurist Frontiers, vol.3, nº 1, 2003, p. 83; e Deryck Beyleveld e Roger Brownsword, Human dignity in bioethics and biolaw. 2004, p. 20 e s..74 Luís Roberto Barroso (org.), A reconstrução democrática do direito público no Brasil, 2007.75 Na Constituição de 1967, as locuções ‘bons costumes’ e ‘ordem pública’ foram utilizadas uma vez para autorizar expressamente a restrição da liberdade de culto (art.150, § 5º). Na Constituição de 1946, há dispositivo análogo ao mencionado, e, duas vezes, a ‘ordem pública’ é o autorizador expresso para restrição de direitos, a reunião pacífica e a permanência de estrangeiro no território nacional (art.141, § 7º e § 11 respectivamente). A Constituição de 1937, por seu turno, foi mais pródiga na utilização dos termos ”moral pública”, "moralidade pública”, “bons costumes” e ”ordem pública”, para autorizar a restrição expressa de direitos, como: a) liberdade de manifestação do pensamento (art. 15, b); b) a liberdade de culto (art. 122, 4º); c) o direito de manifestação dos parlamentares (art. 43) e d) como justificadores da instituição, por lei, da censura prévia (art. 15, a) e da condução dos rumos da educação (art. 132). Do exposto, percebe-se que a Constituição de 1988 efetivamente consagrou o não uso de tais conceitos indeterminados (ou similares) para autorizar expressamente a restrição de direitos fundamentais. 76 Quanto à dignidade como autonomia, especialmente: (a) a discussão sobre a recepção de artigos da Lei de Imprensa na ordem constitucional pós-88. Nos votos, demarcado está o cunho pluralista e protetor das liberdades. A correlação direta com a dignidade está no voto do Min. Relator e, indiretamente, perpassa todo o decisum; (b) a discussão da constitucionalidade da proibição de progressão de regime nos crimes hediondos. É bem de ver, todavia, que há insinuação de um elemento da ‘dignidade como heteronomia’ em alguns votos desse acórdão, dado o modo de compreender a ressocialização dos condenados criminalmente. Porém, impera a vertente autonomista, como atesta longo trecho da lavra do Min. Cezar Peluso sobre a assimetria entre o direito e a moralidade, o crime e o pecado. A laicidade e a pluralidade são consideradas limites ao jus puniendi, o que está de todo associado à “dignidade como autonomia”; (c) o elo entre dignidade e as condições mínimas de vida. Quanto à dignidade como heteronomia, o caso paradigmático é, sem dúvida, o chamado caso Ellwanger, acerca dos discursos do ódio. Entretanto, convém registrar que a CF/88 contém dispositivo específico sobre o crime de racismo (art. 5º, XLII). V. STF, DJe 07 nov. 2008, ADPF 130/DF, Rel. Min. Carlos Britto. STF, DJ 01 set. 2006, HC 82.959-7/SP, Rel. Min. Marco Aurélio. STF, DJ 19 mar. 2004, HC 82.424/RS, Rel. Min. Moreira Alves. . 77 Consenso sobreposto é uma expressão cunhada por John Rawls. Ao elaborar sua célebre teoria da justiça, tomou ele como pressuposto o fato do pluralismo, assumindo que é um traço permanente da cultura política de uma democracia a convivência de diversas crenças religiosas, filosóficas, políticas e morais. Para que seja possível a construção de uma sociedade política, faz-se necessária a adesão razoável de todos a princípios básicos de justiça. A partir dessa adesão

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do indivíduo e garantias constitucionais da liberdade78; b) manutenção da integridade física e moral dos indivíduos79; c) proibição da tortura, da imposição de tratamento desumano ou degradante e da crueldade80.

24. Em suma: à luz do sistema jurídico brasileiro, é possível afirmar uma certa predominância da dignidade como autonomia, sem que se deslegitime o conceito de dignidade como heteronomia. O que significa dizer que, como regra geral, devem prevalecer as escolhas individuais. Para afastá-las, fora dos casos expressos ou inequívocos, impõe-se um especial ônus argumentativo. O tema da (in)disponibilidade dos direitos fundamentais situa-se na fronteira entre as duas vertentes da dignidade.

2. A questão da indisponibilidade dos direitos fundamentais81

25. Os direitos fundamentais envolvem a autonomia privada, a autonomia pública e o mínimo existencial. Deles decorre um conjunto de posições individuais e de prestações exigíveis do Poder Público ou de particulares. Esta a dimensão subjetiva dos direitos fundamentais. Ao lado dela, o pensamento jurídico contemporâneo identifica, também, uma dimensão objetiva: o Estado tem deveres de proteção em relação aos direitos fundamentais, devendo criar e manter instituições,

primeira, formam-se, mediante emprego do procedimento da razão pública, outros pontos de consenso político, justamente aqueles que podem ser razoavelmente aceitos por indivíduos ou grupos que não compartilham as mesmas crenças. Tais pontos correspondem ao chamado consenso sobreposto. John Rawls, Justiça como eqüidade – Uma reformulação, 2003, p.44-53.78 Vários julgados consolidaram o entendimento de que o indivíduo não pode, a pretexto de manutenção da ordem e da segurança públicas: (a) ter sua liberdade cerceada no curso do processo penal por tempo indeterminado ou maior do que os prazos permitidos, se não deu causa à mora processual, ou se, ressalvados outros fatos muito relevantes, exauriu-se a justificativa para mantê-lo preso; (b) ser conduzido ou mantido preso no curso do processo apenas em razão da gravidade ou da repercussão do crime, ainda que hediondo, tampouco por fundamentos decisórios genéricos; (c) ter o seu silêncio, na persecução penal, interpretado em seu desfavor; (d) não ser devidamente citado em processo penal. Na linha de casos, a motivação é a de que o indivíduo não pode ser mais uma engrenagem do processo penal, ou seja, não pode ser instrumentalizado para o efetivo funcionamento da máquina persecutória estatal, impondo-se sua dignidade a proteger as liberdades e as garantias constitucionais da liberdade. Ademais, por insistência do Min. Gilmar Mendes, a prisão instrumental à extradição está sendo revisitada, pois, como entende o Ministro, o extraditando torna-se um instrumento ante objetivos estatais. A ideia kantiana de fim-em-si foi utilizada em acórdão que discutiu a competência para o julgamento de crimes de redução de pessoas à condição análoga à de escravo. Pese embora ser o conteúdo da dignidade passível de leitura como ‘heteronomia’, pois a escravidão é considerada um mal em si, o seu conteúdo é fortemente relacionado à preservação da liberdade humana e de suas pré-condições. V. STF, DJe 25 abr. 2008, HC 92.604/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes; STF, DJe 26 set. 2008, HC 88.548/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes; STF, DJe 14 mar. 2008, HC 91.657/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes; STF, DJe 25 abr. 2008, HC 91.414/BA, Rel. Min. Gilmar Mendes; STF, DJe 01 fev. 2008, HC 91.121/MS, Rel. Min. Gilmar Mendes; STF, DJe 24 abr. 2008, HC 91.524/BA, Rel. Min. Gilmar Mendes; STF, DJe 04 abr. 2008, HC 91.662/PR, Rel. Min. Celso de Melo (neste acórdão, o ponto principal da motivação é o due processo of law); STF, DJe 25 abr. 2008, HC 92.842/MT, Rel. Min. Gilmar Mendes; e STF, DJe 19 dez. 2008, RE 398.041/PA, Rel. Min. Joaquim Barbosa. .79 O leading case quanto à integridade física parece ser o que versou sobre a possibilidade de realização compulsória de exame de DNA para fins de comprovação de paternidade. Mesmo que deveras relevante o interesse do outro pólo da relação processual, o STF considerou que a realização forçada de exames invadia a privacidade, a intimidade e a integridade física individuais, protegidas pela dignidade. Mais recente foi a discussão sobre o uso de algemas, que culminou, inclusive, na edição da Súmula Vinculante nº 11. O uso acriterioso de algemas e a divulgação abusiva de imagens de indivíduos nessa condição foram considerados tratamentos humilhantes e desonrosos. Nesse sentido, v. STF, DJ 22 nov. 1996, HC 71.373/RS, Rel. Min. Francisco Rezek; STF, DJ 2 fev. 2007, HC 89.429/RO, Rel.ª Min.ª Cármen Lúcia.80 É possível referir novamente os acórdãos e a Súmula sobre o uso de algemas, bem como a decisão acerca do crime de tortura perpetrado contra crianças e adolescentes. V. STF, DJ 10 ago. 2001, HC 70.389/SP, Rel. Min. Celso de Mello. Na doutrina estrangeira, v. Jeremy Waldron, Inhuman and degrading treatment: a non-realist view, NYU Public Law Colloquium, April, 23 (second draft).81 Este tópico e o próximo beneficiam-se, extensamente, da pesquisa e das ideias que se encontram em Letícia de Campos Velho Martel, Direitos fundamentais indisponíveis – os limites e os padrões de consentimento para a autolimitação do direito fundamental à vida, mimeografado, 2010.

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mecanismos e procedimentos para sua efetiva realização82. Ademais, toda a ordem jurídica deve ser lida à luz dos direitos fundamentais, que ocupam, assim, uma posição de centralidade no sistema jurídico. Ao enunciarem as características essenciais dos direitos fundamentais, a maior parte dos autores destaca sua indisponibilidade. O próprio Código Civil brasileiro, de 2002, aponta nessa direção, ao afirmar que os direitos da personalidade – expressão dos direitos fundamentais nas relações privadas – são intransmissíveis e irrenunciáveis83.

26. O tema envolve muitas complexidades e sutilezas. Em rigor, contudo, a afirmação peremptória da indisponibilidade parece imprecisa ou, no mínimo, exige qualificações e exceções. A disposição de posições jurídicas subjetivas decorrentes de direitos fundamentais faz parte, com frequência, do próprio exercício do direito84. É o que ocorre, por exemplo, com a cessão do direito de imagem para uma campanha publicitária ou a autolimitação do direito de privacidade por parte das pessoas que aceitam participar de um reality show85. Da mesma forma, tatuar o corpo de alguém contra a sua vontade representa uma forma grave de violação à integridade física e moral, mas basta o consentimento para que a conduta se torne socialmente aceita. Portanto, existe no mínimo um problema conceitual por trás da afirmação de que direitos fundamentais são indisponíveis. Na sua dimensão subjetiva, é perfeitamente legítimo que o titular de um direito fundamental, voluntariamente, abra mão de certas posições jurídicas.

