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O cuidado em uma comunidade religiosa de matriz africana Maria Aparecida Santos de AGUIAR Universidade Estadual de Santa Cruz UESC , Brasil [email protected] ”A natureza é um capital que o homem não criou. Apenas descobriu” (Schumacher) Resumo O cuidado encontra-se presente nos princípios fundantes do candomblé religião de matriz africana preceito, respeito e segredo, pois os seus saberes dependem do cuidado consigo mesmo, com o outro e com o entorno. Quanto mais se cuida mais se conhece, quanto mais se conhece maior é o cuidado. Para conhecer é necessário conviver a comunidade, participar do seu cotidiano, dos ritos e das relações que são estabelecidas entre os seus membros, independente do lugar ocupado na hierarquia religiosa, e quanto mais elevado o nível hierárquico maior a responsabilidade do conhecimento e do aprendizado do cuidado. Palavras-chave: cuidado; candomblé; equilíbrio; preservação ambiental. Abstract The care can be found in the bases principles of candomblé religion of African origin precept, respect and secret, because their knowledge depends how carefully you are whit yourself, whit others and around. More you care, more you know yourself, and more you know yourself, more you care. To understand is necessary to coexist whit the community, participate in their quotidian, rituals, and relations established between their members, independent the place occupied in the religion hierarchy, and how superior theirs level, bigger the responsibility of knowledge and learning for care. Keywords: care, candomblé, balance, environmental protection.

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O cuidado em uma comunidade religiosa de matriz africana

Maria Aparecida Santos de AGUIAR Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC , Brasil

[email protected]

”A natureza é um capital que o homem não criou. Apenas descobriu” (Schumacher)

Resumo

O cuidado encontra-se presente nos princípios fundantes do candomblé – religião de matriz africana – preceito, respeito e segredo, pois os seus saberes dependem do cuidado consigo mesmo, com o outro e com o entorno. Quanto mais se cuida mais se conhece, quanto mais se conhece maior é o cuidado. Para conhecer é necessário conviver a comunidade, participar do seu cotidiano, dos ritos e das relações que são estabelecidas entre os seus membros, independente do lugar ocupado na hierarquia religiosa, e quanto mais elevado o nível hierárquico maior a responsabilidade do conhecimento e do aprendizado do cuidado.

Palavras-chave: cuidado; candomblé; equilíbrio; preservação ambiental.

Abstract

The care can be found in the bases principles of candomblé – religion of African origin – precept, respect and secret, because their knowledge depends how carefully you are whit yourself, whit others and around. More you care, more you know yourself, and more you know yourself, more you care. To understand is necessary to coexist whit the community, participate in their quotidian, rituals, and relations established between their members, independent the place occupied in the religion hierarchy, and how superior theirs level, bigger the responsibility of knowledge and learning for care.

Keywords: care, candomblé, balance, environmental protection.

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candomblé, religião de matriz africana, tem como princípios básicos o preceito, o respeito e o segredo, que estão presentes no fazer cotidiano de suas comunidades. Um grupo que professe esta religião forma

necessariamente uma comunidade. Para tais comunidades encontros esporádicos ou mesmo regulares para louvar os orixás não bastam para a construção do ethos. É necessário com-viver para poder aprender e se aprende pela participação nas atividades dos terreiros. Os quefazeres mesmo que aparentemente não tenham relação com os princípios religiosos estão a eles diretamente ligados. Como saber se não se convive? Como conhecer se não se participa do dia-a-dia das comunidades? Saber, saber fazer e por que fazer passam necessariamente pelo cuidado com o outro e com o entorno.

Tais comunidades se baseiam na crença que, ao cuidar do outro também cuido de mim mesmo e de tudo que está à minha volta. Ao cuidar do outro cuido do planeta e dos seres que o habitam. O homem é apenas um desses seres, não existindo relação de ser e coisa, de senhor e servo. Ao cuidar do outro se demonstra atenção e respeito para com a ancestralidade que é coletiva, pois a coletividade determina que o individual esteja imerso no coletivo. Ao cuidar de mim e do outro, o equilíbrio do egbé (comunidade) se mantém. O desequilíbrio de um membro provoca desequilíbrio no grupo.

