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1 1 INTRODUÇÃO A série de publicações de Paul Auster ao longo de uma carreira literária de pouco mais de vinte anos, dentre elas uma variedade de romances, contos, obras de cunho autobiográfico, traduções e ensaios, fizeram dele um autor de sucesso, tanto de público como de crítica. Sua obra tem atraído grande atenção no cenário da literatura atual graças ao seu experimentalismo e subversão de parâmetros literários. O presente trabalho é centrado numa dessas apropriações de convenções genéricas, especificamente as fórmulas do gênero detetivesco. Em A Trilogia de Nova York, obra publicada em 1987, Paul Auster explora de forma inusitada as regras convencionalmente aceitas nas histórias de detetive, consagradas desde os primórdios do gênero, com Edgar Allan Poe. A partir de um crime ou evento misterioso, dá-se início à busca pela solução, em que a figura-chave é o detetive, indivíduo que de forma racional estabelece relações de causa e efeito entre os indícios disponíveis. Em A Trilogia de Nova York, Paul Auster subverte totalmente as convenções do romance policial, no que diz respeito aos seus elementos básicos: o crime, a ação do detetive em busca de uma solução, e a revelação final. A primeira edição do livro, de 1987, reúne os três textos já publicados isoladamente: “Cidade de Vidro” (“City of Glass”, 1985), “Fantasmas” (“Ghosts”, 1986) e “O quarto fechado” (“The locked room”, 1986). A intenção primordial deste trabalho é, portanto, examinar esta obra de Paul Auster como exemplo de subversão do romance detetivesco tradicional, abordando dois de seus componentes essenciais, o detetive como protagonista e o processo de busca da solução do mistério inicial. Por meio da comparação entre o modelo canônico da história de detetive, que

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1 INTRODUÇÃO

A série de publicações de Paul Auster ao longo de uma carreira literária de pouco mais

de vinte anos, dentre elas uma variedade de romances, contos, obras de cunho autobiográfico,

traduções e ensaios, fizeram dele um autor de sucesso, tanto de público como de crítica. Sua

obra tem atraído grande atenção no cenário da literatura atual graças ao seu experimentalismo

e subversão de parâmetros literários.

O presente trabalho é centrado numa dessas apropriações de convenções genéricas,

especificamente as fórmulas do gênero detetivesco. Em A Trilogia de Nova York, obra

publicada em 1987, Paul Auster explora de forma inusitada as regras convencionalmente

aceitas nas histórias de detetive, consagradas desde os primórdios do gênero, com Edgar

Allan Poe. A partir de um crime ou evento misterioso, dá-se início à busca pela solução, em

que a figura-chave é o detetive, indivíduo que de forma racional estabelece relações de causa

e efeito entre os indícios disponíveis.

Em A Trilogia de Nova York, Paul Auster subverte totalmente as convenções do

romance policial, no que diz respeito aos seus elementos básicos: o crime, a ação do detetive

em busca de uma solução, e a revelação final. A primeira edição do livro, de 1987, reúne os

três textos já publicados isoladamente: “Cidade de Vidro” (“City of Glass”, 1985),

“Fantasmas” (“Ghosts”, 1986) e “O quarto fechado” (“The locked room”, 1986).

A intenção primordial deste trabalho é, portanto, examinar esta obra de Paul Auster

como exemplo de subversão do romance detetivesco tradicional, abordando dois de seus

componentes essenciais, o detetive como protagonista e o processo de busca da solução do

mistério inicial. Por meio da comparação entre o modelo canônico da história de detetive, que

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é um gênero eminentemente formulaico, e a apropriação e subversão do gênero pelo autor,

pretende-se aprofundar a compreensão de seu processo de criação literária.

Em Trilogia de Nova York, é principalmente na construção da personagem básica do

romance policial, o detetive, e da sua atividade em busca de soluções para um mistério inicial,

que se percebe a abordagem subversiva do gênero.

Para estabelecer as regras básicas do romance policial, realiza-se a princípio, neste

trabalho, um estudo teórico do gênero em suas características mais marcantes – a busca pela

solução final do problema ou do crime, e de que formas a tradicional figura do detetive é

desenvolvida. A partir desses parâmetros, o trabalho aborda a questão dos conflitos de

identidade e de uma busca menos concreta e mais existencial que empreendem os

protagonistas-detetives na obra de Auster. Ao tecer comentários sobre o diálogo que o autor

estabelece com a fórmula tradicional das histórias de detetive, este estudo pretende, ainda,

examinar o uso recorrente que faz da metaficção e da metalinguagem, o que elucida os

propósitos da subversão genérica focalizada.

Na Trilogia, a figura do detetive é construída de forma inusitada, como a de um

indivíduo fragmentado em autor, narrador e protagonista. São personagens em crise de

existência, que se perdem em suas buscas, transformando-se a busca do concreto e do

material, ou seja, da solução do crime, em uma busca pessoal e existencial. Tais protagonistas

caracterizam-se pela solidão e pelo abandono, sempre em busca de algo que muitas vezes

desconhecem ou ignoram, o que configura uma paisagem toda peculiar na obra de Auster, em

que o indivíduo e o problema da sua humanidade constituem preocupação recorrente. Assim,

o estudo do detetive e do processo de busca fornecerá a estrutura básica para a análise, a ser

desenvolvida nos três textos.

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2 PAUL AUSTER E SUA OBRA

Paul Auster é um autor versátil que transita com desenvoltura nos gêneros mais

diversos. Oscilando entre romances ficcionais e semi-ficcionais ou biográficos, produzindo

contos, ensaios, traduções e roteiros de filmes, Paul Auster afirmou-se como um dos autores

mais comentados de sua geração.

O inventor da solidão1, sua primeira obra, publicada em 1983, já mostra traços que

viriam a se tornar recorrentes: recriação ficcional de acontecimentos marcantes de sua própria

vida e adaptação de parâmetros literários. Trata-se de um relato de memória em que Auster

reconstitui suas lembranças do pai, Sam Auster, recentemente falecido e o relacionamento

conflitante entre ambos. Esta é a primeira parte do livro, intitulada “Retrato de um homem

invisível”, em que as recordações de infância, adolescência e já da maturidade de Auster se

mesclam a reflexões sobre o papel ausente do pai em sua vida. Do seu ponto de observação,

de narrador adulto, Auster procura desvendar as motivações do pai em seu papel de “homem

invisível”, na vida do próprio filho, recriando a figura do pai ao lhe acrescentar aspectos e

acontecimentos marcantes. Tais recriações teriam o propósito de dar alguma relevância ao pai

morto, já que ele fora um homem ausente, física e humanamente distante do filho, levando

uma existência medíocre, à semelhança de um homem invisível – como indica o título da

primeira narrativa do livro, “Retrato de um homem invisível”.

Na segunda narrativa, “O livro da memória”, Auster recorre com bastante freqüência à

intertextualidade – traço marcante também na Trilogia a ser analisada. Em “O livro da

memória”, Auster estabelece um diálogo com textos de outros autores que abordam a relação

1 AUSTER, Paul. O inventor da solidão. Trad. Luiz Roberto Mendes Gonçalves. São Paulo: Best Seller, 1982.

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de distanciamento entre pais e filhos.

Com A Trilogia de Nova York2, sua obra mais aclamada pelo público, Auster se

consagraria como um escritor experimentalista, transgredindo as fórmulas do desgastado

gênero policial tradicional. Na obra, o suposto crime e sua prospecção deixam de constituir o

interesse principal da narrativa e os detetives se perdem em suas próprias buscas e provas, o

que muda o rumo da investigação e acarreta finais surpreendentes. Isto deixa em aberto a

solução esperada, decepcionando o leitor mais convencional acostumado com a revelação de

enigmas ou com a violência costumeira que marcam o desfecho do romance detetivesco

tradicional.

Em A música do acaso3 (The Music of Chance), de 1990, Auster novamente viria a

explorar as armadilhas e ilusões que fazem com que o indivíduo se conduza ele próprio ao

isolamento e ao fracasso. A partir do momento em que acidentalmente (como sempre, o acaso

tem um papel fundamental em sua obra) encontra o jogador de pôquer Jack Pozzi todo

machucado, vítima de espancamento, James Nashe – indivíduo que viaja sem rumo em busca

de liberdade – passa a viver uma nova vida cheia de medos e riscos como parceiro de jogo de

Pozzi. Após acumularem uma série de derrotas, caem nas mãos de dois ricaços excêntricos, e

são forçados a cumprir uma espécie de prisão domiciliar imposta por ambos como pagamento

das dívidas. Tal dívida só será sanada após a absurda e aparentemente despropositada

construção de um imenso castelo de pedras, que parece nunca acabar, no terreno de seus

credores. O livro mostra como a busca pela liberdade, como acontece com os detetives em

Trilogia, pode acarretar situações e destinos imprevisíveis em que o acaso é a força

2 AUSTER, Paul. A Trilogia de Nova York. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 3 AUSTER, Paul. A música do acaso. Trad. Marcelo Dias Almada. São Paulo: Best Seller, 1990. A obra também foi adaptada para o cinema em filme homônimo de 1993.

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dominante.

Também para o cinema seriam transpostos os seus roteiros para Cortina de fumaça4

(Smoke, 1995) e Sem fôlego5 (Blue in the Face, 1995) nos quais Auster atua como diretor ao

lado de Wayne Wang. Em ambos os filmes, os diálogos ágeis e bem-humorados são

reproduzidos de forma espontânea pelos atores, muitos deles não-profissionais. Em Sem

fôlego, espécie de documentário ficcional sobre o bairro do Brooklyn, em Nova York, tanto

personagens mais típicos e pitorescos quanto os mais cotidianos do local são os protagonistas

de suas próprias vidas. A atuação do aclamado ator de filmes alternativos, Harvey Keitel, e o

clima informal de improvisação e espontaneidade dão a tônica do filme, mostrando uma outra

face da obra de Auster.

A última obra publicada pelo autor, Viagens no scriptorium6 (Travels in the

scriptorium, 2007) mergulha novamente em temas recorrentes de sua obra, tais como o

solitário confinamento em quartos pequenos e a auto-alienação do indivíduo. A história

consiste nas viagens de Blank – homem que, como seu nome indica, está vazio, pois perdeu a

memória – dentro de seu quarto-cela. As viagens que ele realiza por suas memórias do

passado vão se juntando aos poucos, por meio de objetos deixados misteriosamente em seu

quarto e das pessoas estranhas que inesperadamente vêm lhe fazer visita nessa espécie de

prisão domiciliar. O personagem tenta procurar nas lembranças um motivo que justifique a

sua prisão. Com o passar dos dias e dos eventos, as coisas vão ficando mais claras e Blank se

reconhece como vítima de um complô político em uma sociedade totalitária do futuro.

Quanto ao aspecto da busca existencial, a figura de Blank poderia se encaixar 4 AUSTER, Paul. Cortina de fumaça & Sem fôlego. Trad. Luiz Roberto Mendes Gonçalves. São Paulo: Best Seller, 1995. Cortina de fumaça foi dirigido por Wayne Wang e ganhou o prêmio de melhor filme estrangeiro na Alemanha e na Dinamarca em 1996. O roteiro, escrito pelo próprio Auster, foi uma adaptação do conto de natal Auggie Wren’s Christmas story, escrito por ele para o The New York Times. 5 Sem fôlego também foi dirigido por Wayne Wang. 6 AUSTER, Paul. Viagens no scriptorium. Trad. Beth Vieira. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

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perfeitamente nos personagens da Trilogia – Quinn, Blue ou o narrador anônimo em “O

quarto fechado”, pois é o indivíduo que está sempre em busca de algo desconhecido, seja a

solução para um crime, cuja existência é duvidosa, ou a própria memória dos fatos. Dessa

forma, os personagens de Auster apresentam um confronto existencial com eles mesmos, cujo

final ou solução definitiva não é necessariamente o que está em jogo. Como nas palavras do

narrador-personagem em “O quarto fechado”, que poderiam ser as palavras do próprio autor

justificando de forma meta-ficcional as suas escolhas, “não pretendo ter solucionado nenhum

problema” (AUSTER, 2000, p. 316-317).

3 OBRAS DO AUTOR

Ficção

Trilogia de Nova York (1987)

“Cidade de vidro” (1985)

“Fantasmas” (1986)

“O quarto fechado” (1986)

No país das últimas coisas (1987)

Palácio da lua (1989)

A música do acaso (1990)

Leviatã (1992)

Mr. Vertigo (1994)

Timbuktu (1999)

O livro das ilusões (2002)

Noite do oráculo (2004)

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Desvarios no Brooklyn (2005)

Viagens no scriptorium (2007)

Biografia

O inventor da solidão (1982)

A arte da fome (1992)

The red notebook (1995)

Da mão para a boca: Crônica de um fracasso inicial (1997)

Achei que meu pai fosse Deus – e outras histórias da vida americana (2001)

Filmografia

A música do acaso (1993)

Cortina de fumaça (1995)

Sem fôlego (1995)

O mistério de Lulu (1998)

A vida interior de Martin Frost (2006)

Poesia

Disappearances: Selected poems (1988)

Ground Work (1990)

Selected poems (1998)

Collected poems (2004)

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4 PERSPECTIVAS TEÓRICAS: a história de detetive como fórmula e como

entretenimento

Serão abordados a fim de dar fundamentação à pesquisa teóricos que refletiram sobre

a literatura de massa e a narrativa de ficção em geral. São de vital importância aqueles autores

cujas publicações críticas e teóricas se voltam para o gênero policial nos séculos XIX e XX,

no que concerne suas características e elementos mais marcantes, tais como o papel do

detetive, a solução do crime ou do enigma e a relevância do espaço na narrativa, assim como

o impacto que tais obras exerceram e exercem sobre o público.

Não se pode falar em romance policial ou conto detetivesco sem mencionar Edgar

Allan Poe, apontado pela crítica como o criador da história de detetive. Em seu ensaio “A

filosofia da composição”, com grande percepção e pioneirismo crítico, Poe descreve o

processo de composição de seu poema “O corvo” e faz considerações, menos detalhadas,

sobre a criação de seus contos. Vem daí o célebre princípio do efeito final, tantas vezes

repetido por quantos se dedicam à crítica da ficção curta.

Em seus famosos contos de raciocínio (tales of raciocination) “Os crimes da rua

Morgue”, “O mistério de Marie Roget” e “A carta roubada”, principalmente no primeiro, Poe

descreve todo o processo de dedução lógica empregado na solução de um acontecimento

misterioso e aparentemente inexplicável. A partir de tais considerações, teóricos e estudiosos

posteriores reproduzem, citam e sistematizam o que se pode considerar como a fórmula da

história de detetive.