27. Naturalmente, existem na matéria inúmeras variáveis possíveis. Uma autolimitação parcial, temporária e revogável será diferente de uma renúncia total e definitiva. Embora a Constituição não fale em lugar algum da indisponibilidade de direitos fundamentais, existem, por certo, limites implícitos. De parte isso, a ordem jurídica pode, igualmente, instituir restrições expressas para proteger o direito de terceiros, a ordem pública ou o próprio titular do direito fundamental. O que o Estado não pode fazer é anular integralmente a liberdade pessoal e a autonomia moral do indivíduo, vivendo sua vida para poupá-lo do risco. Vigora, no direito constitucional brasileiro, o princípio da liberdade, do direito geral de liberdade, expresso no art. 5º, II, da Constituição: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Desnecessário enfatizar que a lei há de ser compatível com a Constituição e que há limites para a restrição a direitos fundamentais.

28. Se assim é, chega-se à conclusão algo surpreendente de que os direitos fundamentais são, em princípio, disponíveis, haja vista que a liberdade é a regra e a disposição, em muitos casos,

82 Sobre os deveres de proteção, v. Dieter Grimm, A função protetiva do Estado. In: Cláudio Pereira de Souza Neto e Daniel Sarmento (Coords.), A constitucionalização do direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas, 2007, p. 149 e ss..83 Código Civil, art. 11: “Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária”.84 A doutrina tem destacado a necessidade de se interpretar normas como o art. 11 do Código Civil à luz da Constituição, de modo a evitar que o Estado assuma uma posição paternalista e termine por sufocar o espaço próprio das escolhas individuais, indispensável à realização plena da personalidade. Sobre o tema, v. Laura Schertel Mendes, Um debate acerca da renúncia aos direitos fundamentais: para um discurso dos direitos fundamentais como um discurso de liberdade, Direito Público 13:121, 2006, p. 130; e Daniel Sarmento, Direitos fundamentais e relações privadas, 2006, p. 177. Em sentido semelhante, v. Gustavo Tepedino, Heloisa Helena Barboza e Maria Celina Bodin de Moraes, Código Civil interpretado conforme a Constituição da República, 2004, p. 36; Paulo Mota Pinto, Notas sobre o direito ao livre desenvolvimento da personalidade e os direitos da personalidade no direito português. In: Ingo Wolfgang Sarlet, A Constituição concretizada: Construindo pontes com o público e o privado , 2000, p. 81-2; e J. J. Gomes Canotilho e Jónatas Machado, Reality shows e liberdade de programação, 2003. Igualmente relevante é o Enunciado nº 4, aprovado na I Jornada de Direito Civil do Centro de Estados Judiciários (CEJ), Conselho da Justiça Federal, que afirma: “o exercício dos direitos da personalidade pode sofrer limitação voluntária, desde que não seja permanente nem geral”. 85 Em estudo específico sobre os reality shows, v. J. J. Gomes Canotilho e Jónatas Machado (Reality shows e liberdade de programação, 2003), concluem pela inexistência de violação à intimidade e à privacidade, considerando que esses direitos destinam-se precipuamente a dar aos indivíduos a liberdade de decidir sobre a exposição de suas vidas, e não a censurar determinadas escolhas pessoais. A liberdade seria, portanto, o principal vetor interpretativo, sem prejuízo da existência de limites.

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é uma forma de exercer o direito86. Isso não significa que algumas posições jurídicas de direito fundamental não possam ser consideradas indisponíveis pelo sistema jurídico87. Mas, nessas hipóteses, o Estado terá o ônus argumentativo de demonstrar que se trata de uma restrição legítima, e não uma violação à liberdade de escolha do indivíduo. A proteção à dignidade exige que o próprio interessado seja o principal responsável pela definição do seu conteúdo, sob pena de se abrir espaço para uma espécie de totalitarismo dos direitos humanos88. A indisponibilidade dos direitos fundamentais, portanto, não resulta de um mandamento constitucional. Como consequência, a validade ou não de um ato de disposição terá de ser verificada caso a caso, tendo em vista a natureza do direito em questão, a natureza de eventuais direitos contrapostos e os valores sociais relevantes que possam ser legitimamente impostos na situação89.

IV. Os elementos em aparente conflito: valor da vida humana e liberdade de religião

29. A complexidade e o pluralismo das sociedades modernas levam ao abrigo da Constituição valores, interesses e direitos variados, que eventualmente entram em choque. Essas colisões de normas constitucionais podem assumir configurações diversas, dentre as quais se incluem, para os fins aqui relevantes: a) a contraposição entre direitos fundamentais; e b) a contraposição entre um direito fundamental e um valor constitucionalmente protegido. Ambas as situações estão presentes na hipótese aqui examinada, com a singularidade de que estão em choque, não direitos de pessoas diversas, mas dois direitos de um mesmo titular. O equacionamento da questão posta envolve, de um lado, a vida humana – como direito individual e como valor protegido pela ordem constitucional – e, de outro, a liberdade religiosa, igualmente compreendida como um direito fundamental. À vista do princípio da unidade da Constituição, o intérprete não pode escolher arbitrariamente um dos lados, já que não há hierarquia entre normas constitucionais. De modo que ele precisará demonstrar, argumentativamente, à luz dos elementos do caso concreto, que determinada solução realiza mais adequadamente a vontade da Constituição, naquela situação específica. Antes de prosseguir, cumpre fazer uma breve nota sobre o direito à vida e a liberdade de religião.

86 Sobre o ponto, v. Virgílio Afonso da Silva, A constitucionalização do direito: os direitos fundamentais nas relações entre particulares, mimeografado, 2004. Tese de livre-docência defendida na Universidade de São Paulo – USP, p. 163 e 167: “(...) É comum que se faça referência à irrenunciabilidade ou à inegociablilidade dos direitos fundamentais. Mas por que seriam os direitos fundamentais irrenunciáveis ou inegociáveis? Essas características decorrem da estrutura desses direitos? São alguma conseqüência lógica? São uma convenção? Ou são um mero lugar comum generalizante contra o qual, dada sua consolidação, ninguém se atreve a argumentar? (...) Ora, se os direitos fundamentais são essencialmente direitos de liberdade do cidadão, nada mais coerente que aceitar a liberdade de não exercitá-los, de deles dispor ou de a eles renunciar. Renunciar a direitos fundamentais seria um exercício do direito geral de liberdade, imanente à essência dos direitos fundamentais”. 87 Paulo Mota Pinto, Notas sobre o direito ao livre desenvolvimento da personalidade e os direitos da personalidade no direito português. In: Ingo Wolfgang Sarlet, A Constituição concretizada: Construindo pontes com o público e o privado, 2000, p. 81-2: “Vimos já que esses direitos [da personalidade] são indisponíveis, mas isso não obsta a que possam sofrer limitações voluntárias (...). O carácter fundamental dos bens protegidos, e a conseqüente inadmissibilidade de constitutiones in servitudinem, que subjazem àquele carácter indisponível, impõem, todavia, que seja sempre observado o limite das exigências de ordem pública (...)”.88 Jorge Reis Novais, Renúncia a direitos fundamentais. In: Jorge Miranda (Org.), Perspectivas constitucionais, v. 1, 1996, p. 328-9: “(...) o próprio conteúdo da dignidade pessoa é condicionado pelo consentimento do lesado e pelas suas convicções acerca do sentido da sua dignidade. (...) procura-se hoje privilegiar uma concepção de dignidade da pessoa humana como conceito aberto a um preenchimento onde impera a autonomia do interessado e o seu poder consequente de conformação da própria vida”.89 Na síntese de Letícia de Campos Velho Martel, Direitos fundamentais indisponíveis – os limites e os padrões de consentimento para a autolimitação do direito fundamental à vida, mimeografado, 2010, p. 99: “Quando for aceita a tese da jusfundamentalidade do direito geral de liberdade em ordenamento jurídico que não possua enunciado normativo na Constituição estabelecendo a indisponibilidade dos direitos fundamentais, as posições subjetivas de tais direitos serão prima facie disponíveis. A proibição da disposição exigirá do Estado a defesa dos motivos, que deverão ser argumentativamente suficientes para configurar uma restrição a direitos fundamentais. Caso não seja cumprido o ônus argumentativo, a proibição será uma violação e, portanto, inconstitucional”.

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1. A vida como direito fundamental e como valor objetivo

30. Ao avançar no debate, é preciso ter em conta que o direito à vida é de fato especial. Qualquer flexibilização da sua força jurídica ou moral é delicada e deve envolver cautelas múltiplas. Um dos consensos mínimos que compõem a dignidade nas sociedades ocidentais é a preservação da vida, tanto como um direito individual90 quanto como valor objetivo. Diante disso, criminalizar atos que atentem contra a vida humana faz parte do receituário básico de qualquer sociedade civilizada. No caso brasileiro, pune-se não apenas o homicídio91 e o auxílio ou instigação ao suicídio92, mas também o transplante de órgãos que resulte em morte certa do doador93, mesmo que seja a única forma de salvar outra vida, como a de um ente querido. Por outro lado, o próprio texto constitucional brasileiro contempla a possibilidade de restrição ao direito à vida, ao admitir a pena de morte em caso de guerra declarada (art. 5º, XLVII, a). E, na legislação infraconstitucional, o Código Penal exclui expressamente a ilicitude da conduta que ocasione morte de outrem quando o ato é praticado em estado de necessidade, em legítima defesa ou em estrito cumprimento do dever legal94.

31. Conquanto não seja absoluto95, nem tampouco hierarquicamente superior, é razoável sustentar que o direito à vida tem um peso abstrato maior, desfrutando de uma posição preferencial dentro do sistema constitucional96. E isso não apenas pela valia do seu conteúdo intrínseco, mas também por ser pré-condição para a própria dignidade e para o exercício dos demais direitos fundamentais97. Como conseqüência, inverte-se aqui a proposição assentada em relação aos direitos em geral: o direito à vida é, prima facie, indisponível, não sendo o ato de vontade do titular – o consentimento – causa suficiente para sua flexibilização. Nesse caso, o direito geral de liberdade cede o passo, preterido pela legítima imposição da dignidade como heteronomia, pelos deveres de proteção do Estado em relação ao próprio titular do direito e mesmo em relação a terceiros, que não estarão exonerados de responsabilidade penal ainda que tenha havido renúncia do direito à vida pela vítima98.

