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O BINÓCULO 13 1. O BINÓCULO Damião Siqueira Botelho era apenas um funcionário público lotado numa repartição do governo estadual, mais conhecida como SATG. Certa vez até lhe haviam explicado o que essa sigla sig- nificava, mas, para não magoar a verdade, nós somos obrigados a dizer que ele, com exceção do S que era fácil identificar como Serviço, já havia esquecido o nobre significado das outras iniciais da sigla. E o que ele fazia nessa repartição? O arquivista no arquivo morto. E como exercia essa importante incumbência? Da maneira mais simples: recebia, por exemplo, cinco processos para arquivar e mais um pedido do doutor Florentino, seu chefe imediato, para que lhe fosse remetido, digamos, o processo já arquivado sob o 154.379-12/09/87-4. E ele, ao receber os processos para arquivar e o pedido para desenterrar o processo já arquivado, colocava os primeiros numa caixinha de madeira, no canto esquerdo de sua mesa; e o pedido do processo que precisava encontrar, em outra caixinha, debaixo dos pedidos dos dias anteriores, pois era preciso respeitar as prioridades. E logo depois recomeçava a ler seu jornal, com dois pequenos microfones enfiados nos ouvidos, por meio dos quais ficava ouvindo “música para sonhar”.

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O BINÓCULO 13

1. O BINÓCULO

Damião Siqueira Botelho era apenas um funcionário público lotado numa repartição do governo estadual, mais conhecida como SATG. Certa vez até lhe haviam explicado o que essa sigla sig-nificava, mas, para não magoar a verdade, nós somos obrigados a dizer que ele, com exceção do S que era fácil identificar como Serviço, já havia esquecido o nobre significado das outras iniciais da sigla. E o que ele fazia nessa repartição? O arquivista no arquivo morto. E como exercia essa importante incumbência? Da maneira mais simples: recebia, por exemplo, cinco processos para arquivar e mais um pedido do doutor Florentino, seu chefe imediato, para que lhe fosse remetido, digamos, o processo já arquivado sob o nº 154.379-12/09/87-4. E ele, ao receber os processos para arquivar e o pedido para desenterrar o processo já arquivado, colocava os primeiros numa caixinha de madeira, no canto esquerdo de sua mesa; e o pedido do processo que precisava encontrar, em outra caixinha, debaixo dos pedidos dos dias anteriores, pois era preciso respeitar as prioridades. E logo depois recomeçava a ler seu jornal, com dois pequenos microfones enfiados nos ouvidos, por meio dos quais ficava ouvindo “música para sonhar”.

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14 CONTOS DO OUTRO LADO

Mais ou menos ao meio-dia em ponto, como dizia Cervantes, ele dobrava meticulosamente o jornal, do qual havia lido até os anúncios classificados e o colocava do outro lado da mesa, onde, à noite, Sabiá, o office-boy, o pegaria para levá-lo ao avô, com o qual morava; e depois saía de trás das quatro grandes estantes que, estrategicamente colocadas, formavam um corredor quase labirín-tico, protegendo, ele e sua mesa, de olhos indiscretos, formando uma espécie de sala mimetizada, invisível, que só os que conhe-ciam bem o grande salão meio escuro e silencioso conseguiam, após várias tentativas, encontrar.

Esgueirava-se pelo corredor andando ao longo da parede esquer-da, fazendo o possível para não ser notado. E finalmente, quando chegava ao portão que se abria sobre uma praça carente de verde, rica apenas de árvores raquíticas e carecas de folhas, logo virava à direita, dirigindo-se a um pequeno restaurante no qual a comida era vendida a quilo. Comia de cabeça baixa seus 350 gramas de comida. Nem um grama a mais e nem um grama a menos. Depois, como sabia que ainda era cedo para voltar à repartição, dava-se ao luxo de contornar a praça inteira, andando devagar, com passinhos curtos, pelas estreitas quatro calçadas de seu perímetro. E quando, finalmente, chegava à sua repartição e começava a ziguezaguear entre as quatro estantes, em direção à sua mesa, soltava um suspiro de alívio. Então girava a cadeira de braços, alinhando-a à mesa e à janela suja, esticava as pernas sobre uma velha cadeira, entrela-çava as mãos sobre a barriga e se entregava a um sono curto mas profundo. Hábito é hábito, como renunciar a ele? Se não dormisse durante aquela meia hora, seu Damião se sentiria imprestável, um trapo, alguém que, durante o resto do dia, não conseguiria traba-lhar direito!

Quando acordava, exatamente meia hora depois, recolocava os pés no chão com um longo bocejo; dava, pela janela, uma olhadela ao pátio interno da repartição, onde triunfava um mostrengo de metal pintado de vermelho que bufava a toda hora na tentativa de

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dar uma temperatura estável aos três andares do edifício; e final-mente, espreguiçando-se, levantava-se da cadeira de braços. Uma visita rápida ao banheiro, que o obrigava a sair do esconderijo das quatro estantes, era sua próxima tarefa. Uma tarefa que exigia ape-nas poucos minutos, depois dos quais ele voltava rapidamente a seu reino ignorado por todos, com exceção de Sabiá, o boy; de dona El-vira, sua assistente, que tinha medo de andar ao longo das escuras estantes do salão e que, por causa disso, havia entrado num acordo com seu Damião: dividir os lucros das malhas por ela tricotadas ao longo do expediente e vendidas às colegas do SATG; e de dona Jacinta, que às 15,30 horas em ponto despontava da quarta estante, com seu carrinho cujas rodas mal alinhadas rangiam que davam até arrepio, para lhe servir um cafezinho ruim e aguado.

Era nessa hora que ele começava a se dedicar a seu importante trabalho. Pegava da pilha que estava na caixinha à esquerda os cin-co processos para arquivar e os primeiros dois pedidos de processos já arquivados requeridos pelo doutor Florentino – nunca mais de dois, esse número era seu limite diário – e, lentamente, como se estivesse realizando uma missão de grande importância, deslizava pelos longos e poeirentos corredores para arquivar os cinco pro-cessos ora numa e ora noutra prateleira e, ao mesmo tempo, para procurar e deixar reviver os dois benditos fascículos requeridos, grampeados em irritantes capas cor de abóbora.

Aqui, nesse ponto, deixem que eu faça um parêntese. Ele é ne-cessário, porque acho que vale a pena contar como o seu Damião, ao longo de 18 anos de carreira no SATG, havia predisposto as coisas para que, na sua ausência, ninguém conseguisse encontrar nem o cheiro de um processo qualquer. Pois ele havia inventado uma “chave” para arquivá-los e encontrá-los onde não deveriam estar. Em vez de seguir a numeração, ou as datas, ou algo pare-cido, o que seria normal, ele havia arquivado e misturado os qua-se 200 mil processos que dormiam sob seus cuidados na grande sala escura de forma absolutamente indecifrável. O processo nº

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154.379-12/09/87-4, por exemplo, ele o havia arquivado juntamen-te com todos os outros processos que levavam, na data, o dia 12, pouco importando o mês e o ano; não só, mas depois do 12 do dia, entrava o último dígito, neste caso, o 4; a seguir, o número do mês, isto é, o 09; e depois o número invertido do processo, isto é, um 154.379 transformado em 973.451; e finalmente o 87, que era o número referente ao ano. Vocês entenderam? Eu não! Mas, como essa maneira de arquivar os processos não tem nenhuma influência em nossa história, vamos voltar ao seu Damião e à sua maneira de organizar o dia-a-dia que era obrigado a viver.

