06 - A Vida Escolástica

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2. A Vida Escolástica 1 Jovens e Velhos Escolares da Idade Média 1 A segunda parte deste livro, intitulada “A vida escolástica”, é consagrada aos aspectos da história da educação que revelam o pro gresso do sentimento da infância na mentalidade comum: como a es cola e o colégio que, na Idade Média, eram reservados a um pequeno número de clérigos e misturavam as diferentes idades dentro de um espírito de liberdade de costumes, se tornaram no início dos tempos modernos um meio de isolar cada vez mais as crianças durante um período de formação tanto moral como intelectual, de adestrá-las, graças a uma disciplina mais autoritária, e, desse modo, separá-las da sociedade dos adultos. Essa evolução do século XV ao XVIII não se deu sem resistências. Os traços comuns da Idade Média persistiram 1 Na presente edição foram conservadas apenas as conclusões de cada capitulo. O capi tulo intitulado “Do externato ao internato” foi inteiramente suprimido. 166 HISTÓRIA SOCIAL DA CRIANÇA E DA FAMILIA JOVENS E VELHOS ESCOLARES 167 por longo tempo, até mesmo no interior do colégio, e, afortiori, na camada não escolarizada da população. Ê muito raro encontrarmos nos textos medievais referências pre cisas à idade dos alunos. Quando, a despeito da oposição dos capítu los, as escolas particulares se multiplicaram e ameaçaram o monopó lio da escola da catedral, os cônegos, para se defender, tentaram im por limites à atividade de seus concorrentes. Ora, esses limites nunca foram limites de idade. Os cônegos se contentaram em proibir às es colas particulares todo ensino mais avançado do que o Donat, sinô nimo de gramática rudimentar. Essa ausência de referências à idade persistiu por muito tempo e muitas vezes ainda a constatamos nos moralistas do século XVII. Os contratos de pensão, espécies de con tratos de aprendizagem, pelos quais

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2. A Vida Escolstica

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Jovens e Velhos Escolares da

Idade Mdia 1

A segunda parte deste livro, intitulada A vida escolstica, consagrada aos aspectos da histria da educao que revelam o pro gresso do sentimento da infncia na mentalidade comum: como a es cola e o colgio que, na Idade Mdia, eram reservados a um pequeno nmero de clrigos e misturavam as diferentes idades dentro de um esprito de liberdade de costumes, se tornaram no incio dos tempos modernos um meio de isolar cada vez mais as crianas durante um perodo de formao tanto moral como intelectual, de adestr-las, graas a uma disciplina mais autoritria, e, desse modo, separ-las da sociedade dos adultos. Essa evoluo do sculo XV ao XVIII no se deu sem resistncias. Os traos comuns da Idade Mdia persistiram

1 Na presente edio foram conservadas apenas as concluses de cada capitulo. O capi tulo intitulado Do externato ao internato foi inteiramente suprimido.

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por longo tempo, at mesmo no interior do colgio, e, afortiori, na camada no escolarizada da populao.

muito raro encontrarmos nos textos medievais referncias pre cisas idade dos alunos. Quando, a despeito da oposio dos captu los, as escolas particulares se multiplicaram e ameaaram o monop lio da escola da catedral, os cnegos, para se defender, tentaram im por limites atividade de seus concorrentes. Ora, esses limites nunca foram limites de idade. Os cnegos se contentaram em proibir s es colas particulares todo ensino mais avanado do que o Donat, sin nimo de gramtica rudimentar. Essa ausncia de referncias idade persistiu por muito tempo e muitas vezes ainda a constatamos nos moralistas do sculo XVII. Os contratos de penso, espcies de con tratos de aprendizagem, pelos quais as famlias fixavam as condies de penso de seu filho escolar, raramente mencionavam a idade do menino, como se isso no tivesse importncia. O elemento psicolgi co essencial dessa estrutura demogrfica era a indiferana pela idade daqueles qu a compunham: ao contrrio, a preocupao com a ida de se tornaria fundamental no sculo XIX e em nossos dias. Pode mos constatar, entretanto, que os alunos iniciantes geralmente ti nham cerca de lO anos. Mas seus contemporneos no prestavam ateno nisso e achavam natural que um adulto desejoso de aprender se misturasse a um auditrio infantil, pois o que importava era a ma tria ensinada, qualquer que fosse a idade dos alunos. Um adulto po dia ouvir a leitura do livro de Donat no mesmo momento em que um menino precoce repetia o Organon: no havia nisso nada de estranho.

Se considerarmos essa indiferena com relao idade, se nos lembrarmos do que foi dito atrs sobre os mtodos pedaggicos utili zados, sobre a simultaneidade e a repetio do ensino, no nos sur preenderemos em ver na escola medieval todas as idades confundidas no mesmo auditrio. E essa observao capital para nosso estudo. A escola no dispunha ento de acomodaes amplas. O mestre instalava-se no claustro aps livr-lo dos comrcios parasitas, ou en to dentro ou na porta da igreja. Mais tarde, porm, com a multipli cao das escolas autorizadas, quando no tinha recursos suficientes, ele s vezes se contentava com uma esquina de rua So Toms, alis, demonstrou seu desdm por esses homens empobrecidos que falavam coram pueris in angulis 2 Em geral, o mestre alugava umasa la, uma schola, por um preo que era regulamentado nas cidades uni versitrias. Em Paris, essas escolas se concentravam numa rua, a Rue du Fouarre: vicus straminis. Essas escolas, claro, eram independen

tes umas das outras. Forrava-se o cho com palha, e os alunos a se sentavam. Mais tarde, a partir do sculo XIV, passou-se a usar ban cos, embora essa novo hbito de incio parecesse suspeito. Ento, o mestre esperava pelos alunos, como o comerciante espera pelos fre gueses. Algumas vezes, um mestre roubava os alunos do vizinho. Nessa sala, reuniam-se ento meninos e homens de todas as idades, de seis a 20 anos ou mais. Vi os estudantes na escola, diz Robert de Salisbury no sculo XII . Seu nmero era grande (podia ser superior a 200). Vi homens de idades diversas: pueros, adolescentes, juvenes, senes, ou seja, todas as idades da vida, pois no havia uma palavra para designar o adulto, e as pessoas passavam sem transio dejuve nes a senes.

Ainda no sculo XV, os mestres do Doctrinal de Pierre Michault se dirigiam ao mesmo tempo aos pequenos e aos grandes que compu nham seu auditrio :

Bons escoliers, eniendements ouverts

Tani soie: vieux ou josnes, meurs ou vers. ..

E essa escola, com uma grande multido de alunos, jovens e ve lhos, estava lendo o captulo sobre as construes (do Doctrinal de Alexandre la Villedieu, sucessor de Priscien e prodecessor de Despeu tres). Como poderia ser de outra forma, se no havia gradao nos currculos, e os alunos mais velhos simplesmente haviam repeti do mais vezes o que os jovens haviam escutado apenas uma vez, sem que houvesse outras diferenas entre eles?

