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Experiências indígenas: o direito à alteridade como alternativa sustentável de desenvolvimento Luiz Antônio Araújo de SOUZA Mestre em Direito Econômico e Socioambiental pela PUC/PR Doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra [email protected] Resumo O artigo tenciona trazer à reflexão um novo modelo de desenvolvimento, pautado numa relação diferenciada com a natureza, tendo como bases teóricas o uso do conhecimento emancipação, sugerido por Boaventura Sousa Santos. Nesse particular, recordando com aquele autor que a exploração da natureza seja a outra face da relação de exploração do homem pelo homem, aponta-se como sugestão de mudança epistemológica a reintegração da natureza a do homem, sendo que a visualização dessa transição paradigmática é feita a partir do estudo de caso do “projeto arte baniwa”, alusivo às comunidades Baniwa no Amazonas, reforçando a idéia de um modelo de etnodesenvolvimento, no qual se articula saberes locais com saberes exógenos, demonstrando como a revitalização das tradições culturais dos Baniwa e a cultura indígena em geral pode contribuir no conceito de desenvolvimento sustentável. Palavras-chave: Desenvolvimento sustentável, Alteridade, Cultura Indígena. Abstract The article intends to bring a new reflection model of development, based on adifferent relationship with nature, with the use of theoretical knowledge emancipation, suggested by Boaventura Sousa Santos. In particular, agreeing with the author that the exploitation of nature is the other side of the relationship of exploitation of man by man, we bring forward a suggestion of epistemological change, by the reintegration of nature to man, and the visualization of this paradigm shift is made from the case study "baniwa art project" alluding to the communities in the Amazon Baniwa, reinforcing the idea of a model of ethnic development, in which local knowledge is articulated with exogenous knowledge demonstrating how revitalization of cultural traditions of indigenous culture and Baniwa in general may contribute to the sustainable development concept. Keywords: Sustainable Development, Otherness, Indigenous Culture.

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Experiências indígenas: o direito à alteridade como alternativa sustentável de desenvolvimento

Luiz Antônio Araújo de SOUZA Mestre em Direito Econômico e Socioambiental pela PUC/PR

Doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra [email protected]

Resumo O artigo tenciona trazer à reflexão um novo modelo de desenvolvimento, pautado numa relação diferenciada com a natureza, tendo como bases teóricas o uso do conhecimento emancipação, sugerido por Boaventura Sousa Santos. Nesse particular, recordando com aquele autor que a exploração da natureza seja a outra face da relação de exploração do homem pelo homem, aponta-se como sugestão de mudança epistemológica a reintegração da natureza a do homem, sendo que a visualização dessa transição paradigmática é feita a partir do estudo de caso do “projeto arte baniwa”, alusivo às comunidades Baniwa no Amazonas, reforçando a idéia de um modelo de etnodesenvolvimento, no qual se articula saberes locais com saberes exógenos, demonstrando como a revitalização das tradições culturais dos Baniwa e a cultura indígena em geral pode contribuir no conceito de desenvolvimento sustentável. Palavras-chave: Desenvolvimento sustentável, Alteridade, Cultura Indígena.

Abstract

The article intends to bring a new reflection model of development, based on adifferent relationship with nature, with the use of theoretical knowledge emancipation, suggested by Boaventura Sousa Santos. In particular, agreeing with the author that the exploitation of nature is the other side of the relationship of exploitation of man by man, we bring forward a suggestion of epistemological change, by the reintegration of nature to man, and the visualization of this paradigm shift is made from the case study "baniwa art project" alluding to the communities in the Amazon Baniwa, reinforcing the idea of a model of ethnic development, in which local knowledge is articulated with exogenous knowledge demonstrating how revitalization of cultural traditions of indigenous culture and Baniwa in general may contribute to the sustainable development concept. Keywords: Sustainable Development, Otherness, Indigenous Culture.

