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Guerra étnica, civil ou genocídio? Por uma história de Ruanda Thaíse Alves da Silva 1 1. O CONFLITO 1 Graduanda do curso de Licenciatura em História, pela Universidade do Estado da Bahia- Departamento de educação- campus XIII. 8º semestre. Email: [email protected]

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Guerra étnica, civil ou genocídio? Por uma história de Ruanda

Thaíse Alves da Silva1

1. O CONFLITO

1 Graduanda do curso de Licenciatura em História, pela Universidade do Estado da Bahia- Departamento de educação- campus XIII. 8º semestre. Email: [email protected]

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Estudar a África, as especificidades de cada país, exige para nós que por

muitas vezes aprendemos a enxergar este vasto continente como um pequeno

lugar de gente desunida brigando entre si sem nenhum motivo, irá exigir, em

algum momento, maiores aprofundamentos.

Com o intuito de trabalhar estas singularidades, me aterei a Ruanda, país

localizado na região dos lagos, próximo da Tanzânia, Burundi, Congo (antigo

Zaire) e Uganda. Os habitantes deste país são os banyaruandas: twás, hutus e

tutsis, identificados por Hatzfield (2005) e Gourevitch (2000) muitos outros

autores como três povos diferentes, mas que Magnoli (2009) se utiliza dos mitos

de origem, da colonização para mostrar esta sociedade em sua forma de

organização e como os colonizadores irão se utilizar dela para dividir o povo

ruandês.

Neste capítulo percorreremos caminhos de alguns conceitos e mitos para

que o leitor compreenda como veio sendo construído a ideia das diferenças de

etnia e raça para Ruanda. Discorreremos sobre o processo de colonização de

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Ruanda, para então buscarmos entender como se dá o processo de construção da

identidade tutsi e hutu por meio dos colonizadores.

Com o intuito de não trabalhar o episódio de 1994 de maneira isolada,

traremos ainda aqui os conflitos que antecederam o “abril de 1994”, dentre estes

A Revolução Hutu (1959), percebendo o porquê da justificação do conflito por

meio das questões étnicas. Assim, entenderemos também a disseminação da

ideologia colonial por meio do mito hamítico, que constituiu tutsis como

superiores porém não nativos, nos atentando para a forma pela qual a comunidade

local vai sofrendo fortes influências em suas identidades locais.

1.1 Os Banyaruandas e a colonização

...Gihanga figura como pai dos três ancestrais ruandeses: Gatwa, dos tuas,

Gahutu, dos hutus e Gatutsi, dos tutsis. Para determinar qual dos três filhos

era merecedor de sua herança, Gihanga confiou uma cabaça de leite a cada

um, durante uma noite. Na manhã seguinte, Gihanga voltou e verificou como

agiram seus filhos na noite original. Gatwa foi desqualificado e desterrado,

pois, num sono agitado, derrubara a cabaça e perdera o leite. Gahutu foi

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deserdado e condenado a trabalhar para Gatutsi, pois, sedento, bebera o leite.

Gatutsi, que permanecera acordado e vigilante, conservando seu leite, foi

designado sucessor de Gihanga, recebeu como herança todos os rebanhos de

vacas do país e ficou isento de realizar trabalhos manuais. (MAGNOLI, 2009,

p. 259).

Os mitos de origem “são narrativas históricas que, por meio da seleção de eventos

e da atribuição de relevância a situações e personagens, tornam o passado inteligível e

pleno de significados, encorajando a coesão social.” (MAGNOLI, 2009, p. 259).

Importante destacar ainda que,

... a utilização do termo mito não implica a tentativa de comprovar sua

falsidade, ainda que algumas narrativas possam ser, de fato, falsas, mas

demonstra um comprometimento com o (re)ordenamento das categorias

político sociais imbricadas em uma ordem moral, que separa Eu e Outro em

termos opostos e relacionados ao dualismo bom/mau.” (ALVES, p. 72, 2011)

No caso de Ruanda, mito e realidade se (con)fundem, servindo também como

legitimador da supremacia tutsi e como instrumento importante para a implantação das

ideias de raça e etnia, utilizadas pelos colonizadores, primeiro os alemães, depois os

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belgas. Para melhor compreender o processo de classificação e divisão dos banyaruandas,

tendo o mito de origem como instrumento, precisaremos voltar às colonizações.

O processo de partilha ou “roedura da África” (HERNANDES, 2005) é reflexo do

que estava acontecendo com os países europeus na busca pelo alargamento econômico

por meio da exploração, conquista e grandes navegações dos países europeus. Araújo

(2012) mostra que a partilha não se deu de uma hora para outra, tanto fazendeiros

holandeses na África do Sul, quanto empresários europeus e americanos na África

Oriental apresentavam um cenário de novos interesses econômicos de caráter privado.