Segundo John G. Cawelti (1976, p. 80-97), nesses contos, Poe definiu os quatro

aspectos essenciais da fórmula detetivesca:

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Situação: a história de detetive clássica começa com um crime não-resolvido e se desenrola

rumo à elucidação de seu mistério, além de que as pessoas em suas histórias de detetive

possuem problemas muito simples – de forma que todos os problemas existentes estão

relacionados ao crime cometido.

Padrão de ação: Poe introduz os seguintes elementos 1) a figura do detetive, Auguste Dupin7

– o “pai” de todos os detetives e que inspirou diretamente o mais popular Sherlock Holmes,

de Conan Doyle; 2) o crime e as pistas que levam à sua solução; 3) a história da investigação,

vista pelo ponto de vista de um narrador – o assistente do detetive8 – que não participa dela;

4) a anunciação e a explicação da solução, que encerra o momento dramático das revelações

do detetive; 5) o desfecho (denouement) da história, que não implica a punição ou julgamento

do criminoso, e sim apenas sua descoberta, com a elucidação do caso.

Personagens: o detetive que é o protagonista; a vítima, que carece de descrições físicas e de

problemas emocionais para não prejudicar a importância da investigação, representando a

personagem de menor interesse; o criminoso, que também deve ser tratado sem profundidade

para não apagar a imagem do detetive; outros coadjuvantes ameaçados pelo crime, mas

incapazes de resolvê-lo, incluindo-se aí o assistente do detetive que narra a história.

Espaço: os contos detetivescos de Poe se passam no apartamento de Dupin, que simboliza o

espaço mítico em que o detetive faz suas deduções sem precisar sair para as ruas, a exemplo

do apartamento de Sherlock Holmes na Baker Street. O crime pode ocorrer num misterioso

quarto fechado9 como “Os crimes da rua Morgue”; nos bairros e guetos pobres das cidades

grandes, como Paris e Londres; no espaço aristocrático do castelo ou da casa de campo

isolada, recorrente em Agatha Christie.

7 Para mais detalhes sobre o detetive Dupin e os contos de raciocínio de Poe, ver p. 22-23. 8 Sobre a figura do assistente do detetive, ver p. 22. 9 Sobre o quarto fechado como estereótipo recorrente nas histórias de detetive, ver p. 34 e 55.

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Cawelti, em seu livro Adventure, Mistery and Romance10 trata, entre outros assuntos,

do fenômeno da literatura policial como fórmula ou arquétipo, afirmando que “os princípios

fundamentais da história de mistério consistem na investigação e descoberta de segredos

escondidos, de forma a trazer algum benefício para o protagonista com o qual o leitor se

identifica”11. Segundo ele, “nas fórmulas de mistério, o problema sempre possui uma solução

racional e desejável, pois nisso consiste a fantasia moral expressa no arquétipo formulaico”

(1976, p. 42-43).

Cawelti nos chama a atenção para o fato de que a busca pelos segredos escondidos,

levada a efeito como um fim em si mesma, é primordialmente uma “atividade intelectual e

racional”. Nosso fascínio por histórias de mistério seria fruto do isolamento e da omissão das

pistas, das deduções que delas partem e da tentativa de orientá-las segundo um esquema

racional completo de causa e efeito, de modo a desvendar ou prever uma possível solução

final.

Além disso, as fórmulas do romance policial decorrem de estereótipos recorrentes,

figuras carimbadas que se repetem nas histórias tais como a do detetive durão e muitas vezes

violento e imoral (no caso do romance noir) ou altamente racional e intuitivo, quando não

excêntrico e ligeiramente arrogante (no caso de Sherlock Holmes ou Hercule Poirot); ou

ainda, da femme fatale do romance noir, mulher bela e sensual, geralmente loira que pode

atuar ambiguamente como vítima ou como criminosa ardilosa em potencial a complicar o

desvendamento do crime.

10 CAWELTI, John G. Adventure, Mystery and Romance. Chicago: The University of Chicago Press, 1976. Nessa obra, o autor traz a tona toda uma discussão sobre a questão da fórmula que rege o desenvolvimento e o desfecho da história de mistério, em cuja categoria se insere o sub-gênero da literatura policial. 11 Tradução do autor. Todas as citações de textos traduzidas serão deixadas, nas no tas de rodapé, em seu original. “The fundamental principle of the mystery story is the investigation and discovery of hidden secrets, the discovery usually leading to some benefit for the character(s) with whom the reader identifies”.

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Tais fórmulas são, segundo Cawelti, socialmente construídas, de forma que certos

arquétipos visam a preencher a necessidade do leitor por fuga e diversão. Em suas palavras,

“fórmula é uma combinação ou síntese de um certo número de convenções culturais

específicas com uma forma ou arquétipo de história mais universal”12 (1976, p. 6). Entende-se

fórmula aqui, segundo ele, como a repetição de certas características em um vasto grupo de

obras, a partir de certas combinações de elementos culturais e padrões de história

arquetípicos.

Como já ressaltado, os personagens no romance policial, como o detetive e o

criminoso, encarnam em sua personalidade a fórmula do gênero em si. Cawelti fala sobre dois

tipos de personagem-estereótipo: 1) o detetive, aquele que incorpora qualidades contraditórias

ou opostas: o caso clássico seria talvez o de Sherlock Holmes, sujeito ao mesmo tempo

altamente racional e sonhador, metódico e admirador de poesia, que passa horas junto a seu

violino e usando drogas – esta combinação faz de Holmes um personagem literário ímpar e

peculiar; 2) o criminoso, aquele que apresenta maior complexidade de caráter, mais envolvido

em problemas existenciais: caso do assassino frio e calculista Tom Ripley13, de Patricia

Highsmith, que nos remete em certos aspectos ao complexo Raskolnikoff de Crime e Castigo,

de Dostoievsky. Essas características nos fazem repensar se tais personagens poderiam ser

realmente enquadrados como estereótipos ou não.

Podemos estabelecer, nesse aspecto, uma ponte com os protagonistas-detetives de A

Trilogia de Nova York, em que certos personagens são mais complexos, e a busca se dá mais

12 “formula is a combination or synthesis of a number of specific cultural conventions with a more universal story form of archetype”. 13 Tom Ripley é o criminoso protagonista de uma seqüência publicada por Patrícia Highsmith, cujas obras principais são O sol por testemunha e O amigo americano. A autora foi uma das primeiras a abordar o crime e o criminoso sob um viés psicológico.

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em termos humanos e existenciais, ao contrário da busca concreta do detetive do romance

policial.

Sobre a questão da literatura policial como simples meio de entretenimento e

relaxamento despreocupado, Cawelti ressalta que como o prazer de uma obra formulaica

depende da intensificação de uma experiência familiar, a fórmula cria o seu próprio mundo

com o qual nos tornamos familiares pela repetição, defendendo o ponto de vista de que a

literatura formulaica é o veículo mais apropriado para experiências de fuga e relaxamento.

Para José Paulo Paes, em sua obra A aventura literária: ensaios sobre ficção e

ficções14, em que percorre com uma visão panorâmica o romance de aventuras desde os seus

primórdios até a era do romance policial, “o propósito confesso do romance de aventuras é

menos o de, através do poder persuasivo da literatura, despertar a consciência crítica do leitor

para a problemática do mundo e da vida, do que entreter-lhe a imaginação, fazendo-o

esquecer a banalidade do cotidiano” (1990, p. 15).

No romance policial – que é, segundo ele, descendente direto do romance de aventuras

– as personagens seriam “planas, isto é, singelas, sem surpresas, faltas de maior profundidade

psicológica, em contraste com as personagens redondas do romance de análise, seres

complexos, multiformes e irredutíveis a simplificações”15 (PAES, 1990, p. 15), carecendo de

profundidade psicológica – qualidade do personagem horizontal.

A figura do detetive seria o representante ideal desse tipo de personagem, de forma

que tal romance visaria apenas à diversão de seus leitores, e a nenhum outro propósito mais

sério.

14 Mais especificamente, a análise é sobre o capítulo “As dimensões da aventura”, p. 11-24. 15 Segundo classificação de E.M. Forster.

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Em Teoria da literatura de massa16, Muniz Sodré procura demonstrar que “o gênero

policial, enquanto literatura de massa, é determinado pelo aparelho ideológico da indústria

cultural, onde deve ser pesquisada a sua estrutura” (1978, p. 116).

O autor procura diferenciar a narrativa de detecção da narrativa de crime. A primeira

seria fruto de uma longa e extensa tradição na literatura ocidental desde obras como a tragédia

grega Édipo Rei de Sófocles – em que Édipo faz uma investigação contra si próprio – ou o

Zadig de Voltaire, que segundo Paulo Medeiros e Albuquerque “teria criado o modelo (da

ficção de detetive) por acaso, como precursor do espírito de detecção do detetive” (In:

ALBUQUERQUE, 1973, p. 8). Embora antecipe vários elementos da história de detetive

moderna, esta narrativa não requer a ocorrência de um crime, ao contrário da narrativa de

crime, que “define-se pela transgressão de normas jurídicas” e que tem suas origens nos

relatos de aventuras desde a tradição picaresca medieval de Robin Hood e El Cid até os

romances de salteadores românticos do século XIX, em que o vilão ainda é visto como um

herói.

O romance policial moderno só iria surgir a partir da adoção da polícia científica na

França do século XIX. Nesta época, a criminalidade crescia vertiginosamente, e a burguesia

exigia medidas oficiais contra a criminalidade, que era uma ameaça constante à propriedade

privada. Vidocq em suas Memórias (1828) relata as suas próprias experiências como ex-

delinqüente e como funcionário da polícia, encerrando uma ambigüidade em que é ao mesmo

tempo policial e fora-da-lei. A partir de Vidocq, o crime passa a ser “passível de investigação

científica”.

16 SODRÉ, Muniz. Teoria da literatura de massa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978. Na obra, o autor traça um panorama da evolução do romance policial, localizando suas origens nas Memórias (1828) do criminoso tornado policial Vidocq (sobre Vidocq, ver texto na mesma página).

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Nessa época, há um esforço de compreensão racional do mundo decorrente da

filosofia Iluminista e do Empirismo. Esse esforço irá acarretar o fim das penas capitais e do

suplício físico na justiça européia – os criminosos agora precisavam passar por um processo

de julgamento oficial. Dentre outros fatores para essa mudança, encontramos a evolução

científica da polícia em seus métodos de investigação e identificação do criminoso,

recorrendo-se à química – que é o forte do detetive Sherlock Holmes – à medicina e à

farmacopéia – que nos romances de detetive se mostra útil principalmente nas autópsias e na

detecção de venenos – e aos métodos para-científicos como a frenologia (explicação do

caráter do criminoso através da comparação craniana).

Citado por Muniz Sodré, S.S. Van Dine, pai do detetive Philo Vance, já comentava

que “o método utilizado para o assassinato e o meio de descobri-lo devem ser lógicos e

científicos”, sem “fazer piruetas nos recantos ignotos da aventura”17 .

Com Edgar Allan Poe, o crime deixa definitivamente “de ser assunto tratado a partir

de fontes populares” (folhetim e literatura de cordel) e recebe o status de “belas-artes”. O

crime, então, passa a ser “um jogo para cérebros privilegiados – seja o do criminoso, seja o do

detetive” (SODRÉ, 1978, p. 112-113). Passa das formas mais baixas, isto é, da esfera popular

do sensacionalismo folhetinesco, para as formas mais elevadas do crime cerebral, tornando-se

“um produto espiritual, uma obra de arte”. Mais tarde, o romance negro viria quebrar esses

paradigmas, sendo que a detecção perde seu papel central, cedendo espaço à emoção e à

violência.

Sobre essa mudança de status do crime, o sociólogo e economista marxista Ernest

17 In: VAN DINE, S. S. Vinte regras para escrever romances policiais. In: O crime do inverno. Trad. Afonso Blacheyre. Rio de Janeiro: Record, s/d. Van Dine é um daqueles autores que, segundo Sodré, se incluem na era de ouro do romance policial, que vai de Conan Doyle no final do séc. XIX até a era do romance noir, que se inicia na década de 20.

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Mandel em Delícias do crime18 estuda o gênero policial como um fenômeno social

ideologicamente marcado, mostrando como a coisificação da morte e do crime, na era

moderna, e a inserção do bandido dentro de uma categoria exclusiva do sistema de classes

capitalistas se mostra presente nas obras do gênero.

Segundo Mandel, a morte – geralmente tratada como uma “questão antropológica” ou

uma “tragédia individual”, explicada pelas mais diversas ciências, pela filosofia e a religião –

sempre se manifesta no romance policial na forma não-natural e não-acidental de assassinato

violento. Assim “a morte no romance policial não é vivida, sofrida, temida ou combatida, mas

torna-se um cadáver a ser dissecado, algo a ser analisado” (1988, p. 73). Daí a preocupação

com o crime ser uma preocupação com “a segurança individual” ou o “destino de alguém”.

O sociólogo marxista acrescenta que “a transformação do crime, senão dos próprios

problemas humanos, em ‘mistérios’ que possam ser solucionados, representa uma tendência

comportamental e ideológica típica do capitalismo” (1988, p. 38). A sociedade burguesa vê a

morte e o crime mais de forma alienada e materializada, como coisa e fenômeno, livre da

carga sentimental e da densidade psicológica que geralmente acompanham um crime e sua

detecção. Da mesma forma, assegura que “o verdadeiro problema do romance policial

clássico não é, de forma alguma, o crime – e certamente não é a violência ou o assassinato

como tal. É a morte e o mistério, com pronunciada ênfase no segundo” (1988, p. 53).

Assim, no romance policial “não há uma luta de paixões e vontades, apenas um

embate de espíritos analíticos em oposição à inteligência preventiva, (...) uma competição

entre inteligências abstratas” (1988, p. 73). Dessa forma, o romance policial possui suas

origens históricas em dois fatores: no momento que se dá a formalização do processo de

18 MANDEL, Ernest. Delícias do crime: história social do romance policial. Trad. Nilton Goldmann. São Paulo: Busca Vida, 1988.

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coleta de provas criminais – equivalendo ao processo de investigação / detecção do detetive –

e com o desenvolvimento da justiça criminal, quando a punição física e a tortura passam a ser

substituídas pelas prisões e os julgamentos nos moldes como os conhecemos hoje. Segundo

Mandel, “os maiores triunfos da inteligência analítica foram conquistados nas ciências

naturais” (1988, p. 39).

Dentre outras questões, Mandel ressalta o fato de que os primeiros romances policiais

eram “altamente formalizados e muito distantes do realismo e do naturalismo literário”, pois

“não se preocupavam com o crime ‘em si’”. A idéia era a do crime como “um arcabouço a ser

solucionado, um quebra-cabeças para ser montado” (1988, p. 37). É por isso que “o

verdadeiro tema dos primeiros romances policiais”, incluindo-se aí os contos de Poe e Conan

Doyle, “não é o crime ou o assassinato, mas o enigma”, sendo o problema “analítico e não

social ou jurídico” (1988, p. 37).