Quando voltava de um dos longos, escuros e inúmeros corredo-res cheios de pastas poeirentas cor de abóbora, colocava os fascí-culos exumados na caixinha que, sobre sua mesa, estava à direita. E depois se virava um pouquinho à esquerda e apertava na parede um botão branco, que ele mesmo fizera instalar, igualzinho aos que antigamente existiam na porta das casas, avisando Sabiá, cuja mesinha se colocava bem na entrada do enorme salão, que os dois processos do dia estavam prontos para ser levados imediatamente ao doutor Florentino.

E três ou quatro minutos depois Sabiá aparecia.— Boa tarde, tudo bem? – dizia a seu Damião, dirigindo-se

imediatamente para o canto direito da mesa, onde pegava os dois fascículos e o jornal, já lido. – Só isso?

— Só isso! – ele confirmava.E Sabiá, com os dois fascículos cor de abóbora debaixo do braço

esquerdo e o jornal já lido de seu Damião na mão direita, soltava um “até amanhã!” educado e desaparecia rapidamente, zigueza-gueando no meio das quatro estantes que levavam para o mundo.

Então, seu Damião recolocava os fones de ouvido e ficava ou-vindo “música para sonhar” até as 18 horas, quando, finalmente, podia-se levantar da mesa, passar pelas quatro estantes sem medo de ser visto, andar pelo longo corredor até com uma certa arro-gância e se dirigir, por uma escadinha escura de cimento, para o

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subsolo do edifício, onde, no estacionamento, o esperava seu carro, um belíssimo Palio cinza-escuro velho de oito anos, mas ainda novo de estofamento e motor.

Pois bem, esse era o dia de trabalho de seu Damião Siqueira Botelho. A partir desse momento, ele vivia sua vida particular, uma vida de não-trabalho muito mais cansativa e até preocupante. Primeiro, dirigir seu belo Palio cinza-escuro até sua casa, por um trânsito tão caótico e frenético que dava vontade de não ter carro e andar de metrô, se existisse uma linha de metrô para seu bairro. Depois, uma paradinha na padaria para comprar dois pãezinhos franceses; um pouco de presunto de frango, menos gorduroso que o presunto de verdade; e uma e outra coisinha para mastigar à noite, assistindo televisão. E finalmente, ao chegar em casa, um pequeno e bem arrumado apartamento, as tarefas inadiáveis do dia-a-dia: abrir as janelas para arejar o quarto e a salinha, preparar seu parco jantar, tomar banho, e cuidar das pequenas coisas que um homem que vive sozinho é obrigado a fazer na casa em que vive.

E por que vivia sozinho seu Damião Siqueira Botelho? Porque a esposa, dona Beatriz, um dia tinha ido embora de casa, deixan-do-lhe um bilhete em que estava escrita apenas uma frase: “Vá pra puta que pariu!”. E, logo depois, a mulher havia colocado duas malas e uma enorme sacola cheias de roupas no porta-mala do carro de um certo Armandinho Paixão, famoso e esquisito ba-terista de um conjunto totalmente desconhecido, desaparecendo para sempre de sua vida. Seu Damião havia lido o bilhete com um certo desapontamento. “Que falta de bom-gosto!”, havia pensado. “Ainda bem que se foi!”. E pronto. Esse tinha sido o fim de um casamento de um ano e três meses. Quinze meses de inferno, sem uma nesga de paraíso ou de paz!

A partir desse dia, ele havia minuciosamente organizado sua vidinha de maneira quase perfeita, assim como queria vivê-la. Vida chata? Chata, mas sossegada. Vida organizada nos mínimos detalhes, na qual até os acontecimentos imprevistos já estavam

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amplamente previstos! O que nunca chegou a prever, porém, foi a entrada em cena de um binóculo...

FE esse binóculo entrou em cena na vida de seu Damião numa

tarde de quarta-feira, quando Sabiá foi buscar os dois fascículos cor de abóbora que ele havia colocado na caixinha à direita, para serem levados “imediatamente” ao doutor Florentino. Sabiá apareceu de trás da última estante, soltou o “boa tarde!” de todos os dias e logo foi catando os fascículos e o jornal que seu Damião já havia lido na parte da manhã.

— O que você tem pendurado no pescoço? – perguntou-lhe seu Damião. – O que é isso?

— Um binóculo – respondeu Sabiá.— Você roubou? – indagou seu Damião, intrigado com o fato

de o rapaz andar com um binóculo pendurado no pescoço.— Achei – explicou Sabiá. – No ônibus. Estava no chão do

veículo e meus pés o encontraram...— Não acredito! – ele disse como comentário. – Imagina se

você o achou no ônibus! Deixa ver...Sabiá tirou o binóculo do pescoço e o entregou a seu Damião.

O qual, imediatamente, impulsionou sua cadeira giratória com o pé esquerdo, ficando, por causa disso, de cara para a janela. Então pegou o binóculo, o colou aos olhos e logo começou a virar o pes-coço para a direita e para a esquerda, enquanto, com o indicador da mão direita, tentava encontrar o foco certo. E o que viu, no binóculo, seu Damião? Viu uma névoa de vapor saindo de um dos canos da caldeira que estava no pátio; depois, à direita, o branco sujo do muro descascado do pátio; e, à esquerda, a continuação do branco sujo do muro descascado do pátio.

— Não se enxerga nada! – murmurou a Sabiá. – Só se vê o muro descascado do pátio...

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— Olhe para além do muro – aconselhou-o Sabiá. – Na direção do abacateiro que está no terreno baldio...

— Será? – ele murmurou.Então levantou um pouco o binóculo, e uma cortina de verde

desfocado inundou sua visão. Recomeçou a mexer com o botão do foco, até conseguir ver nitidamente as folhas da árvore. Belas fo-lhas! Tão nítidas e tão perto que dava até vontade de pegá-las.

— Não vejo nenhum abacate – disse então ao rapaz. – Apenas um montão de folhas...

— É porque não têm abacates – explicou Sabiá. – Como pode ver abacates se não tem nenhum?

Então seu Damião deslocou o binóculo para além do abacatei-ro, para um grupo de edifícios que, a cerca de 700 metros, pare-ciam se acotovelar num espaço minúsculo, em cima de um morro, como se procurassem se apoiar uns aos outros.

— Você viu? – perguntou ao Sabiá.— O que? – disse o boy.— Aqueles edifícios lá longe – ele explicou. – Parece que estão

logo atrás da esquina. Bacana...Foi nessa hora que Sabiá teve uma idéia.— Quer comprar? – perguntou a seu Damião.— O que? – ele respondeu.— O binóculo – disse Sabiá.Ele tirou o binóculo dos olhos, o olhou, o checou, o virou de

baixo para cima, o dobrou, girou a rodinha do foco para a esquerda e para a direita, o esticou, e finalmente voltou a recolocá-lo diante dos olhos.

— E quanto você quer? – perguntou, assim, fingindo-se meio desinteressado.

— Duzentos paus? – disse Sabiá, mais perguntando do que estabelecendo um preço.

— Você não comprou – argumentou seu Damião. – Você achou ou roubou. Não pago mais de 50 reais. Um preço justo.

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— Nem sonhando! – exclamou Sabiá.— É um bom preço – ele disse.— Está brincando? – rebateu o boy. – Por 50 reais prefiro ficar

com ele pendurado no pescoço. No mínimo, só porque o senhor é meu chefe, 150 reais. Nem um tostão a menos...

Seu Damião comprou o binóculo por 100 reais.Preencheu meticulosamente um cheque, o conferiu mais meti-

culosamente ainda e finalmente o entregou ao boy. Que, imedia-tamente, pegou o cheque, deu-lhe uma olhada, o enfiou no bolso e desapareceu atrás da primeira estante com os dois fascículos cor de abóbora na mão esquerda e o jornal já lido de seu Damião na direita. Então, seu Damião verificou a hora, viu que ainda faltava um bom tempo para o fim do expediente e logo se virou novamen-te para a janela, colando nos olhos o binóculo recém-adquirido. E como não existia nenhum abacate para olhar, focalizou o bi-nóculo no longínquo grupo de edifícios. Longínquo? Que nada! Todos os prédios pareciam estar a uns 50 ou 60 metros, no má-ximo! À esquerda, ele focalizou um edifício branco-acinzentado, com grandes janelas e sacadas falsas, repletas de plantas raquíticas. Então deixou escorrer a visão por todo o edifício. Tivesse uma janela aberta! Uma, só de amostra! Que nada! Todas as janelas do edifício estavam fechadas, mortas, cegas, sem vida... Pareciam janelas de um edifício desabitado...

Estava já pronto para focalizar o binóculo sobre o edifício ao lado, um pouquinho mais à direita, quando voltou atrás. Numa janela do último andar, de esguelha, havia visto algo se mover. Mexeu no botão da focalização, até conseguir uma imagem mais nítida. Isso mesmo! Na janela havia assomado uma figura de mu-lher. Aliás, de uma bela mulher! Pois dava para ver nitidamente: uma mulher loira que, de longe, estimulava a fantasia, a atiçava com um ser e não ser que até dava prazer! Uma bela mulher loira numa janela com cortinas vermelhas. Cortinas vermelhas? E quem usava ainda cortinas vermelhas nas janelas?

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Seu Damião, como as mãos não estavam muito firmes, sen-tou na cadeira meio de lado e apoiou o binóculo no encosto, para mantê-lo mais firme, sem que a imagem dançasse para cima e para baixo. Mas, quando tentou colocar os olhos nas duas lentes redon-dinhas, não conseguiu. Foi obrigado a baixar e entortar o pescoço de maneira estranha, fazendo também algumas contorções meio ridículas. Acabou ajoelhado na poltrona e quase todo encolhido. Mas conseguiu. E assim, com o binóculo bem firme, focalizou novamente a mulher na janela, emoldurada por duas cortinas ver-melhas. Ela continuava lá, apoiada na janela com os braços cruza-dos. Até parecia saber que estava sendo olhada por ele, por meio de um potente binóculo. Ele viu a mulher passar a mão nos cabelos, ajeitando-os com vaidade, e depois, de repente, viu que ela levan-tou um braço e lhe acenou. Pelo menos, foi o que ele pensou na hora. Mas logo o bom-senso prevaleceu. Como era possível ela enxergá-lo atrás da janela poeirenta do SATG, a uma distância tão grande? Absolutamente impossível!

“Para quem será que acenou?”, ele se perguntou. “Provavel-mente para alguém que está na rua”, respondeu-se imediatamen-te. Mas logo pensou que a mulher estava no último andar de um edifício muito alto. E ninguém acena para alguém que está na rua do último andar de um prédio que tem... que tem... começou a contar os andares: um, dois, três... sete... E logo percebeu que ti-nha errado. Então recomeçou a contar: um, dois, três... sete, oito... onze, doze... “Merda!”, exclamou, “errei novamente...”. E mais um recomeço de contagem: um, dois, três... sete, oito... onze, doze... dezessete, dezoito, dezenove... Pronto! Décimo nono andar... A mulher morava no décimo nono andar. E logo pensou que é muito difícil um prédio de apartamentos ter dezenove andares. Normal-mente, os andares são dezoito. Aliás, não normalmente, mas quase sempre! “Errei!”, pensou. “Tem que ser o décimo oitavo andar...”. Então recomeçou mais uma contagem dos andares do prédio em cima do morro. “...dezesseis, dezessete, dezoito, dezenove” e... e

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mais nada. Os andares eram mesmo dezenove. “Estranho!”, excla-mou para si mesmo. “Talvez tenha contado mais uma vez errado. A luz não está mais como devia estar, já é tarde...”. Então, deu uma olhada ao relógio e descobriu que seu expediente já tinha acabado há quase oito minutos. Oito minutos a mais na repartição. Algo que não podia acontecer! Tinha cabimento? Nunca, ao longo de seus dezoito anos de serviço, havia atrasado a saída da repartição oito minutos...

Então embrulhou o binóculo numa velha pasta cor de abóbora, fechou-a hermeticamente com meio metro de fita adesiva, deu uma passadinha rápida no banheiro, e correu para o estacionamento.

Fim de expediente.

FLogo depois de jantar e de lavar os pratos, ficou até a hora de

dormir olhando com o binóculo recém-adquirido pela janela de seu apartamento.

Olhou aqui, olhou ali, olhou à direita e olhou à esquerda, mas não encontrou nada de interessante que lhe prendesse a atenção. Ficou um tempão olhando para a janela de um edifício, onde dois casais discutiam animadamente. “Será que vai sair briga?”, pensou. Mas não aconteceu nada disso. A uma certa hora, um dos casais se despediu e foi embora. E o casal que ficou desapareceu em suas andanças pelo apartamento, só de vez em quando atravessando a janela iluminada. Então, tentou olhar para a lua, mas, exatamente na hora em que ele apontou o binóculo para sua face esbranquiça-da, ela desapareceu atrás de uma nuvem. “Hora de dormir!”, re-comendou a si mesmo, soltando um bocejo escancarado, daqueles que se soltam quando a gente sabe que mora sozinho e não tem ninguém para observar.

Colocou o binóculo em cima da mesinha da sala e depois se aprontou para dormir. Dormiu a noite toda. E o que ele sonhou?

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Acreditem ou não, seu Damião sonhou com a mulher loira que havia visto da janela suja de sua salinha no SATG, emoldurada por uma janela com cortinas vermelhas, no décimo nono andar de um edifício longínquo.

De manhã, quando estava já pronto para sair, lembrou-se do sonho e do binóculo. “Vou olhar aquela mulher de novo!”, pro-meteu a si mesmo. E, por causa disso, colocou o binóculo numa sacola de plástico de supermercado, levando-o de volta à sua sali-nha no SATG.

Quando chegou à sua sala mimetizada pelas quatro estantes, porém, o hábito venceu. Colocou a sacola com o binóculo na cai-xinha de saída, que estava vazia, sentou com um suspiro de alívio e começou a ler o jornal que Sabiá já havia colocado bem no meio da mesa. Mas não conseguiu lê-lo de cabo a rabo, como normal-mente fazia. Logo depois de ler como um deputado comprovada-mente corrupto havia sido inocentado por seus colegas igualmente corruptos, pôs o jornal de lado e tirou o binóculo da sacola de supermercado. Então, girou a cadeira para a janela, esticou as per-nas sobre o baixo parapeito e apontou o binóculo para o grupo de edifícios sobre o morro. Mas não conseguiu enxergá-los nitida-mente. “Culpa dessa merda de vidros sujos que ninguém limpa!”, praguejou. “Gostaria de saber o que faz, o dia todo, o pessoal da limpeza!”, criticou severamente.