E essa mistura de idades continuava fora da escola. A escola no cerceava o aluno. O mestre nico, s vezes assistido por um auxiliar, e com uma nica sala sua disposio, no estava organizado para controlar a vida quotidiana de seus alunos. Estes, terminada a lio, escapavam sua autoridade. Ora, originariamente, essa autoridade, o for do mestre, era a nica que eles reconheciam. Velhos ou jo vens, os alunos eram abandonados a si mesmos. Alguns, muito ra ros, viviam com os pais. Outros viviam em regime de penso, quer na casa do prprio mestre, quer na casa de um padre ou cnego, segun do as condies fixadas por um contrato semelhante ao contrato de aprendizagem. Estes ltimos eram os mais vigiados, ou ao menos os mais seguidos. Pertenciam a uma casa, famlia do clrigo ao qual haviam sido confiados, e nesse caso havia uma espcie de compro-

3 R. de Salisbury De vanizate mundi, P. L., 176, col. 709.

4 P. Michault, Doctrinal du temps prsent, ed. Th. Walton, 1931.

* Bons alunos, de compreenso aberta, / Quer sejais velhos ou jovens, maduros ou ver des... (N. do T.)

2 De unilaze intellecius contra A verrioislos (LXIX, p. 252).

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misso entre a educao pela aprendizagem, que estudaremos adian te , e a educao escolar de tipo moderno. Essa era a nica forma de internato conhecida. Mas a maior parte dos alunos morava onde po dia, com o habitante local, vrios em cada quarto. E preciso admi tir que a tambm os velhos se misturavam com os jovens. Longe de serem separados pela idade, suas relaes deviam ser reguladas por tradies de iniciao que uniam com laos estreitos os alunos pe quenos aos maiores. Voltaremos a este ponto a propsito da histria da disciplina escolar.

Essa promiscuidade das idades hoje nos surpreende, quando no nos escandaliza: no entanto, os medievais eram to pouco sens veis a ela que nem a notavam, como acontece com as coisas muito fa miliares. Mas como poderia algum sentir a mistura das idades quan do se era to indiferente prpria idia de idade?

Assim que ingressava na escola, a criana entrava imediatamen te no mundo dos adultos. Essa confuso, to inocente que passava despercebida, era um dos traos mais caractersticos da antiga socie dade, e tambm um de seus traos mais persistentes, na medida em que correspondia a algo enraizado na vida. Ela sobreviveria a vrias mudanas de estrutura. A partir do fim da Idade Mdia, percebem-se os germes de uma evoluo inversa que resultaria em nosso senti mento atual das diferenas de idade. Mas at o fim do Ancien Rgi

me, ao menos, restaria algo desse estado de esprito medieval. Sua re-2

sistncia aos outros fatores de transformao mental mostra-nos

bem que estamos na presena de uma atitude fundamental diante daUma Jnstituiao Nova:

vida, que foi familiar a uma longa sucesso de geraes.Colgio

No sculo XIII, os colgios eram asilos para estudantes pobres, fundados por doadores. Os bolsistas a viviam em comunidades, se gundo estatutos que se inspiravam em regras monasticas. No se en sinava nos colgios. A partir do sculo XV, essas pequenas comum dades democrticas tornaram-se mstitutos de ensino, em que uma populao numerosa (e no mais apenas os bolsistas da fundao, entre os quais figuravam alguns administradores e professores) foi submetida a uma hierarquia autoritria e passou a ser ensinada no local. Finalmente, todo o ensino das artes passou a ser ministrado nos colgios, que forneceriam o modelo das grandes instituieS es colares do sculo XV ao XVII, os colgios dos jesutas, os colgios dos doutrinrioS e os colgios dos oratoriaflOS o colgio do Ancien Rgime, mais distante dos primeiros colgios de bolsistas do sculo

XIV do que de nossos colgios de hoje, diretamente anunciados por

5 Cf. parte III. cap. 2.ele apesar de diferenas importantes, e, sobretudo, da ausncia de in

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UMA INSTITUIO NOVA: O COL 171

ternato. O estabelecimento definitivo de uma regra de disciplina completou a evoluo que conduziu da escola medieval, simples sala de aula, ao colgio moderno, instituio complexa, no apenas de en sino, mas de vigilncia e enquadramento da juventude.

Essa evoluo da instituio escolar est ligada a uma evoluo paralela do sentimento das idades e da infncia. No incio, o senso comum aceitava sem dificuldade a mistura das idades. Chegou um momento em que surgiu uma repugnncia nesse sentido, de inicio em favor das crianas menores. Os pequenos alunos de gramtica foram os primeiros a ser distinguidos. Mas essa repugnncia no parou ne les. Estendeu-se tambm aos maiores, alunos de lgica e de fisica e a todos os alunos de artes, embora a idade de alguns deles lhes p,ermi tisse exercer fora da escola funes reservadas aos adultos. E que, embora tivesse comeado pelos mais jovens, essa separao no os atingia enquanto crianas, e sim enquanto estudantes, e no princpio enquanto estudantes-clrigos, pois quase todos eram tonsurados. Por essa razo, no se aplicou aos estudantes, com o fito de distingui-los dos adultos, um regime realmente infantil ou juvenil alis, no se conhecia nem a natureza nem o modelo de um tal regime. Desejava- se apenas proteger os estudantes das tentaes da vida leiga, uma vida que muitos clrigos tambm levavam, desejava-se proteger sua moralidade. Os educadores inspiraram-se ento no esprito das fun daes monsticas do sculo XIII, dos domjnicanos e franciscanos, que conservavam os princpios da tradio monstica, mas haviam abandonado a clausura, a recluso, e tudo o que restava do cenobi tismo original. certo que os estudantes no estavam comprometi dos por nenhum voto. Mas, durante o perodo de seus estudos, eles foram submetidos ao nodo de vida particular dessas novas comuni dades. Graas a esse modo de vida, a juventude escolar foi separada do resto da sociedade, que continuava fiel mistura das idades, dos sexos e das condies sociais. Esta era a situao ao longo do sculo

xlv.

Mais tarde, o objetivo fixado para esse tipo de existncia, a meio caminho entre a vida leiga ea vida monstica, se alterou. No incio, ele fora considerado uni meio de garantir a um jovem clrigo uma vida honesta. A seguir, adquiriu um valor intrnseco, tornou-se a condio imprescindvel de uma boa educao, mesmo leiga. A idia de educao era estranha s concepes do incio do sculo X Em 1452, porm, o Cardeal dEstouteville falava do regimen puerorum e da responsabilidade moral dos mestres encarregados das almas dos alunos. Tratava-se tanto da formao como da instruo do estudan te, e por esse motivo convinha impor s crianas uma disciplina estri ta: a disciplina tradicional dos colgios, modificada porm num sen

tido mais autoritrio e mais hierrquico. O colgio tornou-se ento um instrumento para a educao da infncia e da juventude em geral.

Nessa mesma poca, no sculo XV e sobretudo no XVI, o col gio modificou e ampliou seu recrutamento. Composto outrora de uma pequena minoria de clrigos letrados, ele se abriu a um nmero crescente de leigos, nobres e burgueses, mas tambm a famlias mais populares, como veremos adiante. O colgio tornou-se ento uma instituio essencial da sociedade: o colgio com um corpo docente separado, com uma disciplina rigorosa, com classes numerosas, em que se formariam todas as geraes instrudas do Ancen Rgime. O colgio constitua, se no na realidade mais incontrolvel da existn cia, ao menos na opinio mais racional dos educadores, pais, religio sos e magistrados, um grupo de idade macio, que reunia alunos de oito-nove anos at mais de 15, submetidos a uma lei diferente da que governava os adultos.

ORIGENS DAS CLASSES ESCOLARES 173

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Origens das

Classes Escolares

Como se passou da indeterminao medieval ao rigor do concei to moderno, como e quando a classe escolar adquiriu seu aspecto atual de classe de idade?