Esse imperialismo europeu “representava resposta defensiva a uma crise

internacional que se esboçava: o declínio da Pax Britanica e de seu sistema liberal e

“Império Informal”. (VISENTINI, p. 19, 2010) e teremos como marco a Conferência de

Berlim (1885) e o Ano Africano (1960), totalizando 75 anos. A cada um dos marcos

daremos a especial atenção em seu tempo.

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Através da Conferência de Berlim2, Ruanda é concedida à Alemanha por meio

do explorador Conde Gustav Adolf Von Gotzen que chega ao reino dos banyaruandas em

2 Principal responsável pelo estabelecimento das fronteiras do continente africano e que possui uma longa trilha de interesses para que a mesma aconteça e que aparece na discussão de HERNANDES (2005). Primeiro (1865- 1890) - os interesses de Leopoldo II da Bélgica em fundar um Império ultramarino; Segundo (1883- 1886) - a luta de Portugal pela implantação e conquista do projeto “Mapa cor-de-rosa” que ligaria direta e economicamente suas duas colônias: Angola e Moçambique, facilitando o transporte e comércio de mercadorias entre as mesmas. Terceiro (1887) - expansionismo da política francesa com a Grã- Bretanha no controle do Egito. Quarto (1890) livre comércio e navegação nas bacias do Níger e do Zaire. A partir da Conferência, a corrida para exploração do continente foi acelerada, onde além da

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1894 e encontra a sociedade organizada por vínculos clânicos e dependência pessoal onde

a divisão social estava diretamente ligada às riquezas e propriedades. Sendo assim, não

podemos classificar os ruandeses como raças ou mesmo etnias diferentes tendo como

base esta “divisão”.

exploração, os países colonizadores submetiam as colônias ao controle. É através da conferência de Berlim que regras para conquista e exploração são estabelecidas. Ver VISENTINI (2010).

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Podemos dizer que havia uma “elite”, que detinha o controle e conhecimento

sobre o gado, assim como existiam os agricultores, no entanto, nada impedia que um tutsi

se transformasse em hutu com a perda de seus bens ou até mesmo um hutu subisse para

posição de tutsi, a partir do momento que adquirisse propriedades para tal. A diferença

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por meio da racialização e da construção de identidades étnicas3 são evidenciadas com a

colonização europeia.

3 Em sua dissertação de mestrado, Alves (2005) explica a caracterização de uma sociedade por meio da etinicidade, discutindo primeiro a origem do termo “étnico”, depois traçando um percurso até o uso da palavra nos tempos atuais. A autora defende que, identidades étnicas podem ser culturalmente definidas ou biologicamente determinadas. Ela provê, sobrepõe e historiciza a relação Eu\Outro, caracterizando as relações sociais, econômicas e políticas na busca por vantagens materiais. Estas identidades por meio da etnicidade passam pelo processo contingencial, substancial e circunstancial.

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Os Alemães, ao chegarem em Ruanda, percebem uma organização dos

banyaruandas de maneira tripartite: twas, tutsis e hutus, sob o reinado de Kigeri IV

Rwabugiri4, e utiliza-se da organização social de Ruanda para tirar o máximo de proveitos

sem muitos custos, governando apenas administrativamente:

4 Primeiro rei de Ruanda a entrar em contato com europeus. Responsável por criar exércitos em seu reinado que impediam a entrada de estrangeiros em seu território, principalmente árabes.

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Von Gotzen conseguiu firmar tratados com os chefes de Tanganica,

Ruanda e Urundi, e os alemães passaram a exercer uma influência indireta

nos assuntos locais. Contudo, a potência europeia não revelou maior

interesse pela região e enfrentou com tropas insuficientes revoltas tribais

em diferentes áreas do que viria a ser a África Oriental alemã. Em 1911, s

alemães ajudaram os tutsis a esmagar uma revolta hutu, mas na Primeira

Guerra Mundial, forças belgas avançaram a partir da colônia do Congo

sobre a colônia alemã e, com o auxilio de uma ofensiva britânica a partir

de Uganda, derrotaram os alemães e seus aliados banyaruandas.

(MAGNOLI, p. 261, 2009)

O que não perceberam é que existiam hutus e twas de influência na região, hutus soldados

como bem discute Alves (2011). A ideia de sobreposição dos tutsis foi alimentada pelo

apoio alemão, mas a Alemanha perde a África Oriental por determinação da Liga das

Nações, no fim da Primeira Guerra e Ruanda passa para as mãos da Bélgica.

