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FERNANDA MORELLI D esde que o programa MasterChef Júnior estreou na Rede Ban- deirantes, uma das partici- pantes, Valentina, 12 anos, é alvo de comentários com conteúdo sexual nas redes sociais, em um aterrori- zante caso pedofilia vir- tual. “Não são apenas co- mentários nas redes so- ciais. É pedofilia. É assé- dio. É violência”, alerta a jornalista Juliana de Faria, autora do projeto Think Olga, responsável pela campanha Chega de Fiu Fiu, contra o assédio sexual em espaços públi- cos e finalista do Prêmio Claudia 2015. Ela, que foi assediada pela primeira vez aos 11 anos, conta que, infeliz- mente, este é um dado co- mum. “Lancei uma campanha chamada #PrimeiroAsse- dio e descobri que muitas mulheres também passa- ram por isso pela primeira vez aos 9, 10 e até aos 5 anos. Isso é lamentável e muito preocupante”, diz Juliana ao Educar para Crescer. Vivemos em uma so- ciedade onde a cultura do estupro e a sexualiza- ção infantil estão muito presentes. “Não podemos achar que uma cantada ou um post nas redes so- ciais são problemas me- nores do que o abuso sexual em si. Tudo isso está ligado à cultura do estupro e pode ser o cami- nho para ele”, completa. O psicólogo e psicana- lista Luca Loccoman, especializado em atendi- mento infantil, dá impor- tantes dicas de como lidar e orientar os seus filhos para essas situações. Leia a seguir. Não podemos achar que uma cantada ou um post nas redes sociais são problemas menores do que o abuso sexual em si.” Juliana de Faria [ [ Interações sexuais entre crianças e adultos aconte- cem, na maioria esmaga- dora dos casos, dentro de casa, com pessoas próxi- mas, da família, como pai, mãe, avós e tios. A fami- liaridade facilita a apro- ximação e a experiência raramente acontece com violência física (isso não quer dizer que estranhos não possam ter esses com- portamentos). Observo que quando o pai, por exemplo, tem desejos incestuosos por um dos filhos, é a relação de cumplicidade entre eles que permite passar ao ato. As crianças respondem por causa da vontade de agradar os adultos. É por isso que os pequenos têm o direito de saber que isso é proibido, contra a cultura - e que essa lei rege todos os humanos. Um jeito de fazer isso é ex- plicar o vocabulário do pa- rentesco, o lugar da mãe, do pai, do irmão, do filho. Essa interdição permite a dife- renciação dos papéis dentro da família e vai se refletir nas relações fora de casa também. Quanto se tratar de estranhos, a tendência da criança será se afastar, evitar os toques que inco- modam. Longe dos olhos dos pais, uma alternativa é ajudar os pequenos a identi- ficar uma figura de confian- ça a quem possam recorrer (como a professora), caso se sintam ameaçados. Como explicar para a criança que ela pode ser assediada? Lamento que o as- sunto não seja abor- dado na escola. Os pequenos podem deso- bedecer aos mais ve- lhos quando esses dei- xam de ser cuidadores e não se sentem mais investidos das proi- bições civilizatórias. Mas não aconselho a falar sobre o assunto antes dos 4 ou 5 anos, é muito cedo. O melhor é ficar de olho nessa época. Depois disso, é nosso dever prevenir as crianças, dizendo que esse tipo de interação pode ser perigoso. Sem alardes ou repreensões. A partir de qual idade essa conversa é válida e como conduzi-la em cada fase da infância? A minha sugestão é ouvir as crianças. Há mais de 100 anos, o criador da psicanálise, Sigmund Freud, já nos apresentava uma noção de sexualida- de mais ampla, muito além da relação sexual, que envolve sensações de prazer nas trocas de afeto e está presente desde a infância. É difícil, portan- to, estabelecer o limite nas relações entre pessoas próximas, ainda mais com idades diferentes. Uma simples carícia, dependendo de como acontece, é suficiente para que alguém se sinta transgredido. Os pequenos são seres capazes e com discernimento. São eles que vão nos dizer o que incomoda. Como instruir a criança a diferenciar carinho de abuso sexual? Acredito que da mesma forma que os pais criam os filhos no mundo real também podem fazer no virtual. Di- cas básicas: manter o computador em área comum, acompanhar o histórico, navegar ao lado da criança, optar por programas que filtram e bloqueiam de- terminados conteúdos, ensinar a não divulgar dados pela internet, conhecer os amigos virtuais, monitorar contas te- lefônicas e cartões de crédito. Não é di- fícil encontrar listas que ensinam como agir com os filhos nesses casos. O de- safio é criar indivíduos autônomos. É papel dos pais instrumentalizá-los para fazer escolhas em vez de simplesmente proibi-las. Sugiro conversa em família para alinhar as regras de uso. Querer tornar uma criança pretensamente franca é um problema, ultrapassa os limites da educação. Seria o mesmo que tentar ter poder sobre ela, não permitindo que viva fora da vigilância dos pais. Uma pessoa inteligente não revela tudo o que faz. Ao invés de dizer que nunca se deve esconder nada do pai e da mãe, é mais indicado perguntar o que aconteceu, o que o filho queria com aquilo e o que conseguiu. Isso o ajuda a aprender a ser sincero. Cabe aos pais orientar sobre os riscos, as conquistas e implicar a criança com suas escolhas. Como incentivar que ela conte o que aconte- ce com ela nas redes? E off-line? Como orientar e mediar a relação da criança e do adolescente com a internet? Em entrevista, o pai da Valentina afirmou que alguém lê todos os co- mentários antes dela. Nesse momento, a proteção deve ser mais importante do que a privacidade? A criança precisa ter privacidade (na internet ou fora dela)? Quando uma criança é capaz de algo sozinha, o melhor é que os pais permitam. Nes- se caso, ela faz o que pode arriscar. Mas os peque- nos têm limites, que tem a ver com aquilo que dão conta ou não de assumir. A criança não é soberana, é o desejo dos pais que domina. Mas ela tem razão de insistir em agir por conta própria. Por isso, é importante alertar- mos os filhos sobre os riscos e explicar o motivo das restrições, que, aliás, têm prazo de validade. Os pequenos con- fiam muito mais nos pais quando entendem que as proibições são relativas às suas capaci- dades e, muitas vezes, à angústia de quem é res- ponsável por seus cuida- dos. É assim que, no início da vida, assinalamos os dire- tos e os limites. BAURU, domingo, 1 de novembro de 2015 go, 1 de novembro de 2015 Assédio sexual com crianças A ameaça pode ser virtual ou presencial; saiba como instruir os pequenos