Desde o incio do sculo XV, pelo menos, comeou-se a dividir a populao escolar em grupos de mesma capacidade que eram coloca dos sob a direo de um mesmo mestre, num nico local a Itlia, por exemplo, durante muito tempo permaneceu fiel a essa frmula de transio. Mais tarde, ao longo do sculo XV, passou-se a designar um professor especial para cada um desses grupos, que continuaram a ser mantidos, porm, num local comum essa formao ainda sub sistia na Inglaterra na segunda metade do sculo XIX. Finalmente, as classes e seus professores foram isolados em salas especiais e essa iniciativa de origem flamenga e parisiense gerou a estrutura moderna de classe escolar. Assistimos ento a um processo de diferenciao da massa escolar, que no incio do sculo XV era desorganizada. Esse

processo correspondeu a uma necessidade ainda nova de adaptar o ensino do mestre ao nvel do aluno. Foi este o ponto essencial. Essa preocupao em se colocar ao alcance dos alunos opunha-se tanto aos mtodos medievais de simultaneidade ou de repetio, como pedagogia humanista, que no distinguia a criana do homem e con fundia a instruo escolar uma preocupao para a vida com a cultura uma aquisio da vida. Essa distino das classes indicava portanto uma onscientiZao da particularidade da infncia ou da juventude, e do sentimento de que no interior dessa infncia ou dessa juventude existiam vrias categorias. A instituiO do colgio hierar quizado no sculo XIV j havia retirado a infncia escolar da bara funda em que, no mundo exterior, as idades se confundiam. A cria o das classes no sculo xvi estabeleceu subdivises no interior dessa populao escolar.

Essas categorias, esboadas s vezes a partir de uma circunstn cia que ainda no correspondia quilo que mais tarde seria exigido delas em termos de ordem, disciplina e eficcia pedaggica, seriam na poca categorias de idade? Sem dvida, em 1538, Baduel via no sistema de classes um meio de repartir os alunos segundo sua idade e seu desenvolvimento. No primeiro tero do sculo XVI, Thomas platter, ao termo de uma juventude errante, foi ter numa boa escola de Schlestadt, freqentada por 900 discipuli ora, ele j no devia achar muito normal que sua ignorncia o situasse aos 18 anos no meio das crianas, pois que sentiu a necessidade de registrar o fato como uma anomalia: Quando entrei para a escola, no sabia nada, nem mesmo ler o Donat, e no entanto eu tinha 18 anos. Tomei meu lugar entre as crianas pequenas; parecia uma galinha no meio dos pintinhos.

No nos deixemos enganar, contudo, por esses poucos indcios, que corremos o risco de aumentar ao isolar. Algumas vezes havia uma coincidncia entre a idade e o grau, mas nem sempre, e, quando havia contradio, a surpresa era pequena, e, muitas vezes, nenhu ma. Na realidade, prestava-se sempre mais ateno ao grau do que idade. No incio do sculo XVII, a classe no possua a homogeneidade demogrfica que a caracteriza desde o fim do sculo xix, embora se aproximasse constantemente dela. As classes escolares que se haviam formado por razes no demogrficas serviriam gradualmente para enquadrar categorias de idades, no previstas de incio. Existia, por tanto, uma relao despercebida entre a trutUraO das classes e as idades, despercebida porque estranha os hbitos mais comuns. A nova necessidade de anlise e de diviso, que caracterizou o nasci mento da conscincia moderna em sua zona mais intelectual, ou seja, na formao pedaggica, provocou por sua vez necessidades e mto

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dos idnticos, quer na ordem do trabalho a diviso do trabalho, quer na representao das idades a repugnncia em misturar espri tos, e, portanto, idades muito diferentes. Mas essa preocupao de separao das idades s foi teoricamente reconhecida e afirmada mais tarde, quando j se havia imposto na prtica, aps tentativas longas e empricas. E isso nos leva a estudar mais de perto o proble ma das idades escolares e de sua correspondncia s classes.

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As Idades dos Alunos

O estudo da correspondncia entre as classes escolares e as ida des dos alunos, o estudo do ciclo escolar atravs do exame de alguns casos biogrficos dos sculos XV, XVII e XVIII, e finalmente a an lise de alguns catlogos em que os diretores e professores atualiza vam a lista de alunos, o que possibilita estabelecer a composio das classes por idade, nos permitem deduzir algumas idias essenciais.

A precocidade de certas infncias do sculo XVI e incio do s culo XVII nos pareceu ser uma sobrevivncia dos hbitos escolares medievais, mas tambm do costume geral da aprendizagem, em que as idades eram misturadas e uma habilidade precoceflo surpreendia mais do que o carter excepcional de certos dons. Observamos, alis, que as carreiras brilhantes, como as dos nossos memorialistas, ainda se caracterizavam por uma relativa precocidade: durante certo tem po, a precocidade esteve ligada ao sucesso. Contudo, a admirao comum logo se desviou desses jovens prodgios no mais tardar, du rante o sculo XVIII. A repugnncia pela precocidade marca a pri meira brecha aberta na j das idades dos jovens. A pol

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AS IDADES DOS ALUNOS 177

tica escolar que eliminava as crianas muito pequenas, fossem quais fossem seus dotes, quer recusando-lhes a entrada na escola, quer como era mais comum concentrando-as nas classes mais baixas, ou ainda fazendo-as repetir o ano, implicava um sentimento novo de distino entre uma primeira infncia mais longa, e a infncia pro priamente escolstica. At o meio do sculo XVII, tendia-se a consi derar como trmino da primeira infncia a idade de 5-6 anos, quando o menino deixava sua me, sua ama ou suas criadas. Aos sete anos, ele pdia entrar para o colgio, e at mesmo para o 79 ano. Mais tar de, a idade escolar, ao menos a idade da entrada para as trs classes de gramtica, foi retardada para os 9-10 anos. Portanto, eram as crianas de at 10 anos que eram mantidas fora do colgio. Dessa maneira conseguia-se separar uma primeira infncia que durava at 9-10 anos de uma infncia escolar que comeava nessa idade. O senti mento mais com umente expresso para justificar a necessidade de re tardar a entrada para o colgio era a fraqueza, a imbecilidade, ou a incapacidade dos pequeninos. Raramente era o perigo que sua ino cncia corria, ou ao menos esse perigo, quando admitido, no era li mitado apenas primeira infncia.

A repugnncia pela precocidade marcou portanto a diferencia o atravs do colgio de uma primeira camada: a da primeira infn cia, prolongada at cerca de 10 anos.

Mas embora a primeira infncia fosse assim isolada, a mistura arcaica das idades persistiu nos sculos XVII e XVIII entre o resto da populao escolar, em que crianas de 10 a 14 anos, adolescentes de 15 a 18 e rapazes de 19 a 25 freqentavam as mesmas classes. At o fim do sculo XVIII, no se teve a idia de separ-los. Ainda no in cio do sculo XIX, separavam-se de modo definitivo os homens fei tos, os barbudos de mais de 20 anos, mas no se considerava estra nha a presena no colgio de adolescentes atrasados, e a promiscui dade de elementos de idades muito diferentes no chocava ningum, contanto que os menorezinhos no fossem expostos a ela. De fato, ainda no se sentia a necessidade de distinguir a segunda infncia, alm dos 12-13 anos, da adolescncia ou da juventude. Essas duas ca tegorias de idade ainda continuavam a ser confundidas: elas s se se parariam mais para o fim do sculo XIX, graas difuso, entre a burguesia, de um ensino superior: universidade ou grandes escolas. Durante o Primeiro Imprio na Frana, nem mesmo a poca do re crutamento, facilmente evitado nas camadas burguesas, dividia esse longo perodo de idade em que nossas distines modernas ainda no eram admitidas.

Observaremos que essa ausncia de separao entre a segunda infncia e a adolescncia, que desapareceu na burguesia durante o s culo XIX, subsiste ainda hoje na Frana nas classes populares onde

no h formao secundria. A maioria das escolas primrias perma nece fiel ao velho hbito da simultaneidade do ensino. O jovem ope rrio que obtm o certificado de concluso do primeiro grau e no passa por uma escola tcnica ou um centro de aprendizagem entra di retamente para o mundo do trabalho, que continua a ignorar a dis tino escolar das idades. E a ele pode escolher seus camaradas numa faixa de idade mais extensa do que a faixa reduzida da classe do colgio. O fim da infncia, a adolescncia e o inicio da maturidade no se opem como na sociedade burguesa, condicionada pela prti ca dos ensinos secundrio e superior.

O perodo da segunda infncia foi distinguido gra as ao estabelecimento progressivo e tardio de uma relao entre a idade e a classe escolar. Durante muito tempo, no sculo XVI e at mesmo no sculo XVII, essa relao foi muito incerta.

A regularizao do ciclo anual das promoes, o hbito de im por a todos os alunos a srie completa de classes, em lugar de limit la a alguns apenas, e as necessidades de uma pedagogia nova, adapta da a classes menos numerosas e mais homogneas, resultaram, no incio do sculo XIX, na fixao de uma correspondncia cada vez mais rigorosa entre a idade e a classe. Os mestres se habituaram en to a compor suas classes em funo da idade dos alunos. As idades outrora confundidas comearam a se separar na medida em que coincidiam com as classes, pois desde o fim do sculo XVI a classe fora reconhecida como uma unidade estrutural. Sem o colgio e suas clulas vivas, a burguesia no dispensaria s diferenas mnimas de idade de suas crianas a ateno que lhes demonstra, e partilharia nesse ponto da relativa indiferena das sociedades populares.

OS PROGRESSOS DA DISCIPLINA 79

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Os Progressos da Disciplina /

Portanto, antes do sculo XV,o estudante no estava submetido a uma autoridade disciplinar extracorporativa, a uma hierarquia es colar. Mas tampouco estava entregue a si mesmo. Ou bem residia perto de uma escola com sua prpria famlia, ou, como era mais fre qente, morava com uma outra famlia qual havia sido confiado com um contrato de aprendizagem que previa a freqncia a uma es cola, sempre latina. O menino entrava ento para uma dessas asso ciaes, corporaes ou confrarias... que, atravs de exerccios devo tos ou festivos, do culto religioso, de bebedeiras ou banquetes, man tinham vivo o sentimento de sua comunidade de vida. Outra possibi lidade era o pequeno estudante seguir um menino mais velho, com partilhando sua vida na alegria ou na desgraa, e, muitas vezes, em

troca, sendo surrado e explorado. Em todos esses casos, o estudante pertencia a uma sociedade ou a um bando de companheiros em que uma camaradagem s vezes brutal porm real regulava sua vida quo tidiana, muito mais do que a escola e seu mestre, e, porque essa ca maradagem era reconhecida pelo senso comum, ela tinha um valor moral.

A partir do fim da Idade Mdia, esse sistema de camaradagem encontraria na opinio influente uma oposio crescente, e se dete rioraria gradativ at aparecer no final como uma forma de desordem e de anarquia. Em sua ausncia, a juventude escolar seria organizada com base em novos princpios de comando e de hierar quia autoritria. Essa evoluo, certo, no foi particular infncia, e se estendeu a toda a sociedade o estabelecimento do absolutismo monrquico foi um de seus aspectos. Contudo, na escola, ela provo cou ou acompanhou uma modificao paralela do sentimento da infncia, particularmente interessante para nosso estudo.

Acompanharemos agora os progressos desses novos princpios de disciplina:

Desde o sculo XV, ao mesmo tempo em que lutavam contra os hbitos escolares de solidariedade corporativa, esses homens adeptos da ordem, esses organizadores esclarecidos, procuravam difundir uma idia nova da infncia e de sua educao. Gerson e o Cardeal dEstouteVilie so exemplos muito caractersticos desse estado de esprito. Para o Cardeal dEstouteville 2, as crianas no podiam ser abandonadas sem perigo a uma liberdade sem limites hierrquicos. Elas pertenciam a uma elas infirma que exigia uma disciplina maior e princpios mais estritos. Para ele, os mestres-escola os principal es

no deviam mais ser os primeiros camaradas da criana. Eles se se paravam dos infirmi que dirigiam. Sua misso no consistia apenas em transmitir, como mais velhos diante de companheiros mais jo vens, os elementos de um conhecimento; eles deviam, alm disso, e em primeiro lugar, formar os espritos, inculcar virtudes, educar tan to quanto instruir. Essa preocupao no aparecia de forma to explcita nos textos anteriores.

Esses educadores eram responsveis pela alma dos alunos: mo nemus omnes ei singulos pedagogos presentes eI futuros... ul sic inten dani regimini suorum dom esticorum puerorwfl ei scolarium. Para eles,

1 As reticncias indicam passagens suprimidas.

2 Thry, Hisloire de lduca(ion, 1858, 2 vois., t. II apndice.

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OS PROGRESSOS DA DISCIPLINA 181

dores, os outros mestres e submonitores: viros bonos, graves ei doctos. Era um dever tambm usar sem indulgncia culpada de seus poderes de correo e punio, pois isso envolvia a salvao da alma das crianas, pelas quais eles eram responsveis perante Deus: ne eorwn dampnaiionem.

Duas idias novas surgem ao mesmo tempo: a noo da fraque za da infncia e o sentimento da responsabilidade moral dos mestres. O sistema disciplinar que elas postulavam no se podia enraizar na antiga escola medieval, onde o mestre no se interessava pelo com portamento de seus alunos fora da sala de aula.

A nova disciplina se introduziria atravs da organizao j mo derna dos colgios e pedagogias com a srie completa de classes em que o diretor e os mestres deixavam de ser primi inter pares, para se tornarem depositrios de uma autoridade superior. Seria o governo autoritrio e hierarquizado dos colgios que permitiria, a partir do sculo XV, o estabelecimento e o desenvolvimento de um sistema dis ciplinar cada vez mais rigoroso.

Para definir esse sistema, distinguiremos suas trs caractersticas principais: a vigilncia constante, a delao erigida em princpio de governo e em instituio, e a aplicao ampla de castigos corporais.

A histria da disciplina do sculo XIV ao XVII permite-nos fa zer duas observaes importantes.

Em primeiro lugar, uma disciplina humilhante o chicote ao critrio do mestre e a espionagem mtua em beneficio do mestre substituiu um modo de associao corporativa que era o mesmo tan to para os jovens escolares como para os outros adultos. Essa evolu o sem dvida no foi particular infncia: nos sculos XV-XVI, o castigo corporal se generalizou, ao mesmo tempo em que uma con cepo autoritria, hierarquizada em suma, absolutista da socie dade. Contudo, mesmo assim, restou uma diferena essencial entre a disciplina das crianas e a dos adultos diferena que no existia nes se grau durante a Idade Mdia. Entre os adultos, nem todos eram submetidos ao castigo corporal: os fidalgos lhe escapavam, e o modo de aplicao da disciplina contribua para distinguir as condies so ciais. Ao contrrio, todas as crianas ejovens, qualquer que fosse sua condio, eram submetidos a um regime comum e eram igualmente surrados. Isso no quer dizer que a separao das condies sociais no existisse no mundo escolstico. Ela existia a como nos outros lu gares e era igualmente marcada. Mas o carter degradante para os

adultos nobres do castigo corporal no impedia sua aplicao s crianas. Ele se tornou at mesmo uma caracterstica da nova atitude diante da infncia.