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dorno e Horkheimer quando tratam do programa do esclarecimento afirmam que a sua meta era dissolver os mitos e substituir a imaginação pelo saber. Os autores reportam-se a Francis Bacon, “o pai da filosofia experimental”, para ilustrar a tese

segundo a qual a superioridade do homem reside em sua capacidade racional de imperar na prática sobre a natureza. O homem de ciência - contrapondo-se ao homem da natureza - acredita dispor da natureza que, sob a forma de meros objetos, sucumbe ao seu arsenal de técnicas, comportando-se como um ditador, na medida em que só a conhece por meio de suas manipulações. Desse modo o esclarecimento é totalitário, ou ainda, o totalitarismo é uma possibilidade imanente ao seu desenvolvimento.

Essa racionalidade, que se convencionou chamar de “ciência moderna”, ou projeto da modernidade produziu diversas dicotomias, algumas das quais serviram à sociologia política e à sociologia do direito. Contudo, no presente trabalho parte-se da idéia que aquelas não são mais tão úteis, principalmente diante das rupturas que se verifica, em especial face à crise do Estado-providência.

Nesse particular, partimos de numa nova reflexão que se deva dar à relação de alteridade, onde o “outro” deixa de ser tratado como um “estranho” (alius), em razão das seguintes posturas diante da natureza: - considerá-la como “outro” (Gaia), erigindo o ambiente à condição de “sujeito”, trazendo-o por essa qualidade para uma relação de igualdade e de respeito (Silveira, 2006, p.2), isso a partir de um diálogo intercultural.

A consciência generalizada de uma catástrofe ecológica certamente acarretou uma nova reflexão, ao menos num desenvolvimento com novas bases físicas. Daí que revelar um “ethos” ambiental diferenciado a partir das experiências das “first nations” assume singular importância.

Para o domínio e desenvolvimento do tema, não desprovido de intenção, faz-se uso do “conhecimento emancipação” sugerido por Boaventura de Sousa Santos, para reforço das bases teóricas de um modelo sustentável de desenvolvimento, apontando, inclusive, como pode ocorrer a contribuição estatal, bem ainda como o Direito tem repertório para exigir dita providência.

1. Ruptura da dicotomia natureza/sociedade Na filosofia grega e no pensamento medieval o homem e a natureza pertenciam a um mesmo ato do Criador. As civilizações antigas imaginavam e as indígenas ainda assim concebem que a natureza é tão viva quanto elas próprias, sentindo-se como seus próprios filhos. Na Grécia antiga esse grande ser vivo era chamado de Gaia. Gaia não era uma força criadora externa à natureza, mas sua própria força criadora.

Lovelok (apud Merico, 2004, p.5) identifica, porém, em alguns milhares de anos da era cristã, uma transformação da visão de mundo baseado na parceria para a dominação. A visão de mundo na qual as pessoas e suas divindades faziam parte da dança improvisada da natureza

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foi substituída por outra, achando-se aqueles em posição externa e superior à natureza, de modo a reivindicar para si o direito de explorar as dádivas dessa última.

A ciência moderna rompeu com esta cumplicidade, uma ruptura ontológica e epistemológica que desumaniza a natureza no mesmo processo em que se desnaturaliza o homem (Santos, 1990, p. 10).

O conhecimento científico, como observado por Adorno e Horkheimer, teve, entretanto, que assumir um ônus à custa de promover a dominação da natureza e do sujeito pensante: "O preço que os homens pagam pelo aumento de seu poder é a alienação sobre o que exercem o poder" (Adorno; Horkheimer, 1997, p.15).

Revelam ainda aqueles autores que a maldição do progresso irrefreável é a irrefreável regressão. Esta última significando um processo de barbarização crescente levado a cabo pela própria civilização esclarecida.

processo esse que é engendrado e conduzido por uma ordem social alicerçada sobre os pilares de uma racionalidade técnica que pressupõe, em última análise, que os traços ‘arcaicos’ ainda remanescentes da violência mítica podem ser controlados e/ou resolvidos pelos dispositivos tecnológicos e pelo exercício do Direito. Em termos do particular, ou seja, do indivíduo que se concretiza historicamente na atualidade, o termo ‘regressão’ é utilizado para designar o processo por meio do qual as sociedades totalmente administradas operam a liquidação sistemática desse indivíduo”. (Adorno; Horkheimer, 1997, p.17).