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Terapia

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FERNANDA MORELLI

Desde que o programa MasterChef Júnior estreou na Rede Ban-

deirantes, uma das partici-pantes, Valentina, 12 anos, é alvo de comentários com conteúdo sexual nas redes sociais, em um aterrori-zante caso pedofilia vir-tual.

“Não são apenas co-mentários nas redes so-ciais. É pedofilia. É assé-

dio. É violência”, alerta a jornalista Juliana de Faria, autora do projeto Think Olga, responsável pela campanha Chega de Fiu Fiu, contra o assédio sexual em espaços públi-cos e finalista do Prêmio Claudia 2015.

Ela, que foi assediada pela primeira vez aos 11 anos, conta que, infeliz-mente, este é um dado co-mum.

“Lancei uma campanha

chamada #PrimeiroAsse-dio e descobri que muitas mulheres também passa-ram por isso pela primeira vez aos 9, 10 e até aos 5 anos. Isso é lamentável e muito preocupante”, diz Juliana ao Educar para Crescer.

Vivemos em uma so-ciedade onde a cultura do estupro e a sexualiza-ção infantil estão muito presentes. “Não podemos achar que uma cantada

ou um post nas redes so-ciais são problemas me-nores do que o abuso sexual em si. Tudo isso está ligado à cultura do estupro e pode ser o cami-nho para ele”, completa.O psicólogo e psicana-lista Luca Loccoman, especializado em atendi-mento infantil, dá impor-tantes dicas de como lidar e orientar os seus filhos para essas situações. Leia a seguir.

Não podemos achar que uma cantada ou um post nas redes sociais são problemas menores do que o abuso sexual em si.”

Juliana de Faria [[

Interações sexuais entre crianças e adultos aconte-cem, na maioria esmaga-dora dos casos, dentro de casa, com pessoas próxi-mas, da família, como pai, mãe, avós e tios. A fami-liaridade facilita a apro-ximação e a experiência raramente acontece com violência física (isso não quer dizer que estranhos não possam ter esses com-portamentos). Observo que quando o pai, por exemplo, tem desejos incestuosos por

um dos fi lhos, é a relação de cumplicidade entre eles que permite passar ao ato. As crianças respondem por causa da vontade de agradar os adultos. É por isso que os pequenos têm o direito de saber que isso é proibido, contra a cultura - e que essa lei rege todos os humanos. Um jeito de fazer isso é ex-plicar o vocabulário do pa-rentesco, o lugar da mãe, do pai, do irmão, do fi lho. Essa interdição permite a dife-renciação dos papéis dentro

da família e vai se refl etir nas relações fora de casa também. Quanto se tratar de estranhos, a tendência da criança será se afastar, evitar os toques que inco-modam. Longe dos olhos dos pais, uma alternativa é ajudar os pequenos a identi-fi car uma fi gura de confi an-ça a quem possam recorrer (como a professora), caso se sintam ameaçados.