90 CF/88, art. 5º: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes”. 91 Código Penal, art 121: “Matar alguem: Pena - reclusão, de seis a vinte anos”.92 Código Penal, art. 122: “Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça. Pena - reclusão, de dois a seis anos, se o suicídio se consuma; ou reclusão, de um a três anos, se da tentativa de suicídio resulta lesão corporal de natureza grave. Parágrafo único: A pena é duplicada: I - se o crime é praticado por motivo egoístico; II - se a vítima é menor ou tem diminuída, por qualquer causa, a capacidade de resistência”.93 Lei nº 9.434/97, art. 9º: “É permitida à pessoa juridicamente capaz dispor gratuitamente de tecidos, órgãos e partes do próprio corpo vivo, para fins terapêuticos ou para transplantes em cônjuge ou parentes consangüíneos até o quarto grau, inclusive, na forma do § 4o deste artigo, ou em qualquer outra pessoa, mediante autorização judicial, dispensada esta em relação à medula óssea. (Redação dada pela Lei nº 10.211, de 23.3.2001) (...) § 3º Só é permitida a doação referida neste artigo quando se tratar de órgãos duplos, de partes de órgãos, tecidos ou partes do corpo cuja retirada não impeça o organismo do doador de continuar vivendo sem risco para a sua integridade e não represente grave comprometimento de suas aptidões vitais e saúde mental e não cause mutilação ou deformação inaceitável, e corresponda a uma necessidade terapêutica comprovadamente indispensável à pessoa receptora”.94 Código Penal, art. 23: “Não há crime quando o agente pratica o fato: I - em estado de necessidade; II - em legítima defesa; III - em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito”.95 Nesse sentido, v. STF, DJ 12 mai. 2000, MS 23.452/RJ, Rel. Min. Celso de Mello: “Os direitos e garantias individuais não têm caráter absoluto. Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto”.96 Letícia de Campos Velho Martel, Direitos fundamentais indisponíveis – os limites e os padrões de consentimento para a autolimitação do direito fundamental à vida, mimeografado, 2010, p. 309.97 Sem desconsiderar, no entanto, que em certos contextos será possível falar da dignidade do feto ou de uma pessoa já morta.98 Como seria o caso, para utilizar um precedente real ocorrido nos Estados Unidos, de uma mulher que consentiu, por escrito, em ser morta durante uma relação sexual. V. Letícia de Campos Velho Martel, Direitos fundamentais

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32. Aqui se chega ao ponto crítico do presente estudo: embora o simples consentimento não seja suficiente para um ato de disposição do direito à vida por seu titular – ou, mais tecnicamente, de posições subjetivas relacionadas ao direito à vida –, é possível que outros valores ou direitos fundamentais justifiquem essa decisão. Vale dizer: a imposição taxativa da indisponibilidade pode causar impacto negativo sobre outras posições jurídicas fundamentais tuteladas pela Constituição. Ocorrendo a colisão, não pode o sistema jurídico estabelecer, a priori, a prevalência de um direito constitucional sobre outro. Impõe-se, aqui, a análise caso a caso e a ponderação adequada, à luz da Constituição. O valor objetivo da vida humana deve ser conciliado com o conjunto de liberdades básicas decorrentes da dignidade como autonomia. Por exemplo: o Estado não pode proibir alguém de prestar ajuda humanitária em uma região de guerra, ou de praticar esportes radicais, ainda que o risco seja elevado ao extremo. Essas são escolhas existenciais legítimas.

33. Os exemplos poderiam ser multiplicados. Uma pessoa que tenha histórico familiar de câncer não pode ser obrigada a se submeter a exames periódicos ou a evitar fatores de risco para a doença. Não se pode impedir uma mulher de engravidar pelo fato de ser portadora de alguma condição que esteja associada a elevado risco de morte na gestação. Como se vê, admite-se sem maior controvérsia que a vida seja colocada em risco pelo próprio indivíduo para que ele possa levar adiante inúmeras decisões pessoais e realizar seu próprio projeto de vida. Em outras palavras, admite-se o risco de morte quando seja indissociável do exercício autônomo da vida, que não pode se converter em mera subsistência, privada de sentido para o seu próprio titular. Isso não significa, naturalmente, que quaisquer escolhas sejam aceitáveis, sendo legítimo que o Poder Público imponha determinadas constrições à liberdade individual em nome do valor objetivo da vida humana. É possível visualizar esse tipo de racionalidade, e.g., na obrigatoriedade do uso do cinto de segurança ou de dispositivos de proteção em determinados ambientes de trabalho.

34. Em suma: o valor objetivo da vida humana desfruta de uma posição preferencial no ordenamento jurídico, podendo o direito à vida ser considerado indisponível prima facie. Nada obstante, não se trata de um direito absoluto, havendo hipóteses constitucionais e legais em que se admite a sua flexibilização. A assunção do risco de morte poderá ser legítima quando se trate do exercício de outras liberdades básicas pelo titular do direito. Impõe-se, nesse ambiente, uma análise caso a caso, na qual se possam analisar os diferentes elementos em jogo, com destaque para a repercussão das restrições sobre o conceito do próprio indivíduo acerca de sua dignidade. A discussão sobre a recusa de tratamento médico por fundamento religioso insere-se nesse contexto e será abordada em tópico próprio.

2. A liberdade religiosa

35. A religião está presente na vida das pessoas e das comunidades políticas desde o início dos tempos. A condição humana nela tem buscado, ao longo dos séculos, respostas para questões existenciais básicas, relacionadas ao sentido da vida, ao mundo à volta e à posteridade. Desde as teocracias que assinalaram as primeiras civilizações, passando pela adoção do cristianismo pelo Império Romano, até chegar ao direito divino dos reis, que legitimava o poder no Estado absolutista, religião e política caminharam juntas na história da humanidade. Em nome da religião, foram lutadas guerras diversas, pelos séculos afora, que incluíram as cruzadas contra o islamismo e os embates entre católicos e protestantes. Sem mencionar a Inquisição. Com a Paz de Westfalia, em 1648, consolida-se o processo de separação entre o poder espiritual e o poder temporal – isto é, do

indisponíveis – os limites e os padrões de consentimento para a autolimitação do direito fundamental à vida , mimeografado, 2010, p. 325 e p. 424, onde escreveu: “(...)[É] justificável, no sistema jurídico brasileiro, a proibição da disposição de posições subjetivas do direito à vida como linha de princípio, em função: (ii.1) da proteção de direitos de terceiros, fundamentalmente os não-consententes; (ii.2) da manutenção de níveis adequados dos deveres e ações ordenadas estatais de promoção e de proteção do direito à vida (dimensão objetiva); (ii.3) da dignidade humana como heteronomia”.

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Papado e dos Estados soberanos –, abrindo-se o caminho para uma fase de maior tolerância religiosa.

36. Ainda assim, foi a fuga à perseguição religiosa que levou inúmeros súditos ingleses a instalar colônias na costa leste da América do Norte, no curso do século XVII. A conquista da liberdade religiosa somente se consumou com as revoluções liberais do século XVIII e a superação da máxima cuius regio, eius religio – o súdito segue a religião do rei – que vigorava largamente na Europa absolutista. John Locke (1632-1704), um dos principais precursores e teóricos do liberalismo, defendeu a liberdade religiosa como um componente essencial da liberdade individual99. Suas ideias influenciaram a Declaração de Independência dos Estados Unidos, de 1776100, sendo que a primeira emenda à Constituição americana de 1787 previu a separação entre religião e Estado e assegurou seu livre exercício101. A partir daí, progressivamente, a liberdade de religião – o direito de professar uma crença e seguir os seus ritos, sem restrições outras que não as ditadas pela ordem pública e pelos direitos de terceiros – foi sendo incorporada a documentos constitucionais, declarações de direitos e diplomas internacionais, como a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789)102, a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948)103, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966)104, a Convenção Americana de Direitos Humanos (1969)105, a Convenção Europeia de Direitos Humanos (1953)106 e a Declaração das

99 V., e.g., John Locke, Carta sobre a tolerância, 1985, p. 84: “A preocupação com a alma de cada homem e com as coisas do Céu, que não pertence à comunidade nem pode ser submetida a ela, deve ser deixada inteiramente a cada um. (...) seja falsa ou verdadeira, [a religião] não traz prejuízos aos interesses mundanos (...) [dos] súditos conterrâneos [dos magistrados], que são a única coisa que está sob os cuidados da comunidade”.100 Declaração de Independência dos EUA: “Consideramos as seguintes verdades como auto-evidentes, a saber: que todos os homens são criaturas iguais, dotadas pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis, entre os quais a vida, a liberdade e a busca da felicidade”.101 1ª Emenda à Constituição dos EUA, primeira parte: “O Congresso não editará qualquer lei relacionada ao estabelecimento de uma religião, ou proibindo o seu livre exercício (...)”. As dez primeiras emendas à Constituição americana, aprovadas em 1789, são conhecidas como Bill of Rights.102 Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, art. 10: “Ninguém deve ser inquietado pelas suas opiniões, mesmo religiosas, desde que as suas manifestações não prejudiquem a ordem pública estabelecida pela lei”.103 Declaração Universal dos Direitos Humanos, art. 18: “Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular”.104 Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, art. 18: “1. Toda pessoa terá direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Esse direito implicará a liberdade de ter ou adotar uma religião ou crença de sua escolha e a liberdade de professar sua religião ou crença, individual ou coletivamente, tanto pública como privadamente, por meio do culto, da celebração de ritos, de práticas e do ensino. 2. Ninguém poderá ser submetido a medidas coercitivas que possam restringir sua liberdade de ter ou de adotar uma religião ou crença de sua escolha. 3. A liberdade de manifestar a própria religião ou crença estará sujeita apenas às limitações previstas em lei e que se façam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas. 4. Os Estados-partes no presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade dos pais – e, quando for o caso, dos tutores legais – de assegurar aos filhos a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”.105 Convenção Americana de Direitos Humanos, art. 12: “Liberdade de Consciência e de Religião. 1. Toda pessoa tem direito à liberdade de consciência e de religião. Esse direito implica a liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças, bem como a liberdade de professar e divulgar sua religião ou suas crenças, individual ou coletivamente, tanto em público como em privado. 2. Ninguém pode ser objeto de medidas restritivas que possam limitar sua liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças. 3. A liberdade de manifestar a própria religião e as próprias crenças está sujeita unicamente às limitações prescritas pela lei e que sejam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos ou liberdades das demais pessoas. 4. Os pais, e quando for o caso os tutores, têm direito a que seus filhos ou pupilos recebam a educação religiosa e moral que esteja acorde com suas próprias convicções”.106 Convenção Europeia de Direitos Humanos, art. 9º: “1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de crença, assim como a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua crença, individual ou coletivamente, em público e em privado, por meio do culto, do ensino, de práticas e da celebração de ritos. 2. A liberdade de manifestar a sua religião ou convicções, individual ou coletivamente, não pode ser objeto de outras restrições senão as que, previstas na lei, constituírem disposições

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Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e de Discriminação Baseadas em Religião ou Crença (1981)107.