Para manutenção do equilíbrio é preciso cuidar de cada e de todos os elementos da natureza e estar atento aos ewós (proibições) de cada orixá e de cada filho do orixá. E a principal proibição – que é de cada e de todos – é o desrespeito à natureza. O cuidado com a natureza é a grande responsabilidade dos participantes da religião do candomblé. O cuidado com a natureza é determinante para a manutenção da religião: Kó si ewé, kó si Òrìsà ( sem folha não há orixá), como se afirma no terreiro “sem folha não há candomblé”. Então quanto mais tempo se investe no viver das comunidades, mais se conhece, mais aprende. E se aprende com o outro, com o fazer junto, na observação, no perguntar.

Todo o saber de um terreiro tem uma relação direta com a ecologia, com o respeito à Terra, ao Fogo, à Água e ao Ar - elementos constitutivos de todos os seres. A esses elementos da natureza a comunidade demonstra respeito e atenção, visíveis nas homenagens constantes aos orixás e nas ações cotidianas.

O terreiro de candomblé objeto dessa investigação é uma comunidade afro-brasileira, de origem nagô, nação ijexá, localizado desde a sua fundação (1975), no bairro de Santa Inês, na cidade de Itabuna, região sul da Bahia. É um espaço de culto ao sagrado, entendido em seus aspectos divino-humano-divino. Aos orixás e às pessoas são destinadas a mesma atenção e cuidado. Não é possível cuidar do “santo” e descuidar do humano, pois essas duas estâncias são consideradas integrantes e integralizadoras. Como separar o divino do humano? A preocupação consigo mesmo e com o outro é determinante para a sobrevivência da religião. As pessoas são filhos dos orixás, fazem parte de uma família espiritual, isto é, a família de santo (Lody, 2006).

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Parte do egbé (comunidade do terreiro) do Ilê Axé Ijexá Orixá Olufon

Fonte: foto C. Oliveira

Nessa comunidade de terreiro, o babalorixá (sacerdote) é o responsável pelo cuidar do ori (cabeça espiritual) dos seus filhos-de-santo. Cada um desses filhos é ligado a um orixá, que é considerado como força viva da natureza e que se incorpora no humano. Os orixás e suas manifestações representam para o povo de santo as várias faces dos elementos da natureza. Uns, a exemplo de Nanã, Iemanjá, Oxum e Ewá representam o elemento Água; Outros, como Exu, Xangô, Oiá e Obá, o elemento Fogo; Há outros orixás considerados forças da Terra, a exemplo de Ogum, Oxóssi, Ossaim, Obaluaiê, Oxumarê. Orixás como Oxalá e Oxaguian estariam ligados ao elemento Ar (Prandi, 2001). Esses vários elementos necessitam de cuidado, de sinergia para manutenção do equilíbrio dessas forças da natureza. É preciso, no entanto, saber cuidar para que se desenvolva no tecido social do terreiro a autonomia, a cooperação, a solidariedade, se resgate a auto-estima, se construa a cidadania e se preserve o meio ambiente. Isso, no entanto, vai de encontro ao modelo econômico determinante em vigor na sociedade mais ampla que, ao defender o lucro como o valor primordial, promove a falta de respeito com as condições básicas do ser humano, com o outro e com o entorno. Segundo Boff (2002), cuidar é mais que um ato, é uma atitude de preocupação, de responsabilidade e de envolvimento afetivo com o outro. O homem é o próprio cuidado, sem o cuidado, o homem deixa de ser humano. Dos seres da natureza, o homem ao nascer, é o que necessita de ser cuidado para poder sobreviver. Quando abandonado à sua própria sorte, não sobrevive. Se mal cuidado, terá enorme dificuldade para integrar-se à sociedade. Como cuidar de si e do outro, sem ter vivido a relação real do cuidar? Como ler-se na condição de um ser de cuidado quando não sabemos como cuidar? Um terreiro de candomblé é um lócus do cuidado. Cuida-se do corpo, da mente e do espírito. Nessas comunidades, alimenta-se, ao mesmo tempo, o corpo e o espírito. Um não estará fortalecido, se o outro estiver fragilizado. O corpo alimentado e nutrido permite o desenvolvimento da espiritualidade, ao tirar do homem a preocupação com o possível abandono dos outros. A pessoa sabe que será cuidada em todas as etapas da sua iniciação religiosa e no cotidiano dessa nova família, a de santo. Ao fazer parte de um terreiro, a pessoas se torna membro de uma família, que é formada pelo pai