Então se levantou, tirou o lenço do bolso e com ele limpou o vi-dro da janela. E depois sentou novamente em sua cadeira de braços e, pelo buraco do vidro limpo, apontou novamente o binóculo para o grupo de edifícios longínquos. O sol da manhã batia sobre eles diretamente, tingindo-os de ouro. Uma visão clara, nítida, perfei-ta. E lá estava o décimo nono andar do edifício; e lá estava a janela aberta que deixava ver as cortinas vermelhas; e lá estava a mulher loira, de braços cruzados, olhando para a frente, em direção do SATG. Parecia até estar olhando para ele, Damião Siqueira Bote-lho. Estaria? Claro que não!

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Focalizou melhor o binóculo. E a mulher na janela adquiriu contornos mais nítidos. Loira, jovem, bonita... E, o que era mais interessante, não saía da janela. De vez em quando, arrumava os cabelos longos com um jeitinho esnobe da mão e um movimento gracioso da cabeça. E logo voltava a se apoiar ao parapeito, olhan-do... olhando para quem? E para onde?

Ficou um montão de tempo olhando para a mulher na janela. Mais do que pretendia. Pois, de repente, olhou para o relógio e viu que já era uma hora da tarde. Estava atrasado mais de uma hora para seu almoço de 350 gramas, tinha cabimento? Então enfiou o binóculo numa gaveta, que fechou com a chave. E imediatamente saiu da repartição, quase correndo.

Comeu depressa. E também saiu correndo do pequeno restau-rante de comida a quilo, voltando imediatamente para a sua sali-nha, onde abriu a gaveta, tirou o binóculo e recomeçou a olhar para o edifício em cima do morro. “Nossa!”, exclamou. “Ela ainda está lá, na janela!”

Foi o primeiro dia, ao longo de mais ou menos doze anos, que não tirou sua soneca pós-almoço. E quando Sabiá trouxe três pro-cessos para ser arquivados, ele nem se virou. Continuou olhando para a mulher na janela.

— Pode deixá-los na caixinha – disse ao rapaz.Sabiá ficou intrigado.— O que o senhor está olhando? – perguntou-lhe.— Não é da sua conta! – ele respondeu, meio ríspido. – Pegue

seu jornal e vá embora...— Pô! – exclamou o rapaz, encaminhando-se para a saída entre

as quatro estantes. – O senhor está nervoso?Estava, sim! Seu Damião, de tanto olhar para a mulher que

nunca saía da janela, sentia a vista embaçada e um começo de dor de cabeça. “Que diabo ela faz, todo santo dia, apoiada no parapeito da janela e olhando só Deus sabe o quê?”, perguntou-se. E depois, embora com um certo desprazer, fechou o binóculo na gaveta e se

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aprestou a voltar para casa. “Mas que ela é bem bonita, isso lá é!”, disse para si mesmo. “Uma mulher digna de ser cantada! Será que está casada ou mora sozinha?”.

FPois bem, o que fez seu Damião na sexta-feira? Leu o jornal,

depois focalizou o binóculo no décimo nono andar daquele estra-nho edifício e ficou olhando para a mulher, que logo apareceu na janela, até o meio-dia. Depois, naturalmente, foi comer seus 350 gramas de arroz e feijão, com uma bela fatia de berinjela empana-da. Tomou um suquinho com sabor de água suja e voltou imedia-tamente para a repartição. Na caixinha dos processos para arquivar estavam empilhados cinco fascículos com capa cor de abóbora; e na caixinha dos pedidos do doutor Florentino, três requisições de processos velhos. Ele olhou para os processos e para as requisições, meneou a cabeça e soltou um belíssimo “fodam-se!”. E, logo de-pois, pegou novamente o binóculo, arrumou sua cadeira na posi-ção estratégica que havia encontrado para olhar melhor, esticou as pernas sobre o parapeito da janela e colou os olhos nos dois discos pretos das lentes. Que graça! Que beleza! “Vamos!”, ficou torcen-do. “Vamos, arrume os cabelos!”. E a mulher? A mulher parecia ouvi-lo. Era só ele mandar que arrumasse os cabelos para que ela, com um movimento gracioso do pescoço, imprimir-lhes um mo-vimento circular, durante o qual os cabelos formavam uma espécie de auréola de ouro em volta da cabeça, um etéreo e diáfano disco feito de fios dourados...

“Pô!”, exclamou mentalmente. “Será que ela me ouve?”E a mulher parecia ouvi-lo de verdade. Pois era só ele dizer

mentalmente “agora passe a mão no queixo”, que ela descolava o braço do parapeito e acariciava o queixo. Não acreditam? Nem seu Damião acreditou! E foi por causa dessa sua descrença lógica e natural que, às 16,30 horas, decidiu ver in loco esse fenômeno tão

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intrigante. Então fechou o binóculo na gaveta, abotoou o paletó, arrumou o nó da gravata e se enroscou pelas quatro estantes à pro-cura da saída do grande salão.

Dona Elvira, ao vê-lo sair naquela hora tão estranha, parou de fazer tricô.

— O que foi? – perguntou-lhe intrigada. – Já vai embora?— Vou – ele respondeu secamente, sem parar. – Um problema

particular e urgente para resolver...Desceu à garagem, entrou no carro e saiu arrancando do esta-

cionamento, sob o olhar atônito de seu Nicolau, o porteiro. E, em vez de entrar à esquerda, como comumente fazia, virou à direita, embrenhando-se pelo caótico trânsito de uma grande avenida que, segundo ele e seu infalível instinto de orientação, deveria levá-lo para bem perto dos edifícios no topo do morro. Olhou para o re-lógio do painel: 16 horas e 48 minutos. Então, calculou que, no máximo em dez minutos, deveria avistar o grupo de edifícios e, em particular, o edifício no qual, no décimo nono andar, a mulher estava na janela. Esse foi seu cálculo. Um cálculo ingênuo e ino-cente, de quem não está acostumado a dirigir num bairro desco-nhecido. Pois, às 18 horas, ainda estava no carro, numa avenida e num bairro que não conhecia, esticando o pescoço para a janelinha da direita, na tentativa de enxergar um grupo de edifícios no topo de um morro. Enxergou? Não, não enxergou, pois já estava quase escuro. Assim, envergonhado por sua falta de orientação, tentou voltar para a repartição e, de lá, pegar o caminho já conhecido para seu apartamento. E foi enquanto tentava fazer uma conversão à esquerda proibidíssima, para enfiar o carro no trânsito da outra pista aproveitando-se de um farol fechado, que foi antes xingado por um caminhoneiro que quase bateu em seu carro e, em seguida, multado por um guarda gentilíssimo, que o mandou encostar no meio-fio, bem na frente de uma loja de sapatos.

E foi enquanto mostrava ao guarda todos os documentos que tinha na carteira, que teve uma idéia.

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— O senhor, por acaso, conhece um grupo de edifícios, bem no topo de um morro? – perguntou-lhe. – São quatro ou cinco edifí-cios que, de longe, parecem formar um grande condomínio.

O guarda meneou a cabeça.— Têm que estar por aquele lado! – ele acrescentou, ainda não

vencido, esticando o indicador na direção de uma escola de ginás-tica. – Tenho certeza que estão por lá...

— Desconheço – murmurou o guarda, burocraticamente.Ele ficou com raiva.— Como, desconhece? – exclamou. – O senhor é guarda ou

não é?O guarda olhou para ele meio encafifado.— Sou! – disse. – Sou guarda com certeza. E se quer um con-

selho, entre no carro e vá logo para casa. Sem fazer conversões proibidas. E sem querer encontrar edifícios no topo de morros...

Vamos dizer a verdade: o que ele podia fazer? Absolutamente nada, senão acatar o conselho do bom guarda. E foi o que fez. E como era sexta-feira, num horário de pico e num bairro desconhe-cido, chegou em casa depois das 10 horas da noite, cansado, morto e puto da vida por ter deixado o binóculo na repartição. “Agora, só na segunda!”, disse para si mesmo, muito desolado. “Um fim de semana completamente perdido!”

FMas não perdeu, não! Pois no dia seguinte, isto é, no sábado,

acordou cedo, tomou seu café com leite e depois foi à janela da sala. Um dia bonito, de céu completamente azul. E ficou tão danado por ter deixado o binóculo na gaveta de sua mesa, no SATG, que teve vontade de se xingar. Mas, enquanto pensava em qual o epí-teto que merecia, veio-lhe uma idéia luminosa. “Ontem não achei os edifícios no topo do morro”, raciocinou. “Mas hoje, num dia tão belo e tão claro, com muito menos trânsito que o de ontem à noite,

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certamente os acharei...”. E, convencido do que estava dizendo, decidiu tentar.

Naturalmente, para se orientar melhor, foi para a repartição do SATG, onde trabalhava. Parou bem na frente do edifício e come-çou a fazer cálculos. “Minha janela está do outro lado, do lado do pátio”, pensou. “E os edifícios estão bem na frente da janela, quase em linha reta... Então, é só entrar na avenida, andar uns oito ou dez minutos e depois entrar novamente à direita... Dessa vez, não posso errar. Vou parar num lugar descampado, numa praça, no topo de uma ladeira... E de lá será fácil vê-los!”

Foi exatamente o que fez. Seguiu à risca seus próprios con-selhos. E, quando deixou a grande avenida e entrou numa rua à direita, começou a andar mais devagar, esticando o pescoço até a cabeça bater no pára-brisa, olhando pelas janelas laterais, tentando imaginar se os edifícios estariam à direita ou à esquerda da rua por onde ia.

Pois bem, estavam à direita. Ele os viu enquanto passava por uma travessa dessa rua. Então brecou instantaneamente, receben-do um irado “filho da puta!” do motorista que vinha atrás e que, para não bater na traseira de seu carro, foi obrigado a fazer uma manobra que quase o obrigou a bater nos carros estacionados no outro lado da rua. E ele? Nem se importou. Fez marcha à ré sem muitos cuidados e entrou na travessa que parecia levá-lo ao morro onde estavam os edifícios.

E chegou. Chegou bem na frente deles, após ter subido uma pequena ladeira que, antes de deslizar morro abaixo do outro lado, se alargava numa pracinha bonita, com um jardim lateral sombrea-do por três ipês-roxos. Parou o carro no começo da descida, voltou atrás, para a pracinha na qual estava a entrada dos quatro edifícios, e ficou sem saber o que fazer. “E agora?”, perguntou-se. “Por que diabo vim até aqui?” Pra ver a mulher na janela de mais perto, disse a si mesmo. Mas como, se havia deixado o binóculo na repartição? Assim, só para disfarçar, dirigiu-se para um quiosque de jornalei-

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ro, simulou uma leitura caprichada dos jornais ali pendurados na lateral e finalmente teve a coragem de olhar para o edifício da es-querda, o primeiro dos quatro. Reconheceu-o imediatamente, com suas sacadas falsas, resumidas a um balcão de ferro que protegia apenas um canteiro de f lores. E levantou os olhos para o topo do edifício. Onde estava a janela com as cortinas vermelhas? Lá, no último andar, as janelas estavam abertas ao sol quente da manhã de sábado, mas nelas não existia nenhuma cortina vermelha. Cortinas brancas nas janelas dos quartos, uma persiana na janela grande da sala. Será que não estava olhando o edifício do outro lado? Não, não estava. Pois, olhando para trás, dava para enxergar o edifício de três andares, quadrado e cinzento, do SATG. Estava a cerca de 700 metros, talvez menos...

Voltou a olhar novamente o edifício. E assim, só para ter certe-za, começou a contar os andares: um, dois, três... sete, oito, nove... errei... um, dois três... sete, oito, nove... quinze, dezesseis, dezes-sete, dezoito, e... e só. O edifício para o qual olhava não tinha de-zenove, mas dezoito andares, assim como são quase todos os edi-fícios de apartamentos que se prezam. Decididamente, não tinha um décimo nono andar! “Puta que pariu!”, praguejou, consciente de soltar uma frase que não fazia parte de seu linguajar. “Três ve-zes eu contei os andares desse merda de edifício... E as três vezes, tenho certeza disso, contei dezenove andares. E agora? Onde foi parar esse misterioso último andar, com o apartamento de cortinas vermelhas na janela e uma mulher loira e bonita no meio delas?”

Pensou que talvez tivesse errado o grupo de edifícios. Depois olhou para a repartição onde funcionava o SATG e se convenceu de que não estava errado, absolutamente não! Então, de repente, pensou ter decifrado a charada: devia ser um último andar recua-do, que não se via da rua. Claro que devia ser isso! Tinha outra explicação, por acaso?

Assim, só para ter a confirmação de sua idéia, aproximou-se da portaria e fez sinal ao porteiro, aninhado numa guarita de vidro,

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que queria lhe falar. E o porteiro? Nem se mexeu da guarita. Com tantos assaltos, tinha que tomar suas precauções, não tinha? E por causa disso fez-lhe sinal de que falasse numa caixinha escura, fi-xada no muro ao lado do portão.

— Por favor, quantos andares existem neste edifício? – balbu-ciou. – Neste aqui, o primeiro à esquerda?

O porteiro respondeu-lhe com uma pergunta.— E por que o senhor quer saber?— Por que eu quero saber? – ele repetiu, que nem bobo. “Por

que queria mesmo saber? Preciso inventar!”, pensou. E pensou rá-pido. – Porque tenho o endereço do... – De quem ele teria o ende-reço? – ...do doutor Florentino Paiva Botelho – inventou na hora, pensando no nome de seu chefe no SATG. – Ele me disse que mora no décimo nono andar...

— Décimo nono? – disse o porteiro. – Não existe nenhum dé-cimo nono andar neste edifício. Não existe neste e não existe nos outros. E em nenhum destes edifícios mora um doutor Florentino Paiva Botelho.

— Acho... acho que foi um engano – ele balbuciou. – Obrigado.E depois, lentamente, voltou para o outro lado da praça, onde

estava o quiosque do jornaleiro. “Errei!”, pensou. “Errei o edifício. Pois o apartamento onde estava a mulher na janela, entre cortinas vermelhas, sem dúvida alguma estava localizado no décimo nono andar. Tenho certeza disso!”, justificou-se. “E agora?”

Voltou para casa com a cabeça confusa e uma grande desilusão. Aliás, tentou voltar. Pois, de repente, percebeu que estava num bairro que nunca tinha visto antes, com ruas e avenidas comple-tamente desconhecidas. Agora, por exemplo, estava andando por uma avenida que ladeava um grande cemitério. Que cemitério era esse? Tinha certeza de que era um cemitério que ele nunca havia visitado. “Vou parar e perguntar que bairro é esse”, prometeu a si mesmo. “Vou parar na primeira padaria e, assim, aproveitar a pa-rada para tomar um cafezinho...”.

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E onde estavam as padarias? Não viu nenhuma enquanto an-dava, a esmo, pelo bairro. Parecia um bairro sem padarias... Então, decidiu parar onde dava, e pronto!

Foi assim que parou na frente de uma loja de móveis, cuja cal-çada estava loteada entre quatro ou cinco barraquinhas, nas quais se vendiam desde colares feitos de arame até CDs descaradamen-te falsificados.

Chegou em seu pequeno e sossegado apartamento quando já era fim da tarde. Chegou cansadíssimo e em frangalhos, puto da vida consigo mesmo e com todos os edifícios que não tinham um décimo nono andar visível. Aliás, que tinham, mas o escondiam sem razão nenhuma. Brincadeira besta! O que haveria de mal em mostrar um décimo nono andar, com um apartamento que tinha uma janela com cortinas vermelhas emoldurando uma mulher lin-da, jovem e loira?

FNa segunda-feira, chegou à repartição do SATG catorze minu-

tos antes. Nunca havia feito isso em sua vida, mas, dessa vez, não conseguiu resistir à tentação de apontar, o mais depressa possível, o binóculo para o décimo nono andar do edifício que não tinha décimo nono andar.

Entrou no salão escuro que ainda estava vazio. Não tinham chegado nem Sabiá e nem dona Elvira. Ele avançou com passos apressados entre as longas estantes cheias de processos com capa cor de abóbora, adentrou o labirinto das quatro estantes quase correndo, ziguezagueou entre elas e, finalmente, reencontrou-se em sua bendita salinha misteriosa e ignorada por quase todos. Nem sentou. Logo foi à janela e olhou para os quatro edifícios que, a cerca de 700 metros, se acotovelavam no topo do morro. E soltou um suspiro de alívio. Eles existiam! Os quatro edifí- cios existiam...

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Então, abriu a gaveta onde estava o binóculo e voltou à janela. E olhou o primeiro edifício à esquerda, com as mãos que tremiam pela excitação. Sim, lá estava ele, lá estava o décimo nono andar que não existia... E lá estava a janela com as cortinas vermelhas... E a mulher, onde estava a mulher loira e bonita? Foi só ele se perguntar isso, para que ela aparecesse. Assomou à janela esplen-dorosa e misteriosa, com o ouro dos cabelos bem delineados sobre o fundo negro do quarto. E, como sempre, cruzou os braços sobre o parapeito e ficou olhando. Para quem? Parecia estar olhando na sua direção. Era possível, isso?

E por que o porteiro havia declarado que não existia um dé-cimo nono andar, naquele edifício? Devia estar mentindo, claro que devia! Abaixou levemente o binóculo, até focalizar o décimo oitavo andar. Igualzinho ao décimo nono, constatou, embora, na falsa sacada, que na realidade era um canteiro de f lores, vicejasse um arbusto alto e verde-escuro, que diferenciava o andar de todos os outros. Que mistério era esse?

Abaixou o binóculo, deixando-o pendurado no pescoço. A olho nu, aguçando a vista, examinou o edifício. Olhou, viu e fi-cou sem saber o que via. Pois, sem o binóculo, o andar que tinha no canteiro o arbusto alto, grande e verde-escuro era o último an-dar do edifício. Onde estava o décimo nono? Na dúvida, decidiu que era melhor contar os andares assim, sem a ajuda do binóculo. Com calma, sem afobação, encontrando pontos de referência nos vários andares, dava para contar sem errar a toda hora. E contou: um, dois, três... sete, oito, nove... no nove tem uma janela aberta... dez, onze... dezesseis, dezessete, dezoito... no dezoito tem o ar-busto na sacada. E só! O edifício só tinha dezoito andares. Reco-locou os olhos no binóculo. Pronto! O décimo oitavo andar agora estava como penúltimo andar, logo abaixo de um décimo nono igualzinho, mas que tinha uma janela aberta com duas cortinas vermelhas e uma mulher bonita que, dessa janela, continuava a olhar para fora.

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Foi obrigado a sentar e enxugar o suor da testa. O que estava acontecendo? Que diabo de binóculo enfeitiçado era esse? Olhou para ele: apenas um binóculo comum, usado, sem nada de espe-cial. O havia comprado por um impulso estranho e porque o preço exigido por Sabiá era uma pechincha. Quem havia fabricado esse binóculo? E quando? E onde? Virou-o tentando encontrar a mar-ca, o fabricante... Nada de nada. Era um binóculo anônimo, sem nenhum ponto de referência.

Então, apertou a campainha para chamar Sabiá. E o rapaz apa-receu na salinha de seu Damião logo depois, intrigado por causa dessa chamada imprevista, fora de hora.

— O que foi, seu Damião? – perguntou, com a curiosidade estampada no rosto. – O que aconteceu?

Ele soltou um pigarro de chefe, um daqueles pigarros que deve-riam deixar os subordinados temerosos. E depois, com a mão, fez sinal a Sabiá para que sentasse na única cadeira que existia na sala, aquela que servia para ele esticar as pernas durante a soneca que ti-rava ao chegar do almoço. E Sabiá sentou bem na ponta da cadeira, assim, como se estivesse pronto para fugir de uma hora para outra, conforme o caso. E ficou esperando o que seu Damião ia falar.

— Ouça bem o que vou dizer – disse então seu Damião, com voz severa. – Ouça bem e depois responda. E não invente, pois exijo só a verdade, nada mais do que a verdade, está entendendo? – Parou, fungou, voltou a falar. – Agora, diga: onde diabo você encontrou esse binóculo?

Sabiá esboçou um sorriso de alívio.— Encontrei no ônibus – respondeu. – Já disse...— Está mentido – afirmou severamente seu Damião. – Está na

cara que está mentido!— Juro que não! – exclamou Sabiá. – Foi como disse: estava

sentado no ônibus com as pernas esticadas. Depois as encolhi para debaixo do assento e meus pés bateram nele. Então me abaixei, enfiei a mão e o encontrei. Não acredita?

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— Não! – declarou enfaticamente seu Damião. – Nem um pouco.

— Mas é a verdade, juro! – exclamou o rapaz. – Por que haveria de mentir?

Seu Damião ficou olhando para ele em silêncio, assim como se olha um malfeitor do qual se espera uma confissão plena. Mas Sabiá, depois de ter descoberto o assunto para o qual tinha sido convocado na sala de seu Damião, estava tão plácido e relaxado que até parecia na iminência de soltar um bocejo. E seu Damião ficou sem saber o que falar e nem o que fazer. Então, esticou o interrogatório só para salvar as aparências.

— E não viu absolutamente a pessoa que o tinha perdido?— Se tivesse visto – respondeu Sabiá, mentindo descaradamen-

te – a teria avisado e lhe teria devolvido o binóculo, não é?— Teria devolvido uma ova! – sentenciou seu Damião. – Quer

me fazer de trouxa?— Não acredita em mim? – balbuciou Sabiá.— Claro que não! – disse seu Damião. – E agora?— Agora o quê? – perguntou o rapaz, apreensivo. – O que tem

o binóculo, não está funcionando?Ele decidiu ser espirituoso.— Mais do que devia! – confessou. – Funciona muito mais do

que deveria funcionar um simples binóculo. – Fez uma pausa. – Vem cá – disse depois a Sabiá, entregando-lhe o binóculo. – Dê uma boa olhada naquele grupo de edifícios, lá em frente, à esquer-da do abacateiro, em cima daquele morro... – Esperou que o boy colasse o binóculo nos olhos. – Está vendo?

— Estou – disse Sabiá, perplexo. – E por que devo olhar para aqueles edifícios? – perguntou em seguida. – O que eles têm?

— Olhe para o último andar do primeiro edifício à esquerda – mandou seu Damião. – O que está vendo?

— O último andar do edifício à esquerda – respondeu-lhe can-didamente Sabiá.

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— E como ele é? – insistiu seu Damião. – Quero que me diga exatamente o que você está vendo. Tem janelas?

— Tem – confirmou o boy. – Mas todo apartamento tem... – acrescentou. – Nunca vi um apartamento sem janelas...

— Não faça comentários que não lhe pedi – disse-lhe seu Da-mião com uma certa ânsia na voz. – Só quero que você responda às minhas perguntas, entendeu?

— Entendi – respondeu Sabiá. – Pode perguntar... O que é que tenho que ver?

Seu Damião passou a mão no rosto, abriu o colarinho com um ligeiro puxão do indicador e depois se aproximou do rapaz, quase encostando seu rosto ao dele.

— Olhe bem – recomendou-lhe. – Qual é a cor das cortinas da primeira janela depois da sacada?

— Como vou saber? – disse Sabiá. – A janela está fechada...— Está fechada?— Está!— E na sacada? – insistiu seu Damião. – O que você está vendo

na sacada? Tem plantas na jardineira?— Tem – confirmou Sabiá. – Uma planta alta, de um verde

bem escuro, que não sei como se chama.“Não está vendo o décimo nono andar!”, pensou seu Damião.

“Ele não está vendo... Esse é um andar só meu, um andar que me pertence, que ninguém mais vê e cuja existência todos ignoram!”. E ficou quase contente com essa sua dedução.

— Consegue contar quantos andares tem o edifício? – pergun-tou depois ao boy. – Conte certinho, sem errar...

Demorou um bom tempo antes que Sabiá chegasse a contar os andares do edifício. Mas sua longa e dificultosa contagem teve quase o sabor de uma sentença.

— Dezoito – ele disse depois da quinta tentativa. – São dezoito andares.

— Tem certeza?

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— Claro que tenho! – exclamou Sabiá. – Acha o quê? Que não sei contar? Até dezoito eu sei!

— Muito bem! – disse então seu Damião, tirando-lhe o binó-culo das mãos e fazendo-lhe, com um gesto imperioso da mão, um sinal claro para que saísse de seu santuário. – Pode ir. E não fale a ninguém do que você viu...

E depois que Sabiá saiu, encafifadíssimo com o fato de que não poderia contar a ninguém que havia visto um edifício com dezoito andares, seu Damião ficou sentado à mesa como um bobo, sem conseguir encontrar uma razão lógica para que ele visse, com aquele maldito binóculo, um décimo nono andar que não existia e que ninguém mais via. Maldito binóculo. E por que maldito? O que o binóculo mostrava nada tinha de desagradável, de horrendo, de medonho... Ao contrário, o que ele mostrava era uma bela e jovem mulher numa janela, que olhava para ele – sim, agora tinha certeza que olhava para ele, pois era o único que a via, não era? – e que também fazia tudo o que ele pensava e mandava. E decidiu experimentar mais uma vez.

Repôs o binóculo nos olhos e o apontou para o inexistente dé-cimo nono andar do edifício. E olhou para a mulher. Ela continua-va apoiada no parapeito da janela, de braços cruzados, olhando diretamente para ele... “Vamos!”, pensou, “coce o nariz...”. E, ma-ravilhado por ser tão instantaneamente obedecido, viu a mulher descruzar os braços, levar a mão direita ao rosto e coçar delicada-mente o nariz. “Acene para mim”, ordenou-lhe então. E não foi que a mulher, quase instantaneamente, levantou o braço direito e lhe acenou? “Quem é você?”, então lhe perguntou. “Como você se chama?”. E viu a mulher levantar os dois braços, sempre com os cotovelos apoiados no parapeito da janela, e depois abrir as mãos num sinal claro de quem diz: “E como vou saber?”.

À noite, na hora de ir embora, na caixinha dos processos para ar-quivar estavam amontoados dezenove fascículos. E na caixinha das requisições do doutor Florentino, onze pedidos. Ele nem notou.

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FNa sexta-feira à noite, os processos para serem arquivados

eram 27; e os pedidos urgentes do doutor Florentino, requisitando processos já arquivados, haviam atingido o número de 21. E ele? Nem olhou para as duas caixinhas. E Sabiá, que todas as noi-tes costumava pegar o jornal de seu Damião para levá-lo ao avô, percebeu que o jornal não tinha sido lido, nem folheado e muito menos aberto.

E seu Damião? Seu Damião estava de olhos roxos e barba com-prida, o nó da gravata puxado para baixo, os cabelos não tão bem penteados como costumava usar. Quando foi obrigado a largar o binóculo, pois já estava escuro e fora não se enxergava mais nada, olhou o relógio e viu que já eram quase 20 horas. Nunca havia ficado tanto tempo na repartição! E estava pronto para colocar o binóculo na gaveta quando foi assaltado por um pensamento novo: por que não levar o binóculo e depois, no dia seguinte, que era sábado, voltar à pracinha em cima do morro, bem na frente do edifício, e olhar para a mulher do décimo nono andar bem de per-to? De tão perto poderia até enxergar os traços de seu rosto, vê-la como se fosse cara a cara... E ficou tão excitado com isso que saiu da repartição com um belo sorriso estampado no rosto, sorriso que deixou seu Nicolau, o porteiro da garagem, encafifado. “Acho que seu Damião está apaixonado!”, pensou o homem. “Está rindo de uma maneira tão besta!”

Pois bem, seu Damião entrou no carro, pôs o binóculo sobre o assento do passageiro, ligou o motor, colocou o cinto e subiu a cur-ta rampa que levava à rua. Lá parou, olhando antes à direita e de-pois à esquerda, para ver se vinha algum carro. E depois, com uma arrancada suave, ganhou a rua, entrando à esquerda. E, enquanto dirigia, ficou pensando no que faria no dia seguinte, já saboreando a visão da mulher vista de perto... Como seria seu rosto? Lindo

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lindo lindo! disse a si mesmo. E estava tão preso por esses pensa-mentos que quase avançou um farol vermelho. Parou em cima da faixa branca. Para evitar uma multa, então, olhou para trás, viu que não tinha nenhum carro e recuou um pouquinho, o suficiente para que as rodas saíssem da faixa branca. E foi nessa hora, enquanto ainda olhava para trás, que viu uma sombra a seu lado e sentiu algo frio em sua têmpora.

— Passe a carteira... Rápido – disse o vulto, batendo com o cano do revólver em sua cabeça. – Ouviu ou não ouviu? Quer morrer?

— Ca... ca... calma... – ele balbuciou, completamente apavo-rado. – Não fi... fi... fique nervoso... Tu... tudo bem... – Enfiou a mão no bolso esquerdo do paletó, tirou a carteira, sentiu o puxão com o qual ela foi arrancada de sua mão.