Vê-se, dessa maneira, que a relação de exploração da natureza seja a outra face da relação de exploração do homem pelo homem. A concepção moderna da natureza é um expediente de mediação de relações sociais, “um expediente oculto que usa a natureza para ocultar a natureza das relações sociais” (Santos, 1990, p.12). Nesse particular, vale ainda recordar com Polanyi que no fanatismo dos sectários o progresso é feito à custa da desarticulação social, assim, se o ritmo desse transtorno é exagerado pode ocorrer que a própria comunidade sucumba no processo.

Polanyi (1980, p.20), como aristotélico, crê ainda que a sociedade reage de forma inconsciente a tudo que a coloca em perigo; toda classe e instituição (inclusive o mercado) tem sua função e "nenhuma instituição jamais sobrevive à sua função", salvo se passar a atender a outra função que não a original.

A mudança epistemológica que se opera para reintegrar a natureza ao homem ocorre nesse clima de conscientização de uma hecatombe ambiental. Tal catástrofe, como assevera Boaventura de Sousa Santos (1990, p.5), “deixa antever que a natureza é a segunda natureza da sociedade, uma sociedade de segundo grau, o duplo da sociedade”. Desse modo, a dicotomia natureza/sociedade é posta em cheque e o fato da ciência moderna apoiar-se nela explica, em última análise, a crise em que se encontra mergulhada, abrindo um campo de possibilidades para a transição de uma ciência pós-moderna.

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2. A ruptura da dicotomia norte-sul

A transformação capitalista moderna também operou a dicotomia Norte-Sul e Ocidente-Oriente, os últimos subordinados aos primeiros, vítimas de uma dominação cultural e econômica.

Essa linguagem utilizada por Boaventura de Sousa Santos por opção do autor será tomada de empréstimo para estabelecer as relações assimétricas entre a sociedade não-índia e a indígena.

Segundo aquele festejado autor para a construção do conhecimento-emancipação é preciso deixar falar o Sul, pois o que melhor o identifica é o fato de ter sido silenciado. A epistemologia dominante representou o “outro” como incapaz de se representar a si próprio. Tucker (1992, p.20) também frisou que “escolas do pensamento como o orientalismo e disciplinas como a antropologia falam em nome do ‘outro’, afirmando muitas vezes conhecer melhor o ‘outro’ que estuda do que o ‘outro’ conhece a si próprio”.

O epistemicídio e o linguicídio praticados durante a trajetória da modernidade capitalista rasuraram os conhecimentos e as línguas locais, criando em seu lugar um amplo espaço de não-conhecimento onde a língua e o conhecimento do dominador se foram implantando progressivamente.

Gandhi, uma voz que ousou resistir a esse quadro nas primeiras décadas do século passado, afirmou acerca da dominação britânica:

Tomamos a civilização que vós apoiais como sendo o oposto da civilização. Consideramos que a nossa civilização é muito superior à vossa. [...] Consideramos que as vossas escolas e os vossos tribunais são inúteis. Queremos recuperar as nossas antigas escolas e os nossos tribunais. A língua comum da Índia não é o inglês mas o hindi. Por isso, deveríeis aprendê-lo. Podemos comunicar convosco apenas na nossa língua nacional” (Santos, 2002, p. 11).

No século atual, já podemos observar uma nova postura epistemológica, nesse sentido registrou o outrora Secretário do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável do Estado do Amazonas, Vírgílio Viana – deixando-se de lado o componente político:

... para que o desenvolvimento sustentável seja implantado e consolidado no Estado, alguns paradigmas precisam ser rompidos. Primeiro é necessário valorizar o saber e as opiniões dos indígenas e ribeirinhos que vivem das florestas, rios, lagos e igarapés. Esses seguimentos sociais precisam ser levados em conta no processo de tomada de decisões. É necessário fazer uma transição do assistencialismo, com doações de implementos e veículos, para uma política de auto-sustentabilidade de pequenos negócios. A gestão de unidades de produção e beneficiamento de produtos agrícolas, pesqueiros e extrativistas deve ser feita por pequenos e médios empreendedores privados com sustentabilidade econômica e social” (Freitas, 2004. p.13).

O momento da ruptura está exatamente quando encaramos os dominados como sujeitos da sua própria história, em que uma nova ordem emergente confronta a ordem de representação. Nesse aspecto fazem-se novamente oportunas as palavras de Gandhi: “não

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somos nós que temos de fazer o que vocês querem, mas vocês que têm de fazer o que nós queremos” (apud Santos, 2004, p.9).

Podemos visualizar essa transição paradigmática em diversas práticas sociais, mas para o propósito deste trabalho enfatizaremos a seguir o potencial emancipatório e a viabilidade de desenvolvimento em alguns projetos que a exemplo fazem parte do Projeto Demonstrativo dos Povos Indígenas (PDPI), como o “projeto arte baniwa”, das comunidades Baniwa do Alto Rio Içana.

3. O projeto arte Baniwa. O “outro” participando da construção do desenvolvimento sustentável. O Projeto Arte Baniwa, pertencente à Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), articula artesãos de cestaria arumã (taquara), tendo como missão a produção sustentável e a comercialização por encomendas, de forma autogerida, da tradicional cestaria Baniwa de arumã, “em nichos de mercado que remunerem seu valor cultural e ambiental agregado, como parte de um programa mais amplo de consolidação de direitos indígenas coletivos” (Bresler; Oliveira, 2002, p.20).

Como informam Ricardo Bresler e Fernanda Oliveira (2002, p.20) a habilidade para trabalhar o arumã é considerada um saber essencial, pois a taquara é a matéria-prima para a produção de vários utensílios domésticos empregados no processamento da mandioca-brava, base da alimentação dos povos do alto Rio Negro e comumente também servido na mesa dos amazonenses.

Segundo a divisão tradicional do trabalho Baniwa, o ofício da cestaria é uma atividade eminentemente masculina, cabendo às mulheres trabalhar na roça e na culinária da farinha, beiju, mingau. O conhecimento que envolve o trabalho no arumã e para o processamento da mandioca são complexos, envolvendo inúmeras etapas, fruto de um esforço de aprendizagem coletiva milenar.

A Organização Indígena da Bacia do Içana (OIBI) – uma das associações que compõem a FOIRN – é a responsável pelo Projeto Arte Baniwa, em parceria com a própria FOIRN e com o Instituto Socioambiental (ISA). A OIBI é uma associação de diversas comunidades do povo Baniwa, localizadas às margens do alto Rio Içana – afluente do Rio Negro.

Além de produzir utensílios de arumã para uso doméstico, há séculos os Baniwa comercializam um excedente da produção, nos modelos urutu, balaio, jarro e peneira, para uso nas cidades. A cestaria era trocada por produtos que os Baniwa passaram a necessitar a partir do contato com os padrões de consumo dos não-índios e que não eram capazes de produzir, como sal, pólvora, anzol, sabão, velas e roupas.

Os produtos eram vendidos na maioria das vezes nos regatões, a um preço vil comparado com o valor de revenda do produto.

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Para mudar esse panorama as comunidades que constituem a OIBI iniciaram a busca de alternativas para que os artesãos não dependessem dos intermediários, ao mesmo tempo em que procuravam evitar o êxodo causado pela falta de opções de trabalho.

Aproximadamente em 1998, após a realização de uma oficina, iniciou-se a comercialização dos produtos para a rede de lojas de móveis e artigos de decoração “Tok & Stok”, de São Paulo (Brasil), mais tarde se estendendo para a “Natura”, e em 2001 para a rede de supermercados Pão de Açúcar.

O Projeto Arte Baniwa articula saberes locais com saberes exógenos. O conhecimento da matéria-prima e do processo de produção faz parte das raízes culturais dos Baniwa.