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(babalorixá) ou pela mãe (ialorixá) e pelos demais parentes, pois todos assim se consideram. A todos eles, deve-se respeito, atenção e cuidado, independente do lugar que seja ocupado por si ou pelo outro, na hierarquia religiosa. O candomblé é uma religião com vários níveis de hierarquia. E quanto mais alto o nível hierárquico, maiores são as responsabilidades. O que pode ser demonstrado com o quadro abaixo:

Quadro Hierárquico do Ilê Axé Ijexá Orixá Olufon

Níveis

hierárquicos Cargo Função

1.º Babalorixá Responsável pelo terreiro

2.º Iakekrê Auxiliar direta do babalorixá, sua substituta eventual

3.º Ogãs / Ekedes Responsáveis por cuidar dos orixás e auxiliar o babalorixá nas atividades

4.º Egbomis Detentores do grau de senioridade (7 anos)

5.º Yaôs Pessoas com menos de 7 de iniciação

6.º Abiãs Pessoas que não passaram pelos rituais que iawôs passam

Fonte: Elaboração própria a partir do Regulamento do Terreiro Ilê Axé Orixá Olufon

Ruy Póvas, babalorixá do Ilê Axé Ijexá Orixá Olufon e membros da hierarquia do terreiro Fonte : foto da autora

O pai ou mãe de santo tem a responsabilidade de cuidar da cabeça dos membros da comunidade e, nesse fazer, é auxiliado/a pelos oloiês (autoridades religiosas). Os demais membros da comunidade contribuem com o desenvolvimento do ritual, mantendo a atenção na atividade que está sendo realizada, para que tudo ocorra com tranquilidade e tenha sucesso.

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O cuidado está presente nas relações que se estabelecem na comunidade, como por exemplo, a um filho de Ewá não se pede que segure uma galinha, animal que é considerada ewó(proibição) do orixá. A um filho de Oxalá, não se pede que manuseie com azeite de dendê, ewó do seu orixá. A um filho de Obaluaiê, é proibido o abacaxi; a uma filha de Oiá, a abóbora é proibida; a um filho de Oxóssi, o mel. Além dessas proibições, outras existem e devem ser respeitadas. Todos os orixás têm ewó que se tornam ewó dos seus filhos (Póvoas, 2009). A atenção com o fazer, o dizer e o pedir são dimensões humanas do cuidado. E para isso, o outro deve ser visto em sua inteireza. Aí não cabe a superficialidade. As relações devem acontecer em profundidade, pois se acredita que é preciso ver o outro em sua totalidade divino-humana. O que é proibido ao divino também o é ao humano. Não é possível separá-los. O cuidado é uma opção que vai além da razão e da vontade, traz implícita a idéia de sobrevivência. É preciso que o homem desenvolva a capacidade de cuidar de si, das outras pessoas e do planeta (natureza). É o cuidado com o planeta que se constitui em um diferencial porque “desperta para a percepção de que os seres humanos são parte integrante da natureza” (Boff, 2002). Nos terreiros de candomblé “tudo gira em torno de um eixo de respeito pelo homem, pela busca permanente de harmonia entre o homem e a natureza” (Lody, 2006). É esta busca que permite ao povo de santo viver de forma indesvinculável o cotidiano de suas comunidades: a coexistência do divino (manifestações da natureza) e tudo o mais considerado do âmbito do humano, perpassado pelo eterno cuidar.

Cuidado de um egbomi1 com uma das iaôs 2do terreiro

Fonte: foto C. Oliveira

A afirmação de Heidegger (1989) que, “do ponto de vista existencial, o cuidado se acha a priori, antes de toda atitude e situação do humano, o que sempre significa dizer que ele se acha em toda atitude e situação de fato”, quer dizer que o cuidado se encontra na raiz primeira do ser humano, antes mesmo que o homem empreenda alguma ação.

1 Egbomi - iniciado que cumpriu a obrigação de 7 anos, tornando-se um “mais velho”. 2 Iaô - iniciado que ainda não cumpriu a obrigação de 7 anos.