Em seu ensaio “A simples arte de matar”19, o clássico autor do romance negro

Raymond Chandler nos dá uma visão mais de dentro do romance policial, comparando

especialmente o antigo romance de enigma com o romance negro e como este contribuiu para

a evolução do gênero.

Chandler acredita que “o principal dilema do romance de detecção tradicional ou

clássico, ou lógico e dedutivo, ou simplesmente dedutivo é que, para chegar próximo à

perfeição, ele requer uma combinação de qualidades que não são encontradas numa mesma

mente” (2002, p. 396). Dessa forma, o autor inglês critica as velhas e repetidas fórmulas de

lógica e dedução nos romance de Agatha Christie e Dorothy Sayers.

19 Publicado no Brasil dentro do título Armas no Cyrano's e outras histórias (L&PM, 2002, p. 393-412), o ensaio The simple art of murder foi publicado originalmente na revista Atlantic Monthly em novembro de 1945.

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Sobre a escola policial que o antecede, Chandler declara que tais obras não se

realizam intelectualmente como problemas, e nem se realizam artisticamente como ficção, por

serem “muito tramadas” e terem “muito pouco a ver com o que acontece no mundo”,

criticando dessa forma a falta de veracidade do romance de enigma. O autor também chama a

atenção para a figura de Dashiel Hammett, outro clássico do romance noir que, segundo ele e

em contraponto com o velho romance de enigma, “tornou a história de detetive algo divertido

de se escrever, não uma concatenação extenuante de indícios insignificantes” (2002, p. 408).

Em termos de análise de texto, o teórico búlgaro Tzvetan Todorov destrincha a

fórmula do modelo narrativo policial. Em seu livro As estruturas narrativas20, o autor discute

a questão da transgressão dos gêneros literários e de como uma obra pode prescrever um

gênero. Considerando o romance policial como um gênero de massa, ele diz que “quem quer

‘embelezar’ o romance policial faz ‘literatura’, não romance policial” (1979, p. 95), sendo que

o romance policial não transgride, e sim se adapta às regras de um gênero.

Todorov argumenta que o romance policial clássico ou o que ele chama de romance de

enigma – cujos exemplos clássicos são Agatha Christie e Dorothy Sayers – “tende para uma

arquitetura puramente geométrica”, em que a imunidade do detetive é defendida como uma

regra fundamental. Dentro desse romance de enigma seriam encontradas, segundo ele, duas

narrativas: a história do crime e a história do inquérito. O autor parece concordar com aquele

conceito de romance policial como literatura inferior ou de entretenimento, afirmando que

nele o estilo deve ser “perfeitamente transparente, inexistente”, sendo sua única exigência “ser

simples, claro, direto” (1979, p. 96-98).

20 TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Perspectiva, 1979. O capítulo analisado do livro chama-se “Tipologia do romance policial”.

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No romance noir21, não há distinção temporal entre as duas histórias, característica do

romance de enigma. Não há um crime anterior ao desenvolvimento da ação presente na

narrativa, a qual assume a forma de retrospecção ou memórias como nas histórias de Conan

Doyle ou de Agatha Christie. Segundo Todorov, no romance noir “não há mais nada a

adivinhar, não há mistério no sentido como havia no romance de enigma” (TODOROV, 1979,

p. 98). A história gira em torno da violência do crime, da ação e da amoralidade de seus

personagens, característica marcante em autores hard-boiled22 clássicos como Dashiel

Hammett e Raymond Chandler. O criminoso também assume um papel mais relevante e não é

tão suprimido como no romance de enigma, em que todas as luzes se voltam para o detetive.

21 A expressão roman noir é tradicionalmente traduzida como romance negro e inclui a ficção policial e de suspense publicada na época da Depressão e pós-segunda guerra. Para mais detalhes, ver: CAWELTI, John G. “The HardBoiled Detective Story”. In: Adventure, Mistery and Romance. Chicago: The University of Chicago Press, 1976, p. 139-161. 22 Hard boiled crime fiction é a expressão usada em inglês para o gênero da ficção noir, cujas obras primordiais foram publicadas na revista barata de pulp-fiction Black Mask, na década de 1920, por Dashiel Hammett. Para mais informações, ver: CAWELTI, John G. “The HardBoiled Detective Story”. In: Adventure, Mistery and Romance. Chicago: The University of Chicago Press, 1976, p. 139-161.

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5 A SUBVERSÃO DO ROMANCE DETETIVESCO TRADICIONAL EM

A TRILOGIA DE NOVA YORK

5.1 O DETETIVE

Como protagonista do romance detetivesco tradicional, a personalidade carismática do

detetive tende a atrair toda a atenção do leitor, de modo até mesmo a compensar, em alguns

casos, uma trama ruim, com desfechos previsíveis, descrições delongadas em excesso, ou

crimes e soluções muito recorrentes e já conhecidos do público leitor. Via de regra, uma

personalidade única e um aspecto físico característico – se pensarmos em Sherlock Holmes e

Hercule Poirot – conferem à personagem certa excentricidade, exagero ou heroísmo, mesmo

quando não encarna necessariamente o papel de herói, como no caso dos detetives fora-da-lei

e imorais do romance noir.

No decorrer da leitura da primeira história da trilogia de Auster “Cidade de vidro”, o

leitor desavisado certamente sentirá forte estranhamento em relação à figura de Quinn como

detetive, estranhamento que permanece nos contos seguintes, “Fantasmas” e “O quarto

fechado”. A Trilogia de Nova York transgride, pois, todas as fórmulas do romance policial

tradicional, o que a caracteriza como uma obra de ficção anti-detetivesca.

No primeiro capítulo de “Cidade de vidro”, o narrador prenuncia ironicamente o papel

do detetive na trama policial: “O detetive é quem olha, quem ouve, quem se movimenta nesse

atoleiro de objetos e fatos, em busca do pensamento, da idéia que fará todas essas coisas se

encaixarem e ganharem sentido” (AUSTER, 2000, p. 14). Este anúncio define a função

tradicional do detetive como elucidador do mistério. Porém, isso é totalmente o oposto da

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experiência vivida pelos detetives na Trilogia, os quais nada vêem ou ouvem, sem conseguir

se movimentar no atoleiro de pistas falsas ou irrelevantes semeadas em seu caminho.

Nas palavras do narrador de “Cidade de vidro”, parece haver pouca coisa para

comentar sobre a personalidade de Daniel Quinn, como verificamos já na primeira página do

livro. Isso vai totalmente contra a fórmula do romance policial tradicional, em que a descrição

da figura do detetive muitas vezes é mais privilegiada do que o desenrolar da trama. Uma

descrição mais detalhada do caráter e da personalidade daquele que é a personagem central do

romance policial funcionaria como um modo de o leitor saber previamente que artifícios ou

atitudes o detetive irá tomar para desvendar a solução do problema ou do crime. Por exemplo,

se ele é mais dado à ação física e ao uso da violência como nos autores da era do romance

noir, irá tomar uma atitude mais agressiva e menos cerebral. Por outro lado, se for semelhante

a um Auguste Dupin, criado por Poe, a Hercule Poirot, de Agatha Christie, ou ainda a um

Sherlock Holmes, de Conan Doyle, se apoiará mais nas investigações conduzidas por meio da

dedução e da intuição.

Segundo Cawelti, as fórmulas do romance policial decorrem de estereótipos

recorrentes, que são as figuras carimbadas que se repetem nas histórias de detetive, como o

detetive durão e muitas vezes violento e imoral (no caso do romance noir), ou por outro lado,

o detetive altamente racional e intuitivo, quando não excêntrico e subentendendo certa

arrogância (no caso de Sherlock Holmes ou Hercule Poirot). No romance noir, a femme

fatale, mulher bela e sensual, geralmente loira, que pode atuar ambiguamente tanto como

vítima quanto como criminosa ardilosa em potencial, complica o desvendamento do crime e a

tarefa do detetive. Outros estereótipos entre as personagens secundárias, pensando aqui

especialmente em Agatha Christie, são o velho mordomo ou governanta da mansão como

suspeitos em potencial.

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O primeiro capítulo de “Cidade de vidro” consiste numa verdadeira reflexão sobre a

literatura policial convencional. Nesta ocasião, o leitor é apresentado à figura irônica de

Quinn, que encerra uma contradição em si mesmo, pois não encarna uma única personagem,

mas várias.

Quinn é um escritor de histórias de detetive que, por força do acaso – a partir de uma

ligação anônima em que o confundem com o detetive Paul Auster da agência de detetives

Auster – assume a identidade do desconhecido. Este é o início de uma aventura cujo desfecho

permanecerá desconhecido, segundo as palavras do próprio narrador no final de “Cidade de

vidro”.

Fazendo-se passar pelo detetive Paul Auster, Quinn é encarregado pela sensual e

atraente Virginia Stillman de proteger o marido Peter Stillman Jr. das garras de Stillman-pai.

A impressão de Quinn é que Stillman Jr. tem problemas mentais: sua fala é incoerente e

confusa, como a de um autista; tem modos lentos e calmos e veste-se totalmente de branco da

cabeça aos pés, como um paciente de hospital. O medo mortal de Stillman é ser finalmente

encontrado pelo pai, que ameaça matá-lo em repetidos telefonemas que não esclarecem o

propósito das ameaças. As informações de Peter são confusas e Quinn duvida delas, mas fica

convencido de que precisa ajudar o jovem estranho a encontrar o paradeiro de seu pai, para

evitar uma tragédia.

Como escritor, Quinn escreve sob o pseudônimo excêntrico de William Wilson23 –

dialogando com o famoso conto de Poe sobre a dupla personalidade, cuja significação

23 William Wilson é o personagem do conto homônimo de Poe. O aspecto fantástico do conto é marcado pelo fato que William Wilson é perseguido por um duplo seu, que possui o mesmo nome e a mesma aparência que ele.

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veremos mais à frente – sobre as aventuras do detetive durão Max Work24, que como o nome

remete através de seu sobrenome work, é a mais típica caricatura dos anti-heróis do romance

noir. A relação de Quinn com tal literatura é aquela do leitor comum com a literatura de

entretenimento ou “literatura de fuga”. Ao mesmo tempo que Quinn “tinha pouco trabalho

para escrever as histórias complicadas que o gênero exigia, e escrevia bem, como se não

tivesse que fazer nenhum esforço” (AUSTER, 2000, p. 10-11), ele representa o leitor voraz de

história de mistério, aquele que consegue ler várias histórias em seqüência sem enfrentar

grandes problemas de compreensão, mas também sem refletir muito sobre o que leu e

questionar a qualidade da escrita.

Quando se achava no estado de ânimo apropriado, não tinha problema para ler dez ou doze deles (livros de mistério) seguidos. Era uma espécie de fome que se apoderava de Quinn, uma voracidade por um tipo especial de alimento, e ele não parava até que estivesse entupido. (AUSTER, 2000, p. 14)

Essa relação de consumo e entretenimento do leitor com o romance policial – que

encara o livro mais como objeto de consumo do que literatura ou obra de arte – é comentada

de forma crítica por Mandel em sua visão marxista sobre o romance policial em Delícias do

crime. Segundo Mandel, para quem “ler sobre a violência é uma forma (inocente) de

testemunhar e gozar a violência”, o romance policial, que ele chama de “ópio das classes

médias”, veio ajudar a preencher a “intolerável monotonia da vida cotidiana” (1988, p. 112),

decorrente da padronização do trabalho e da vida modernos. As aventuras extraordinárias, o

mistério e as inseguranças que o romance policial proporciona contrabalançam a vida

burguesa segura, altamente repetitiva e cada vez mais controlada pela lei e pelas forças

24 No romance policial “mais convencional” de Auster Squeeze Play (publicado no Brasil no título Da mão para a boca), o detetive também se chama Work, revelando um aspecto metaficcional da obra.

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policiais, vivenciada pelo leitor – ao mesmo tempo em que lhe proporciona um escapismo

provisório.

Sem amigos, com a mulher e o filho já falecidos (que não aparecem na história), o

escritor Quinn parece não ter nenhum motivo em especial para viver, exceto os seus romances

de mistério que fazem certo sucesso junto ao público. Dessa forma, Quinn vai se ausentando

aos poucos de sua própria vida. A figura de seu detetive, personagem principal e narrador das

histórias, Max Work, aumenta de importância e sucesso na proporção em que a vida de Quinn

se apaga, sendo ele o herói a compensar a falta de emoções na vida de seu criador: “quanto

mais Quinn parecia se apagar, mais persistente se tornava a presença de Work neste mundo”

(AUSTER, 2000, p. 15).

Além do detetive inventado Work, a confortável adoção do pseudônimo autoral de

William Wilson, como autor das obras assegura a Quinn o total anonimato e distanciamento

em relação a seu editor de livros, contribuindo ainda mais para que se abstraia de sua própria

existência. Como se ele próprio, Quinn, fosse ficção, Max Work realmente existisse em carne

e osso e William Wilson fosse o autor verdadeiro, intermediário entre ambos, cria-se, nas

palavras do narrador de “Cidade de vidro” uma tríade de egos:

Ao longo dos anos, Work se tornara muito próximo de Quinn. Enquanto William Wilson permanecia uma figura abstrata para ele, Work cada vez mais adquiria vida. Na tríade de egos em que Quinn se transformara, Wilson servia como uma espécie de ventríloquo, o próprio Quinn era o boneco e Work era a voz animada que conferia um propósito àquela empresa. Se Wilson era de fato uma ilusão, justificava no entanto a vida dos outros dois. Se Wilson de fato não existia, era no entanto a ponte que permitia a Quinn passar de si mesmo para Work. (AUSTER, 2000, p. 12)

Em outra passagem talvez ainda mais relevante e que dialoga diretamente com

questões peculiares ao gênero policial, ficamos sabendo da admiração de Quinn “pelo sentido

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de plenitude e economia” das obras do gênero, em que “nada é desperdiçado, nenhuma frase,

nenhuma palavra que não seja significativa” e onde “mesmo a coisa mais ligeira e trivial pode

guardar alguma relação com o desfecho da história”, de modo que “nada deve ser

negligenciado” (AUSTER, 2000, p. 14). Através da leitura do livro e de seu não-desfecho (e

isso se aplica aos três contos sem distinção), verificamos que um entulho de detalhes e

informações inúteis são coletadas pelos detetives ao longo de suas buscas, mas que a maioria

delas certamente não nos levará a conclusão nenhuma, frustrando as expectativas em relação

ao mistério e à sua solução.

Além disso, no final do capítulo 1 de “Cidade de vidro” temos uma longa discussão

sobre como o leitor vê o mundo através dos olhos do detetive, ilustrada pela enigmática

expressão private eye25 (detetive particular). Tal expressão implicaria uma série de

interpretações, incluindo a de eye segundo a sua pronúncia em inglês (isto é, I – Eu, ou o Eu

que tudo vê) e a de eye como olho, isto é, “o olho físico do escritor que volta sua atenção para

o mundo e quer que o mundo se revele diante dele” (AUSTER, 2000, p. 15).

A idéia se encaixará como uma luva na aventura e no destino de Quinn, cujo mundo

revelado aos seus olhos após meses de investigação se mostrará nulo e desprovido de sentido.

Não espere o leitor nenhuma explicação racional e lógica para os incidentes misteriosos do

texto, à maneira do detetive pioneiro de Poe, o célebre Auguste Dupin, aquele que resolve os

casos mais intricados por meio do simples processo dedutivo ou da intuição, sem ao menos

precisar sair de casa para correr no encalço dos criminosos. No início do conto “Os crimes da

rua Morgue”, o narrador anônimo da história faz um discurso completo em defesa da argúcia

25 A expressão private eye designa o detetive particular do romance noir. Para mais informações, ver: CAWELTI, John G. “The HardBoiled Detective Story”. In: Adventure, Mistery and Romance. Chicago: The University of Chicago Press, 1976, p. 139-161.

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do método de seu colega detetive, ressaltando a importância das “faculdades analíticas” e da

intuição na solução de um crime.

Vale lembrar aqui a importância que esse narrador anônimo exerce na narrativa

policial. Ele geralmente encarna a figura do “assistente do detetive”, isto é, aquele que não só

narra as façanhas e o raciocínio do colega – que está sempre a desafiar a sua inteligência e

paciência com sua argúcia dedutiva, quase sempre com ares de arrogância e superioridade –

como também acompanha e testemunha as investigações do detetive, chegando às vezes a

atuar decisivamente na investigação, porém sempre subordinado às ordens do detetive. Tal

personagem seria fundamental para inspirar narradores como o Dr. Watson nas histórias de

Sherlock Holmes, por exemplo.

A função desse distanciamento entre narrador e detetive teria uma função específica.

Para Cawelti, ao narrar a história de um ponto de vista que observa as ações do detetive, mas

não participa de seu processo de raciocínio, “o autor pode desviar a atenção do leitor com

mais facilidade e, dessa forma, evitar que ele resolva o crime prematuramente”26 (CAWELTI,

1976, p. 83).

Da mesma forma, distanciando o leitor do ponto de vista do detetive, “o autor pode

criar uma situação de clímax extremamente dramática e surpreendente, já que não tem

nenhuma indicação clara de onde chegará”27 (CAWELTI, 1976, p. 84). Segundo ele, usando

um narrador que não coincida com o detetive, “o autor pode manipular nossas simpatias e

antipatias pelos vários suspeitos sem forçar uma revelação do próprio detetive”28 (1976, p. ).

26 “the writer can more easily misdirect the reader's attention and thereby keep him from prematurely solving the crime”. 27 “the writer can make the moment of solution an extremely dramatic and surprising climax since we have no clear indication when it will arrive”. 28 “the writer can manipulate our sympathies and antiphaties for the various suspects without forcing a revealing commitment on the detective himself”.

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Ainda segundo Cawelti, “a contribuição mais crucial de Poe para a fórmula da história

detetivesca clássica é a invenção de Dupin – com seu aspecto aristocrático, seu brilhantismo e

excentricidade, sintetizando as qualidades intuitivas do poeta com o poder de dedução

racional do cientista e sua capacidade para a análise psicológica”29 (1976, p. 93).

Em “Os crimes da rua Morgue”, é o método analítico que leva o detetive Dupin à

fantástica conclusão de que o assassino das duas senhoras no 4º andar de um edifício em Paris

é um orangotango. Desta forma, apesar do caráter improvável, outré e extravagante do caso

(afinal não havia um motivo especial para o crime, como o possível roubo de ouro levantado

pelas investigações da polícia, que atua paralelamente como adversária do detetive francês),

Dupin obtém sucesso na aplicação de um método de investigação a sua própria maneira e sem

a interferência da polícia, que opta por soluções óbvias.

Em “A carta roubada”, vemos o mesmo procedimento de investigação minucioso de

“Cidade de vidro” adotado sem sucesso por Quinn na caça a Stillman. A fim de encontrar

uma carta desaparecida, cuja importância pode comprometer seriamente a reputação da

família real, a polícia vasculha nos mínimos detalhes e sem sucesso o apartamento do

provável ladrão da carta, o ministro. No entanto, é através da identificação com a mentalidade

do ministro, e não de uma investigação minuciosa dos objetos de seu cômodo, que Dupin

descobre o paradeiro da misteriosa carta. Dada a argúcia do ministro em imaginar como

pensaria a polícia, imaginou que se colocasse a carta no local mais provável – isto é, no porta-

cartas – ninguém descobriria o seu paradeiro. Assim, Dupin ilustra o acontecimento com um

caso semelhante em que certo garoto sempre ganhava no jogo do par ou ímpar, pois “tinha um

29 “Of all Poe's contributions to the formula of the classical detective story, his invention of the character of Dupin – with his aristocratic detachment, bis brilliance and eccentricity, his synthesis of of the poet's intuitive insight with the scientist power of inductive reasoning, and his capacity for psychological analysis – was certainly the most crucial”.

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sistema de adivinhação que consistia na simples observação e no cálculo da astúcia de seus

oponentes”30.(POE, 1978, p. 221). Nisso, o narrador-companheiro de Dupin conclui que o

sucesso do garoto se encontra justamente na solução encontrada pelo detetive – na

“identificação do intelecto do raciocinador com o de seu oponente” (POE, 1978, p. 222) –

dependendo da exatidão com que ambos os intelectos são medidos.

Em A Trilogia de Nova York, vale lembrar que nenhum dos personagens-detetive

adota um método especial de investigação.

Na segunda história, “Fantasmas”, Blue é um detetive profissional cuja missão,

designada por White, é perseguir Black e anotar todos os seus movimentos. Pela falta de

evidências, o caso parece ser o mais estranho possível para o experiente detetive. Blue levanta

inúmeras desconfianças, primeiro sobre White, que poderia ser apenas mais um esposo

ciumento, mas que não revela afinal seus motivos, e cuja fisionomia lembrando uma

maquiagem branca parece ocultar seu verdadeiro rosto. Porém, as maiores desconfianças são

em relação a Black, sobre o qual nada é informado.

Sujeito de modos práticos e que nunca foi dado à reflexão, como é típico dos heróis do

romance noir que partem logo para a ação e não perdem seu tempo em deduções, Blue vê-se

obrigado, ao contemplar Black da janela de seu apartamento do outro lado da rua, a raciocinar

com mais lentidão. A monotonia – que também se reflete na perseguição de Quinn a Peter

Stillman-pai – e que é um aspecto real na rotina do detetive, raramente é abordada na ficção

policial:

30 POE, Edgar Allan. Histórias extraordinárias. Trad. Breno Silveira e outros. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

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À medida que o tempo passa, Blue vai se tornando cada vez mais desanimado. Não tem o hábito de ficar assim tanto tempo parado e, enquanto a escuridão vai se fechando sobre ele, aquilo tudo começa a lhe dar nos nervos. (...) Não sou do tipo Sherlock Holmes, dizia para Brown, toda vez que o patrão lhe dava um trabalho especialmente sedentário. (AUSTER, 2000, p. 155)

Hospedado em um apartamento alugado por White em frente ao prédio de Black, Blue

tenta captar algo sobre Black, mas nada vê em seu comportamento que lhe diga alguma coisa.

Ficamos sabendo que “seu método consiste em se ater aos fatos manifestos, relatando os

acontecimentos como se cada palavra etiquetasse com precisão a coisa mencionada, e não se

perder em especulações” (AUSTER, 2000, p. 163).

Black é, segundo Joseph S. Walker, o outro observado que se torna uma força de

disciplina, um objeto que controla o sujeito que o observa (WALKER, 2002, p. 405), pois ele

obriga Blue a passar todo seu tempo observando-o e fazendo anotações. Porém, todas as

tentativas de se intuir sua personalidade parecem sem sentido. Após meses de perseguição, de

anotações esparsas em seu caderno vermelho – igual ao usado por Quinn em “Cidade de

vidro” – e informações coletadas aleatoriamente, além de dezenas de especulações, as

deduções de Blue a respeito de Black mostram-se inúteis. Quando verifica o que de fato

escreveu sobre Black, fica decepcionado. “Existe o caderno, é claro, mas quando o folheia

para ver o que escreveu, fica frustrado ao descobrir tamanha escassez de detalhes. É como se

suas palavras, em vez de relatar os fatos e os assentar de forma palpável no mundo, os

induzisse a desaparecer” (AUSTER, 2000, p. 163).

Blue se lamenta repetidamente pelo fato de que, a cada relatório escrito sobre Black e

encaminhado a White, sente que a sua escrita, os detalhes minuciosos coletados na

perseguição, nada revelam de importante. Ao redigir seu primeiro relatório para White, Blue

descobre que “pela primeira vez em sua larga experiência de redigir relatórios (...) as palavras

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não funcionam necessariamente, é possível que elas obscureçam as coisas que estão tentando

dizer” (AUSTER, 2000, p. 164).

Ao contrário do detetive Dupin, que busca solucionar o crime identificando-se com a

mentalidade do criminoso, Blue desespera-se com o fato de nada descobrir sobre Black. “O

único jeito de Blue ter uma noção do que está ocorrendo é entrar na mente de Black, ver o que

está pensando e isso, está claro, é impossível” (AUSTER, 2000, p. 155).

Segundo nos informa o narrador, “seu método consiste em se ater aos fatos

manifestos, relatando os acontecimentos como se cada palavra etiquetasse com precisão a

coisa mencionada, e não se perder em especulações”. Para Blue, “as palavras são

transparentes, grandes janelas colocadas entre ele e o mundo, e até agora nunca impediram

sua visão, nem sequer pareciam estar ali”. (AUSTER, 2000, p. 163)

No decorrer da busca, Blue descobre que Black é, como ele, um detetive. Uma espécie

de duplo dele próprio, a sua imagem refletida no vidro do prédio em frente, passando do papel

ativo de observador ao de observado, de perseguidor a perseguido. Blue só consegue ver a si

próprio na imagem de Black, repetindo as mesmas ações que ele, anotando talvez as mesmas

informações em seu caderno.

Além disso, Blue corre o constante risco de falar apenas de si mesmo em seus

relatórios:

Pensa que talvez um relato fiel da última semana devesse incluir as numerosas histórias que inventou para si mesmo a respeito de Black. (...) Mas Blue muda de idéia, percebendo que essas histórias na verdade nada têm a ver com Black. Afinal, isso não é a história da minha vida, diz ele. (AUSTER, 2000, p. 161)

Até então, tudo o que Blue pôde fazer foi especular, cogitar hipóteses e

probabilidades, inventando histórias e criando relações as mais absurdas possíveis sobre a

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personalidade de Black – chegando a cogitar uma possível conspiração entre Black e White

da qual ele seria de fato a vítima a ser perseguida – a fim de convencer a si mesmo, já que não

o conhece de fato. Na falta de evidências sobre o motivo de investigar Black, Blue começa a

inventar histórias sobre ele, “pois Black não passa de um vazio, um buraco na textura das

coisas, e uma história preenche esse buraco tão bem quanto qualquer outra” (AUSTER, 2000,

p. 161).

Dessa forma, todas as tentativas de Blue de intuir a personalidade de Black são inúteis.

Dada a relação especular entre ambos – pois, quando Blue observa Black do outro lado da rua

em seu apartamento, tem a impressão de estar olhando para si mesmo, como num espelho –

Blue não consegue tirar conclusões a respeito da personalidade de Black. Black (preto), que

na física ótica significa “ausência de cor”, seria uma indicação de como a figura de Black

permanece um mistério para Blue.

A imagem de Black representa tanto um reflexo, uma imagem “especular” – Blue

acaba descobrindo que Black repete exatamente as mesmas atitudes dele, anotando as mesmas

informações e recorrendo aos mesmos procedimentos – quanto como uma sombra que não

revela a sua pessoa, um vazio, uma ausência ou – retomando o título da história – um

“fantasma” ou um espectro.

“Especular” é a palavra usada no texto para designar essa nova condição que Blue tem

de suportar, trancado sozinho em um quarto fazendo anotações que parecem levá-lo a lugar

nenhum.

Especular, do latim speculatus, que quer dizer espiar, observar, e se liga à palavra speculum, que quer dizer espelho. Pois, ao espiar Black do outro lado da rua, é como se Blue estivesse olhando para um espelho e, em vez de simplesmente contemplar outro homem, descobre que está também olhando para si mesmo. (AUSTER, 2000, p. 160)

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Especular não se mostrará uma atitude útil, como o seria para detetives como o

mencionado Sherlock Holmes de Conan Doyle ou o ainda célebre Hercule Poirot de Agatha

Christie. O que geralmente ocorre no romance policial é que, ao se deparar com um suspeito

em potencial, o detetive sinta-se mais esclarecido e mais seguro em suas investigações –

momento em que o fim e a solução do caso tendem a se tornar mais próximos – mesmo que

seja um falso suspeito. É comum que haja pistas ou soluções falsas – como nas soluções

precipitadas propostas pela polícia nos contos de Poe, ou nos inúmeros falsos suspeitos que se

apresentam a Poirot nas histórias de Agatha Christie.

Em Um estudo em vermelho, na tentativa de transformar a criminologia numa ciência

exata, Sherlock Holmes faz o curioso relato sobre a ciência da dedução, fruto da especulação:

Como todas as outras artes, a ciência da Dedução e da Análise só pode ser conquistada através de um demorado e paciente estudo. Antes de se voltar para os aspectos morais e mentais do problema, deixe o investigador começar a dominar problemas mais elementares (...). Através das unhas de um homem, da manga do seu casaco, das suas botas (...) – através de cada um desses detalhes – se revela claramente a tendência deste homem. (DOYLE, 1999, p. 21-22)

Na Trilogia, a observação e a dedução com o tempo mostram-se inúteis, e a cada

passo dado na investigação, mais distantes se encontram os detetives de uma solução.

Voltando a “Cidade de vidro”, nas palavras do narrador: “era tudo uma questão de

método. Se o objetivo era compreender Stillman, conhecê-lo bem o bastante para conseguir

prever o que faria em seguida, Quinn tinha fracassado” (AUSTER, 2000, p. 77). Quinn

enumera uma série de informações supostamente fundamentais que revelariam a identidade

misteriosa de Stillman. Dentre eles, a sua formação como professor de lingüística, cuja

obsessão pela pesquisa sobre a origem da linguagem o leva a manter o filho em cativeiro,

isolado de todos. Outros dados como sua captura pela polícia e o internamento em um

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32

hospital, uma obra acadêmica bizarra que escrevera anos atrás mostram-se inconsistentes.