37. No Brasil, a proteção da liberdade religiosa começou tímida na Carta Imperial de 1824108, que consagrava o catolicismo romano como religião oficial e adotava o regime do padroado, conferindo à autoridade secular – no caso, o Imperador – poder sobre a administração da Igreja Católica no país109. Esse quadro mudou, após o advento da República, com o Decreto nº 119-A/1890, editado pelo Governo Provisório do Marechal Deodoro da Fonseca, que extinguiu o padroado, proibiu a fixação de religiões oficiais e a discriminação por fundamentos religiosos, além de garantir a liberdade religiosa e a personalidade jurídica das igrejas110. A partir desse marco, a separação entre Estado e religião seria mantida e desenvolvida pelas Constituições republicanas111. A Carta de 1988 aprofundou o tratamento do tema em diversas disposições, instituindo ampla proteção às confissões religiosas, como se verifica das normas destacadas abaixo:

i) a igualdade de todos, “sem distinção de qualquer natureza”

necessárias, numa sociedade democrática, à segurança pública, à proteção da ordem, da saúde e moral públicas, ou à proteção dos direitos e liberdades de outrem”.107 Declaração das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e de Discriminação Baseadas em Religião ou Crença, art. 4º: “Todos os Estados devem tomar medidas efetivas para prevenir e eliminar a discriminação fundada em religião ou em crença no que se refere ao reconhecimento, ao exercício e à fruição de direitos humanos e liberdades fundamentais em todos os campos da vida civil, econômica, política, social e cultural. 2. Todos os Estados devem realizar todos os esforços para editar ou revogar legislação quando necessário para proibir qualquer discriminação desse tipo, e para tomar todas as medidas apropriadas para combater a intolerância baseada em religião ou em outras crenças nesta matéria”.108 Constituição de 1824, arts. 5º e 179, V: “Art. 5º. A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Imperio. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto domestico, ou particular em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior do Templo. (...) Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte: (...) V – Ninguem póde ser perseguido por motivo de Religião, uma vez que respeite a do Estado, e não offenda a Moral Publica”.109 Sobre o padroado, v. Maurilio Cesar de Lima, Breve história da Igreja no Brasil, 2004, p. 23. Cabia ao Imperador, por exemplo, nomear os bispos (art. 102, I) e “conceder, ou negar o Beneplacito aos Decretos dos Concilios, e Letras Apostolicas, e quaesquer outras Constituições Ecclesiasticas que se não oppozerem á Constituição; e precedendo approvação da Assembléa, se contiverem disposição geral” (art. 102, XIV). 110 Nada obstante, autorizou que se continuasse a custear os então serventuários do culto católico. Confira-se o texto do decreto: “Art. 1º E' prohibido á autoridade federal, assim como á dos Estados federados, expedir leis, regulamentos, ou actos administrativos, estabelecendo alguma religião, ou vedando-a, e crear differenças entre os habitantes do paiz, ou nos serviços sustentados á custa do orçamento, por motivo de crenças, ou opiniões philosophicas ou religiosas. Art. 2º A todas as confissões religiosas pertence por igual a faculdade de exercerem o seu culto, regerem-se segundo a sua fé e não serem contrariadas nos actos particulares ou publicos, que interessem o exercicio deste decreto. Art. 3º A liberdade aqui instituida abrange não só os individuos nos actos individuaes, sinão tabem as igrejas, associações e institutos em que se acharem agremiados; cabendo a todos o pleno direito de se constituirem e viverem collectivamente, segundo o seu credo e a sua disciplina, sem intervenção do poder publico. Art. 4º Fica extincto o padroado com todas as suas instituições, recursos e prerogativas. Art. 5º A todas as igrejas e confissões religiosas se reconhece a personalidade juridica, para adquirirem bens e os administrarem, sob os limites postos pelas leis concernentes á propriedade de mão-morta, mantendo-se a cada uma o dominio de seus haveres actuaes, bem como dos seus edificios de culto. Art. 6º O Governo Federal continúa a prover á congrua, sustentação dos actuaes serventuarios do culto catholico e subvencionará por anno as cadeiras dos seminarios; ficando livre a cada Estado o arbitrio de manter os futuros ministros desse ou de outro culto, sem contravenção do disposto nos artigos antecedentes”.111 A Carta de 1981 garantiu o exercício público e livre dos cultos religiosos (art. 72, 3º); a Constituição de 1934 manteve a proibição ao Poder Público de estabelecer, subvencionar e embaraçar cultos, ou estabelecer alianças ou dependências com denominações religiosas, mas ressalvou a “colaboração recíproca em prol do interesse coletivo” (art. 17, II e III); a Lei Fundamental de 1937 autorizou o ensino religioso nas escolas primárias, secundárias e normais, desde que não fosse “objeto de obrigação dos mestres ou professores, nem de freqüência compulsória por parte dos alunos” (art. 133); a Constituição de 1946 previu a assistência religiosa, “sem constrangimento dos favorecidos”, nas Forças Armadas e nos estabelecimentos de internação coletiva (art. 141, § 9º), impediu a perda de direitos pelos que alegassem escusa de consciência para não atender a obrigação imposta em caráter geral, desde que prestassem serviço alternativo (art. 141, § 8º), e ainda concedeu efeitos civis ao casamento religioso (art. 163, §§ 1º e 2º). As Cartas de 1967 e 1969 não inovaram substancialmente na matéria.

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(art. 5º, caput); ii) a inviolabilidade da “liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos”, garantida, ainda, “na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias” (art. 5º, VI); iii)a assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva (art. 5º, VII);iv)a possibilidade de prestação de serviço alternativo pelos que aleguem escusa de consciência para eximir-se de obrigações gerais, inclusive em relação ao serviço militar obrigatório (arts. 5º, VIII, e 143, § 1º);v) a proibição de estabelecimento, subvenção ou embaraço de cultos pelo Poder Público, ou de relações de alianças e dependências com denominações religiosas, sempre ressalvando, “na forma da lei, a colaboração de interesse público” (art. 19, I);vi)a imunidade de “templos de qualquer culto” a impostos de todos os entes (art. 150, VI, b);vii) a possibilidade de se ministrar ensino religioso nas escolas públicas de ensino fundamental, sendo facultativa a matrícula (art. 210, § 1º); eviii) a atribuição de efeitos civis ao casamento religioso (art. 226, § 2º).

38. De tudo isso se extrai que a ordem jurídica brasileira não é hostil ao fenômeno religioso. Muito ao revés: embora rejeite a criação de religiões oficiais ou a subvenção de credos pelo Erário, a Constituição tutela amplamente a liberdade religiosa e traça inúmeras relações entre o Estado e as religiões por meio de medidas como a previsão de assistência religiosa, de ensino religioso nas escolas públicas e de colaborações de interesse público, além da possibilidade de alegar escusa de consciência para se eximir de obrigação imposta a todos. Nesse sentido, o Estado brasileiro adota a laicidade, mas não prega o laicismo – compreendido como a defesa da ignorância ou da hostilidade em relação ao elemento religioso112. A ordem constitucional reconhece a religião como uma dimensão relevante da vida das pessoas, quer sejam crentes, quer ateias ou agnósticas. Afinal, submeter um crente a práticas contrárias a sua religião é tão invasivo quanto determinar a um ateu que se ajuste a padrões religiosos. Em qualquer dos casos haverá a imposição externa de valores existenciais e a conseqüente violação da dignidade como autonomia.

39. Em conclusão: a liberdade religiosa é um direito fundamental, que integra o universo de escolhas existenciais básicas de uma pessoa, funcionando como expressão nuclear da dignidade humana. O Poder Público, como conseqüência, não pode impor uma religião nem impedir o exercício de qualquer delas, salvo para proteger valores da comunidade e os direitos fundamentais das demais pessoas. A pergunta que resta responder é a seguinte: pode o Estado proteger um indivíduo em face de si próprio, para impedir que o exercício de sua liberdade religiosa lhe cause dano irreversível ou fatal? Este é um caso-limite que contrapõe o paternalismo à autonomia

112 Sobre laicidade e laicismo, v. Jónatas Eduardo Mendes Machado, Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva, 1996, p. 306: “A primeira expressão [laicidade] pretende designar uma atitude de neutralidade benevolente por parte dos poderes públicos, respeitadora do religioso nas suas diversas manifestações, nos termos da qual estes se abstém de tomar posição sobre o problema da verdade religiosa. A segunda [laicismo], como resulta do texto, designa uma verdadeira filosofia ou ideologia, no sentido da concepção global do mundo, da existência e da conduta moral”. Sobre o ponto, v. também Daniel Pêcego, Da educação religiosa em escolas públicas (Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação da UERJ), 2007, mimeografado, p. 30: “A visão do laicismo implica não apenas em estabelecer a diferenciação entre Estado e religião, como se afirmou acima, mas propugna a ignorância do fator religioso e até mesmo, em casos mais extremos, a hostilidade a ele”.

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individual. A indagação não comporta resposta juridicamente simples nem moralmente barata.

Parte IIAplicação dos fundamentos teóricos à hipótese examinada

V. Legitimidade da recusa de tratamento médico por fundamento religioso

40. Como se pretendeu demonstrar, a dignidade humana apresenta duas perspectivas que se complementam. A dignidade como autonomia tutela a capacidade de autodeterminação e a responsabilidade moral do indivíduo por suas escolhas, notadamente as de caráter existencial, dentre as quais se inclui a liberdade religiosa. A dignidade como heteronomia envolve a imposição de padrões sociais externos ao indivíduo, o que, no caso concreto, significaria a proteção objetiva da vida humana, mesmo contra a vontade do titular do direito. As duas dimensões da dignidade, como visto, não se excluem, muito embora se possa identificar uma primazia da dignidade como autonomia, tanto na filosofia moral contemporânea quanto no sistema constitucional brasileiro. As conclusões aqui sustentadas alinham-se a essa premissa. Sem a pretensão de veicular verdades objetivas e absolutas, passa-se à demonstração das razões pelas quais se afigura mais consistente com os princípios constitucionais o ponto de vista que tolera a recusa de determinados tratamentos médicos pelas testemunhas de Jeová, em respeito à sua convicção religiosa.

41. As testemunhas de Jeová professam a crença religiosa de que introduzir sangue no corpo pela boca ou pelas veias viola as leis de Deus, por contrariar o que se encontra previsto em inúmeras passagens bíblicas113. Daí a interdição à transfusão de sangue humano, que não pode ser excepcionada nem mesmo em casos emergenciais, nos quais exista risco de morte. Por essa razão, as testemunhas de Jeová somente aceitam submeter-se a tratamentos e alternativas médicas compatíveis com a interpretação que fazem das passagens bíblicas relevantes114. Tal visão tem merecido crítica severa de adeptos de outras confissões115 e de autores que têm se dedicado ao tema116, sendo frequentemente taxada de ignorância ou obscurantismo. Por contrariar de forma intensa o senso comum e por suas conseqüências potencialmente fatais, há quem sustente que a imposição de tratamento seria um modo de fazer o bem a esses indivíduos, ainda que contra sua vontade. Não se está de acordo com essa linha de entendimento. A crença religiosa constitui uma escolha existencial a ser protegida, uma liberdade básica da qual o indivíduo não pode ser privado sem sacrifício de sua dignidade. A transfusão compulsória violaria, em nome do direito à saúde ou do direito à vida, a dignidade humana, que é um dos fundamentos da República brasileira (CF, art. 1º, IV).