O segundo fenmeno que nossa anlise revela a dilatao da idade escolar submetida ao chicote: reservado de incio s crianas pequenas, a partir do sculo XVI ele se estendeu a toda a populao escolar, que muitas vezes beirava e outras ultrapassava os 20 anos Tendia-se portanto a diminuir as distines entre a infncia e a ado lescncia, a fazer recuar a adolescncia na direo da infncia, sub metendo-a a uma disciplina idntica. Dentro do mundo escolar pois isso no se aplicava tanto s carreiras no escolares ou pouco escolarizadas o adolescente era afastado do adulto e confundido com a criana, com a qual partilhava as humilhaes do castigo cor poral, o castigo da plebe.

Portanto, a infncia prolongada at dentro j da adolescncia, da qual se distinguia mal, caracterizava-se por uma humilhao deli berada. Toda a infncia, a infncia de todas as condies sociais, era submetida ao regime degradante dos plebeus. O sentimento da parti cularidade da infncia, de sua diferena com relao ao mundo dos adultos, comeou pelo sentimento mais elementar de sua fraqueza, que a rebaixava ao nvel das camadas sociais mais inferiores.

A preocupao em humilhar a infncia para distingui-la e me lhor-la se atenuaria ao longo do sculo XVIII, e a histria da disci plina escolar nos permite acompanhar a mudana da conscincia co letiva nessa questo.

Na Frana, a opinio pblica manifestou uma repugnncia pelo regime disciplinar escolstico que resultou em sua supresso por vol ta de 1763, quando as autoridades tomaram a condenao dos jesui tas como pretexto para reorganizar o sistema escolar.

O carter servil e aviltador do castigo corporal no era mais re conhecido como adaptado fraqueza da infncia. Ao contrrio, ele provocava uma reprovao de incio discreta, mas que se iria am pliar. Surgiu a idia de que a infncia no era uma idade servil e no merecia ser metodicamente humilhada.

Essa repugnncias despertada aqui pelo castigo dos alunos pe quenos, tornou-se ainda mais viva com relao aos alunos maiores. Pouco a pouco, tornou-se habitual no mais chicotear os alunos de retrica.

era um dever de conscincia escolher judiciosamente seus colabora-

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182HISTRIA SOCIAL DA CRIANA E DA FAMLIA

Ao mesmo tempo, as velhas prticas de delao foram abando nadas. J as pequenas escolas de Port-Royal e a tradio jansenista, que fazia o papel de precursora, as evitavam. Por volta de 1700, o novo colgio de Sainte-Barbe adotou os mtodos de Port-Royal . Seu regulamento suprimia tanto os castigos corporais como os princpios medievais de emulao adotados pelos odiados jesutas, e a instituio dos observadores. Mais que isso, na reunio semanal dos mestres que decidiam as advertncias e os castigos, um tribuno dos alunos estava presente e defendia seus colegas. Um esprito intei ramente diferente surge aqui. Ele se imps ao colgio de Louis-le Grand aps 1763, e a toda a organizao escolar francesa.

O relaxamento da antiga disciplina escolar correspondeu a uma nova orientao do sentimento da infncia, que no mais se ligava ao sentimento de sua fraqueza e no mais reconhecia a necessidade de sua humilhao. Tratava-se agora de despertar na criana a respon sabilidade do adulto, o sentido de sua dignidade. A criana era me nos oposta ao adulto (embora se distinguisse bastante dele na prti ca) do que preparada para a vida adulta. Essa preparao no se fa zia de uma s vez, brutalmente. Exigia cuidados e etapas, uma for mao. Esta foi a nova concepo da educao, que triunfaria no s culo XIX.

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As Pequenas Escolas

Este captulo dedicado ao estudo de dois fenmenos: primeiro, no sculo XVII, a especializao demogrfica das idades de 5-7 a 10- 11 anos, tanto nas pequenas escolas como nas classes inferiores dos colgios; em seguida, no sculo XVIII, a especializao social de dois tipos de ensino, uni para o povo, e o outro para as camadas burgue sas e aristocrticas. De um lado, as crianas foram separadas das mais velhas, e de outro, os ricos foram separados dos pobres. Em mi nha opinio, existe uma relao entre esses dois fenmenos. Eles fo ram as manifestaes de uma tendncia geral ao enclausuramento, que levava a distinguir o que estava confundido, e a separar o que es tava apenas distinguido: uma tendncia que no era estranha a revo luo cartesiana das idias claras, e que resultou nas sociedades igua

litrias modernas, em que uma compartimentao geografica rigoro

3 Quicherat, Hisloire de Sainte-Barbe,sa substituiu as promiscuidades das antigas hierarquias.

A RUDEZA DA INFNCIA ESCOLAR j85

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A Rudeza da

Infncia Escolar

O homem moderno ficar surpreso com a inconvenincia desses costumes: eles nos parecem incompatveis com nossas idias sobre a infncia e a primeira adolescncia, e j muito os tolerarmos nos adultos das classes populares, como indicio de uma idade mental ain da aqum da maturidade. Nos sculos XVI e XVII, os contempor neos situavam os escolares no mesmo mundo picaresco dos soldados, criados, e, de um modo geral, dos mendigos. As pessoas honestas que possuam algum bem desconfiavam tanto de uns como de outros. Um cnego de Dijon ,falando sobre a juventude dourada da cidade ( qual pertencia o filho do presidente da Corte Suprema), e de sua partida em 1592 para ir para as universidades das Leis em Toulou

se. chamava-a literalmente de escria: um grande bem nos ver mos livres dessa escria, como de um bando de malfeitores. Uma das personagens da comdia de Larivey assimilava certos escolares aos insubmissos que viviam margem da sociedade civilizada: No penso que sejam escolares e sim homens livres, que vivem sem lei e sem apetite, e homens livres significava algo como vagabundos ou iruands. A prpria palavra zruand, que na gria francesa moderna de signa um adulto, vem do latim escolstico trutanus, vagabundo, palavra que se aplicava principalmente aos estudantes errantes, essa chaga da antiga sociedade escolar. O termo ainda conserva esse senti do em ingls, onde truant designa antes de tudo a criana que faz ga zeta.

Foi necessria a presso dos educadores para separar o escolar do adulto bomio, ambos herdeiros de um tempo em que a elegncia de atitude e de linguagem era reservada no ao clrigo, mas ao adulto corts. Uma nova noo moral deveria distinguir a criana, ao me nos a criana escolar, e separ-la: a noo da criana bem educada. Essa noo praticamente no existia no sculo XVI, e formou-se no sculo XVII. Sabemos que se originou das vises reformadoras de uma elite de pensadores e moralistas que ocupavam funes eclesis tic ou governamentais. A criana bem educada seria preservada das rudezas e da imoralidade, que se tornariam traos especficos das camadas populares e dos moleques. Na Frana, essa criana bem educada seria o pequeno-burgus. Na Inglaterra, ela se tornaria o gentieman, tipo social desconhecido antes do sculo XIX, e que seria criado por uma aristocracia ameaada graas s public schools, como uma defesa contra o avano democrtico. Os hbitos das classes diri gentes do sculo XIX foram impostos s crianas de incio recalci trantes por precursores que os pensavam como conceitos, mas ainda no os viviam concretamente. Esses hbitos no princpio foram hbi tos infantis, os hbitos das crianas bem educadas, antes de se torna rem os hbitos da elite do sculo XIX, e, pouco a pouco, do homem moderno, qualquer que seja sua condio social. A antiga turbuln cia medieval foi abandonada primeiro pelas crianas, e finalmente pelas classes populares: hoje, ela a marca dos moleques, dos desor deiros, ltimos herdeiros dos antigos vagabundos, dos mendigos, dos fora-da-lei, dos escolares do sculo XVI e inicio do sculo XVII.

1 C. Mutteau, Les Eco/es de Dijon.

Li

da Infncia

Na primeira parte deste livro, estudamos o nascimento e o de senvolvimento dos dois sentimentos da infncia que distinguimos: o primeiro, difundido e popular, a paparicao, limitava-se s pri ineiras idades e correspondia idia de uma infncia curta; o segun do, que exprimia a tomada de conscincia da inocncia e da fraqueza da infncia, e, por conseguinte, do dever dos adultos de preservar a primeira e fortalecer a segunda, durante muito tempo se limitou a uma pequena minoria de legistas, padres ou moralistas. Sem eles, a criana teria permanecido apenas o poupard, o bambino, o pequeno ser cmico e gentil com o qual as pessoas se distraam com afeio, mas tambm com liberdade quando no com lioena sem preocu pao moral ou educativa. Passados os cinco ou sete primeiros anos, a criana se fundia sem transio com os adultos: esse sentimento de uma infncia curta persistiu ainda por muito tempo nas classes popu lares. Os moralistas e educadores do sculo XVII, herdeiros de uma tradio que remontava a Gerson, aos reformadores da universidade de

A ESCOLA E A DURAO DA INFNCIA187

Paris do sculo XV, aos fundadores de colgios do fim da Idade M dia, conseguiram impor seu sentimento grave de uma infncia longa graas ao sucesso das stituieS escolares e s prticas de educao que eles orientaram e disciplinaram. Esses mesmos homens, obceca dos pela educao, encontram-sc tambm na origem do sentimento moderno da infncia e da escolaridade.

A infncia foi prolongada alm dos anos em que o garotinho ainda andava com o auxlio de guias ou falava seu jargo, quan do uma etapa intermediria, antes rara e da em diante cada vez mais comum, foi introduzida entre a poca da tnica com gola e a poca do adulto reconhecido: a etapa da escola, do colgio. As classes de idade em nossa sociedade se organizam em torno de instituies. As sim, a adolescncia, mal percebida durante o Ancien Rgime, se dis tinguiu no sculo XIX e j no fim do sculo XVIII atravs da conscri o, e mais tarde, do servio militar. O colier o escolar e esta pa lavra at o sculo XIX foi sinnimo de estudante, sendo ambas em pregadas indiferentemente: a palavra colegial no existia o co!ier do sculo XVI ao XVIII estava para uma infncia longa assim como o conscrito dos sculos XIX e XX est para a adolescncia.

Entretanto, essa funo demogrfica da escola no surgiu ime diatamente como uma necessidade. Ao contrrio, durante muito tempo a escola permaneceu indiferente repartio e distino das idades, pois seu objetivo essencial no era a educao da infncia. Nada predispunha a escola latina da Idade Mdia a esse papel de for mao moral e social. A escola medieval no era destinada s crian as, era uma espcie de escola tcnica destinada instruo dos clri gos, jovens ou velhos, como dizia o Doctrinal de Michault. Ela acolhia da mesma forma e indiferentemente as crianas, os jovens e os adultos, precoces ou atrasados, ao p das ctedras magisteriais.

At o sculo XVIII, ao menos, muito dessa mentalidade sobrevi veu na vida e nos hbitos escolares. Vimos como a diviso em classes separadas e regulares foi tardia, como as idades continuavam mistu radas dentro de cada classe, freqentada ao mesmo tempo por crian as de 10 a 13 anos e adolescentes de 15 a 20. Na linguagem comum, dizer que um menino estava em idade de ir para a escola no signifi cava necessariamente que se tratava de uma criana, pois essa idade podia tambm ser considerada como um limite alm do qual o indiv duo tinha poucas possibilidades de sucesso. dessa forma que deve mos interpretar os sbios conselhos que Tereza Pana d a seu mari do Sancho, quando este parte em expedio com D. Quixote, segun do a traduo francesa do sculo XVII No vos esqueais nem de

CONCLUSO

A Escola e a Durao

1 Cervantes, Dom Quixote, ed. La Pliade, parte II, cap. 5, p. 554.

188 HISTRIA SOCIAL DA CRIANA E DA FAMILIA

mim nem de vossos filhos. Lembrai-vos que nosso Sanchicoj tem 15 anos feitos, que razovel e que deve entrar para a escola, se certo que seu tio abade deseja torn-lo um homem da Igreja. Ia-se para a escola quando se podia, ou muito cedo ou muito tarde. Esse modo de ver persistiria ao longo de todo o sculo XVII, a despeito das influn cias contrrias. Deixaria vestgios suficientes no sculo XVIII para que, aps a Revoluo, os educadores mais velhos se lembrassem dele e se referissem para conden-la prtica do Ancin Rgime d manter no colgio alunos muito velhos. Ele s desapareceria real mente no sculo XIX.

Essa indiferena da escola pela formao infantil no era pr. pria apenas dos conservadores retrgrados. importante notar que os humanistas do Renascimento a compartilharam tambm com seus inimigos, os escolsticos tradicionais. Assim como os pedagogos da Idade Mdia, eles confundiram educao com cultura, e estenderam a educao a toda a durao da vida humana, sem dar um valor pri vilegiado infncia ou juventude, sem especializar a participao das idades. Mas eles exerceram apenas uma influncia fraca sobre a estrutura da escola, e seu papel foi exageradamente aumentado pelos historiadores da literatura. Os verdadeiros inovadores foram esses reformadores escolsticos do sculo XV, o Cardeal dEstouteville, Gerson, os organizadores dos colgios e pedagogias, e, finalmente e acima de tudo, os jesutas, os oratorianos e os jansenistas do sculo XVII. Com eles vemos surgir o sentido da particularidade infantil, o conhecimento da psicologia infantil e a preocupao com um mto do adaptado a essa psicologia.

O colgio do Ancien Rgime conservou portanto durante muito tempo a lembrana de sua ancestral, a escola latina da catedral. Mui to tempo se passou at que ele aparecesse como uma instituio espe cialmente reservada s crianas.

Nem todo o mundo, porm, passava pelo colgio, nem mesmo pelas pequenas escolas. Nesses casos de meninos que jamais haviam ido ao colgio, ou que nele haviam permanecido muito pouco tempo (um ou dois anos), os antigos hbitos de precocidade persistiam como na Idade Mdia. Continuava-se no domnio de uma infncia muito curta. Quando o colgio no prolongava a infncia, nada mu dava.

Ainda no sculo XVII, a distribuio da escolaridade no se fa zia necessariamente segundo o nascimento. Muitos jovens nobres ig noravam o colgio, evitavam a academia e se uniam sem delonga s tropas em campanha. Em seu famoso relato da morte de Turenne em 1675, Mme de Svign assinala a presena, ao lado do Marechal, de seu sobrinho, que tinha 14 anos. No fim do reinado de Lus XIV, ha

A ESCOLA E A DURAO DA INFNCIA189

via tenentes de 14 anos em seu exrcito. Chevert entrou para o exrci to aos 112

Essa precocidade tambm era encontrada entre a soldadesca. Mmc de Svigfl, que decididamente se interessava muito pelos assun tos militares, como observa E. G. Leonard, conta a seguinte anedota:

DespraUX foi com Gourville ver M. le Prince. M. le Prince man dou-o ver seu exrcito. Ento, que me dizeis? perguntou M. k Prince. Monsenhor disse DespraUx, creio que VOSSO exrcito ser bom quando for maior. que o soldado mais velho ainda no tem 18 anos

Comum aos oficiais e aos homens do sculo XVII, essa precoci dade persistiu ainda muito tempo entre os soldados, embora no scu lo xviii tenha desaparecido entre os oficiais, que s entravam em servio aps um ciclo escolar mais ou menos completo, e, s vezes, prolongado por escolas militares especiais.

Se a scolariza0 no sculo XVII ainda no era o monoplio de uma classe, era sem dvida o monoplio de um sexo. As mulheres eram excludas. Por conseguinte, entre elas, os hbitos de precocida de e de infncia curta mantiveram-se inalterados da idade Mdia at o sculo XVII.

Desde que completei meus 12 anos, graas a Deus cuja vida eterna, casei-me cinco vezes no prtico da igreja. Assim falava uma das mulheres de Chaucer, no sculo XIV. Mas no fim do sculo XVI, Catherifle Marion casou-se com Antoine Arnauld aos 13 anos. E ela era bastante dona de sua casa para dar uma bofetada em sua pri meira camareira, uma moa de 20 anos, assentada, porque esta no havia resistido a uma carcia que algum lhe fizera a. A autora des tas tinhas, Catherine Lemaitre, tinha-se casado aos 14 anos de idade. As pessoas falavam em casar sua irm Anne aos 12 anos, e s a vocao religiosa da menina fez com que esses planos fracas sassem. o pretendente no tinha pressa e gostava da famlia, como nos diz Catherifle Lemaitre, no s esperou para se casar at que Anfle tivesse professados como nO quis faz-lo antes de ver tambm transformada em religiosa nossa irm caula, que, na poca em que se falava de seu casamento com Anne, era uma criana de seis anos. No mximo, quatro ou seis anos de noivado. Alis, a partir dos lO anos, as meninas j eram mulherzinhas como essa mes ma Anne Arnauld, uma precocidade explicada por uma educao

2 E. O. Leonard, Les Problmes de ! 1958, p. 164.

3 L. Cognet, La Rfonne de Po,t-RoyaI 1950, pp. 13 e 100.

4 1. Cognet. op. ci

190 HISTRIA SOCIAL DA CRIANA E DA FAM filA

que treinava as meninas para que se comportassem desde muito cedo como adultas: Desde os 10 anos de idade essa pequena tinha o esp rito to avanado que governava toda a casa de Mmc Arnauld, a qual a fazia agir assim deliberadamente, para form-la nos exerccios de uma me de famlia, j que este deveria ser seu futuro.

Alm da aprendizagem domstica, as meninas no recebiam por assim dizer nenhuma educao. Nas famlias em que os meninos iam ao colgio, elas no aprendiam nada. Fnelon queixa-se dessa igifo rncia como de um fato generalizado. Reconhece que as pessoas se preocupavam muito com os meninos: Os mais hbeis especialistas se aplicaram em fornecer regras sobre o assunto. Quantos mestres e quantos colgios vemos! Quantas despesas so feitas com as impres ses de livros, as pesquisas cientficas, os mtodos de ensino das lnguas, a escolha dos professores... Essas despesas demonstram a alta considerao em que se tem a educao dos meninos. Mas as meninas! As pessoas se acreditam no direito de abandonar cega mente as meninas orientao de mes ignorantes e indiscretas . As mulheres mal sabiam ler e escrever: Ensinai as meninas a ler e a escrever corretamente. E vergonhoso, porm comum, ver-se mulhe res de esprito e bem educadas (portanto, da boa sociedade) no sa berem pronunciar bem o que lem: ou elas hesitam ou lem numa voz cantada... Cometem erros ainda mais grosseiros de ortografia, ou na maneira de formar ou ligar as letras ao escrever. As mulheres eram semi-analfabetas. Criou-se o hbito de enviar as meninas a con ventos que no eram destinados educao, onde elas acompanha vam os exerccios devotos e recebiam uma instruo exclusivamente religiosa.

No fim do sculo XVII, o Saint-Cyr de M de Maintenon forneceria o modelo de uma instituio de carter moderno para as meninas, que a ingressavam entre os 7 e os 12 anos e saam em torno dos 20 6 As queixas contra as pequenas escolas mistas e o ensino das ursulinas indicam uma tendncia geral em favor da escolarizao feminina, mas essa escolarizao se iniciaria com um atraso de cerca de dois sculos.

A partir do sculo XV, e sobretudo nos sculos XVI e XVII, apesar da persistncia da atitude medieval de indiferena idade, o colgio iria dedicar-se essencialmente educao e formao daju

A ESCOLA E A DURAO DA INFNCIA191

ventude, inspirando-se em elementos de psicologia que eram encon trados e que hoje reconhecemos em Cordier, na Ralio dos jesutas e na abundante literatura pedaggica de Port-Royal. Descobriu-se en to a necessidade da disciplina: uma disciplina constante e orgnica, muito diferente da violncia de uma autoridade mal respeitada. Os legisladores sabiam que a sociedade turbulenta que eles comandavam u gia um pulso firme, mas a disciplina escolar nasceu de um esprito e de uma tradio muito diferentes. A disciplina escolar teve origem na disciplina eclesistica ou religiosa; ela era menos um instrumento d coero do que de aperfeioamento moral e espiritual, e foi adotada por sua eficcia, porque era a condio necessria do trabalho cm co mum, mas tambm por seu valor intrnseco de edificao e ascese. Os educadores a adaptariam a um sistema de vigilncia permanente das crianas, de dia e de noite, ao menos em teoria.

A diferena essencial entre a escola da Idade Mdia e o colgio dos tempos modernos reside na introduo da disciplina. Esta se es tenderia gradualmente dos colgios s penses particulares onde mo ravam os alunos, e, em certos casos, ao conjunto da cidade, embora na prtica sem muito sucesso. Os mestres tenderam a submeter o alu no a um controle cada vez mais estrito, no qual as famlias, a partir do fim do sculo XVII, cada vez mais passaram a ver as melhores condies de uma educao sria. Chegou-se a aumentar os efetivos outrora excepcionais dos internos, e a instituio ideal do sculo XIX seria o internato, quer fosse um liceu, um pequeno seminrio, um co lgio religioso ou uma escola normal. Apesar da persistncia dos tra os arcaicos, a disciplina daria ao colgio do Ancien Rgime um car ter moderno que j anunciava nossos estabelecimentos secundrios contemporneos. Essa disciplina no se traduziria apenas por uma melhor vigilncia interna, mas tenderia a impor s famlias o respeito pelo ciclo escolar integral. A escolaridade se tornaria sem dvida uma questo de crianas e de jovens ou seja, no se estenderia mais, como na Idade Mdia ou no Renascimento, s idades da maturidade

mas seria uma escolaridade relativamente longa (menos longa, en tretanto, do que a da Idade Mdia). As pessoas no se contentariam mais em passar um ano ou dois no colgio, como ainda era freqente no incio do sculo XVII, tanto entre os nobres empobrecidos ou apressados, como entre as pessoas humildes, os artesos felizes em dar s suas crianas uma tintura de latim. No fim do sculo XVIII, o ciclo escolar era bastante semelhante ao do sculo XIX: quatro ou cinco anos no mnimo. A criana, enquanto durava sua escolaridade, era submetida a uma disciplina cada vez mais rigorosa e efetiva, e essa disciplina separava a criana que a suportava da liberdade do adulto. Assim, a infncia era prolongada at quase toda a durao do ciclo escolar.