— E o relógio também, seu trouxa! – ameaçou-o o vulto – De-pressa... Se o farol abrir, você está morto...

Ele tentou tirar o relógio do pulso, mas as mãos lhe tremiam tanto que não conseguia tirá-lo. Então, sentiu a mão do assaltante sobre a sua, sentiu seus dedos puxar a pulseira, quebrá-la, e depois ficou sentindo uma dor aguda no pulso. “Filho da puta!”, pensou, “deveria ter pena de morte para animais como você!”.

— Passe aquele troço também! – disse o assaltante, apertando o revólver em sua cabeça e acenando para o binóculo, ainda sobre o assento do passageiro. – Vamos... Passe logo...

— Esse não! – ele exclamou, com uma coragem que não sabia que tinha. – É apenas um binóculo, uma porcaria de binóculo... – disse. – Esse não...

E imediatamente sentiu o golpe de uma violenta coronhada na cabeça, logo acima da têmpora esquerda. E também sentiu o san-gue escorrer pela face.

— Dá logo ou vai morrer, seu trouxa – disse o assaltante.Tentou reagir. O binóculo não, o binóculo ele não o daria

àquele filho da puta! Morreria, mas não daria... E foi nessa hora que outra sombra apareceu do lado da porta do passageiro. E essa

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sombra nova bateu com uma pedra no vidro da janela do carro, que se espatifou em mil pedaços. E a sombra nova esticou o bra-ço, agarrou o binóculo... Então ele agarrou o braço apelando para todas as suas forças, mas foi obrigado a largá-lo, pois sentiu um barulho enorme ecoar em seu ouvido esquerdo. Um barulho da-nado. Aliás, meio barulho, pois foi um barulho que não teve eco. Foi um barulho que ele ouviu pela metade, pois logo entrou num silêncio completo, total, absoluto... Um silêncio que ele nem soube que era silêncio...

FAcordou aos poucos, num quarto de hospital. Um vulto de mu-

lher, vestida de branco, foi a primeira coisa que viu. E depois seu olhar se alargou, deslizou pelo quarto, focalizando uma parede nua e branca, uma mesinha com duas pernas só, uma cômoda com uma garrafa de água e um copo de plástico. Estava confuso, mas percebeu que estava num quarto de hospital. E por que estava num quarto de hospital?

A memória voltou-lhe aos poucos, como se fossem pequenos trechos de filmes projetados a esmo, sem uma seqüência lógica. Um braço agarrando um binóculo, um farol fechado, a quentura estranha do sangue escorrendo em seu rosto, um vulto ameaçador na janela do carro, uma mão agarrando sua carteira, alguém lhe arrancando o relógio do pulso...

Aos poucos, porém, com esforço, conseguiu dar uma seqüência às recordações, lembrou o que tinha acontecido, e essa lembran-ça transformou-se num grito lancinante, num grito que ninguém entendeu...

— O binóoooculo! – gritou. – Meu binóooculo! Onde está meu binóooculo?

A enfermeira aplicou-lhe imediatamente uma injeção que o de-volveu a um sono sem sonhos...

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40 CONTOS DO OUTRO LADO

FUm mês depois voltou à repartição do SATG. Voltou exibin-

do um grande curativo na testa, onde a bala havia deixado um sulco entre a têmpora esquerda e a sobrancelha. Voltou magro, com olheiras profundas e um andar tão esquisito que parecia estar sempre na iminência de cair. Quando entrou no grande salão do arquivo morto, Sabiá o olhou como se estivesse vendo um cadáver andando. Assim mesmo, o rapaz escancarou um sorriso de cir-cunstância e ficou de pé, atrás de sua mesinha.

— Como vai, seu Damião? – perguntou-lhe. – Sentimos muito sua... sua ausência! – acrescentou depois, olhando para a mesa de dona Beatriz. A qual, na mesma hora, parou de fazer tricô e correu para ele, tentando lhe dar um abraço do qual ele se esquivou.

— O senhor está bem? – perguntou-lhe a mulher.— Estou... Estou... – ele murmurou, encaminhando-se devagar

para sua sala mimetizada pelas quatro estantes. E quando lá che-gou, ficou até com medo de entrar. Entrou a passos curtos, como se não tivesse muita vontade de se aproximar da mesa e da janela que estava atrás de sua poltrona giratória. Sentou devagar, sem olhar para a pilha de processos à espera de serem arquivados que transbordava da caixinha e nem para o calhamaço de pedidos não atendidos do doutor Florentino, requisitando a vista de processos velhos e já arquivados. Ficou assim um certo tempo, esperançoso e apavorado. E finalmente encontrou a coragem necessária. Então, lentamente, girou a cadeira para a janela. E olhou para fora. Olhou para o muro sujo, branco e descascado do pátio, para o abacateiro sem abacates, para os quatro edifícios que, a cerca de 700 metros, estavam acotovelados em cima do morro. E viu que o último andar do primeiro edifício à esquerda era o andar onde, na sacada que era canteiro, vicejava um arbusto alto e verde-escuro. Apenas um décimo oitavo andar qualquer... E, enquanto olhava, uma lágri-

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ma quente surgiu-lhe no olho direito, abriu caminho em seu rosto magro e escavado, atingiu o queixo, mantendo-se ainda gorda e intacta, e finalmente caiu-lhe sobre a camisa azulada.

FNo dia seguinte, comprou um belíssimo binóculo, de uma mar-

ca famosa. Mas era apenas um binóculo que ninguém havia esque-cido num ônibus. Quando o apontou para o primeiro edifício à es-querda dos quatro edifícios sobre o morro, viu apenas um edifício com dezoito andares. Então, devolveu o binóculo à loja e comprou outro mais caro, de uma marca ainda mais famosa. Mas também esse binóculo não conseguiu inventar um décimo nono andar num edifício que só tinha dezoito.

Duas semanas depois, na segunda gaveta de sua mesa, estavam largados cinco binóculos, cinco binóculos que ele havia comprado por um dinheirão que não podia gastar. E todos eram binóculos muito bonitos e caros, mas absolutamente imprestáveis, capazes de focalizar somente coisas que existiam.

Aos sábados, começou a andar ora pela rua 25 de março, ora pela rua Santa Ifigênia, olhando nas barraquinhas meio equívocas, aquelas que vendiam coisas falsificadas ou roubadas, na esperança de encontrar, no meio de toda aquela mercadoria heterogênea, um binóculo usado e anônimo, sem marca, um binóculo que teria re-conhecido no meio de um milhão de binóculos...

Nunca encontrou.E, a partir desse dia, até se aposentar, o primeiro olhar que

dava, ao entrar em sua salinha mimetizada pelas quatro estantes, era para o grupo de edifícios acotovelados em cima do morro, a cerca de 700 metros do SATG. Assim como no fim do expediente. Nessa hora, fechava as gavetas, arrumava suas coisas em cima da mesa, levantava-se da cadeira e ficava olhando pela janela na dire-ção de um invisível décimo nono andar de um edifício que parecia

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42 CONTOS DO OUTRO LADO

igual a todos os outros. Sabia que ele estava lá, logo acima do dé-cimo oitavo e último andar, com sua janela de cortinas vermelhas emoldurando uma mulher loira e bonita que olhava para ele. Então levantava a mão e acenava para a mulher invisível uma patética saudação, enquanto murmurava um “até amanhã!” tão triste que dava até pena...