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E ao fazê-la, ela virá prenhe e acompanhada de cuidado. Qualquer ação humana que abandone a dimensão do cuidado está fadada a prejuízos e destruição. O cuidado está presente nos princípios fundantes do candomblé: preceito, respeito e segredo. O preceito se relaciona com a ritualística religiosa. Cada situação é única e, portanto, exige atenção aos toques, cânticos, folhas, alimentos e animais que participam de um ritual específico. O respeito se relaciona com o ser, o eu e o outro (o conviver), as relações que são estabelecidas estão eivadas do cuidado, até onde posso ir; o que posso ou não posso fazer; o que devo ou não devo fazer. O segredo está relacionado com o conhecimento, que é o definidor do saber fazer (o por quê, o quando e como fazer). O candomblé não possui um livro de dogmas, todo o conhecimento religioso é passado no viver cotidiano da comunidade, pela oralidade, com base na vivência. Mesmo a existência de um regulamento (como no terreiro investigado) não esgota as possibilidades de conhecer e conviver. E ele é tido e considerado apenas um definidor de objetivos, finalidades e responsabilidades. O conhecimento é infinito, mas, para conhecer, é preciso conviver. A participação apenas nos rituais não transforma o adepto em um ser que conhece. O viver na comunidade precede e procede ao ritual. E porque nem tudo é verbalizado, é preciso desenvolver o sentido de observação e, quando houver dúvidas, saná-las com quem sabe para responder. E quem sabe? Como e quando perguntar? O convívio na comunidade permite saber como e quando a quem perguntar. O adepto que pouco convive, pouco conhece da comunidade à qual pertence e corre o risco de ser visto como alguém que não merece saber, ou que basta saber pouco. E para quem não merece saber não existe quem ensine. Dúvidas existem e muitas. Como não existe um livro de receitas (como fazer), como entender que duas pessoas filhas do mesmo orixá, que sejam cuidadas no mesmo dia não seja seguido passo a passo o mesmo ritual? As pessoas, como os orixás, são diversas, e é na diversidade que se encontra a unidade. No dizer do povo de santo, o diverso são as qualidades do orixá. Para as ciências sociais, na diversidade estão as particularidades do humano. Para o candomblé, unidade e diversidade são estâncias integrantes e integralizadoras, como o humano e o divino. Por isso mesmo, não é possível separá-las. Ao afirmar-se que, no candomblé, cuidar do divino e do humano tem a mesma importância, entende-se que o filho de santo é tão importante quanto o “santo”. O “santo” é o orixá que, para se tornar presente, necessita do humano, que precisa estar bem, em equilíbrio, para que a incorporação do divino ocorra de maneira adequada, satisfatória e equilibrada para ambos. O humano não deve ser encarado apenas como um receptáculo que o orixá utiliza para fazer-se presente na comunidade e que apenas passa por ele. Ao contrário, vários filhos de santo, os chamados “rodantes” (altares do orixá) afirmam que pressentem quando os orixás estão chegando, e quando “se vão”, podem se sentir tranqüilos ou em desequilíbrio. Esse é um momento que exige calma e tranquilidade do cuidador, pois as pessoas e os orixás têm suas próprias

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características que precisam ser respeitadas, já que elas determinam o quando e o como.

Relação de afeto entre participantes

Fonte: foto de C. Oliveira

No candomblé, sempre se precisa do outro, não cabe o eu sozinho, pois é o locus privilegiado do coletivo. Para homenagear, louvar, cantar, dançar, comer é necessário que os elementos representativos dos orixás se façam presentes. É na reunião dos diversos, água, fogo, terra e ar, que se forma a unidade religiosa. Com o outro, com o cuidado do outro, com a memória do outro, entre o real e o imaginário é possível construir o coletivo e manter a religião do candomblé.

Referências BOFF, L. (2002) Saber cuidar: ética do humano, compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes. HEIDEGGER, M. (1989) Ser e Tempo, Parte I, tradução de Márcia de Sá Cavalcante. Petrópolis: Vozes. LODY, R. (2006) O povo do santo. São Paulo: Martins Fontes. PÓVOAS, R. (2009) A memória do feminino no candomblé. Ilhéus: Editus. PRANDI, R. (2001) Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras.