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    O notvel socilogo urbano Robert Parkcerta vez escreveu que a cidade :

    a tentativa mais consistente do homem e amais bem sucedida como um todo para refazero mundo em que vive o mais prximo de seudesejo ntimo. Mas, se a cidade o mundo que

    o homem criou, o mundo no qual ele estdoravante condenado a viver. Assim,indiretamente, e sem qualquer clareza danatureza de sua tarefa, fazendo a cidade ohomem refez a si mesmo1.

    Se Park estiver certo, ento a questosobre qual tipo de cidade queremos no podeestar divorciada da questo sobre qual tipo depessoas desejamos ser, quais tipos de relaes

    sociais buscamos, qual relao nutrimos com anatureza, qual modo de vida desejamos. Isto seassemelha com a concepo de Lefebvre sobre odireito cidade no como um simples direito devisita ou como um retorno s cidades tradicionais,mas como um direito vida urbana transformadoe renovado2. O direito cidade est, por isso,alm de um direito ao acesso quilo que j existe: um direito de mudar a cidade mais de acordo

    com o nosso desejo ntimo. A liberdade para nosfazermos e nos refazermos, assim como nossascidades, um dos mais preciosos, ainda que dosmais negligenciados, dos nossos direitoshumanos. Mas, sendo que, como Park adverte,at agora faltamos com qualquer sentido declareza sobre a natureza de nossa tarefa,devemos primeiramente refletir sobre comofomos feitos e refeitos, atravs da histria, por

    um processo urbano impulsionado para frente por

    poderosas foras sociais. O ritmo e a escalaassustadores do processo de urbanizao nosltimos cem anos significam, por exemplo, quefomos refeitos muitas vezes sem saber por qu,como ou para qu. Isso tem contribudo para obem-estar humano? Tem isso nos feito pessoasmelhores ou nos deixado pender em um mundo

    de anomia e alienao, dio e frustrao?Transformamo-nos em meras mnadasarremessadas de l para c num mar urbano? Eo que podemos agora fazer com as imensasconcentraes de riqueza e privilgios em nossascidades naquilo que at as Naes Unidasretratam como um planeta de favelas emexploso3.

    A grande questo, certamente, paraonde ir a partir daqui. Existe alguma via paraexercitar esse precioso direito cidade que Parkinsinua e Lefebvre advoga? Remendar comresultados intil. O que tudo isto faz, comoEngels certa vez notou, girar em falso: umafavela varrida daqui apenas para reaparecernoutro lugar qualquer. Se nos opomos ao nossoestado corrente, ento o nico caminho radicaladiante confrontar os processos bsicos quegeram esse estado4. Isto reivindica uma densaanlise.

    Quero aqui me concentrar em um macroprocesso particular que tem sido esquecido muitofrequentemente, justamente por ser to macro.Isto o que chamo o problema do capitalexcedente. Ele atua assim: os capitali stascomeam o dia com um certo montante de

    dinheiro e terminam o dia com um maior. No dia

    A LIBERDADE DA CIDADE

    David Harvey

    Traduo de:Anselmo Alfredo *Tatiana Schor **

    Cssio Arruda Boechat ***

    GEOUSP - Espao e Tempo, So Paulo, N 26, pp. 09 - 17, 2009

    * Professor Doutor do Departamento de Geografia da FFLCH/USP. E-mail: [email protected]** Docente do depto. de Geografia da Universidade Federal do Amazonas. E-mail: [email protected]

    *** Doutorando do depto. de Geografia da FFLCH/USP. E-mail: [email protected]

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    seguinte eles levantam e tm de decidir o que

    fazer com o dinheiro extra que eles ganharam nodia anterior. Eles encaram um dilema faustiano:reinvestir para ter ainda mais dinheiro ouconsumir o excedente. As leis coercitivas dacompetio os foram a reinvestir porque, sealgum no reinveste, ento, outro seguramenteo far. Para permanecer um capitalista, algumexcedente deve ser reinvestido para fazer aindamais excedente.

    A poltica do capitalismo dirigida pelanecessidade de encontrar terrenos lucrativos paraa absoro de capital excedente. Se h umaescassez de trabalho e os salrios so muito altos,ento ou o trabalho existente tem de serdisciplinado (desemprego tecnologicamenteinduzido ou uma dura crtica contra o poder daclasse trabalhadora organizada so dois dosprincipais mtodos) ou fora de trabalho fresca

    tem de ser encontrada (pela imigrao,exportao de capital ou proletarizao). Se noh poder de compra suficiente no mercado, entonovos mercados devem ser encontrados pelaexpanso do comrcio exterior, promovendonovos produtos e modos de vida, criando novosinstrumentos de crdito e gastos estatais comdvida financiada. Se a taxa de lucro muito baixa,ento a regulao estatal das runas da

    competio, a monopolizao (fuses eaquisies) e as exportaes de capital s frescaspastagens proporcionam a sada. E, se nada dissofor possvel, ento os capitalistas se defrontamcom uma condio de crise na qual muito de seucapital ser desvalorizado. A crise toma forma deum excedente de capital que no pode serdisponibilizado. E quando o capital fica ocioso,normalmente o trabalho faz o mesmo5.

    A urbanizao proporciona um caminhopara resolver o problema do capital excedente.Considere o caso da Paris do Segundo Imprio. Acrise de 1848 foi uma das primeiras crisesexplcitas de capital excedente e foi extensiva Europa. Ela atingiu Paris de maneiraparticularmente forte e, com capital noempregado, o resultado foi uma revoluoabortiva por parte dos trabalhadores

    desempregados e daqueles utpicos que viam

    uma repblica socialista como antdoto ganncia

    e desigualdade capitalistas. Mas a burguesia,revidando violentamente contra osrevolucionrios, no poderia resolver a crise e oresultado foi a ascenso ao poder de NapoleoBonaparte, que se autoproclamou imperador em1852. Para sobreviver politicamente, o imperadorsabia que deveria lidar com o problema do capitalexcedente e fez isso anunciando um vastoprograma de investimento infraestrutural tanto

    interno quanto no exterior. No exterior, istosignificou a construo de estradas de ferroatravs da Europa e descendo ao Oriente, bemcomo apoio para obras grandiosas como o Canalde Suez. Internamente, significou consolidar arede ferroviria, construir portos e ancoradouros.Mas, acima de tudo, significou reconfigurar ainfraestrutura urbana de Paris. Ele trouxeHaussmann a Paris para assumir as obras pblicas

    em 1853.Haussmann compreendeu claramente que

    sua misso era ajudar a resolver o problema docapital excedente e do desemprego pela via daurbanizao. A reconstruo de Paris absorveuenormes quantidades de trabalho e de capital paraos padres da poca e, junto com uma supressoautoritria das aspiraes da fora de trabalhoparisiense, foi um veculo fundamental de

    estabilizao social. Haussmann valeu-se dosplanos utpicos (dos fourieanos e saint-simonianos) de remodelar Paris que haviam sidodebatidos na dcada de 1840, mas com umagrande diferena. Ele transformou a escala qualo processo urbano foi imaginado. Quando oarquiteto Hittorf mostrou a Haussmann seusplanos para um novo boulevard, Haussmann

    jogou-os de volta dizendo, no amplo o

    suficiente... voc o tem em 40 metros de largurae eu o quero em 120. Haussmann pensou nacidade como um todo numa escala maisgrandiosa, anexou os subrbios, redesenhoubairros inteiros (tal como Les Halles), mais doque apenas fragmentos e pedaos do tecidourbano. Ele mudou a cidade por atacado mais doque a varejo. Para fazer isto, precisou de novasinstituies financeiras e de instrumentos decrdito. O que ele fez de fato foi ajudar a resolvero problema do capital excedente estabelecendo

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    um sistema keynesiano de melhoramentos

    urbanos infraestruturais com dvidas financiadas.O sistema funcionou muito bem por uns quinzeanos. Mas ento quebrou em 1868. Haussmannfoi tirado do poder, Napoleo III em desesperofoi guerra contra a Alemanha de Bismarck eperdeu e, no vcuo que se seguiu, levantou-se aComuna de Paris, um dos mais revolucionriosepisdios na histria urbana do capitalismo. Oproblema do capital excedente no se extingue

    sob o capitalismo, ele tem apenas soluestemporrias, mas com grandes impactosirreversveis sobre a vida urbana (os boulevardesde Haussmann dominam Paris at hoje) 6.

    Indo agora um pouco adiante, at 1942nos Estados Unidos. O problema dadisponibilidade de capital excedente que pareceuto intratvel nos anos de 1930 (e o desempregoque com ele veio) foi temporariamente resolvido

    pela enorme mobilizao para o esforo de guerra.Mas todos estavam temerosos a respeito do queaconteceria aps a guerra. Politicamente asituao era perigosa. O governo federal estava,na verdade, realizando uma economianacionalizada e estava em aliana com a UnioSovitica comunista. Todos sabemos da histriasubsequente s polticas do McCarthismo (sinaisabundantes delas estavam presentes em 1942).

    Mas o que dizer sobre o problema do capitalexcedente? Naquele ano apareceu uma extensaavaliao dos esforos de Haussmann em umarevista de arquitetura. Documentou-se emdetalhe aquilo que ele havia feito que era toimpressionante e tentou-se uma anlise de seuserros. O artigo foi de ningum menos que RobertMoses, que, aps a II Guerra Mundial, fez a todaa regio metropolitana de Nova Iorque o que

    Haussman fez a Paris. Ou seja, Moses mudou aescala de pensamento sobre o processo urbanoe atravs do sistema (dvida financiada) deautoestradas e transformaes infraestruturais,atravs da suburbanizao e da total re-engenharia da regio metropolitana, usou oprocesso urbano como um caminho para resolvero problema da absoro do capital excedente.Esse processo, quando abrangeu toda a nao,como o foi em todos os maiores centrosmetropolitanos dos Estados Unidos (ainda outra

    transformao de escala), teve um papel crucial

    na estabilizao do capitalismo global aps a 2.Guerra Mundial. Tal projeto teve xito at o fimdos anos 60 quando, como ocorreu comHaussmann, um diferente tipo de crise comeoua se desdobrar at que Moses casse das graase suas solues parecessem inapropriadas einaceitveis. Mas os subrbios haviam sidoconstrudos e a radical transformao no modode vida que isto sinalizou teve todo tipo de

    consequncias sociais, levando, por exemplo, aprimeira onda de feministas a proclamar osubrbio e o seu modo de vida como o locus detodos os seus principais descontentamentos7.

    Agora mais adiante, para a nossaconjuntura atual. O capitalismo internacional temestado em uma montanha russa de crises equebradeiras regionais (Leste e Sudeste da siaem 1997-8; Rssia em 1998; Argentina em 2001,

    etc.), mas at agora evitou uma quebra globalainda que diante de um problema crnico deexcedente de capital disponvel8. Qual tem sido opapel da urbanizao na estabilizao destasituao? Nos Estados Unidos se aceita asabedoria de que o mercado imobilirio foi umimportante estabilizador da economia desde pelomenos o ano 2000 (aps a quebra da altatecnologia no final da dcada de 1990). Ele

    absorveu diretamente uma grande parte docapital excedente quando a rpida inflao depreos de ativos imobilirios sustentados por umaprdiga onda de refinanciamentos de hipotecasa histricas baixas taxas de juros impulsionou omercado interno de bens de consumo e deservios. A urbanizao da China nos ltimos vinteanos foi ainda mais importante. Seu ritmo cresceuenormemente aps a breve recesso em 1997

    ou prximo disso, de tal modo que a Chinaabsorveu quase metade do suprimento decimento de todo o mundo desde 2000. Asconsequncias para a economia global foramsignificativas: o Chile cresce por causa dademanda de cobre, a Austrlia prospera e mesmoo Brasil e a Argentina se recuperam em parte porcausa da fora da demanda da China pormatrias-primas. Mais de 100 cidades cresceramvertiginosamente acima da marca de um milhode habitantes na China e vrias esto rumando

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    para o nvel de 10 milhes e vastos projetos infra-

    estruturais esto transformando a paisagem9novamente, tudo financiado por dvidas. aurbanizao da China o principal estabilizador docapitalismo global? A resposta tem de ser um simparcial. Mas a China apenas o epicentro de umprocesso de urbanizao que se tornou agoragenuinamente global em parte atravs daimpressionante integrao global dos mercadosfinanceiros que usam sua flexibilidade para os

    projetos urbanos financiados por dvidas, desdeDubai at So Paulo e de Mumbai at Hong Konge Londres. O banco central chins, por exemplo,tem sido ativo no mercado de hipoteca secundrioderivado do boom de refinanciamento nos EUAenquanto Goldman Sachs foi fortemente envolvidono surgimento do mercado imobilirio em Mumbaie o capital de Hong Kong foi investido emBaltimore. Novamente, estamos olhando aquipara uma outra transformao em escala, umaque torna difcil de compreender que o que podeestar ocorrendo globalmente em princpiosimilar aos processos que Haussmann conduziucom tanta destreza na Paris do Segundo Imprio.A urbanizao, concluo, um veculo primordialpara absoro do excedente em escalasgeogrficas sempre crescentes.

    Mas que tipo de urbanizao esta e quais

    suas consequncias para o carter humano? Epor quais meios e por quem esta transformaode escala tem sido realizada? No caso de Paris,podemos claramente ver as figuras de NapoleoIII e seus muitos assessores, bem como deHaussmann e dos novos gnios do do crdito (osirmos Pereire) na vanguarda. Mas para ondeolhamos hoje?

    Voltemos por um momento para olhar

    para o final da revoluo urbana de Moses nosEstados Unidos. Ele ajudou, a um preo, aestabilizar com sucesso o capitalismo global porduas dcadas. A inundao de investimentosnos subrbios e a integrao da economianacional pelo sistema interestadual de viasexpressas transformaram radicalmente ageografia do sistema urbano dos EUA. Ascidades centrais, o ncleo tradicional das

    atividades produtivas, foram deixadas para trs.

    A cidade de Nova Iorque perdeu postos de

    emprego para os subrbios e para o Sul e Oeste(a indstria de vesturio mudou-se para asCarolinas antes, posteriormente indo para oMxico e agora para a China). As cidadescentrais mais antigas tornaram-se terrasdesgastadas, centros de desemprego e pobrezacrescentes e de minorias radicalmenteimpactadas. A economia foi bem, mas ascidades centrais no. O resultado foi o

    desenrolar de uma distinta crise urbana nosanos de 1960 em meio ao boom da idade deouro do ps-guerra. Inquietude social, irromperde violncias, movimentos urbanosrevolucionrios, tudo culminando no levanteintracidades em escala nacional de 1968, nodespertar* do assassinato de Martin Luther King.Foram os sinais chave desta aflio urbana10.

    O governo federal financiou um esforomacio para resolver a crise urbana. Fundosfluram para as cidades impactadas e umprograma pblico de emprego, amplamente,mas no somente, nas mos dos governosmunicipais, foi destinado para aliviar a pobrezae a injustia racial e trazer as cidades centraisde volta vida. Na cidade de Nova Iorque, oempoderamento das minorias raciais e dossindicatos municipais veio de mos dadas com

    o aumento dos gastos nos servios municipais(educao e sade). A isto a cidade adicionousua prpria caridade, tendo descoberto, com aajuda dos investidores bancrios, muitoscaminhos para aumentar o endividamento. Acidade fez o que Haussmann de fato fez: usounotas de antecipao de impostos (emprstimoscontra receitas futuras estimadas) para financiaro oramento corrente. Ao mesmo tempo, a

    administrao da cidade teve um complicadorelacionamento com os construtores urbanos,os grandes f inanciadores e empreiteirasespeculativas. Por um lado, ela ajudou-os comtodo t ipo de subsdios (provavelmentelubrificado com subornos para os polticos esindicatos de construo), mas, por outro, aorganizao dos bairros e os fortes sindicatosmunicipais colocaram barreiras polticas aos

    projetos da indstria da construo. Um boom* No texto in the wake que, ao mesmo tempo, significa velrio, dando um duplo sentido ao texto N.T.

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    assegurar a riqueza e o poder deles mesmos

    ao fazer tal mudana. A crise fiscal de 1975 foivista e capturada por eles como a grandeoportunidade de fazer exatamente isso.

    O que se ps em movimento em 1975 foium processo de refazer a cidade de Nova Iorqueque teve sua plena fluidez na administraoBloomberg aps 2001. Toda a ilha de Manhattanse tornou virtualmente um condomnio fechadopara os ultrarricos, para os maiorais dos servios

    financeiros (como o diretor do Goldman Sachsque neste ano recebeu um bnus de US$ 52milhes), para os diretores dos fundos deinvestimentos de alto risco (o mais importanterecebeu compensao pessoal de mais de US$250 milhes em 2005), para os capitalistasfinanceiros e comerciantes transnacionais, paraos magnatas da mdia, estrelas dos esportes edo cinema, para instituies culturais (como o

    MoMA, cultivado to assiduamente por NelsonRockfeller durante os anos 1970 como parte desua cruzada pessoal para civilizar a cidade pelacultura). A cidade de Nova Iorque se transformounum destino turstico que foi sistematicamentevendido ao resto do mundo como um lugar quedeve ser visto (incluindo agora, certamente, omrbido local onde o fracasso financeiro WorldTrade Center de David Rockfeller uma vez esteve).

    Os bairros, antes tristes e pobres em relao Manhattan, esto tambm agora sentindo o calordos empreendimentos medida que grandesprojetos so estendidos sobre o Brooklin, oQueens e, at mesmo, o Bronx.

    Mas tudo isto pareceria um sonho nosnegros dias de 1975. A cidade, sem nenhum outrolugar para ir, apelou para o governo federalfinanceiramente sem grana, mas o presidente

    Gerald Ford, ansioso por exibir suas credenciaisconservadoras face a uma reunio de movimentosque logo passou a ser conhecida comoReaganismo e rodeado por assessores financeiros(como o ultraconservador Secretrio do TesouroWillian Simon, que, quando era uma liderana narea financeira nos anos 1960, encabeara oencorajamento da cidade de Nova Iorque aoendividamento) e assessores polticos (como o

    grande urbanista Donald Rumsfeld, como chefe

    do grupo Ford), disse no (De Ford para a

    cidade: Morra disse a manchete do jornal). Acidade foi condenada como no sendo capaz depagar sua fora de trabalho e as suas contas demanuteno. A soluo a que se chegou atravsde tensas negociaes entre investidoresbancrios e o governador do estado de NovaIorque (com o prefeito como crescenteparticipantes nominal) foi de primeiro estabelecero que foi denominado Corporao de Assistncia

    Municipal (MAC), depois suplantada pelo Conselhode Controle de Emergncia Financeira (EFCB).

    O governo da cidade perdeu o controle deseu oramento. A estrutura que emergiu foisimples. Os rendimentos de impostos fluram parao Big MAC ou para o EFCB e qualquer sobra dopagamento integral s instituies financeiras eraento dado cidade para custear seus servios.Cortes catastrficos no emprego municipal

    seguiram (assim como cortes no pagamento enos benefcios) e a entrega de servios da cidadeem educao, sade, saneamento e transportefoi severamente reduzida. Os Rockfellersconseguiram um de seus objetivos-chave: aimposio da tutoria sobre a UniversidadeMunicipal de Nova Iorque (por que, diziam eles,deveriam os nova-iorquinos pagar por tal sistemade universidade de massa e gratuito enquanto

    Chicago no tinha nenhum, convenientementeesquecendo quantos futuros vencedores dePrmios Nobel foram nutridos atravs do sistemada cidade). Os sindicatos municipais perderammuito de seu poder. As associaes decomunidade foram disciplinadas (o local doBattery Park City rapidamente tornou-sedisponvel). A democrtica cidade de Nova Iorquefoi de fato deposta e a ascenso do poder negro

    foi reprimida pelo golpe financeiro que em seuspormenores foi to efetivo em termos econmicoscomo o foi o golpe militar de 1973 no Chile12.

    Mas os investidores bancrios tambmprecisavam refazer a cidade numa imagemdiferente e a maior questo era como e com oqu. Eles tinham uma vantagem externa. A subidado preo do petrleo aps a guerra rabe-israelense de 1973 ps vasta quantidade de

    petrodlares disposio dos Estados do Golfo.

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    Sabemos agora que os EUA estavam se

    preparando para invadir a Arbia Saudita em 1973no sentido de ocupar os poos de petrleo e trazero preo do petrleo para baixo. No sabemos oquo srios eram estes planos, mas sabemos queo embaixador dos EUA na Arbia Sauditanegociava um acordo de que os petrodlaresseriam todos reciclados atravs dos bancos deinvestimento de Nova Iorque. O poder imperialdos EUA arranjava a parte do leo nos negcios

    globais do servio financeiro para a cidade de NovaIorque. Essa indstria (vinculada ao suporte legalnecessrio e servios de informao) cresceu paraalm de toda proporo e propiciou uma fortebase econmica para a cidade, assim como umgrande meio para uma elite da poltica econmicarestabelecer e confirmar seu poder de classe 13.

    Porm, a elite dos negcios poltico-econmicos precisava de algo mais. Eles

    reconheceram que a indstria manufatureiraestava com problemas e buscaram reconstruir acidade de Nova Iorque como um destino turstico(este foi o famoso momento do eu (amo) NovaIorque, logomarca e campanha publicitria) epara este fim cultivaram o que mais tarde setornou conhecido como as indstrias culturaisdo teatro, museus e artes grficas. Eles buscaramreerguer o tradicional papel de Nova Iorque como

    um centro de mdia. Mas aqui eles se defrontaramcom uma contradio. Os cortes nos serviosmunicipais fizeram da Nova Iorque dos finais dos1970 e 1980 um meio urbano difcil e mesmoperigoso. A onda de crime e a epidemia do crackque emergiram em resposta ao ataque sobre aclasse trabalhadora de Nova Iorque e a supressodo poder negro militaram contra a realizao dosobjetivos da elite financeira. Tampouco a classe

    trabalhadora de Nova Iorque sucumbiu sem umabatalha. Greves deixaram lixo apodrecendo nasruas, a manuteno do metr se deteriorou e ossindicatos da polcia e dos bombeiros lanaramuma campanha da Cidade do Medo queenfatizou os perigos da falta de segurana nacidade aos turistas. A resposta foi reinventar ogoverno urbano como governana como umaparceria entre a administrao da cidade e quempoderia de fato bancar [stakeholders] o futuroda cidade, a parte crucial destes sendo os

    parceiros dos negcios do centro da cidade, a

    indstria de turismo, os juros da propriedadeprivada e (onde fosse apropriado) setores dotrabalho (sindicatos da construo em particular).A estratgia foi assegurar Manhattan atravs dagentrificao, servios superiores, repressopolicial (que alcanou um alto ponto com orevanchismo da administrao Giuliani) eempreendimentos imobilirios de luxo enquantose deixava os bairros deteriorados (ainda deixa-

    se muito do Bronx destruir-se em chamas numaonda de proprietrios incendiariamenteinspirados) 14.

    Nada disso ocorreu sem luta. Mas essareformulao do processo urbano da cidade deNova Iorque foi um momento pioneiro naquilo quese tornou uma estratgia global que se assentavaem dois princpios bsicos. Primeiro, no caso deum conflito entre o bem-estar de uma populao

    e a taxa de retorno dos bancos investidores estaltima deve ser privilegiada. Isto se tornou o credodas estratgias de ajustamento estrutural doFundo Monetrio Internacional (FMI), aps 1982,quando a administrao Reagan, inicialmenteinteressada em abolir o FMI como inconsistentecom o princpio neoliberal dos mercados livres,reinventou-o no sentido de dar cauo criseirrompida no Mxico, que foi o receptor de todos

    aqueles emprstimos de petrodlares dos bancosde investimentos de Nova Iorque nos anos de1970. A vantagem de dar emprstimos a pases,observou naquele momento o banqueiro lderWalter Wriston, que os pases no podemdesaparecer. O FMI se tornou o instrumento-chave para proteger os bancos de investimentosde Nova Iorque de uma insolvncia mexicana. Apopulao empobrecida do Mxico foi forada a

    pagar para socorrer os banqueiros de NovaIorque, do mesmo modo que os cidados nova-iorquinos foram espremidos pelo EFCB. O segundoprincpio de que governos (de qualquer naipe)devem dedicar-se criao de um bom clima denegcios. Para fazer isso devem integrar negciosno governo em um novo sistema de governana.Isto tambm se tornou o mantra tanto do FMIcomo do Banco Mundial em seus negciosinternacionais. Mas novamente atingimos a regrade ouro, que em caso de conflito entre o bem-

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    estar da populao e a criao de um bom clima

    de negcios, ento o ltimo deve ser privilegiado.A justificativa que uma ascenso da mar erguetodos os navios no obstante o quo raro istoassim seja. Em realidade, a abertura das portasaos livres fluxos financeiros mais facilmente criaum tsunami especulativo que se quebra sobre apaisagem econmica destruindo todos os barcos(como no Leste e Sudeste da sia em 1997-8 ouna Argentina em 2001) e, ao se retirar, deixa para

    trs cenas de total devastao social15

    .Mas, retomemos, o mpeto inicial para

    toda esta reestruturao urbana foi para a elitepoltico-econmica da cidade de Nova Iorque,como representada primeiramente pelosbanqueiros investidores, para restaurar eassegurar seu poder num momento em que ocapita l excedente foi ameaado com adesvalorizao. Se a assim chamada crise fiscal

    da cidade de Nova Iorque foi um epicentro-chave para a transformao poltico-econmicaem direo ao neoliberalismo, as ondas dechoque foram globais. A revoluo neoliberal,na forma de f inanceir izao de tudo,acompanhada por ajustamentos estruturais(atravs das privatizaes, do disciplinamentodas foras de trabalho e da retirada do Estadoda proviso social), a abertura dos mercados

    globais e a criao de bons climas de negcioem todo lugar, varreu o mundo todo. O poderde classe tem sido restaurado pelas ou dado snovas elites ricas (como na Rssia e na China)16.As cidades tm cada vez mais se tornadocidades de fragmentos fortificados. A cidadeest em todo lugar:

    dividindo-se em diferentes partes separadas,com a aparncia de formao de muitos

    microestados. Os bairros ricos equipados comtodos os tipos de servios, tais como escolasexclusivas, campos de golfe, quadras de tnise polcia privada patrulhando a rea 24 horas,

    permeados por ocupaes ilegais onde a gua disponvel apenas nas fontes pblicas, semservio de saneamento existente, a eletricidade pirateada por uns poucos privilegiados, asruas se tornam correntes de lama quando

    chove e onde o compartilhamento da casa a

    norma. Cada fragmento parece viver e

    funcionar autonomamente, segurando firmeaquilo que se conseguiu agarrar na luta diria

    pela sobrevivncia17.

    Mesmo as assim chamadas cidades globais do capitalismo avanado so divididasentre as elites financeiras e as grandes faixas detrabalhadores mal-remunerados dos serviosmesclados aos marginalizados e desempregados.Na cidade de Nova Iorque, durante anos do boom

    da dcada de 1990, as receitas mdias deManhattan subiram em uma pesada taxa de quase12%, mas aquelas nos bairros caram entre 2 e4%. As cidades sempre foram lugares dedesenvolvimentos geogrficos desiguais (s vezesde um tipo totalmente benevolente e excitante),mas as diferenas agora se proliferam e seintensificam de um modo negativo e at mesmopatolgico que inevitavelmente lana sementes

    de um conflito civil. A luta contempornea paraabsorver o capital excedente em uma fasefrentica da construo da cidade (basta olhar ocrescimento das linhas do horizonte de Xangai,Mumbai, So Paulo e da Cidade do Mxico)contrasta dramaticamente com um planetamutante de favelas que proliferam. So essascidades aquela combinao de nosso desejontimo? Constroem elas o tipo de pessoas que

    queremos ser? So essas as relaes com anatureza a que ns aspiramos?

    Estas so as cidades neoliberais que ocapital construiu na sua tentativa desesperadade absorver os excedentes que ele mesmo cria.Dentre tais cidades, vemos a completude daliberdade para aqueles cuja renda, lazer esegurana no se precisa realar e uma merapitada de liberdade para o povo que pode em

    vo tentar fazer uso de seus direitos democrticospara ganhar abrigo do poder dos detentores dapropriedade 18. A liberdade da cidade foiapropriada por uma elite financeira da classecapitalista em seu prprio interesse. Tem aindaque ser contraposta pelos movimentos populares. ainda muito tarde para imaginar tal possibilidade?Podem os movimentos sociais urbanos emergiremcomo sendo da cidade mais do que de fragmentos

    perdidos da cidade? Se sim, ento uma condio

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    para o sucesso de tais movimentos confrontar o

    problema do capital excedente em sua raiz. E istosignifica, muito simplesmente, que a acumulaode capital no pode continuar sua trajetriacorrente, abstratamente determinar nossos

    1. Park, R. On Social Control and CollectiveBehavior. Chicago, Chicago University Press, p.3.

    2 Lefebvre, H. Writing on Cities. Oxford, Blackwell,1996, p.158.

    3. Davis, M. Planet of Slums. Londres, Verso, 2006.

    4. Engels, F. The Condition of the Working Class inEngland. Nova Iorque, Oxford University Press,1999 edition.; Harvey, D. Social Justice and theCity. Londres, Edward Arnold, 1973.

    5. A teoria geral de tudo isso pode ser encontradaem Harvey, D. The Limits to Capital. Londres,Verso, edio de 2006.

    6. A explicao precedente baseada em Harvey,D. Paris, Capital of Modernity. Nova Iorque,Routledge, 2003.

    7. Moses, R. What Happened to Haussmann. In:

    Architectural Forum , 77, 1942, p. 1-10; Caro,R. The Power Broker: Robert Moses and theFall of New York. Nova Iorque, Vintage, 1975.

    8. Brenner, R. The Boom and the Bubble: The USin the World Economy. Londres, Verso, 2003.

    9. Cf. Harvey, D. A Brief History of Neoliberalism.Oxford, Oxford University Press, 2005, captulo5.

    10.Kerner Commission. Report of the National Advisory Commission on Civil Disorders.Washington, Government Printing Office, 1968.

    11.Ferretti, F. The Year The Big Apple Went Bust.

    Nova Iorque, Putnam, 1976; Tabb, W. The LongDefault: Nova Iorque City and the Urban FiscalCrisis. Nova Iorque, Monthly Review Press, 1982.

    12.Desenvolvi esta ideia mais amplamente emHARVEY, D.A Brief History of Neoliberalism, op.cit, captulo 2.

    13.Alvarez, L. Britain Says US Planned to Seize Oilin 73 Crisis. In: New York Times, 4 de janeiro de

    2004, A6: Gowan, P. The Global Gamble:Washingtons Faustian Bid for World Dominance.Londres, Verso, 1999.

    14.Smith, N. The New Urban Frontier: Gentrificationand the Revanchist City. Nova Iorque, Routledge,1996.

    15.Wade R. and Veneroso, F. The Asian Crisis: theHigh Debt Model Versus the Wall Street-Treasury-IMF Complex. In: New Left Review, 228, 1998,

    3-23: Petras, J. and Veltmeyer, H. System inCrisis: The Dynamics of Free Market Capitalism.Londres, Zed Books, 2003.

    16.Esta a principal tese de Harvey D.A Brief Historyof Neoliberalism, op.cit.

    17.Balbo, M. citado em National Research Council,Cities Transformed: Demographic Change and ItsImplications in the Developing World. Washington,D.C., The National Academies Press, 2003, p.379.

    18.Polanyi, K. The Great Transformation. Boston,Beacon Press, 1954, p. 257.

    destinos e fortunas, ditar quem e o que somos e o

    que nossas cidades devem ser. Vale a pena lutarpelo direito cidade. Ele deveria ser consideradoinalienvel. A liberdade da cidade ainda est paraser encontrada.

    Notas

    Trabalho enviado em Agosto de 2009Trabalho aceito em Setembro de 2009