42. Veja-se que não cabe ao Estado avaliar o mérito da convicção religiosa, bastando constatar a sua seriedade. Em outras palavras, o que interessa aqui não é o acerto ou desacerto do dogma sustentado pelas testemunhas de Jeová, mas sim o direito, ostentado por cada um de seus membros, de orientar sua própria vida segundo esse padrão ético ou abandoná-lo a qualquer momento, segundo sua própria convicção. A proteção seletiva a determinados dogmas religiosos equivaleria à negação da liberdade de religião e do pluralismo, violando a exigência de que os diferentes grupos sociais sejam tratados com igual consideração e respeito. A única avaliação legítima de que se pode cogitar diz respeito à seriedade do fundamento religioso ou do que pode ser

113 Gênesis, 9:3-4; Levítico, 17:14; e Atos 15:28-29. Estas referências foram retiradas do sítio oficial das testemunhas de Jeová: http://www.watchtower.org/t/jt/index.htm. Acesso em: 2 abr. 2010. 114 Sobre o tema, v. Cláudio da Silva Leiria, Religiosos têm direito a negar transfusão de sangue. In: Consultor Jurídico 20 jun. 2009. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2009-jun-20/testemunhas-jeova-direito-negar-transfusao-sangue>. Acesso em: 2 abr. 2010.115 V. Pr. Airton Evangelista da Costa, Testemunhas de Jeová: transfusão de sangue é caso de polícia. In: http://solascriptura-tt.org/Seitas/TJ-TransfusaoSangueEhCasoPolicia-AECosta.htm. Acesso em: 2 abr. 2010. 116 V. Ana Carolina Reis Paes Leme, Transfusão de sangue em testemunhas de Jeová. A colisão de direitos fundamentais. Disponível em: <http://solascriptura-tt.org/Seitas/TJ-TransfusaoSangueEhCasoPolicia-AECosta.htm>. Acesso em: 2 abr. 2010.

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razoavelmente qualificado como religião117. Mas isso não está em questão no que diz respeito às testemunhas de Jeová, confissão tradicional que existe desde o final do século XIX e conta, segundo suas próprias informações, com 6 milhões de adeptos em mais de 230 países118. Vale o registro de que, na linha da conclusão que se acaba de enunciar, a recusa de tratamento pelas testemunhas de Jeová é aceita em diversos países119, dentre os quais a Itália120, a Espanha121, os EUA122 e o Canadá123. Além disso, tal possibilidade foi incorporada pelo Código de Ética da Sociedade Internacional de Transfusão de Sangue, adotado pela OMS em 2000, que dispõe: “o paciente deveria ser informado do conhecimento dos riscos e benefícios da transfusão de sangue e/ou terapias alternativas e tem o direito de aceitar ou recusar o procedimento”.

43. Relembre-se, como já assinalado, que a ordem jurídica respeita até mesmo decisões pessoais de risco que não envolvam escolhas existenciais, a exemplo da opção de praticar esportes como o alpinismo e o paraquedismo, ou de desenvolver atuação humanitária em zonas de guerra. Com mais razão deverá respeitar escolhas existenciais. Por tudo isso, é legítima a recusa de tratamento que envolva a transfusão de sangue por parte das testemunhas de Jeová. Tal decisão funda-se no exercício de liberdade religiosa, direito fundamental emanado da dignidade da pessoa humana, que assegura a todos o direito de fazer suas escolhas existenciais. Prevalece, assim, nesse caso, a dignidade como expressão da autonomia privada, não sendo permitido ao Estado impor procedimento médico recusado pelo paciente. Em nome do direito à saúde ou do direito à vida, o Poder Público não pode destituir o indivíduo de uma liberdade básica, por ele compreendida como expressão de sua dignidade.

VI. Condições para o exercício válido da autonomia

117 Ser fanático por um time de futebol ou por uma banda de rock certamente não preencheria o requisito.118 V. sítio oficial das testemunhas de Jeová: http://www.watchtower.org/t/jt/index.htm. Acesso em: 2 abr. 2010.119 Mas não em todos. Na França, por exemplo, o Conselho de Estado decidiu que o médico tem o dever de realizar o tratamento necessário, ainda que o paciente tenha recusado por qualquer razão (Ass., 26.out.2001, nº 198546).120 Corte de Cassação italiana Sentença no 23676/2008 da Corte de Cassação italiana, que reconhece o “princípio mais geral (de inquestionável importância constitucional, que emerge, dentre outros, tanto do Código de Ética Médica como do documento de 20.6.1992 da Comissão Nacional de Bioética) sob a égide do qual deve ser reconhecido ao paciente um verdadeiro direito de não se curar, ainda que tal conduta ponha em risco a própria vida” (tradução livre); Sentença nº 11335/2008: “(...) a manifestação do consentimento ao tratamento por parte do paciente constitui um verdadeiro requisito para a licitude da atividade do médico, a quem não é atribuído um direito genérico e incondicional de curar, ao passo que o ordenamento reconhece ao mesmo paciente, não apenas a faculdade de escolher entre diferentes soluções terapêuticas, mas também a de eventualmente rejeitar qualquer terapia ou a de interrompê-la a qualquer tempo” (tradução livre).121 Espanha, Lei nº 41/2002: “Artículo 2. Principios básicos. (...) 3. El paciente o usuario tiene derecho a decidir libremente, después de recibir la información adecuada, entre las opciones clínicas disponibles. 4. Todo paciente o usuario tiene derecho a negarse al tratamiento, excepto en los casos determinados en la Ley. Su negativa al tratamiento constará por escrito”.122 St. Mary’s Hosp. v. Ramsey (465 So.2d 666 (Fla. 4th DCA 1985)): “A preservação da vida é não somente uma reconhecida meta a que o Estado, os médicos e os agentes de saúde aspiram, é uma meta que compele. Porém, esta não é uma ordem incontornável. Sustentamos, até este momento, que um paciente adulto tem o direito constitucional à privacidade, à liberdade de escolha e o direito à autodeterminação. (...) Desse modo, se um paciente adulto, competente, recusa a transfusão de sangue, pareceria que ele tem o direito a fazê-lo, visto que não há uma razão insuperável por que sua vida devesse ser preservada. Ademais, transfusões de sangue não são livres de risco e são de conhecimento geral a existência de conseqüências adversas, talvez repugnantes para o receptor, as quais podem advir de uma transfusão de sangue impuro” (tradução livre).123 Canadá, Health Care Consent Act, arts. 5º, 10 e 26: “Artigo 5º. Uma pessoa pode, enquanto capaz, expressar desejos referentes a tratamento, admissão a agências de saúde ou serviço de assistência pessoal (...). Artigo 10. (1) Um agente da saúde que proponha tratamento a uma pessoa não deve realizar o tratamento, e deve tomar passos razoáveis para assegurar que não será realizado, a não ser que, (a) ele ou ela tenha a opinião de que a pessoa é capaz em relação ao tratamento, e a pessoa tiver dado consentimento; ou (b) ele ou ela tenha a opinião de que a pessoa é incapaz em relação ao tratamento, e o responsável por tomar decisões em nome dessa pessoa tenha dado consentimento em seu nome, de acordo com este ato. (...) Artigo 26. O agente da saúde não deverá realizar tratamento, conforme o estabelecido na seção 25, se o agente da saúde tiver motivos razoáveis para acreditar que a pessoa, enquanto capaz e após completar 16 anos de idade, expressou um desejo, aplicável às circunstâncias, de recusa a consentimento ao tratamento” (tradução livre).

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44. Assentada a possibilidade de recusa de tratamento pelas testemunhas de Jeová, resta abordar uma questão central para a legitimidade da conclusão enunciada. Além de proteger a capacidade de autodeterminação moral do indivíduo, a dignidade como autonomia exige que lhe sejam asseguradas condições próprias para a tomada de decisões. Entra em cena, então, um requisito essencial para a disposição de um direito fundamental, que se torna tanto mais relevante quando se trate da recusa de tratamento, com risco de morte. Trata-se da validade e da adequação da manifestação de vontade, vale dizer, o consentimento genuíno. Para que ele se caracterize, é imperativo verificar a presença de aspectos ligados ao sujeito do consentimento, à liberdade de escolha e à decisão informada124.

45. O sujeito do consentimento125 é o titular do direito fundamental em questão, que deverá manifestar de maneira válida e inequívoca a sua vontade. Para que ela seja válida, deverá ele ser civilmente capaz e estar em condições adequadas de discernimento para expressá-la. Portanto, além da capacidade, o titular do direito deverá estar apto para manifestar sua vontade, o que exclui as pessoas em estados psíquicos alterados, seja por uma situação traumática, por adição a substâncias entorpecentes ou por estarem sob efeito de medicamentos que impeçam ou dificultem de forma significativa a cognição. Para que se repute o consentimento como inequívoco, ele deverá ser, ainda, personalíssimo, expresso e atual. Personalíssimo exclui a recusa feita mediante representação, somente se admitindo que o próprio interessado rejeite a adoção do procedimento126. A decisão, ademais, haverá de ser expressa, não se devendo presumir a recusa de tratamento médico. É assim na Itália127 e na Espanha, onde tem de ser escrita128. Ainda que essa exigência possa não ser absoluta, ela certamente é recomendável, inclusive para resguardo do médico e do Estado. Por fim, a vontade deve ser atual, manifestada imediatamente antes do procedimento, e revogável129.