Entretanto, quando Quinn finalmente conhece Stillman (seria o verdadeiro?) e mantém uma

série de três conversas com ele (Cap. 8), verifica que pode haver muitas possibilidades, ao

invés de uma solução definitiva para o mistério.

A força do acaso e da aleatoriedade mostra-se muito mais eficiente do que qualquer

esforço dedutivo ou especulativo. Qualquer tentativa de concatenar os fatos dentro de um

esquema coerente, como o fazem os detetives do romance policial, mostra-se inútil. No

romance policial, nada é por acaso: cada informação coletada leva necessariamente a outra,

que será sempre útil na solução do crime. S. S. Van Dine já afirmava que “o culpado deve ser

encontrado mediante deduções lógicas e não por acidente, coincidência ou confissão” (VAN

DINE, s/d, p. 118).

O discurso de Quinn como autor de romances policiais em “Cidade de vidro” funciona

como uma armadilha, um paradoxo em relação ao ser próprio destino correspondendo ao mito

da “solução do crime”:

No bom livro de mistério, nada é desperdiçado, nenhuma frase que não seja significativa (...). O mundo do romance se torna vivo, ferve de possibilidade, com segredos e contradições. Uma vez que tudo o que é visto ou falado, mesmo a coisa mais ligeira e trivial, pode guardar alguma relação com o desfecho da história, nada deve ser negligenciado. Tudo se torna essência; o centro do livro se desloca a cada acontecimento que impele a história para a frente. (AUSTER, 2000, p. 14)

Isso representa, para Quinn que escreve romances policiais, o papel ideal do detetive.

Porém ele próprio no papel do detetive Paul Auster não conseguirá atravessar esse atoleiro de

objetos e fatos de sua investigação, afundando aos poucos na lama improvável do acaso e das

múltiplas possibilidades.

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33

Segundo Jeffrey T. Nealon, “o trabalho de investigação do detetive não reflete apenas

o trabalho do leitor, 'onde cada acontecimento impele a história para a frente', como também,

e mais importante para Quinn, o trabalho do escritor”31. Para ele, o escritor “é aquele que cria

o mundo distinto de estratagemas e pistas que encerram o mistério, mas também aquele que –

de forma mais desesperada do que o leitor – pelo seu final, 'pela idéia que fará todas essas

coisas se encaixarem e ganharem sentido'”32 (1996, 92-93).

Ainda em “Cidade de vidro”, história em que a força do acaso talvez se mostre mais

evidente, Quinn naturalmente insiste em buscar em cada atitude de Stillman uma razão de ser,

vasculhando o caos de seus movimentos à cata de algum vislumbre de coerência.

Isso significava apenas uma coisa: que ele continuava a duvidar da arbitrariedade das ações de Stillman. Desejava que houvesse nelas algum sentido, por mais obscuro que fosse. Isso, em si mesmo, era inaceitável. Pois significava que Quinn estava se permitindo negar os fatos, e isso, conforme ele sabia muito bem, era a pior coisa que um detetive podia fazer”. (AUSTER, 2000, p. 80)

Esse mesmo pensamento se aplica à importância que o papel das palavras e as

anotações esparsas assumem no romance policial. No romance policial, cada detalhe, cada

objeto ou personagem têm o seu valor no desenrolar do enredo, na busca da solução do crime

e, portanto, no desfecho da história. Nada aparece por acaso e, quando aparece, é com o

intuito de confundir o leitor, tornando a trama ainda mais atraente e adiando até as últimas

linhas o clímax da história, decorrendo na descoberta ou não do criminoso esperado.

31 “the work of the detective mirrors not only the work of reading (where ‘each event … propels [the story] forward … and no circumference can be drawn until the book has come to its end’) but also – and more importantly for Quinn – the work of writing”. 32 “The writer is the one who initially creates the disparate world of ruses and clues that is the mystery, but also the one who searches – more desperately than the reader – for its end, for ‘the idea that will pull all these things together and make sense of them”.

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34

Ainda no papel de detetive, Quinn anota em um caderno vermelho, no papel do

detetive Auster, todas as informações coletadas na investigação e nas conversas com Stillman.

Entretanto, tais anotações são uma grande armadilha, ao contrário do que se espera de uma

investigação convencional. O caderno vermelho tem um significado simbólico, indicando o

insucesso da linguagem como elemento de registro da verdade.

Para o detetive convencional, o caderno de anotações é um instrumento indispensável.

Para Quinn, representa um aliado contra os abismos da memória e do tempo passado. É

através dele que tomamos conhecimento das últimas notícias sobre Quinn que, enlouquecido

em sua investigação, desaparece da história, deixando o final inconcluso. As últimas

anotações de Quinn no caderno vermelho já não fazem nenhum sentido para a investigação,

mas demonstram apenas os delírios de um homem, cujas anotações se mostraram inúteis para

a solução do problema. Neste momento, afinal, já não podemos dizer que Quinn está engajado

em uma busca concreta ou material, na qual fracassou, e sim numa busca por si mesmo, já que

se perdera ao longo de uma investigação exaustiva sem solução e sem sentido, fazendo-se

passar por outra pessoa cuja existência na trama é questionável, pois o “verdadeiro” Paul

Auster nunca aparece, assunto que discutiremos no próximo capítulo.

Em “O quarto fechado”, cabe ao narrador anônimo assumir o papel de detetive do qual

é incumbido por Sophie Fanshawe, esposa de Fanshawe, seu velho amigo de infância e

adolescência, desaparecido misteriosamente, sem motivo aparente. Sophie pede-lhe para

exercer o papel de “guardião de sua obra”, como responsável direto pela revisão e publicação

de escritos ainda não divulgados, atendendo a um pedido manifestado pelo próprio marido. O

fio da investigação baseia-se inicialmente na recuperação das memórias há muito esquecidas

da infância comum do narrador e Fanshawe. A partir daí, começa seu trabalho de detetive na

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35

tentativa de reconstituir o que teria acontecido e a própria identidade do amigo.

Pode-se dizer que, em “O quarto fechado”, o aspecto detetivesco da história é marcado

muito mais pelo seu aspecto pessoal do que nas primeiras histórias, em que detetives

profissionais (no caso de Blue), ou detetives pela força do acaso (Quinn-Auster) assumem a

investigação. Portanto, o detetive na Trilogia diferencia-se, em seu aspecto humano mais

complexo, daquele profissional do crime exclusivamente dedicado à função de solucionar o

caso.

Em “O quarto fechado” mais especificamente, o papel não-formal de detetive tem uma

dupla importância para seu protagonista.

A importância inicial e involuntária seria buscar a si próprio através da investigação

do passado – ou seja, recorrendo a todo instante à memória de sua infância perdida com

Fanshawe e à grande admiração que lhe devotara durante anos. Para isso, traz para o presente

fatos passados e busca outros por meio de informações fornecidas por colegas e

especialmente pela mãe de Fanshawe, apesar do distanciamento existente entre mãe e filho.

A segunda importância estaria em buscar na investigação, isto é, na tarefa do detetive,

aquilo que não alcançara na função de escritor medíocre, fato que desperta a inveja pelo

sucesso da obra de Fanshawe. Passa, portanto, da condição de escritor para a de “detetive”.

Como ele confessa: “Se inveja for uma palavra muito forte para o que estou tentando

exprimir, o chamarei de desconfiança, o sentimento secreto de que Fanshawe era uma pessoa

melhor do que eu” (AUSTER, 2000, p. 228).

Porém, o protagonista não abre mão de sua escrita. Isso fica provado quando, num

ímpeto de perpetuar a celebrada obra do amigo, dado como morto por todos, acaba assumindo

a identidade de Fanshawe, torna-se um escritor de sucesso e casa-se com a viúva. Para pôr fim

a qualquer dúvida sobre a morte de Fanshawe toma a iniciativa de escrever sua biografia.

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36

Dessa forma, o papel detetivesco teria a finalidade prática de coletar os eventos mais valiosos

e expressivos sobre a vida de Fanshawe e colocá-los de uma forma convincente no papel,

fechando a seqüência escritor-detetive-escritor vivenciada pelo protagonista.

Como já ressaltado anteriormente, o detetive está engajado muito mais numa busca

existencial em “O quarto fechado” do que nas primeiras novelas, em que o puzzle ou labirinto

de acontecimentos ainda nos leva a crer que estamos lidando com uma obra de aspecto

detetivesco, impressão que vai se dissolvendo quando nos aproximamos do final não

conclusivo das histórias.

Nas duas primeiras histórias, as pistas falsas e as impressões coletadas através da

dedução e das mais estúpidas tentativas de procurar coerência na maneira caótica em que os

fatos se apresentam, têm uma função de ser, que é despistar ao mesmo tempo o leitor e o

detetive de sua trilha convencional de pensamento.

Na terceira história, os fatos relembrados e coletados sobre a vida passada de

Fanshawe e sua amizade de garoto com o narrador não levam necessariamente à cena final do

quarto fechado – que é usada de forma metafórica e diversa daquele do clichê da cena do

quarto fechado, tão explorada por autores como Agatha Christie. A publicação “póstuma” das

obras de Fanshawe e de sua biografia desperta a atenção do “falecido”, que manda vários

recados ao amigo, provando ainda estar vivo, fato cautelosamente mantido em segredo todo o

tempo. No encontro frustrante entre o Fanshawe “ressuscitado” e o falso Fanshawe, os dois

estão divididos por uma porta de folha dupla trancada do lado de dentro, o que justifica mais

uma vez o titulo “O quarto fechado”.

É um exemplo ilustrativo do “jogo de identidades” recorrente nas três histórias, com o

reaparecimento ou a menção de certas personagens. No capítulo 8 de “O quarto fechado”, já

quase no final, o protagonista-narrador, decidido a encontrar o paradeiro de Fanshawe de

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37

quem recebera cartas, encontra aquele que é supostamente o amigo desaparecido. Nem o

narrador, nem nós leitores, que só vemos através de seus olhos, temos certeza disso. O fato de

Fanshawe se apresentar como Peter Stillman é como se ambos representassem a mesma

pessoa, incorporando a identidade do indivíduo perseguido pelo detetive Quinn.

Dessa forma, tanto os detetives quanto as personagens perseguidas (já que não há

criminosos de fato) se repetem num esquema cíclico. Apesar de diferentes, os enredos e

experiências das personagens constituem uma mesma estrutura relativamente coesa nas três

histórias: “As três histórias são, enfim, uma mesma história, mas cada uma representa um

estágio diferente da minha consciência da questão” (AUSTER, 2000, p. 316).

Essa é a voz do narrador de “O quarto fechado”, mas o pronome possessivo minha

poderia muito bem se aplicar ao autor, pois tem o poder e a força de uma crítica, uma

justificativa sobre as escolhas, as repetições e a transgressão da obra no gênero do romance

policial.

Outra questão relevante é a hierarquia escritor x detetive nas três histórias, ressaltada

por Alison Russell, em Deconstructing The New York Trilogy33: “Daniel Quinn é um escritor

que se torna detetive, Blue um detetive que se torna escritor e o narrador (anônimo) de 'O

quarto fechado' um escritor que se torna detetive”34 (RUSSELL, 1990, p. 79). Portanto,

apenas Blue é um detetive profissionalmente falando –representando o private eye do

romance noir –enquanto Quinn e o amigo de Fanshawe assumem o papel do detetive pela

força das circunstâncias e do acaso.

33 Neste ensaio desconstrutivista, Russell traça paralelos entre conceitos do filósofo argelino Jacques Derrida e a Trilogia. 34 “Daniel Quinn is a writer turned detective, Blue a detective turned writer, and the narrator of 'The Locked Room' a writer turned detective”.

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Segundo Russell, a desconstrução na Trilogia também se dá no âmbito do escritor, não

só nas figuras dos protagonistas, como também do próprio autor Paul Auster. Ele afirma: “Já

que a desconstrução rejeita a noção de um eu individual, essas três histórias, como

construções lingüísticas, também servem para representar os eus de Auster”35 (RUSSELL,

1990, p. 79).

Ainda sobre a relação entre autor e detetive na Trilogia, Nealon afirma que “escrever

parece mais intimamente relacionado ao trabalho do detetive do que ler”36, já que o autor e o

detetive embarcam em uma jornada sem nenhum destino assegurado (1996, p. 93). Para o

leitor, o mistério sempre acaba, mesmo que o caso não seja resolvido. Ainda que o detetive se

antecipe aos fatos ou seja assassinado, o livro chega a uma conclusão, o que não vale para o

autor ou para o detetive, pois “uma vez que eles entram no espaço do mistério, não há

nenhuma garantia de conclusão ordenada”37 (1996, p. 93).

A questão não é nada simples, mas vale lembrar, como ilustração, que Auster – o

autor cujo nome figura na capa do livro – também serve de personagem em “Cidade de

vidro”. Primeiramente, como o detetive com o qual Quinn é confundido ao receber a ligação

da esposa de Stillman Jr., e cuja existência real nos é desconhecida. Quinn passa a encarnar o

papel desse detetive de existência discutível até o frustrante final sem solução da história. Em

segundo lugar, Auster, o autor americano em carne e osso, tem vários pontos de semelhança

com o escritor de ficção a quem Quinn encontra em suas buscas pelo “verdadeiro” detetive

Auster, cuja personalidade ele havia assumido na investigação. Esse Auster-escritor também

35 “Since deconstruction rejects the notion of a single self, these three novels, as linguistic constructs, also serves as the selves of Auster”. 36 “writing seems more closely tied to the work of the detective than reading, insofar as the writer and the detective embark on a journey that has no guaranteed destination”. 37 “Once they enter the space of the mystery, there is no guarantee of na ordered conclusion”.

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39

reside em Nova York, em Manhattan, tem um filho pequeno chamado Daniel – primeiro

nome de Quinn – e uma esposa chamada Siri, revelando marcas autobiográficas.

A metaficção é um dos pontos fortes na ficção de Paul Auster, que cria um diálogo

cíclico entre suas próprias obras. Seu último livro, Viagens no Scriptorium38, é o exemplo

mais evidente de como seus personagens são reutilizados. Na obra, o protagonista Blank, que

sofre de amnésia e permanece trancado em um quarto por um motivo desconhecido, relembra

aos poucos o seu passado através dos vários personagens que vêm visitá-lo, entre eles o

detetive Quinn de “Cidade de vidro” e Fanshawe de “O quarto fechado”.

Esses ecos de personagens entre as diferentes obras de Auster estabelecem, segundo

Joseph S. Walker, “um padrão que sugere que suas obras são de fato parte de um único

grande texto”39 (WALKER, 2002, p. 417), que seria toda sua obra, como vemos em um

hipertexto. Dessa forma, além de Peter Stillman, outros personagens se repetem. Quinn é o

nome do escritor que vira detetive e se perde em “Cidade de vidro”, mas também é o suposto

detetive – que não aparece na história – que se perde na busca pelo paradeiro de Fanshawe em

“O quarto fechado”, como se o mesmo personagem deixasse suas pegadas numa outra

história.

Quanto ao aspecto do motivo da investigação, os detetives de A Trilogia de Nova York

não encerram uma busca concreta até chegar a uma solução final, que coincide no romance

detetivesco tradicional com a solução do crime. Como Alison Russell sugere, mais do que

localizar uma pessoa desaparecida ou resolver um mistério, o detetive de Auster “se torna um

38 AUSTER, op. cit. p. 5. 39 “(…) a pattern that quietly suggests that his disparate works are in fact of one grand text”.

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40

peregrino na busca por correspondência entre os significantes e os significados” enquanto

empreende uma busca pela sua própria identidade40 (RUSSELL, 1990, p. 72).

Desta forma, o detetive de Auster estaria engajado numa busca existencial e não-

convencional, uma procura por si próprio como indivíduo, assim como recai em uma

profunda investigação sobre a natureza e o significado (mais apropriadamente, o “não-

significado”) da língua e das palavras.

5.2 A BUSCA E A NÃO-SOLUÇÃO

John G. Cawelti afirma que “os princípios fundamentais da história de mistério

consistem na investigação e descoberta de segredos escondidos, de forma que a descoberta

leve a algum benefício para o protagonista com o qual o leitor se identifica”41. Segundo ele,

“nas fórmulas de mistério, o problema sempre possui uma solução racional e desejável, pois

nisso consiste a fantasia moral expressa no arquétipo formulaico”42 (CAWELTI, 1976, p. 42-

43).

Cawelti nos chama, ainda, a atenção para o fato de que a busca pelos segredos

escondidos, perseguida como um fim em si mesma, é primordialmente uma atividade

intelectual e racional. Nosso fascínio por histórias de mistério seria, dessa forma, fruto do

isolamento e omissão das pistas, das deduções que delas partem e da tentativa de orientá-las –

segundo um esquema racional completo de causa e efeito – de modo a desvendar ou prever

uma possível solução final.

40 “Auster becomes a pilgrim searching for correspondence between signifiers and signifieds” 41 “The fundamental principle of the mystery story is the investigation and discovery of hidden secrets, the discovery usually leading to some benefit for the character(s) with whom the reader identifies. 42 “In mystery formulas, the problem always has a desirable and rational solution, for this is the underlying moral fantasy expressed in this formulaic archetype”.

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41

No entanto, ao contrário do romance de detetives tradicional, em que a busca ou

investigação é um dos pilares que sustentam a trama policial até o seu desfecho, que se deseja

imprevisível e misterioso, a busca em A Trilogia de Nova York só se realiza como tal se

consideramos a obra como exemplo do que Michael Holquist denomina de História de

Detetives Metafísica (Metaphysical Detective Story). Segundo William V. Spanos43, tal

história seria

um texto que parodia ou subverte as convenções da história de detetives tradicional – tal como a solução final e o papel do detetive como substituto do leitor – com a intenção, ou pelo menos o efeito, de fazer questionamentos dobre os mistérios da existência e do conhecimento que transcendem as maquinações simples da narrativa de mistério44. (WALKER, 2002, p. 418)

De acordo com o crítico, essa categoria literária encerraria obras tais como Fogo

Pálido de Vladimir Nabokov, as narrativas labirínticas de Jorge Luis Borges e de autores do

nouveau roman45, como Allan Robbe-Grillet, que têm em comum a transgressão do gênero

policial. Segundo Cawelti, tais autores – ao lado dos quais Auster certamente pode figurar

como autor pós-moderno, transgressor de gêneros e fórmulas literárias – constituem uma

quebra das expectativas estabelecidas pelas fórmulas e clichês do gênero policial.

Outro aspecto marcante na Trilogia que prova que essa busca não se dá de forma

convencional e, portanto, estabelece uma quebra com a história detetivesca tradicional são os

finais deixados em aberto. Conforme Alison Russell sugere, como gênero “a história

detetivesca é centrada no final da história (end-dominated) e sua popularidade prova a

43 Ambos, Holquist e Spanos, teorizam sobre a nova história de detetives metafísica e são citados por WALKER em seu ensaio “Criminality and self-discipline” (ver Referências Bibliográficas). 44 “a text which parodies or subverts traditional detective-story conventions – such as narrative closure and the detective’s role as surrogate reader – with the intention, or at least the effect, of asking questions about mysteries of being and knowledge which transcend the mere machinations of the mystery plot”. 45 Como exemplos de autores do nouveau roman, Cawelti cita Allan Robbe-Grillet e Thomas Pynchon.

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42

obsessão do mundo ocidental por conclusões ou desfechos”46 (RUSSELL, 1990, p. 73).

Citado por Cawelti, Michael Holquist também sugere que “a nova história detetivesca

metafísica (...) é não-teleológica, não se compromete a ter um final esclarecedor em que todas

as questões são respondidas” (In: CAWELTI, 1976, p. 153).

O final da história de mistério, cuja expectativa é ansiosamente alimentada pelo leitor

desde as primeiras linhas, coincide com a descoberta da solução, encerrando o final da busca.

No entanto, na Trilogia a busca não leva a nenhuma solução, pelo menos não no seu sentido

prático, isto é, na revelação final de um mistério mantido oculto do leitor por toda a narrativa.

Portanto, é ao mesmo tempo reconfortante e perturbadora a explicação com que o

narrador / autor de “O quarto fechado” interrompe a narrativa, estabelecendo um diálogo com

o leitor, em um dos capítulos finais:

O final, porém, está bem claro para mim. Não o esqueci e considero uma sorte ter conservado isso na cabeça. A história toda se resume ao que aconteceu no final e, sem esse fim dentro de mim agora, eu nem teria começado este livro. (...) Não pretendo ter solucionado nenhum problema. (AUSTER, 2000, ps. 316-317)

Se “a história toda se resume ao que aconteceu no final”, como ele o próprio narrador-

autor diz, a importância da busca como solução definitiva é posta em segundo plano. Dessa

forma, a busca material serviria apenas como um pretexto para fabricar o labirinto de

mistérios que envolve as três histórias. É mais uma maneira de entreter o leitor envolvendo-o

em tramas muitas vezes inconsistentes que, como Alison Russell sugere, “ilustram a mutação

pós-modernista em suas paródias e subversões da história detetivesca dominada pelo desfecho

ou final” (RUSSELL, 1990, p. 73), propondo novos caminhos para o gênero.

46 “As a genre, the detective story is end-dominated, and its popularity attests to Western culture’s obsession with closure”.

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43

Michael Holquist ainda propõe que “ao invés de familiaridade, as histórias de detetive

metafísicas oferecem um estranhamento. Ao invés de uma certeza, elas trazem o incômodo”

(In: CAWELTI, 1976, p. 153).

Como o próprio Auster sugere na voz do narrador anônimo em “O quarto fechado”, “a

história não está nas palavras; está na luta” (AUSTER, 2000, p. 316-317). Se tomarmos o

significado de “luta” como “busca”, e se considerarmos que as palavras “em vez de

relatar(em) os fatos e os assentar(em) de forma palpável no mundo, os induzisse(m) a

desaparecer(em)”, como acontece com Blue e Quinn em suas anotações e associações inúteis

e sem sentido, a intenção de Auster era “tecer uma rede de mistérios e não de soluções”, como

ressalta Cawelti. “Não pretendo ter solucionado nenhum problema” (AUSTER, 2000, p. 317),

encerra o narrador no mesmo parágrafo.

Desta forma, esse incômodo poderia se dar para o leitor de três formas:

1) Na medida em que descobre que a busca tradicional não se realiza e não concorre

para a solução do mistério, frustrando as suas expectativas,

2) Na medida em que percebe que o objeto da busca não é o crime / o sujeito

desaparecido, e sim o próprio protagonista na busca por si próprio – decorrendo daí o

aspecto metafísico da obra;

3) Ao perceber que, como obra metaficcional que re-trabalha um gênero consagrado, o

enredo com suas buscas e tramas deixa de ser o assunto principal para servir de

pretexto a uma profunda discussão sobre o fazer literário e a transgressão de fórmula.

Da mesma forma, a Trilogia também seria uma reflexão sobre o poder da linguagem

em revelar ou omitir o mundo que o representa – como o prova as inúmeras anotações sem-

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sentido dos detetives no caderno vermelho – e sobre a questão da mudança de identidade

(detetives que se tornam escritores e vice-versa) e do problema do duplo em “Fantasmas” -

em que temos dois detetives idênticos que se auto-perseguem.

A hipótese da busca existencial passa a fazer sentido com o fracasso das investigações

no decorrer das histórias. É válido lembrar que os detetives nunca estão plenamente

conscientes dessa tarefa, e a busca por si mesmo se dá às vezes mais como uma fuga de suas

próprias vidas, ou como busca da própria identidade na pele de outro(s). Nem poderia ser

assim, pois caso o detetive estivesse consciente de buscar a si próprio, não haveria

transgressão nenhuma: não haveria nenhuma paródia ao procedimento da busca e, da mesma

forma, o leitor saberia desde o princípio que a obra não é um romance de detetives tradicional.

Argumentando sobre essa questão, em As estruturas narrativas o teórico búlgaro

Tzvetan Todorov discute a questão da transgressão dos gêneros literários e de como uma

verdadeira obra de literatura transgride um gênero, ao invés de se adaptar a ele – caso da

Trilogia, que transgride as regras do gênero policial. Segundo ele:

“a grande obra cria, de certo modo, um novo gênero, e ao mesmo tempo transgride as regras até então aceitas (...), estabelecendo a existência de dois gêneros, a realidade de duas normas: a do gênero que ele transgride, que dominava a literatura precedente; a do gênero que ele cria”. (1979, p. 94-95)

Por outro lado, considerando o romance policial como um gênero de massa, Todorov

diz que “quem quer ‘embelezar’ o romance policial faz ‘literatura’, não romance policial”

(1979, p. 95), sendo que o romance policial “não transgride, e sim se adapta às regras de um

gênero”.

Como prova de que o romance policial se daria pela repetição de uma fórmula, ele cita

a “arquitetura puramente geométrica” do romance de enigma. Nesta categoria, em que

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45

estariam enquadradas obras anteriores à era do romance negro como os livros de Agatha

Christie, a narrativa sempre se apresenta dividida em duas: a história do crime e a história do

inquérito ou da busca.

Além disso, no romance policial sempre haverá a necessidade de que “algo seja

investigado”. Como diz S. S. Van Dine em suas “Vinte regras para escrever romances

policiais”, “A novela de detetives precisa ter um detetive, e esse não o será, a menos que

detecte alguma coisa”, concluindo que “se o detetive não chegar às suas conclusões mediante

análise das pistas, não terá solucionado o problema” (s/d, p. 117). Assim, os detetives da

Trilogia, apesar de detectarem certos problemas, não chegam a uma solução final deles.

Em A Trilogia de Nova York, a infinidade caótica de labirintos oferecidos pelo que o

narrador chama de “atoleiro de possibilidades” e o fracasso da linguagem em provar a

verdade levando às soluções – como as anotações esparsas sem-sentido coletadas no caderno

vermelho – acarretam numa queda vertiginosa de Quinn, Blue e do amigo anônimo de

Fanshawe. Tal queda se inicia com a busca concreta da verdade dos fatos e do paradeiro dos

“criminosos em potencial”. A princípio, há apenas a suspeita, mas não sabemos da ocorrência

de nenhum crime de fato – e, conseqüentemente, de nenhuma vítima. No final das histórias, o

fracasso dos detetives nos leva a crer que a busca não pode ser justificada nem através da

solução de um crime.

Voltando a Cawelti, autores transgressores do gênero policial como Nabokov, Robbe-

Grillet e Borges, assim como Paul Auster, possuem a qualidade de “ter um senso profundo do

caos no mundo”47 (CAWELTI, 1976, p. 137). Joseph. S. Walker também diz que “sob a

superfície geralmente caótica e bem-humorada, há um senso profundo de significado na

ficção de Paul Auster relacionada primariamente com a posição do indivíduo na sociedade 47 “Like Poe, Robbe-Grillet and Borges have a deep sense of the chaos of the world”.

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46

contemporânea – e mais especificamente, de que forma esse indivíduo pode ou não libertar a

si próprio”48 (WALKER, 2002, p. 389).

Por outro lado, clássicos policiais como os contos de raciocínio de Poe “A carta

roubada” e “Os crimes da rua Morgue”, já mencionados, encerram o que os estudiosos pós-

modernistas chamam de ordem silogística, em que a mente pode resolver qualquer caso

através da simples elucidação racional e esquemática dos fatos – isto é, colocando ordem no

caos natural do mundo. Mais uma vez, esse caos do mundo representado pelas inúmeras

possibilidades, associações e especulações dos detetives na Trilogia estabelece o fracasso da

busca material.

Em “Cidade de vidro”, o paradoxo entre sucesso e fracasso vivido por Quinn no início

da história nos leva a crer que não é por acaso que Quinn aceita encarar o desafio de se passar

por outra pessoa – o misterioso detetive Paul Auster.

Autor best-seller de romances policiais de sucesso e homem solitário cuja esposa e

filho haviam falecido, Quinn leva uma vida que parece não fazer nenhum sentido. Como

forma de se ausentar de sua própria imagem e personalidade (buscando uma fuga de si

próprio) cria o detetive durão Max Work, no melhor estilo dos detetives hard-boiled como

Sam Spade de O falcão maltês, de Dashiell Hammett. Além disso, publica suas obras sob o

pseudônimo de William Wilson, uma paródia ao personagem duplo de Poe, a fim de que

ninguém o reconheça e venha retirá-lo da solidão de seu auto-exílio.

A ligação de um desconhecido – a esposa de Peter Stillman Jr. - no meio da noite

aparece como uma possibilidade de fingir ser outro – fantasia que até então cultivava apenas

48 “Beneath the often playful and chaotic surface, there is a sense of deep meaning in the fiction of Paul Auster that concerns itself primarily with the position of the individual in contemporary society – and more specifically, with how (or whether) that individual can free him – or herself”.

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através de seus desgastados romances policiais. “Não era exatamente que Quinn desejasse ser

Work, nem mesmo ser igual a ele, mas o reconfortava fingir que era Work enquanto escrevia

seus livros” (AUSTER, 2000, p. 15). Dessa forma, Quinn sente prazer ao assumir a

personalidade de um desconhecido, cuja existência real irá se manter desconhecida do leitor

até o final:

Embora possuísse ainda o mesmo corpo de antes, a mesma mente, os mesmos pensamentos, tinha a impressão de que, de algum modo, ele fora retirado de dentro de si mesmo, como se não tivesse mais de andar para lá e para cá com o fardo da própria consciência. Graças a um mero truque do intelecto, um pequeno e hábil deslocamento de nomes, sentia-se incomparavelmente mais leve e mais livre. (AUSTER, 2000, p. 60-61)

A princípio, Quinn se diverte com esse truque de ilusão de forma ingênua e

descompromissada, pois que “na verdade não se perdera; estava apenas fingindo, e poderia

voltar a ser Quinn quando bem entendesse”. No entanto, o disfarce do detetive Paul Auster,

que num jogo cômico entre o autor da obra e o personagem do detetive “não passava de um

nome para ele, uma casca sem conteúdo (...), um homem sem interior nenhum, sem

pensamentos” (AUSTER, 2000, p. 73) se mostrará um caminho sem retorno.

Três fatos principais contribuem para a queda de Quinn em sua busca, a citar

cronologicamente:

a) a descoberta de que o Paul Auster-detetive pelo qual ele se passava até então não existe –

ou se existe, Quinn desconhece o seu paradeiro;

b) a descoberta do suicídio de Stillman-pai através de uma ligação do Paul Auster-escritor –

que lhe revela que o cheque de Virginia Stillman como pagamento aos seus serviços de

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48

detetive não tinha fundos – ao mesmo tempo que continua sem saber o paradeiro e mesmo a

própria existência do outro Stillman que se perde na estação de trem (capítulo 3);

c) o desaparecimento de Stillman Jr. e sua esposa após verificar que não há mais ninguém

dentro do apartamento, encerrando o período de vigília diária e ininterrupta em frente ao

prédio deles, à espera da chegada inesperada de Stillman-pai.

Neste último instante, temos a prova de que Quinn vai se alienando de si próprio.

Abandona-se ao caos infinito das ruas de Nova York, transmutando-se na figura de um

mendigo que passa o dia todo abrigado num jardim observando a entrada do prédio de

Stillman Jr. do outro lado da rua. Somente a loucura pode explicar tais atitudes de Quinn

nestas circunstâncias, agora que nem ser o detetive Auster, nem ser Quinn parece fazer algum

sentido e em que o caso parece ter-se encerrado para ele.

Quinn agora não estava em parte alguma. Não tinha nada, não sabia nada e sabia que não sabia nada. Não só fora mandado de volta para o início de tudo, na verdade ele agora estava antes do início, e tão longe do início que a situação era pior do que qualquer final que ele pudesse imaginar. (AUSTER, 2000, p. 117)

Na esperança de voltar a ser o velho Daniel Quinn de antes do caso Stillman, retorna a

seu apartamento, mas para sua grande decepção descobre que, depois de semanas ou meses de

ausência nas ruas, há uma outra pessoa morando lá. “Havia chegado ao final de si mesmo.

Podia senti-lo agora, como se uma grande verdade tivesse afinal nascido dentro dele”

(AUSTER, 2000, p. 139).

O final da busca coincide, ao mesmo tempo, com o final do caderno vermelho, que

registra os últimos relatos de Quinn.

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Mesmo o caderno vermelho, que até agora proporcionou um relato minucioso das experiências de Quinn, é suspeito. Não podemos dizer com segurança o que aconteceu com Quinn durante o período, pois é nesse ponto da história que ele começa a perder o domínio de si mesmo. (AUSTER, 2000, p. 127)

O caderno vermelho, que representa apenas “metade da história onde foi registrada

toda a história da busca (uma espécie de livro dentro do livro), também encerra o final da

história, que a partir de então “se torna mais obscura”. A última frase do caderno vermelho

diz: “O que vai acontecer quando não houver mais páginas no caderno vermelho?”; e mais à

frente: “As informações acabam aí e os fatos que seguem essa última frase nunca serão

conhecidos” (AUSTER, 2000, p. 146).

Conseqüentemente, é o fim de nosso herói Quinn, que apesar de não morrer,

desaparece da história sem deixar vestígios a não ser o caderno vermelho. Em mais um jogo

de metaficção entre narrador e personagens, Paul Auster estende a Quinn – e também ao

narrador, que ganha vida própria no final, uma existência extra-ficcional, transgredindo as

páginas do livro. Portanto, ao mesmo tempo que a história não tem solução, o destino dos

protagonistas-detetives é deixado em aberto.

Em “Fantasmas”, que como “Cidade de vidro” faz uma paródia do romance noir e se

passa na década de 40, o fracasso da busca do detetive Blue também decorre em seu

desaparecimento no final da história. Como mencionado no capítulo anterior, Blue é um

detetive profissional cuja missão, designada por White, é perseguir Black e anotar tudo o que

ele faz, a todo momento. As anotações de Blue não o levam a lugar algum, pois Black, além

de não fazer nada de excepcional, parece repetir as mesmas ações de Blue. É de forma irônica

que o narrador prenuncia, no início da história, o fracasso das investigações:

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É o dia 3 de fevereiro de 1947. Blue, é claro, nem imagina que o caso vai se prolongar durante anos. Mas o presente não é menos obscuro do que o passado e o seu mistério é equivalente a qualquer coisa que o futuro possa abrigar. Assim o mundo caminha: um passo de cada vez, uma palavra e depois a palavra seguinte. Há determinadas coisas que Blue, nessa altura, não pode saber de maneira alguma. Pois o conhecimento vem devagar e, quando vem, muitas vezes é a um grande custo pessoal. (AUSTER, 2000, p. 152)

O fracasso da busca material, para Blue, se dá a partir do momento em que, na

obrigação de observar Black ininterruptamente e registrar suas ações, ele começa a “olhar

para dentro de si mesmo”, perdendo-se em si próprio. Nas palavras do narrador,

Agora, de uma hora para outra, como se o mundo tivesse fugido dele, sem nada para ver senão uma sombra chamada Black, Blue se descobre pensando em coisas que nunca lhe aconteceram antes , e isso também começa a inquietá-lo. (AUSTER, 2000, p. 167)

Com a monotonia do caso e a solidão do seu quarto, Blue começa a repensar a sua

vida. Se por um lado a investigação vai se tornando cada vez mas obscura, como prova o

frustrante relatório enviado à White, por outro Blue começa a olhar para dentro de si mesmo.

Por exemplo, começa a sentir saudades da mulher que ama, cujo distanciamento se prolonga

por meses graças ao caso Black; relembra o passado com seu pai e outros casos do passado

que, como a sua investigação, permaneceram sem solução.

Sujeito altamente racional e que não se dá a especulações, Blue se pergunta “por que

se tornou tão sentimental, quando ao longo de tantos anos (esses pensamentos) nunca lhe

ocorreram” (AUSTER, 2000, p. 168). Como já foi dito, Blue é um detetive profissional de

modos práticos e avesso à reflexão e aos métodos dedutivos – “não sou do tipo Sherlock

Holmes”, ele afirma. Blue, em inglês, pode significar triste ou angustiado, e é assim que ele

se sente ao olhar para si mesmo, pensando na própria vida.

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Agora, de uma hora para outra, como se o mundo tivesse fugido dele, sem nada para ver senão uma sombra chamada Black, Blue se descobre pensando em coisas que nunca lhe aconteceram antes , e isso também começa a inquietá-lo. (AUSTER, 2000, p. 167)

Blue é um leitor fiel de True Detective, uma revista de histórias de investigações

baseada em casos reais. Nesta revista, Blue se depara com um caso de um garoto de Filadélfia

desaparecido há anos, em que um investigador de polícia se angustia até a exaustão – até anos

depois de se aposentar da polícia – em busca da solução do crime ou do paradeiro do garoto.

Esse caso reflete de forma irônica a trajetória fracassada de Blue, que se angustia numa busca

sem motivo aparente e que permanecerá sem solução.

À medida que observa Black, Blue sente que está olhando para si próprio e descobre a

sua própria identidade. Passadas semanas a fio, a convivência com Black, sobre o qual nada

descobre, e a relação especular que se desenvolve entre ambos, de observador e observado,

provocam em Blue uma identificação com Black. Mais à frente, Blue especula que Black é,

como ele, um outro detetive que o persegue, sendo ele então o sujeito perseguido.

Há momentos em que Blue sente uma harmonia tão completa com Black, em uma consonância tão natural com o outro homem, que para prever o que Black fará (...), basta apenas olhar para dentro de si mesmo. (AUSTER, 2000, p. 173)

Dessa forma, Black se torna, para Blue, sinônimo de liberdade. Nessas horas em que

se sente mais próximo de Black, Blue começa a ter algo semelhante a uma vida independente.

Vai ao cinema, passeia horas a fio pela cidade longe do apartamento onde é obrigado a

permanecer e percebe que, em nenhum momento, lhe vem à mente a figura de Black. “Quanto

mais ligado se sente a Black, menos acha necessário pensar sobre ele” (AUSTER, 2000, p.

173).

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Olhar para dentro de si mesmo revela-se um paradoxo, na medida em que o caso

permanece um mistério e Blue contenta-se com a própria ignorância sobre a personalidade de

Black:

Na verdade, quando observa mais fundo dentro de si mesmo, compreende que no geral se sente bastante revigorado por isso. Existe algo benigno em se encontrar na ignorância, descobre ele, algo emocionante em não saber o que vai acontecer em seguida. (AUSTER, 2000, p. 169)

No decorrer da investigação, ao desconfiar das intenções e da própria existência de

White – já que o caso não sai do lugar – Blue persegue um homem mascarado, e descobre que

ele é o responsável por depositar o cheque de pagamento de White em sua caixa de correio

todo mês. Blue começa, então, a especular quem representaria de fato uma ameaça para ele.

Primeiramente, suspeita que na verdade é ele quem está sendo perseguido, e que White é o

homem que se esconde por trás da máscara para vigiá-lo ocasionalmente. Além disso,

imagina uma conspiração contra ele armada entre Black e White, chegando à conclusão que,

se for realmente vítima de uma conspiração, não vem sofrendo uma grande punição até então.

Afinal, sente-se apenas “como um homem condenado a ficar em um quarto lendo um livro

pelo resto da vida, (...) a estar vivo apenas pela metade, ver o mundo apenas através das

palavras, viver apenas por intermédio da vida dos outros” (AUSTER, 2000, p. 186).

É bastante interessante a relação da experiência de Blue com a de Thoreau descrita em

Walden. Para passar as horas de tédio, Blue compra uma edição de Walden e, no decorrer da

leitura, “tem a sensação de que está entrando em um mundo alienígena”, entediando-se

facilmente com as suas longas descrições. O livro, que está além da compreensão de Blue,

leitor assíduo de True Detective e da chamada imprensa marrom, narra a experiência de auto-

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exílio e solidão em que Thoreau, como autobiógrafo, descreve seus meses longe da sociedade

refugiado numa cabana no campo.

Apesar de Blue ser não só um leitor alienado, já que não entende a história de

Thoreau, como também um indivíduo alheio a si próprio, pois “não tem o hábito de olhar para

si mesmo”, a sua experiência de isolamento, que ele não procurou de vontade própria,

assemelha-se de certa forma aos celebrados relatos de Walden. A narrativa da sua busca

reflete aquilo que considera o maior defeito na narrativa de Thoreau: “Não tem nenhuma

história, nenhuma intriga, nenhuma ação – nada senão um homem sozinho dentro de um

quarto escrevendo um livro” (AUSTER, 2000, p. 187). Este livro, o caderno vermelho – que,

digamos, relata a história da sua própria busca – é em sua essência um grande vazio, um nada,

pois não revela nada nem sobre Black e nem sobre o caso, a não ser sobre o próprio Blue,

condenado a olhar para si mesmo.

Retomando a discussão de “O quarto fechado”, é importante enfatizar que o caráter

existencial da busca é mais acentuado do que nas outras duas narrativas. Em “Cidade de

vidro” e “Fantasmas”, a figura de um detetive real, profissionalmente falando, ainda funciona

como uma evidência que o leitor tem de que está lendo um verdadeiro romance policial, em

que o detetive tem a missão de perseguir o criminoso.

Não tendo maiores pistas e testemunhas – com exceção da ex-esposa e da mãe de

Fanshawe, que estabelecem uma ponte entre o passado e o presente – distanciado e esquecido

do amigo há anos, são antes de tudo as lembranças que guarda de Fanshawe e sua antiga

amizade que orientam a sua investigação. Ao mergulhar nas lembranças do velho amigo de

infância e adolescência, o narrador mergulha em seu próprio passado.

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A vida dele havia cessado no instante em que tomamos caminhos diferentes e agora, para mim, Fanshawe pertencia ao passado, não ao presente. Era um fantasma que eu carregava comigo para um lado e outro, um mito pré-histórico, algo que já não era mais real. (AUSTER, 2000, p. 218)

Ao relembrar os fatos da infância, o narrador relembra o quão intensamente desejava,

no passado, ter sido o próprio Fanshawe. Seu amigo era o espelho, o molde a ser seguido em

todas as situações. “Era ele quem estava sempre comigo, quem eu via sempre que olhava à

minha volta (...) procurava imitá-lo nas ações mais insignificantes e mesquinhas possíveis”

(AUSTER, 2000, p. 217).

A sua admiração irá se refletir, então, no momento presente. Após ler a obra de

Fanshawe, o narrador, cuja profissão é escrever resenhas críticas para jornais, sente uma

profunda inveja do talento literário do ex-amigo:

Esse mundo me encarava como um jovem brilhante, um novo crítico em ascensão mas, dentro de mim mesmo, eu me sentia velho, já esgotado. O que eu tinha feito até então constituía uma mera fração de coisa nenhuma. Era pura poeira, e o vento mais leve levaria tudo embora. (AUSTER, 2000, p. 226)

Num surto de inveja misturada com uma velha rivalidade, confessa:

Se eu não desejava que a obra de Fanshawe fosse ruim, tampouco desejava que fosse boa. (...) Antigas rivalidades, sem dúvida, tinham algo a ver com o caso, um desejo de não ser humilhado pelo talento de Fanshawe – mas existia também a sensação de estar sendo empurrado para uma armadilha. (AUSTER, 2000, p. 242)

Sob o encargo, a mando do próprio Fanshawe, de revisar e publicar a sua obra –

motivo que desencadeia a busca pelo velho amigo esquecido – o narrador passa a receber

cartas anônimas cuja procedência indicam que Fanshawe está vivo. Porém, recusa-se

veementemente a se mostrar em público, ameaçando matá-lo caso ele insista em procurá-lo.

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Como um enigma a ser desvendado, Fanshawe escreve: “você sempre será o que é agora.

Quanto a mim, é uma outra história” (AUSTER, 2000, p. 259).