O Projeto revitaliza as tradições culturais, fazendo as adaptações necessárias: a criação de uma embalagem utilizando as sobras das talas do arumã (para o transporte), a padronização da cestaria (tamanhos, acabamentos, etc.), conforme a exigência dos estabelecimentos comerciais das cidades, e a sistematização dos dados em um “livro de controle”. Os Baniwa têm demonstrado enorme disposição e competência para lidar com problemas operacionais e logísticos, como o transporte de quantidades de mercadoria que eles não estavam acostumados a transportar – os intermediários retiravam os produtos nas comunidades. (Bresler; Oliveira, 2002, p. 21).

A dificuldade de transporte é transposta pelo saber Baniwa: rios e corredeiras de pedras do Rio Içana e do Rio Negro são conhecidos há longo tempo. Além disso, a aquisição de voadeiras, motores e bongos, têm facilitado o percurso, que, aliás, é muito longo, vez que entre as comunidades do alto Rio Içana e São Gabriel da Cachoeira (AM) percorrem-se quatrocentos quilômetros em, no mínimo, dois dias1.

O valor agregado ao produto e a remuneração dos artesãos sempre fora decidida coletivamente nas oficinas anuais. Em 1999, os artesãos decidiram que a remuneração média de cada dúzia seria R$ 58,00. Nos dois anos seguintes a remuneração passou a girar em torno de R$ 100,00/dz. Melhores remunerados, os artesão dedicam mais tempo à cestaria arumã.

Toda a comunidade é beneficiada: as crianças e os jovens vislumbram possibilidades promissoras de inserção no mundo dos adultos, a cultura local se fortalece e as pessoas não envolvidas diretamente com a cestaria (educadores, agentes de saúde, pescadores, etc.) são beneficiadas porque as trocas internas são intensificadas”. (Bresler; Oliveira, 2002, p.15).

O Projeto Arte Baniwa tem demonstrado ser inclusivo, porquanto o aumento da demanda é absorvido pela inclusão de novos interessados, buscando-se uma ampliação horizontal da base produtiva. Além do mais, vale ressaltar, que algumas mulheres estão se incorporando ao Projeto, nada obstante, como acima enfatizado, cuidar de um ofício masculino, o que vem a reforçar o dinamismo da cultura.

Outro fato digno de destaque é que o remanescente da transação comercial tem sido utilizado na melhoria de infra-estrutura das comunidades, tanto que se tem investido na

1 Bongos: barcos de 15 a 20 metros feitos do tronco da madeira

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instalação de radiofonia. Tendo-se em vista as distâncias entre as comunidades e a dificuldade de locomoção, isso vem facilitando o acompanhamento do processo de produção.

Vale registrar que aproximadamente 10 das 17 comunidades possuem estações, todas alimentadas por energia solar.

As iniciativas na área educacional também são em grande parte financiadas pelo Projeto. Das 17 comunidades da OIBI, 12 possuem escolas do 1° Ciclo do Ensino Fundamental, tendo sido inaugurado em 2001 a Escola Baniwa Coripaco Páanhali, que atende jovens de comunidades pertencentes, inclusive, a outras associações. A escola está localizada a noroeste da comunidade Tucumã-Rupitã, e foi idealizada para oferecer o 2° Ciclo do Ensino Fundamental.

A Escola Páanhali foi criada, também, como uma forma de revitalizar as tradições entre os jovens, fazendo o papel que o treinamento desempenhava antes que os missionários o aniquilassem. A OIBI utiliza a pedagogia de alternância, um método de ensino típico das Escolas Família Agrícola. São quatro módulos (que correspondem a um ano letivo) de dois meses de duração cada, alternados com dois meses em casa (os outros meses representam as férias). O Projeto Arte Baniwa, revitalizando as tradições de modo geral, reforça o papel da cestaria arumã para os jovens em um contexto mais amplo, dentro de um tecido cultural que se reforça em todas as suas dimensões”. (Bresler; Oliveira, 2002, p.16).

Além desses investimentos, digno de nota também são os Planos Trienais de Saúde, no qual se revitaliza o saber da medicina tradicional, contando a OIBI conta com agentes comunitários de saúde, todos Baniwa, responsáveis por mediar o conhecimento tradicional com o conhecimento externo a comunidade.