124 Para um debate aprofundado sobre o tema do consentimento genuíno, v. Letícia de Campos Velho Martel, Direitos fundamentais indisponíveis – os limites e os padrões do consentimento para a autolimitação do direito fundamental à vida, mimeografado, 2010, p. 212-67.125 A locução “sujeito do consentimento” foi utilizada por Deryck Beyleveld e Roger Brownsword, Consent in law, 2007. 126 Veja-se que no direito brasileiro até mesmo a opção pela nacionalidade brasileira é personalíssima (STF, DJ 22 abr. 2005, RE 418.096/RS, Rel. Min. Carlos Velloso). Não faria sentido que a assunção de um risco de morte não fosse. É assim, também, no Reino Unido. As instruções para os living wills (testamentos vitais) encontram-se disponíveis em: <http://www.direct.gov.uk/en/Governmentcitizensandrights/Death/Preparation/DG_10029683>. Acesso em: 10.fev.2010.127 Corte de Cassação italiana, Sentença nº 23676/2008: “(...) na hipótese de grave e iminente perigo para a vida do paciente, o dissenso do mesmo deve ser objeto de manifestação expressa, clara, atual, informada. Isto é, deve exprimir uma vontade não abstratamente hipotética, mas concretamente estabelecida, uma intenção não meramente programática, mas absolutamente específica, uma cognição de fatos não meramente ‘ideológica’, mas fruto de informações específicas acerca de sua própria situação de saúde; um juízo e não uma ‘pré-compreensão’: em suma, um dissenso que siga e não preceda as informações relativas à caracterização de um perigo de vida iminente e inevitável de qualquer outra forma, um dissenso que seja atual e não preventivo, uma recusa ex post, e não ex ante, na ausência de qualquer consciência da gravidade de suas condições de saúde atuais” (negrito acrescentado; tradução livre).128 Lei nº 41/2002: “Artículo 2. Principios básicos. (...) 4. Todo paciente o usuario tiene derecho a negarse al tratamiento, excepto en los casos determinados en la Ley. Su negativa al tratamiento constará por escrito”.129 Não se pode aceitar que alguém esteja vinculado por uma recusa de tratamento efetuada muito tempo antes do procedimento. Em qualquer caso, a manifestação pode ser revogada a qualquer tempo. Sobre a questão dos “testamentos vitais”, v. Diaulas Costa Ribeiro, Autonomia: viver a própria vida e morrer a própria morte, Cadernos Saúde Pública 22:1750, 2006: “A autonomia não dispensa a capacidade para expressá-la. Há situações em que o paciente se torna incapaz de decisões instantes, como nos estados de inconsciência em geral, justificando o surgimento dos testamentos vitais e das diretivas antecipadas, instrumentos de manifestação de vontade para o futuro, com a indicação negativa ou positiva de tratamentos e assistência médica”. Admitindo o testamento vital no Brasil, v. Celso Ribeiro Bastos, Direito de recusa de pacientes submetidos a tratamento terapêutico às transfusões de sangue, por razões científicas e convicções religiosas, RT 787:506, 2001: “Tem validade legal a manifestação de vontade antecipada do paciente, por escrito, recusando determinado tratamento médico, para o caso de ele vir a estar inconsciente? Em termos de manifestação de vontade, há de se atentar apenas para os requisitos de sua validade, ou seja, agente capaz, objeto não proibido pelo Direito e forma prescrita em lei. No caso presente, cumpre acentuar que não se trata de objeto proibido

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46. Para que seja considerado genuíno, o consentimento precisará também ser livre, fruto de uma escolha do titular, sem interferências indevidas. Isso significa que ele não deve ter sido produto de influências externas indevidas, como induções, pressões ou ameaças. Por derradeiro, o consentimento tem de ser informado, o que envolve o conhecimento e a compreensão daquele que vai consentir acerca de sua situação real e das consequências de sua decisão. Nessa linha, os elementos relevantes devem ser transmitidos em linguagem acessível ao indivíduo, conforme indicado na Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde (Portaria MS nº 675/2006), em seu Terceiro Princípio, item IV, e na Lei Estadual (RJ) nº 3.613/2001130. Essa mesma advertência é encontrada na Declaração sobre a Promoção dos Direitos dos Pacientes na Europa131, editada pela Organização Mundial da Saúde, e no Health Care Consent Act canadense132.

VII. Interpretação adequada dos enunciados legais e ético-profissionais pertinentes

47. As conclusões a que se chegou baseiam-se no sistema constitucional, mais especificamente na interpretação sistemática do princípio da dignidade da pessoa humana e dos direitos à vida e à liberdade religiosa. Os dispositivos constitucionais são dotados de força normativa e superioridade hierárquica, de modo que a inexistência de lei específica sobre o tema não impede a incidência da solução constitucionalmente adequada. Na verdade, nos termos da conclusão apurada, a imposição do tratamento viola o princípio da dignidade da pessoa humana, de modo que eventual lei ou ato normativo que dispusesse nesse sentido seria inconstitucional. Por esse mesmo fundamento, o exercício da escolha consciente não depende de manifestação judicial133. Sem prejuízo dessas considerações, convém tratar brevemente de alguns dispositivos legais e

pelo Direito, antes sendo decorrência direta do princípio da liberdade”; Maria de Fátima Freire de Sá e Ana Carolina Brochado Teixeira, Responsabilidade médica e objeção de consciência religiosa, Revista Trimestral de Direito Civil 21:133, 2005: “A segunda situação que vislumbramos é a de paciente maior, mas inconsciente. Aqui temos duas outras situações. Caso haja prova acerca da crença adotada pelo paciente, seja através de documento de identificação religioso, seja através de declaração firmada pela pessoa, registrada em cartório, ou declaração que tenha a assinatura de duas testemunhas, onde rechaça qualquer tratamento que tenha por finalidade a transfusão sanguínea, não vemos outra alternativa senão privilegiar sua vontade. Caso contrário, ou seja, inexistindo provas, o ato deve ser praticado. Nossa opinião é coerente, portanto, com um dos fundamentos constitucionais da República Federativa do Brasil, qual seja, a dignidade da pessoa humana. Também a liberdade é princípio constitucional que deve ser materialmente interpretado. Ora, submeter alguém a uma transfusão de sangue mediante o emprego da força significa fazê-la objeto de tratos desumanos e degradantes. A possibilidade de decidir o próprio destino diante das encruzilhadas da vida é um ato que afeta a liberdade mais íntima de autodeterminação”.130 Lei Estadual nº 3.613/2001, art. 2º, VI: “São direitos dos usuários dos serviços de saúde no Estado do Rio de Janeiro: (...) VI – receber informações claras, objetivas e compreensíveis sobre: a) hipóteses diagnósticas; b) diagnósticos realizados; c) exames solicitados; d) ações terapêuticas; e) riscos, benefícios e inconvenientes das medidas diagnósticas e terapêuticas propostas; f) duração prevista do tratamento proposto; g) no caso de procedimentos de diagnósticos e terapêuticos invasivos, a necessidade ou não de anestesia, o tipo de anestesia a ser aplicada, o instrumental a ser utilizado, as partes do corpo afetadas, os efeitos colaterais, os riscos e consequências indesejáveis e a duração esperada do procedimento; h) exames e condutas a que será submetido; i) a finalidade dos materiais coletados para exame; j) alternativas de diagnósticos e terapêuticas existentes, no serviço de atendimento ou em outros serviços; e l) o que for necessário; VII – consentir ou recusar, de forma livre, voluntária e esclarecida, com adequada informação, procedimentos diagnósticos ou terapêuticos a serem realizados (...)”.131 OMS, Declaração sobre a Promoção dos Direitos dos Pacientes na Europa, item nº 2: “2. Informação. (...) 2.2. Os pacientes têm o direito de ser inteiramente informados sobre seu estado de saúde, incluindo fatos médicos sobre sua condição, sobre o procedimento médico proposto, além dos potenciais riscos e benefícios de cada procedimento; sobre alternativas aos procedimentos propostos, incluindo os efeitos do não-tratamento; e sobre o diagnóstico, prognóstico e progresso do tratamento. (...) 2.4. As informações devem ser comunicadas ao paciente de forma coerente à sua capacidade de entender, minimizando o uso de terminologia técnica e pouco familiar. Se o paciente não falar a linguagem comum, alguma forma de interpretação deve estar disponível. (...) 2.7. Pacientes devem ter a possibilidade de obter uma segunda opinião” (tradução livre).132 Canadá, Health Care Consent Act, art. 11 (2): “(2) O consentimento ao tratamento é informado se, antes de dá-lo, (a) a pessoa recebeu a informação sobre as questões relacionadas na subseção (3) que uma pessoa razoável demandaria, nas mesmas circunstâncias, para tomar uma decisão sobre o tratamento; e (b) a pessoa recebeu respostas a seus pedidos por informação adicional sobre essas matérias”.

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regulamentares que apresentam pertinência em relação ao tema.

1. Código Civil

48. Embora não se dirijam especificamente à hipótese aqui analisada, há dois dispositivos do Código Civil que merecem ser considerados no presente estudo:

“Art. 11. Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária.(...)Art. 15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”.

49. Na sua dicção literal, o art. 11 parece consagrar a tese de que os direitos da personalidade – entre os quais se incluem os direitos à vida e à integridade física – seriam insuscetíveis de qualquer limitação, inclusive voluntária. O dispositivo requer algum esforço hermenêutico, sob pena de incorrer em flagrante inconstitucionalidade, esvaziando os direitos que se destina a proteger, bem como a liberdade individual. Isso porque, como demonstrado, o exercício da autonomia pessoal envolve escolhas que, vistas por um observador externo, poderiam ser facilmente enquadradas no conceito de renúncia. Não é o caso de repisar os muitos exemplos que foram fornecidos. No momento, basta constatar que o excesso retórico do art. 11 deve ser harmonizado com o restante da ordem jurídica.

50. Em uma sociedade plural, é inevitável que os direitos da personalidade entrem em conflitos potenciais ou reais entre si, exigindo temperamentos e até a imposição de restrições recíprocas ou condicionadas. O ponto não é minimamente controverso, aceitando-se de forma pacífica, como já registrado, que não há direitos absolutos. Nesse sentido, um enunciado normativo que pretenda estabelecer a impossibilidade genérica de restrição aos direitos da personalidade, ainda que voluntária, acaba por evocar uma realidade não apenas contrafactual, mas também incompatível com o pluralismo consagrado pela Constituição. A única leitura possível de tal dispositivo seria no sentido de entender que ele veda disposições caprichosas ou fúteis, sem prejuízo da possibilidade de que a convivência entre direitos distintos imponha escolhas e compromissos. De outra forma, o art. 11 será, mais do que inconstitucional, verdadeiramente inaplicável. Afinal, em um conflito entre direitos da personalidade, simplesmente não há como figurar uma solução em que ambos incidam sem qualquer temperamento.

51. O art. 15, por sua vez, não diz nada a respeito das situações em que a recusa de tratamento médico possa ocasionar ou agravar um risco para a vida do paciente. Ao contrário, ele permite a recusa de tratamento que seja, em si mesmo, arriscado. Veja-se que o dispositivo não faz nenhuma ressalva, não se cogitando da possibilidade de que o médico imponha o tratamento arriscado por considerar que a inação levaria à morte certa. Assim, o dispositivo não consagra a ideia de que a vida deva ser mantida a qualquer custo. Em vez disso, respeita a escolha pessoal, que pode ter se baseado na perspectiva de uma sobrevida ou mesmo no receio da perda da consciência e da autonomia moral. Nesse sentido, é até possível enxergar o dispositivo como – mais uma – confirmação de que o valor objetivo da vida humana não é tratado de forma absoluta na ordem jurídica brasileira, devendo ceder espaço diante de escolhas existenciais especialmente relevantes134.133 Como referido no início, a mesma conclusão foi sustentada pelo Professor e Procurador Gustavo Binenbojm no parecer que produziu acerca da questão.134 Gustavo Tepedino, Heloisa Helena Barboza e Maria Celina Bodin de Moraes, Código Civil interpretado conforme a Constituição da República, v. 1, 2004, p. 41: “Na esteira de tais considerações, há de ser interpretado o art. 15: não só o constrangimento que induz alguém a se submeter a tratamento com risco deve ser vedado, como também a intervenção médica imposta a paciente que, suficientemente informado, prefere a ela não se submeter, por motivos que não sejam fúteis e que se fundem na afirmação de sua própria dignidade. Nesta sede, a normativa deontológica há de se conformar

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52. Essa leitura se compatibiliza com aquela que se acaba de fazer a respeito do art. 11, também do Código Civil: as recusas de tratamento – como eventuais restrições ou conformações de direitos fundamentais – são legítimas desde que não sejam caprichosas, i.e., desde que haja um fundamento consistente associado ao exercício da capacidade de autodeterminação, derivada da dignidade como autonomia. Com isso, evita-se a funcionalização dos direitos, sem recair em um individualismo exagerado.