Após o sucesso imediato alcançado pela publicação de suas obras póstumas, o editor

das obras de Fanshawe propõe que seu amigo escreva uma biografia sobre ele. Como já havia

demonstrado com a publicação de O inventor da solidão, obra de cunho autobiográfico, Paul

Auster reflete aqui na voz do narrador anônimo de “O quarto fechado” sobre o ato de se

escrever sobre a vida de alguém:

A vida de uma pessoa é algo inexplicável, eu dizia a mim mesmo, o tempo todo. Não importa quantos fatos sejam relatados, quantos detalhes sejam oferecidos, o essencial não admite ser contado. Dizer que fulano nasceu em tal lugar e foi para tal cidade, que fez isso e aquilo, que se casou com fulana e teve tantos filhos, que ele viveu, morreu, deixou tais e tais livros, ou essa batalha, ou aquela ponte – nada disso nos diz muita coisa. (AUSTER, 2000, p. 268)

No mesmo parágrafo, reflete também sobre o caos e a incoerência que é escrever sobre

uma vida: “à medida que nossas vidas se desenrolam, tornamo-nos cada vez mais opacos para

nós mesmos, cada vez mais conscientes de nossa própria incoerência”.

Para escrever a farsa da biografia de Fanshawe, o narrador recorre à experiência que

teve trabalhando como recenseador. Como muitas pessoas se recusavam a dar entrevistas, sua

tarefa era preencher histórias verossímeis sobre essas pessoas, inventando-as. “No passado, eu

dera à luz milhares de almas imaginárias. Agora, oito anos depois, eu ia pegar um homem

vivo e colocá-lo em seu túmulo, fazendo-o em pedaços” (AUSTER, 2000, ps. 269-271).

Dada a inveja pelo sucesso literário de Fanshawe, seu amigo passa a publicar obras

suas usando o nome de Fanshawe como pseudônimo:

(...) o que significa um autor pôr seu nome em um livro; por que alguns escritores preferem esconder-se atrás de um pseudônimo; será que um escritor, enfim, possui uma vida real?

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Perturbou-me a idéia de que escrever sob um outro nome pudesse ser algo de que eu gostasse – inventar uma identidade secreta para mim mesmo – e me perguntei por que achava essa idéia tão atraente. (AUSTER, 2000, p. 257)

Como já comentado, ao investigar o paradeiro e penetrar, inevitavelmente, nas suas

memórias de infãncia e adolescência, o narrador, agora também um biógrafo, reconta a vida

de Fanshawe. Baseia-se em suas próprias experiências e nos relatos da mãe e da ex-esposa.

Além de uma busca pela própria identidade, a busca se dá como um “resgate” do amigo

desaparecido através de sua biografia – que é ao mesmo tempo real e ficcional, invenção e

realidade – como na própria autobiografia de Paul Auster O inventor da solidão.

Ao mesmo tempo, escreve a história de sua própria vida, buscando a si mesmo no

passado. Fanshawe é o maior ponto de referência na vida do narrador: a criança que gostaria

de ter sido, o escritor que inveja e que finalmente se casa com a sua também invejada ex-

esposa Sophie, adotando seu filho. Assume, aos poucos, a identidade do amigo desaparecido.

Como ele prenuncia na abertura da história, “parece-me agora que Fanshawe sempre existiu.

Ele é o ponto onde tudo começa para mim e, sem ele, dificilmente eu saberia quem sou”.

(AUSTER, 2000, p. 217)

Por outro lado, é interessante notar como a busca por Fanshawe, que

conseqüentemente é uma busca por si próprio, também pode se dar enquanto fuga. Na medida

que essa descoberta se dá como uma espécie de epifania, o narrador descobre-se a si mesmo

distanciando-se de Fanshawe à medida que mais fundo penetra em sua vida.

Após tantos meses tentando encontrá-lo, agora tinha a sensação de que era eu quem estava sendo procurado. Ao invés de procurar Fanshawe, na verdade eu tinha fugido dele. O trabalho que eu me comprometera a fazer – o falso livro, os intermináveis rodeios – não passava de uma tentativa de me esquivar de Fanshawe, uma escaramuça para mantê-lo o mais distante possível de mim. (AUSTER, 2000, p. 315)

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Como as cartas de Fanshawe se repetem, a busca pelo amigo passa do plano

sentimental e metafísico ao plano do concreto. É quando passa a investigar seriamente o seu

paradeiro, pressentindo que Fanshawe “deseja ser encontrado”. “Fanshawe estava exatamente

onde eu estava, e estivera ali desde o início. Desde o instante em que recebera sua carta, eu

vinha lutando para imaginá-lo, para vê-lo tal como devia ser – mas tudo o que minha mente

conseguia evocar era um vazio (...), a imagem de um quarto”.

“O quarto fechado” faz uso de mais um daqueles elementos clichês típicos da fórmula

do romance detetivesco tradicional, especialmente do que Tzvetan Todorov e Raymond

Chandler chamam de “romance de enigma”. Recorrente em tais obras, o quarto fechado é o

local onde se dá a cena do crime, onde jaz o corpo descoberto da vítima sem que haja tempo

de receber auxílio. A porta é finalmente arrombada ou aberta à força, sendo que está

geralmente trancada e a janela do quarto encontra-se por vezes aberta, deixando pistas e

levantando suspeitas.

Como lugar-comum do romance de enigma, o quarto fechado assume na história de

Auster um papel mais simbólico, pois o narrador-detetive não entra no espaço do quarto e

nenhum crime ocorre dentro dele. De certa forma, Fanshawe seria o “cadáver em potencial”

que jaz dentro do quarto, já que afinal ele é dado como morto por todos, exceto pelo amigo

que há semanas recebe suas cartas, na esperança de um possível encontro. Ao mesmo tempo,

é um suicídio, uma “morte voluntária”. Sem uma justificativa ou motivo aparente, Fanshawe

desaparece subitamente, deixando para trás sua família e uma obra literária promissora.

Na história, o quarto aparece uma única vez. Após meses e meses de investigação à

procura do velho amigo, o narrador-detetive – que, como já vimos, não é um profissional da

investigação de fato – descobre o paradeiro daquele que acredita ser Fanshawe em carne e

osso. Separados pela porta do quarto fechado que Fanshawe se recusa a abrir, ambos travam

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uma violenta e emocionada discussão. Além do encontro mostrar-se frustrante, é também uma

despedida definitiva. Nada é revelado, os motivos de seu desaparecimento não são explicados,

e Fanshawe silencia da mesma forma que silenciou durante todos os seus anos de ausência.

Dessa forma, Auster consegue despertar o leitor em suas três histórias para a busca

existencial do ser humano, desviando-as do propósito da busca concreta através da

investigação e de uma solução final, aspectos que caracterizam o romance policial tradicional.

Portanto, citando Cawelti, podemos dizer que Auster é mais um daqueles autores pós-

modernos que “usam a fórmula detetivesca tradicional como um espelho num quarto de

espelhos, a fim de refletir com mais precisão a ambigüidade, o irracional e os mistérios do

mundo”49 (1976, p. 137). Em suas obras, “os mistérios são criados ao invés de serem

resolvidos50”, encerrando uma transcendência ou uma ruptura com a fórmula que parodiam

(1976, p. 137).

Como último comentário, vale a pena falarmos sobre a imagem do quarto

primeiramente nas outras duas histórias da Trilogia, “Cidade de vidro” e “Fantasmas”, para

em seguida discorrer sobre a sua noção e recorrência em toda a obra de Auster.

Em “Cidade de vidro”, Virginia, a esposa de Peter Stillman Jr., confessa a Quinn,

antes de ele iniciar sua busca, que seu marido “teve uma infância passada no escuro, isolado

do mundo, sem nenhum contato humano a não ser uma surra de vez em quando” (AUSTER,

2000, p. 35). Stillman Jr. havia sido trancafiado em um quarto escuro por nove anos, como

cobaia das experiências de seu pai, que como professor de lingüística, buscava provar a

existência de uma língua natural comum a todos os homens. Já deduzindo no papel do

49 “use the classical detective formula like a distorting fun-house mirror to reflect more sharply the ambiguity, irrationality , and mystery of the world”. 50 “mysteries are created rather than solved in their works”.

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detetive Paul Auster, Quinn justifica com esse acontecimento a fala incoerente e caótica de

Stillman Jr., fato comentado no capítulo anterior. Segundo Virginia, cujas palavras são

ouvidas com bastante desconfiança por Quinn, um incêndio teria colocado fim aos

manuscritos que registravam a experiência de Stillman e, conseqüentemente, ao cativeiro do

filho, já que Stillman-pai desiste da sua empreitada.

No final de “Cidade de vidro”, Quinn se refugia num quarto na casa, agora

abandonada, de Peter e Virginia, após o fracasso na sua busca. A volta ao quarto encerra um

esquema cíclico de fracasso, já que Quinn, mais uma vez solitário volta ao ponto de partida

onde tudo começou. A sua retirada do quarto e as últimas anotações no caderno vermelho

marcam o seu desaparecimento da história.

Em “Fantasmas”, a relação especular entre ambos os detetives se dá, dentre outros

elementos, através do quarto. Blue observa Black de um quarto de apartamento, sendo que o

próprio Black também permanece em um quarto do outro lado da rua a maior parte do tempo.

Queixando-se do tédio que é permanecer sozinho em um quarto observando uma pessoa “que

não faz nada”, Blue confessa que sente-se apenas “como um homem condenado a ficar em um

quarto lendo um livro pelo resto da vida” (AUSTER, 2000, p. 186). Da mesma forma, Blue

compara a sua rotina no quarto com aquela relatada por Thoreau em Walden, em que como já

citado, não acontece nada “senão um homem sozinho dentro de um quarto escrevendo um

livro” (AUSTER, 2000, p. 187).

Quanto a outras de suas obras, em O inventor da solidão o quarto é visto como o locus

da criação artística, o local de origem da obra literária. É dentro de um quarto que o

protagonista A., que carrega fortes traços autobiográficos de Auster, escreve a contraditória

memória do pai recém-falecido, cujo distanciamento e anonimato em relação aos outros

dispensam qualquer ato biográfico. Morten Ting, citando o ensaio "How to get out of the

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room that is the book?", de Stephen Fredman, também descreve em seu projeto The Notion of

"The Room" in Paul Auster's The Invention of Solitude and City of Glass51 o “quarto que é o

livro”, o lugar onde “vida e obra se encontram em um encontro instável, criativo e às vezes

perigoso” (TING, 2006, p. 3).

A imagem de “um homem sentado sozinho em seu quarto, escrevendo” é recorrente e

marca o verdadeiro enredo dessa história que não tem história, em que um homem passa toda

a narrativa trancado em seu quarto, relatando e refletindo sobre suas memórias. Para A.,

o mundo exterior, o mundo tangível de substâncias e corpos, parece nada mais que uma emanação de sua mente. Ele se sente escorregar pelos fatos, pairando como um fantasma ao redor de sua própria presença, como se vivesse em algum lugar ao lado de si mesmo – não realmente ali, mas tampouco em qualquer outro lugar. Uma sensação de ter sido trancado, e ao mesmo tempo de ser capaz de atravessar paredes. (AUSTER, 1983, p. 78)

O quarto também é o lugar onde Blank passa seus dias de enfermo trancado em

Viagens no Scriptorium, última obra de Auster. Mais uma vez, memória e solidão se

interrelacionam tendo o quarto como pano de fundo. O quarto é o cárcere de Blank, que

desconhece por que e quem o deixou ali sozinho. Recuperando aos poucos a memória perdida

através da visita de velhos conhecidos ao quarto e da leitura de um livro que nunca acaba,

Blank relembra seu passado, projetando seus pensamentos para fora de sua prisão vigiada por

câmeras e por estranhos.

Assim, em Auster o quarto pode representar tanto o mundo solitário da escrita e do

escritor em seu processo de criação, quanto o próprio livro em si. Em seu ensaio "How to get

out of the room that is the book?52", Stephen Fredman descreve este quarto de Auster como “o

51 TING, Morten. The notion of "The room" in Paul Auster's The invention of solitude and City of glass: a thematic analysis. BA Project handed in May 15th, 2006, University of Copenhagen, Denmark. 52 FREDMAN, Stephen. "How to Get Out of the Room That is the Book?". Bloom’s Modern Critical Views: Paul Auster, 1996, p. 7. In: TING, Morten. The notion of "The room" in Paul Auster's The invention of

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lugar onde a vida e a escrita se encontram de uma forma instável, criativa e às vezes

perigosa”53 (TING, 2006, p. 3). De certa forma, as obras de Auster são explorações de como

esses mundos interagem entre si, sendo o quarto o locus genérico onde seus personagens se

refugiam ou são confinados, à parte do mundo exterior ou da sociedade.

solitude and City of glass: a thematic analysis. BA Project handed in May 15th, 2006, University of Copenhagen, Denmark. 53 "a place where life and writing meet in an unstable, creative and sometimes dangerous encounter".

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No bom livro de mistério, nada é desperdiçado, nenhuma frase que não seja significativa (...). O mundo do romance se torna vivo, ferve de possibilidade, com segredos e contradições. Uma vez que tudo o que é visto ou falado, mesmo a coisa mais ligeira e trivial, pode guardar alguma relação com o desfecho da história, nada deve ser negligenciado. Tudo se torna essência; o centro do livro se desloca a cada acontecimento que impele a história para a frente. (AUSTER, 2000, p. 14)

Na voz de seu alter ego, Quinn o elemento que “realmente” escreve o romance, Paul

Auster parece descrever o processo de detecção ideal que, paradoxalmente, o seu texto só faz

contradizer.

Pela leitura do texto, a ironia dessa passagem torna-se ainda mais evidente. Pergunta-

se: A Trilogia de Nova York é um bom livro de mistério em que nada é desperdiçado?

Aparentemente, sim. Nossa leitura de “Cidade de vidro”, “Fantasmas” e “O quarto fechado”

aponta vários exemplos da exaustiva preocupação dos investigadores em registrar os mínimos

detalhes de sua busca.

Porém, tais informações, coletadas no simbólico “caderno vermelho”, encerram o

fracasso das investigações no seu plano concreto. Auster se apropria do mecanismo do

romance policial não para escrever um “bom livro de mistério”, mas para explorar ao máximo

as preocupações inerentes ao ofício do escritor.

Da mesma forma, ao contrário do romance detetivesco tradicional, na Trilogia os

detetives de Auster não estão engajados em uma busca concreta, que inevitavelmente leva à

solução final da história com a punição (ou não) dos criminosos, e sim em uma busca

existencial. São personagens densos em seu aspecto humano, que se perdem em si mesmos e

desaparecem no final das narrativas com o fracasso de suas buscas, encerrando uma ironia em

relação ao papel do detetive como o herói que tudo soluciona.

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Dessa forma, a Trilogia nos leva a crer que não estamos lidando com uma obra

prescrita por uma fórmula ou um gênero – o que ocorre com o romance detetivesco

tradicional, como exemplo de literatura de massa citado por Todorov – e sim uma obra que,

ao retomar e parodiar os elementos centrais do romance policial, vem a transgredir o gênero,

propondo novas leituras.

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