Valem igualmente mencionar que em Tunuí Cachoeira2, comunidade que se encontra entre as comunidades do alto Içana e a cidade de São Gabriel da Cachoeira, a entidade construiu uma casa que serve para o pernoite dos viajantes3.

A OIBI também empreendeu a construção, em São Gabriel da Cachoeira, de um entreposto comercial que terá três finalidades:

servirá para estocar cestarias, possibilitando que num futuro próximo a Organização inicie um processo de comercialização mais ágil, com pequenos estabelecimentos, o que não ocorre atualmente porque a operação depende de pedidos de grande escala. Além disso; o entreposto permitirá que a OIBI crie um centro de compras para o abastecimento das comunidades – é mais barato comprar as mercadorias em Manaus e transportá-las para a

2 Tunuí é a cachoeira mais difícil de transpor em todo o percurso da cestaria e ter uma casa ali facilita o

transporte do produto.

3 Nas secas dos rios, é preciso retirar todas as mercadorias do barco e carregá-lo por cima das 10 cachoeiras. De

São Gabriel ao Porto Camanaus são mais 30 km em caminhonete (cedida pela FOIRN), para que a cestaria possa embarcar para Manaus (1.000 km em três dias), onde são acondicionadas em um caminhão que segue de balsa (1.200 km) até Belém (PA), de onde seguem por estrada até São Paulo (mais 2.120 km).

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região do alto Içana do que comprar em São Gabriel. Por fim, o entreposto funcionará também como sede da OIBI, que atualmente utiliza parte das dependências da FOIRN. Além de servir para a realização de reuniões e treinamentos, o local poderá hospedar membros da Organização e convidados”. (Bresler; Oliveira, 2002, p.14).

A Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro considera que o Projeto Arte Baniwa pode servir como piloto para um plano mais amplo de desenvolvimento indígena sustentável, sendo que o modelo de gestão e o processo organizativo do Projeto Arte Baniwa têm sido disseminados pela OIBI e pela FOIRN para outras associações que investem em projetos de desenvolvimento socioeconômico.

4. A providência do Estado em novas medidas deexperimentação social de desenvolvimento

Nesse espaço dissertativo, dedica-se a observação da necessidade de se arvorar o multiculturalismo progressista em informador de toda a atividade estatal, em especial na administração pública. Exemplo desse novo compromisso podemos citar a criação em 2001 da Fundação Estadual de Política Indigenista do Amazonas, instituição governamental dirigida pelo indígena Bonifácio José (Baniwa) desde abril de 2003, a qual tem como atuação planejar e institucionalizar as políticas públicas destinadas aos povos indígenas do Estado do Amazonas.

O eixo de atuação se pauta no etnodesenvolvimento, tendo como referência a seguinte Declaração de Princípios:

Ampliar espaços, promover discussões e articular as instituições governamentais com as comunidades indígenas para garantir os direitos constitucionais desses povos, no contexto das políticas públicas. Analisar as políticas públicas promovidas pelo governo e as propostas das organizações indígenas, quanto à eficácia de suas ações, à qualidade dos serviços prestados e ao uso adequado dos recursos naturais, em benefício das comunidades indígenas. Promover intercâmbio entre as comunidades indígenas e os formuladores de políticas públicas, no que diz respeito à valorização das formas de saber e à apropriação de novas tecnologias, promotoras do etnodesenvolvimento. Promover a participação efetiva das mulheres indígenas nas decisões das políticas públicas, fortalecendo suas organizações sociais. Implementar programas interinstitucionais do governo do estado, como o objetivo de combater a violência, o preconceito, a discriminação étnica e a exclusão social das comunidades indígenas. Criar um fórum permanente entre o governo, organizações indígenas e organizações não governamentais, para discussão de propostas e de estratégias que promovam o etnodesenvolvimento. Desenvolver programas em parceria com as comunidades indígenas e organizações não governamentais, para discussão de propostas e de estratégias que promovam o etnodesenvolvimento. Desenvolver programas em parceria com as comunidades indígenas e organizações não governamentais, garantindo o acesso da criança indígena às ações de política pública. Assessorar as comunidades indígenas quantos aos seus direitos de propriedade intelectual, acompanhando e promovendo pesquisas científicas.