2. Código Penal

53. O Código Penal também não traz nenhum dispositivo específico sobre a questão. A única menção próxima consta do art. 146, que criminaliza o constrangimento ilegal, mas ressalva a conduta do médico que realiza procedimento sem obter o consentimento do paciente em casos de iminente risco de vida135. Como é fácil perceber, o artigo não trata como crime a conduta do médico que respeite a vontade do paciente. Nesse sentido, o máximo que se poderia extrair diretamente da disposição seria a inexistência de responsabilidade penal do médico em caso de imposição do tratamento.

54. Na verdade, porém, é perfeitamente possível dar ao referido artigo uma interpretação conforme a Constituição, limitando sua aplicação aos casos em que, havendo iminente risco de vida, não seja possível a obtenção do consentimento. Tal leitura se harmoniza com as conclusões obtidas no presente estudo, em que se assentou a necessidade de consentimento personalíssimo, livre e informado para a recusa de tratamento por motivação religiosa. No entanto, obedecidos esses requisitos, a manifestação da vontade deverá ser respeitada por força dos princípios constitucionais que incidem diretamente na hipótese. Por tais fundamentos, seria impossível qualificar a conduta do médico como homicídio ou omissão de socorro, ou ainda enquadrá-la em qualquer outro tipo em tese cogitável.

3. O novo Código de Ética Médica

55. Por fim, faz-se um registro de dois atos editados por conselhos de regulamentação da profissão médica. Embora disposições dessa natureza não sejam capazes de se sobrepor à conclusão extraída diretamente do texto constitucional, é natural que a comunidade médica atente para as suas previsões, justificando o comentário. O primeiro ato regulamentar a ser analisado é o novo Código de Ética do CFM – Conselho Federal de Medicina, em vigor a partir de abril de 2010. Embora esse diploma não discipline o tema aqui tratado de forma específica ou conclusiva, é possível dar às suas previsões interpretação compatível com a solução constitucionalmente imposta, evitando-se que seja considerado incompatível com a Constituição. A demonstração do argumento não é complexa.

56. Em primeiro lugar, veja-se que o novo Código de Ética estabelece como princípio fundamental o respeito à dignidade do paciente, vedando violações a sua integridade, expressão que naturalmente não se limita à dimensão física136. A invocação da dignidade como diretriz fundamental abre caminho para todas as considerações desenvolvidas no presente estudo, no qual se

aos princípios constitucionais”. No mesmo sentido, v. Diaulas Costa Ribeiro, Autonomia: viver a própria vida e morrer a própria morte, Cadernos Saúde Pública 22:1750, 2006, para quem: “[a] leitura desse artigo ‘conforme a Constituição’ deve ser: ninguém, nem com risco de vida, será constrangido a tratamento ou a intervenção cirúrgica, em respeito à sua autonomia, um destacado direito desta Era dos Direitos”.135 Código Penal, art. 146: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda: Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa. (...) § 3º - Não se compreendem na disposição deste artigo: I - a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida; II - a coação exercida para impedir suicídio”.136 Código de Ética do Conselho Federal de Medicina, Capítulo I, item VI: “O médico guardará absoluto respeito pelo ser humano e atuará sempre em seu benefício. Jamais utilizará seus conhecimentos para causar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para permitir e acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade”.

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pretendeu demonstrar que a recusa de tratamento por motivação religiosa deve ser regida pela incidência da dignidade como autonomia. Todas as demais previsões pertinentes do Código podem ser interpretadas em reforço a essa conclusão ou, quando menos, de forma a se afastar eventual contradição. Por sua relevância para o exercício profissional da medicina, o ponto merece ser explicitado.

57. Já nos seus consideranda, o Código de Ética assume como premissa a “busca de melhor relacionamento com o paciente e a garantia de maior autonomia à sua vontade”. De forma ainda mais expressiva, ao tratar dos direitos do médico, o diploma lhe assegura a prerrogativa de indicar o tratamento que lhe pareça adequado137. A inexistência de um poder para obrigar o paciente a receber determinado tratamento é confirmada por outro dispositivo – incluído no capítulo referente aos direitos humanos –, que veda de forma taxativa a conduta de “deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo”138. Essas duas disposições alinham-se inteiramente com o novo paradigma da ética médica e com as conclusões aqui produzidas, no sentido de se privilegiar a dignidade como autonomia.

58. A sequência da análise traz novos elementos em amparo a essa constatação. No capítulo relativo aos princípios fundamentais, encontra-se – além da já mencionada previsão de respeito à dignidade –, a exigência de que o médico respeite a orientação do paciente na definição dos métodos de diagnóstico ou tratamento, observada sua consciência, os ditames legais e as indicações científicas pertinentes139. Como se vê, o dispositivo estabelece de forma clara a necessidade de consentimento do paciente, ao passo que as exigências indicadas não parecem justificar a imposição de tratamento. O que está dito é que o médico pode se recusar a conduzir o tratamento na forma desejada pelo paciente – hipótese em que deverá indicar outro médico e velar pela transição segura140 – e que não poderá prescrever terapia vedada pela lei ou não recomendada pelo conhecimento médico, o que chega a ser intuitivo, não se cogitando de uma suposta prerrogativa do paciente para obrigar o profissional a adotar técnicas heterodoxas ou incompatíveis com seus padrões morais.

59. Ainda em reforço a tais afirmações, o Código proíbe o médico de “desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte”141. Ao mesmo tempo, impõe ao profissional que se valha de todos os meios de diagnóstico e tratamento que estejam ao seu alcance e sejam cientificamente reconhecidos142. Como é intuitivo, ambas as disposições devem ser interpretadas à luz do direito humano de decidir sobre a realização de tratamentos, estabelecido de forma taxativa e sem reservas.

137 Código de Ética do Conselho Federal de Medicina, Capítulo II, item II: “Indicar o procedimento adequado ao paciente, observadas as práticas cientificamente reconhecidas e respeitada a legislação vigente”.138 Código de Ética do Conselho Federal de Medicina, art. 24.139 Código de Ética do Conselho Federal de Medicina, Capítulo I, item XXI: “No processo de tomada de decisões profissionais, de acordo com seus ditames de consciência e as previsões legais, o médico aceitará as escolhas de seus pacientes, relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles expressos, desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas”.140 A prerrogativa de se afastar de tratamento que contrarie sua consciência é prevista entre os direitos do médico. V. Código de Ética do Conselho Federal de Medicina, Capítulo II, item IX: “Recusar-se a realizar atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência”. No que concerne ao dever de assegurar a transição adequada do paciente para os cuidados de outro profissional, confira-se o art. 36, § 1º, do mesmo diploma: “Ocorrendo fatos que, a seu critério, prejudiquem o bom relacionamento com o paciente ou o pleno desempenho profissional, o médico tem o direito de renunciar ao atendimento, desde que comunique previamente ao paciente ou a seu representante legal, assegurando-se da continuidade dos cuidados e fornecendo todas as informações necessárias ao médico que lhe suceder”.141 Código de Ética do Conselho Federal de Medicina, art. 31.142 Código de Ética do Conselho Federal de Medicina, art. 32: “Deixar de usar todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento, cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente”.

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60. Assim, a ressalva relativa ao risco iminente de morte só pode ser compreendida como uma dispensa da obtenção de consentimento nos casos em que isso seja impossível, e.g., em razão do estado de inconsciência. Aliás, tal leitura vai ao encontro da ressalva, feita no presente estudo, de que se deve realizar a transfusão de sangue nas situações em que não seja possível obter ou confirmar a recusa personalíssima, expressa e informada do paciente, mesmo contra a vontade de familiares ou amigos. Da mesma forma, a exigência de que sejam empregados todos os recursos disponíveis não autoriza que estes sejam impostos ao paciente. Em vez disso, o dispositivo parece impedir que meios disponíveis ao médico e consentidos pelo paciente deixem de ser utilizados por fatores externos, como os eventuais custos.

61. Finalmente, duas previsões que tratam sobre tema diverso e igualmente polêmico ilustram a prevalência da dignidade como autonomia na sistemática do Código de Ética. A primeira, incluída no capítulo dos princípios fundamentais, estabelece que, em situações de doença irreversível ou terminal, o médico se abstenha de empreender medidas obstinadas e se concentre na melhoria da qualidade de vida do paciente143. Tal disposição é complementada por outra de mesmo teor, na qual se faz referência expressa ao necessário respeito à vontade do paciente144. O conjunto formado por esses dois artigos corrobora a conclusão de que o novo Código de Ética do Conselho Federal de Medicina se pauta pela ideia de dignidade como valor complexo, e não pela atribuição de peso supostamente absoluto ao valor objetivo da vida humana. Basta essa constatação para que o diploma se abra a uma interpretação conforme ao sistema constitucional, permitindo que se leve em conta a dignidade, em sua dupla perspectiva. Na hipótese de que se trata – recusa de determinados tratamentos por testemunhas de Jeová – tal interpretação conduz à prevalência da autonomia em respeito à decisão existencial fundada em convicção religiosa.

62. Veja-se que não se está propondo qualquer distorção dos enunciados contidos no referido diploma. Ao contrário, cuida-se apenas de interpretar os dispositivos supostamente lacônicos ou dúbios de forma a realizar a diretriz explícita do artigo que enuncia, como direito humano, a prerrogativa do paciente de decidir autonomamente sobre a realização de tratamentos, ao mesmo tempo em que proíbe o médico de se valer de coação. Ademais, convém lembrar uma vez mais que a possibilidade de recusa na situação em tela foi extraída diretamente da Constituição, de modo que a eventual incompatibilidade do Código de Ética nesse particular redundaria na sua invalidade, e não no afastamento das conclusões obtidas. O que se defende, no momento, é a possibilidade de conferir a esse ato normativo um sentido conforme a Constituição.