Como explicar para a criança que ela pode ser assediada?

Lamento que o as-sunto não seja abor-dado na escola. Os pequenos podem deso-bedecer aos mais ve-lhos quando esses dei-xam de ser cuidadores

e não se sentem mais investidos das proi-bições civilizatórias. Mas não aconselho a falar sobre o assunto antes dos 4 ou 5 anos, é muito cedo. O melhor

é ficar de olho nessa época. Depois disso, é nosso dever prevenir as crianças, dizendo que esse tipo de interação pode ser perigoso. Sem alardes ou repreensões.

A partir de qual idade essa conversa é válida e como conduzi-la em cada fase da infância?

A minha sugestão é ouvir as crianças. Há mais de 100 anos, o criador da psicanálise, Sigmund Freud, já nos apresentava uma noção de sexualida-de mais ampla, muito além da relação sexual, que envolve sensações de prazer nas trocas de afeto e está presente desde a infância. É difícil, portan-to, estabelecer o limite nas relações entre pessoas próximas, ainda mais com idades diferentes. Uma simples carícia, dependendo de como acontece, é sufi ciente para que alguém se sinta transgredido. Os pequenos são seres capazes e com discernimento. São eles que vão nos dizer o que incomoda.

Como instruir a criança a diferenciar carinho de abuso sexual?

Acredito que da mesma forma que os pais criam os fi lhos no mundo real também podem fazer no virtual. Di-cas básicas: manter o computador em área comum, acompanhar o histórico, navegar ao lado da criança, optar por programas que fi ltram e bloqueiam de-terminados conteúdos, ensinar a não divulgar dados pela internet, conhecer

os amigos virtuais, monitorar contas te-lefônicas e cartões de crédito. Não é di-fícil encontrar listas que ensinam como agir com os fi lhos nesses casos. O de-safi o é criar indivíduos autônomos. É papel dos pais instrumentalizá-los para fazer escolhas em vez de simplesmente proibi-las. Sugiro conversa em família para alinhar as regras de uso.

Querer tornar uma criança pretensamente franca é um problema, ultrapassa os limites da educação. Seria o mesmo que tentar ter poder sobre ela, não permitindo que viva fora da vigilância dos pais. Uma pessoa inteligente não revela tudo o que faz. Ao invés de dizer que nunca se deve esconder nada do pai e da mãe, é mais indicado perguntar o que aconteceu, o que o filho queria com aquilo e o que conseguiu. Isso o ajuda a aprender a ser sincero. Cabe aos pais orientar sobre os riscos, as conquistas e implicar a criança com suas escolhas.

Como incentivar que ela conte o que aconte-ce com ela nas redes? E off-line?

Como orientar e mediar a relação da criança e do adolescente com a internet?

Em entrevista, o pai da Valentina afirmou que alguém lê todos os co-mentários antes dela. Nesse momento, a proteção deve ser mais importante do que a privacidade? A criança precisa ter privacidade (na internet ou fora dela)?

Quando uma criança é capaz de algo sozinha, o melhor é que os pais permitam. Nes-se caso, ela faz o que pode arriscar. Mas os peque-nos têm limites, que tem a ver com aquilo que dão conta ou não de assumir. A criança não é soberana, é

o desejo dos pais que domina. Mas ela tem razão de insistir em agir por conta própria. Por isso, é importante alertar-mos os filhos sobre os riscos e explicar o motivo das restrições, que, aliás, têm prazo de validade. Os pequenos con-

fiam muito mais nos pais quando entendem que as proibições são

relativas às suas capaci-dades e, muitas vezes, à angústia de quem é res-ponsável por seus cuida-

dos. É assim que, no início da vida, assinalamos os dire-tos e os limites.

BAURU, domingo, 1 de novembro de 2015go, 1 de novembro de 2015

Assédio sexualcom criançasA ameaça pode ser virtual ou presencial; saiba como instruir os pequenos