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Fortalecer as organizações indígenas, avaliando e ampliando as políticas públicas quanto à continuidade de suas ações. Promover o etnodesenvolvimento, tendo como base a educação escolar indígena diferenciada, implementando ações que garantam a demarcação de suas terras, a autonomia dos povos indígenas e a valorização da participação comunitária, assegurando a reprodução física e cultural dos povos indígenas. Respeitar as culturas indígenas, reconhecendo suas crenças, seus costumes e suas tradições garantidas na Constituição Federal. (Freitas, 2004, p.21).

Referida pauta de princípios vem a constituir uma nova concepção de poder executivo numa parte da Amazônia. Essa nova forma de pensar privilegia a diversidade cultural como elemento indispensável para o desenvolvimento sustentável. A coexistência, assim, das diferentes culturas é pressuposto para a coexistência das diferentes formas de estratégia de sobrevivência do ser humano. Desse modo, o intercâmbio entre as várias comunidades culturais é uma potencialidade para a criatividade humana, essencial para, num mundo em risco, elaborar estratégias múltiplas de sobrevivência e da plena realização das necessidades humanas.

Nada obstante isso, não se pode deixar de registrar, que essa retórica acerca do respeito à diversidade cultural não tem sido a regra, pois as práticas de injustiça e intolerância têm sido maiores, fato esse testemunhado pelo autor, que se acha postado em uma realidade hostil, na qual rancores mal contidos e até mesmo propósitos de vingança circundam a sua atuação.

Desgraçadamente num contexto global, as práticas culturais, sociais, políticas, ambientais dos povos indígenas continuam sendo desprezadas. É nesse sentido que Amhed Baba Miske considera que a crise do Terceiro Mundo não é econômica nem política, mas espiritual, derivando diretamente do “assassinato de civilizações cujas sociedades ficam em estado de choque, como um corpo sem alma, mesmo que um último impulso de auto-preservação as leve para uma existência vegetativa” (apud Verhelst 1992, p.5).

Consolidar um novo fundamento ético para a sustentabilidade parte, portanto, principalmente da tolerância.

A providência social do Estado no processo é muito importante, valendo ressaltar que no ordenamento jurídico interno brasileiro encontramos determinação constitucional nesse sentido.

Para a construção hermenêutica desse pensamento utiliza-se o seguinte conceito de desenvolvimento sustentável:

um processo de transformação que busca beneficiar a coletividade a partir do equacionamento de problemas específicos por meio do inter-relacionamento não conflituoso – que deve ser regulamentado por instituições – entre os campos da economia, do espaço, da saúde, da educação, da cultura e do meio ambiente (Silva, 2005, p.15).

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As dimensões que compõem esse conceito – economia, saúde, educação, cultura e meio ambiente – são direitos fundamentais assegurados, inclusive, na Constituição brasileira (artigos 170, 174, 196, 205, 215 e 225)

Partindo dos ensinamentos de Bobbio (1989, p.30) de que “tais dispositivos encerram direitos essenciais e de que qualquer norma constitucional subentende força normativa, expressando obrigação de deveres”, chega-se à conclusão que o desenvolvimento sustentável, dada a constitucionalização dos elementos que compõem o seu núcleo essencial, impõe-se como direito fundamental e finalidade estatal.

Salomão Filho (2003, p.30), quando se refere ao direito positivo, esclarece que a sua vigência acontece em função de uma decisão e somente por meio de outra decisão poderá ser revogado e/ou substituído. Revela aquele, ainda, que as normas jurídicas não servem somente para a resolução de conflitos, mas igualmente para “promover, implementar e executar políticas públicas das mais variadas naturezas”.

Como afirma o Ministro do Supremo Tribunal Federal brasileiro Gilmar Ferreira Mendes, a visão dos direitos fundamentais enquanto direitos de defesa (Abwehrrecht) revela-se insuficiente para garantir a pretensão de eficácia que dimana da Constituição.