63. No entanto, se é verdade que as disposições do Código de Ética do CFM comportam esse tipo de leitura, o mesmo não se pode dizer da Resolução nº 136/99, do CREMERJ – Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro, que trata especificamente da recusa em receber transfusão de sangue e hemoderivados145. Esse ato determina que os médicos tentem evitar a necessidade de transfusões, mas prevê a sua realização forçada em caso de risco iminente à vida. Pelos razões expostas ao longo do estudo, verifica-se aqui uma incompatibilidade incontornável com o princípio da dignidade da pessoa humana na perspectiva da autonomia, bem como violações

143 Código de Ética do Conselho Federal de Medicina, Capítulo I, item XXII: “Nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados”.144 Código de Ética do Conselho Federal de Medicina, art. 41: “Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal. Parágrafo único. Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal”.145 Resolução CREMERJ nº 136/99: “Art. 1º. O médico, ciente formalmente da recusa do paciente em receber transfusão de sangue e/ou seus derivados, deverá recorrer a todos os métodos alternativos de tratamento ao seu alcance. Art. 2º. O médico, sentindo a impossibilidade de prosseguir o tratamento na forma desejada pelo paciente, poderá, nos termos do Parágrafo Primeiro, do artigo 61, do Código de Ética Médica, renunciar ao atendimento. (...) Art. 3º. O médico, verificando a existência de risco de vida para o paciente, em qualquer circunstância, deverá fazer uso de todos os meios ao seu alcance para garantir a saúde do mesmo, inclusive efetuando a transfusão de sangue e/ou seus derivados, comunicando, se necessário, à Autoridade Policial competente sobre sua decisão, caso os recursos utilizados sejam contrários ao desejo do paciente ou de seus familiares”.

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adicionais à liberdade de religião, à igualdade e ao pluralismo. Diante dessa constatação, sequer é necessário enveredar pela discussão da incompatibilidade entre a Resolução e o novo Código de Ética do CFM, interpretado à luz da Constituição.

Conclusão

64. As conclusões obtidas ao longo do presente estudo podem ser sumariadas nas seguintes proposições objetivas:

A. Nas últimas décadas, a ética médica evoluiu do paradigma paternalista, em que o médico decidia por seus próprios critérios e impunha terapias e procedimentos, para um modelo fundado na autonomia do paciente. A regra, no mundo contemporâneo, passou a ser a anuência do paciente em relação a qualquer intervenção que afete sua integridade.B. A dignidade da pessoa humana é o fundamento e a justificação dos direitos fundamentais. Ela tem uma dimensão ligada à autonomia do indivíduo, que expressa sua capacidade de autodeterminação, de liberdade de realizar suas escolhas existenciais e de assumir a responsabilidade por elas. A dignidade pode envolver, igualmente, a proteção de determinados valores sociais e a promoção do bem do próprio indivíduo, aferido por critérios externos a ele. Trata-se da dignidade como heteronomia. Na Constituição brasileira, é possível afirmar a predominância da idéia de dignidade como autonomia, o que significa dizer que, como regra, devem prevalecer as escolhas individuais. Para afastá-las, impõe-se um especial ônus argumentativo.C. É legítima a recusa de tratamento que envolva a transfusão de sangue, por parte das testemunhas de Jeová. Tal decisão funda-se no exercício de liberdade religiosa, direito fundamental emanado da dignidade da pessoa humana, que assegura a todos o direito de fazer suas escolhas existenciais. Prevalece, assim, nesse caso, a dignidade como expressão da autonomia privada, não sendo permitido ao Estado impor procedimento médico recusado pelo paciente. Em nome do direito à saúde ou do direito à vida, o Poder Público não pode destituir o indivíduo de uma liberdade básica, por ele compreendida como expressão de sua dignidade.D. Tendo em vista a gravidade da decisão de recusa de tratamento, quando presente o risco de morte, a aferição da vontade real do paciente deve estar cercada de cautelas. Para que o consentimento seja genuíno, ele deve ser válido, inequívoco e produto de uma escolha livre e informada.

É como me parece. Rio de Janeiro, 5 de abril de 2010

LUÍS ROBERTO BARROSOProcurador do Estado do Rio de Janeiro

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VISTO

APROVO o parecer nº 01/2010–LRB, da lavra do Procurador do Estado LUÍS ROBERTO BARROSO, que examina os aspectos jurídicos envolvidos na recusa das testemunhas de Jeová à transfusão de sangue humano, em nome da crença religiosa de que introduzir sangue no corpo pela boca ou pelas veias viola leis de Deus que não poderiam ser excepcionadas nem mesmo em casos emergenciais, com risco de morte.

Antes, porém, neste mesmo processo, o Procurador-Chefe da Procuradoria de Serviços Públicos, FLÁVIO DE ARAÚJO WILLEMAN, em minucioso pronunciamento, concluiu que haveria de prevalecer, na hipótese, a proteção da vida humana, mesmo contra a vontade do titular do direito. Os argumentos lançados para sustentar a conclusão podem ser assim resumidos: (i) a legislação pertinente não faculta às pessoas a disposição da própria vida por razões de ordem religiosa; (ii) as diretivas éticas dos Conselhos de Medicina obrigam os médicos a proceder ao tratamento necessário para salvar a vida do paciente, sem o seu consentimento ou a despeito da sua recusa; (iii) o Código Civil de 2002, “em franca interpretação autêntica da CRFB/88”, determina a irrenunciabilidade dos direitos da personalidade, bem como a indisponibilidade do corpo humano; (iv) “o direito fundamental à vida humana deve ser considerado um direito universal quase que absoluto, não podendo ser relativizado e/ou flexibilizado para atender a culturas regionais, religiosas e/ou fundamentalistas”; (v) o valor da dignidade humana engloba a possibilidade de o ser humano responder pelas suas decisões existenciais, mas “essa concepção não pode ser levada ao extremo, sobretudo em um país como o Brasil, dotado de quantidade imensa de seitas e religiões”; (vi) a liberdade religiosa não pode impedir o Estado de “agir em defesa da vida humana ao ter ciência de que pessoas estão colocando em risco as próprias vidas – por fundamento religioso – e podem vir a atingir a esfera jurídica de terceiros”, já que os médicos poderiam estar sujeitos a sanções administrativas, civis e criminais; (vii) a liberdade religiosa deve ser exercida de modo razoável e proporcional, e “a opção do Testemunha de Jeová viola (...) o princípio da razoabilidade (...)”, na medida em que sacrifica o seu direito à vida; (viii) “a paciente, ao se dirigir ao hospital, optou pela salvação de sua vida, cabendo, portanto, o método e o tratamento final ao médico”.

Ao assim se pronunciar, o Procurador-Chefe FLÁVIO DE ARAÚJO WILLEMAN divergiu do entendimento manifestado pelo Procurador do Estado Gustavo Binenbojm, que se posicionara favoravelmente ao direito de recusa de tratamento. Após anotar que o paradigma do paternalismo médico vem sendo substituído pela autonomia do paciente, destacou o parecerista, em síntese, que: (i) o item nº 2 da Resolução CFM nº 1.021/80 deve ser visto como “expressão atávica do paternalismo ou beneficência médica”, na medida em que deixa de respeitar a vontade do paciente quando há risco de morte; (ii) a objeção de consciência das testemunhas de Jeová corresponde ao exercício da autonomia privada do indivíduo, materializada nos direitos fundamentais à privacidade – autodeterminação no plano das escolhas privadas –, ao próprio corpo e à liberdade religiosa; (iii) não cabe ao médico substituir-se a um paciente maior, capaz e informado para reavaliar sua escolha existencial; (iv) o direito à diferença exige do Estado que tolere e proteja posições jurídicas, ainda que consideradas exóticas pelos demais; (v) a decisão do paciente, que se recusa a receber tratamento, é autoexecutória em relação ao médico, na medida em que se funda diretamente nos direitos fundamentais envolvidos, de modo que não se exige a judicialização do tema; e, a despeito de a consulta não abranger o ponto, (vi) no caso de a recusa dizer respeito à saúde de menor de idade, sua manifestação de vontade poderia ser submetida ao Poder Judiciário, a fim de se aferir sua maturidade para tomar essa decisão.

À vista da divergência instalada, com respeitáveis argumentos num e noutro sentido, solicitei ainda o pronunciamento do Procurador do Estado LUÍS ROBERTO BARROSO, cujo parecer ora aprovo.

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No entender do parecerista, a recusa a determinados tratamentos médicos, em nome de convicção religiosa, deve ser respeitada, “não cabendo ao Estado avaliar o mérito da convicção religiosa, bastando constatar a sua seriedade. Em outras palavras, o que interessa aqui não é o acerto ou desacerto do dogma sustentado pelas testemunhas de Jeová, mas sim o direito, ostentado por cada um de seus membros, de orientar sua própria vida segundo esse padrão ético ou abandoná-lo a qualquer momento, segundo sua própria convicção. A proteção seletiva a determinados dogmas religiosos equivaleria à negação da liberdade de religião e do pluralismo, violando a exigência de que os diferentes grupos sociais sejam tratados com igual consideração e respeito. A única avaliação legítima de que se pode cogitar diz respeito à seriedade do fundamento religioso ou do que pode ser razoavelmente qualificado como religião. Mas isso não está em questão no que diz respeito às testemunhas de Jeová, confissão tradicional que existe desde o final do século XIX e conta, segundo suas próprias informações, com 6 milhões de adeptos em mais de 230 países. Vale o registro de que, na linha da conclusão que se acaba de enunciar, a recusa de tratamento pelas testemunhas de Jeová é aceita em diversos países, dentre os quais a Itália, a Espanha, os EUA e o Canadá. Além disso, tal possibilidade foi incorporada pelo Código de Ética da Sociedade Internacional de Transfusão de Sangue, adotado pela OMS em 2000, que dispõe: o paciente deveria ser informado do conhecimento dos riscos e benefícios da transfusão de sangue e/ou terapias alternativas e tem o direito de aceitar ou recusar o procedimento”.

A conclusão a que chegaram os Procuradores do Estado GUSTAVO BINENBOJM e LUÍS ROBERTO BARROSO é a que, a meu ver, melhor concilia a aplicação, na hipótese, do princípio da dignidade da pessoa humana e dos direitos à vida e à liberdade religiosa, com a nota de que, quando presente o risco de morte, a aferição da vontade real do paciente deve estar cercada de todas as cautelas possíveis.

A despeito dessa convicção, certo é que não será tranquila, ao ângulo diciplinar, a situação dos médicos que, nessa mesma perspectiva, não observarem a Resolução nº 136/99, do CREMERJ – Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro, que trata especificamente da recusa em receber transfusão de sangue e hemoderivados . Esse ato determina que os médicos tentem evitar a necessidade de transfusões, mas prevê a sua realização forçada em caso de risco iminente à vida. Daí sugerir-se o ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal.

À Secretaria de Estado da Casa Civil, com vistas ao exame, pelo Excelentíssimo Senhor Governador do Estado, da pertinência da adoção da medida judicial ora alvitrada.

Rio de Janeiro, 26 de abril de 2010

LUCIA LEA GUIMARÃES TAVARESProcuradora-Geral do Estado