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5 Fnelon, De lducation des filies. 1687.

6 Th. Lavalle, Histoire de la inaison roya!e de Saint-Cyr, 1862.

192 HISTRIA SOCIAL DA CRIANA E DA FAMILIA

A ESCOLA E A DURAO DA INFNCIA 193

De um lado, havia a populao escolarizada, e de outro, aqueles que, segundo hbitos imemoriais, entravam diretamente na vida adulta, assim que seus passos e suas lnguas ficavam suficientemente firmes. Essa diviso no correspondia s condies sociais. Sem d vida, o ncleo principal da populao escolar era constitudo de famlias burguesas, de juristas e de eclesisticos. Mas, como vimos, havia nobres entre os que no freqentavam a escola, e artesos e camponeses entre os que o faziam. As meninas de boa famlia no eram mais instrudas do que as das classes inferiores, e podiam s-lo at menos, pois, em certos casos, as meninas do povo aprendiam escrever com perfeio, como um oficio. A populao escolar, numa poca em que o colgio ministrava quase a totalidade dos ensinos que hoje dividimos em primrio, secundrio e superior, coincidia muito menos do que hoje com o contorno das condies sociais. O movimento de apostolado educacional do fim do sculo XVII, que resultou no aparecimento dos Irmos das Escolas Crists, no se li mitava apenas aos pobres. As escolas populares eram invadidas por pequeno-burgueses, assim como as classes inferiores dos colgios es tavam cheias de pequenos artesos ou camponeses.

Os acontecimentos poderiam ter-se desenrolado a seguir de tal forma que o sistema educacional francs se tivesse baseado na escola nica: afinal, o Ancien Rgime, at o sculo XVIII, praticamente s conheceu a escola nica. A freqi. escolar se teria estendido so cial e geograficamente; a durao dos ciclos, por outro lado, teria va riado segundo as vocaes: apenas os juristas e os eclesisticos teriam seguido at o fim dos dois ou trs anos de filosofia correspondentes a nossos anos de faculdade; os outros os artesos ou soldados te riam parado num estgio anterior. Esta era de fato a situao em meados do sculo XVII: os colgios ou as escolas latinas estendiam uma rede circular em torno de um grande colgio com a srie com pleta de classes e a densidade dessa rede diminua na direo da peri feria. Ela era constituda de vrias escolas que abrigavam apenas as classes inferiores do ciclo escolar. Isso pode nos parecer surpreenden te quando pensamos no rigor e na diversidade da hierarquia social do Ancien Rgime: os hbitos de escolaridade diferiam menos segundo as condies sociais do que segundo as funes. Conseqentemente, as atitudes existenciais, assim como vrios traos da vida quotidiana, no diferiam muito mais.

Mas esse estado de coisas no durou muito, e, a partir do sculo XVIII, a escola nica foi substituida por um sistema de ensino duplo, em que cada ramo correspondia no a uma idade, mas a uma condi o social: o liceu ou o colgio para os burgueses (o secundrio) e a escola para o povo (o primrio), O secundrio um ensino longo. O primrio durante muito tempo foi um ensino curto, e, tanto na Ingla

terra como na Frana, foram necessrias as revolues sociais origi nrias das ltimas grandes guerras para prolong-lo. Talvez uma das causas dessa especializao social resida justamente nos requisitos tcnicos do ensino longo, do momento em que ele se imps definiti vamente aos costumes; no era mais possvel tolerar a coexistncia de alunos que no estavam desde o incio decididos a ir at o fim, a acei tar todas as regras do jogo, pois as regras de uma coletividade fecha da, escola ou comunidade religiosa, exigem o mesmo abandono total que o jogo. Do momento que o ciclo longo foi estabelecido, no hou ve mais lugar para aqueles que, por sua condio, pela profisso dos pais ou pela fortuna no podiam segui-lo nem se propor a segui-lo at o fim.

Mas h uma outra causa para essa evoluo: a ao desses ho mens detentores da autoridade, da razo e do saber, que j encontra mos na origem das grandes transformaes dos costumes entre a Ida de Mdia e os tempos modernos. Foram eles, como dissemos, que compreenderam a particularidade da infncia e a importncia tanto moral como social da educao, da formao metdica das crianas em instituies especiais, adaptadas a essa finalidade. Muito cedo, al guns deles se perturbaram com a extenso de seu prprio sucesso um sucesso sociolgico do qual nem sempre estavam conscientes. Ri chelieu, que previa uma Academia modelo na cidade utpica que pretendia construir em Richelieu, e depois Colbert, exprimiram seus temores de uma inflao de intelectuais e de uma crise de mo-de- obra braal: um velho tema que as diversas geraes da burguesia conservadora transmitiram at nossos dias. No sculo XVII, apesar de sua autoridade, esses precursores pregavam no deserto: no pude ram fazer nada para frear o sucesso dos colgios e sua penetrao no campo. Mas no sculo XVIII, seu preconceito foi adotado por essa categoria de pessoas esclarecidas que, numa certa medida, apare cem em vrios domnios como seus sucessores; esses homens do Ilu minismo, das sociedades de pensamento, graas a seu nmero e suas relaes, exerceram sobre a opinio pblica uma influncia com que nenhum grupo de legisladores, clrigos ou intelectuais poderia ter so nhado no passado. Alguns deles, como Condorcet, permaneceram fiis idia de um ensino universal aberto a todos. Mas a maioria props, ao contrrio a partir da expulso dos jesutas limitar a uma nica classe social o privilgio do ensino longo e clssico, e con denar o povo a um ensino inferior, exclusivamente prtico.

Sabemos tambm que o sentimento da infncia encontrou sua expresso mais moderna nesses mesmos meios de burgueses esclare cidos, admiradores de Greuze e leitores do Emile ou de Pamla. Mas os antigos gneros de vida sobreviveram quase at nossos dias nas classes populares, submetidas por menos tempo ao da escola.

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194HISTRIA SOCIAL DA CRIANCA E DA FAMILIA

Teramos at mesmo razo em perguntar se nesse ponto no houve uma regresso durante a primeira metade do sculo XIX, sob a in fluncia da demanda de mo-de-obra infantil na indstria txtil. O trabalho das crianas conservou uma caracterstica da sociedade me dieval: a precocidade da passagem para a idade adulta. Toda a com plexidade da vida foi modificada pelas diferenas do tratamento es colar da criana burguesa e da criana do povo.

Existe portanto um notvel sincronismo entre a classe de idade

moderna e a classe social: ambas nasceram ao mesmo tempo, no fim

do sculo XVIII, e no mesmo meio: a burguesia.

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