Com efeito, não se cuida apenas de ter liberdade em relação ao Estado (Freiheit vom), mas de desfrutar essa liberdade através do Estado (Freiheit durch).

A dogmática dos direitos fundamentais traz a possibilidade de o Estado vir a ser obrigado a criar os pressupostos fáticos necessários ao exercício efetivo dos direitos constitucionalmente assegurados, garantindo ao eventual titular do direito dispor de pretensão a prestações por parte do Estado.

Nesse passo, segue-se a linha interpretativa segundo a qual não cabe ao Estado, no exercício da função executiva, escolher entre implementar ou não medidas voltadas para o desenvolvimento sustentável.

A discricionariedade, ao lume da finalidade administrativa e dos princípios constitucionais, reduz o campo de liberdade do administrador.

O desafio dos vivenciadores do Direito Público está na percepção e na sensibilidade do momento e do caso concreto em que, sob a justificativa da discricionariedade, o Poder Público está sendo omisso na sua função de atender aos interesses específicos da sociedade.

A discricionariedade administrativa, geralmente invocada como forma de legitimar a omissão do Poder Público no caso concreto e afastar o controle pelo Judiciário, necessita de critérios objetivos para ser auferida.

Há muito já se consolidou a idéia da limitação da discricionariedade da ação administrativa aos ditames legais, de maneira que não haja afronta aos direitos dos particulares e muito menos da coletividade, o que determina a busca, pelo Administrador, do ótimo para atingir o interesse social.

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A omissão administrativa que, por via oblíqua, inviabiliza o exercício dos direitos e a concretização da implementação das garantias constitucionais não é mais admitida4.

Na maioria das vezes esta omissão vem atrelada a uma inexistente subjetividade, confundida com a discricionariedade (já que a inércia pode ser denominada de oportunidade ou conveniência) ou mesmo desapercebida pela sociedade e pelos controladores do Poder Público, embora esteja latente, sentida e esteja a necessitar de critérios objetivos que a destaquem e a realcem.

Nesse contexto, vê-se, assim, como crucial o papel do Poder Judiciário, na qualidade de guardião da ordem constitucional e orientador da ação administrativa e legislativa dos demais poderes constituídos, para a consecução das medidas impostas no caso concreto para a promoção do desenvolvimento sustentável.

5. Conclusão

Num diálogo intercultural, a troca não é apenas entre diferentes saberes, mas também entre diferentes culturas, ou seja, entre universos de sentido diferentes e, em grande medida, incomensuráveis.

O desafio está em aprender como entrar em diálogo com outras culturas munido da máxima tolerância discursiva, e a reconhecer que as outras culturas também têm aspirações emancipatórias semelhantes (Santos, 2002, p.10).

Essa nova forma de pensar tem por norte uma nova ética de desenvolvimento, a qual irrompe em mudanças epistemológicas no trato com a natureza e com aquelas pessoas que nunca se desnaturalizaram.

Erich Fromm (1978, p.12) adverte que o “amor *e a solidariedade+ não é algo que se possa ter, é um processo *…+ Posso amar, estar apaixonado, mas não tenho…nada; efetivamente, quando menos eu tiver mais poderei amar”. Diversamente do preceito neoliberal “consumo, ergo eu”, Fromm ainda assinala:

ter liberdade não quer dizer se libertar de todos os princípios guias, mas sim ter a liberdade para crescer de acordo com as leis estruturais da existência humana; a condição para amar e ser produtivo é a liberdade de não ter impedimentos, de estar livre do desejo de ter coisas e o próprio ego” (1978, p.13)

A possibilidade de superação pressupõe, como tratado neste trabalho, a “rememoração da natureza no sujeito”, como um caminho para se reverter o esclarecimento unilateral, isso pode parecer utópico, mas como já disse Sartre antes de ser concretizada, uma idéia tem uma estranha semelhança com a utopia.

4 Veja-se a respeito o RE-AgR 410715/SP, publicado em 03.02.2006, sob a relatoria do Min. Celso de Mello, no

qual se versou o controle do Poder Judiciário acerca da inércia estatal em implementar políticas públicas definidas na própria Constituição

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Referências

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