Não diferente, o processo de colonização da Bélgica em 1921 com a tática “dividir

para governar” continua a caracterização do povo ruandês. Utilizando-se da classificação

por três meios diferentes, mas que se complementam: traços biológicos, migração

geográfica e da “teoria hamítica”, justificará assim, tutsis e hutus como pertencentes a

diferentes grupos étnicos.

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A diferenciação por meio dos traços biológicos dos banyaruandas tinham como

parâmetro as alturas, medidas dos narizes e pigmentação da pele, traços estes que

buscavam melhor semelhança com os europeus belgas, como destaca (FRUTUOZO, p.

05, 2009),

... a raça que mais se assemelhava às características físicas européias era

superior, e eram muito diferentes dos nativos, pois apesar dos efeitos da

miscigenação (cabelos crespos e pele mais escura), possuíam nariz fino em

vez de “achatado” e esta característica os tornavam especiais, naturalmente

mais evoluídos e por isso, dominantes. Por fim, ele declarou que com um

pouco de educação e cristianismo poderiam ser quase tão superiores quanto

os britânicos e o resto dos homens brancos (MUNANGA, 2004, p.5).

A justificação por meio da migração, de acordo com a autora supracitada, é apresentada

da seguinte forma:

Conta-se que, inicialmente Ruanda foi ocupada por um povo pigmeu chamado

twa, que viviam em cavernas e que hoje representa 1% da população. Os tutsis

e hutus teriam vindo mais tarde e acredita-se que os hutus são um povo ‘bantu’

que veio primeiro do sul e do oeste de Ruanda, e que um povo nilótico (quem

vem das margens do Nilo) chamado tutsi veio depois, do leste e do norte.

(FRUTUOZO, p. 03, 2009)

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E complementa (MAGNOLI, p.263, 2009):

Inspirados por esta narrativa, os sábios belgas em Ruanda decidiram que os

tutsis só podiam ser um dos frutos das migrações hamíticas. Na versão

principal da tese, os tutsis seriam originários de algum ponto do Chifre da

África, possivelmente a Etiópia, numa versão alternativa, teriam se deslocado

a partir do vale do Nilo. Contudo, a origem etíope afigurava-se como a mais

sedutora para os estudiosos europeus, pois significava que os tutsis tinham

ancestrais cristãos.

Com a legitimação da superioridade dos tutsis através das três justificativas de

diferenciação do povo, implantam as carteiras de identidade étnica, classificando cada

indivíduo de acordo com sua etnia.

Os colonizadores não observaram que, as relações sociais e suas transformações

eram o que na verdade classificavam os banyaruandas, e (ALVES, p. 91, 2011) explica:

As transformações sociais eram comuns, um Hutu poderia se tornar um Tutsi e

um Tutsi poderia perder seu status social, se tornando Hutu79. Segundo o

dicionário de kinyarwanda80, a palavra Hutu significaria “filho social, cliente ou

aquele que não possui gado” e a origem do termo Tutsi seria gutuuka, que

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significa “enriquecer alguém” (Jacob, 1984 apud Taylor, 1999, p. 66). Tais

termos e os significados atribuídos a eles demonstram que Tutsi e Hutu são

categorias maleáveis relacionadas ao status social de cada indivíduo, baseado na

riqueza acumulada por estes, principalmente com relação à acumulação de gado.

Sem que fosse prestado a devida atenção às transformações sociais, os colonizadores

possibilitam que os tutsis detenham o direito a alguns privilégios e em troca podem fazer

a colonização de maneira indireta.

Entretanto, seria infantilidade de nossa parte, culpabilizar o processo colonizador

pelo episódio de Ruanda. Traçando este caminho, poderíamos incorrer sobre o erro de

desvincular dos ruandeses a responsabilidade por seus atos, tratando-os como meros

objetos manipuláveis. O que fizemos aqui, foi um apanhado por meio dos mitos de origem

para percebermos como a divisão, diferenciação e classificação dos banyaruandas foi

mistificada por meio de concepções europeias e suas classificações raciais. Percorrendo

este caminho, mostraremos no que estas concepções contribuirão para o surgimento dos

conflitos políticos, as guerras, a divisão dos ruandeses, assim como, perceberemos a

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utilização desta “classificação” para que o episódio de 1994 seja justificado por meio da

etnia, chamado por muitos de genocídio.

1.2 A Revolta de 1959

O desafio agora é pensar a justificação das diferenças, os privilégios, as mudanças

de sentido nas identidades como um instrumento importante para os ruandeses, a partir

do momento que estas atribuições definiam e beneficiavam os mesmos. O poder de

consumo, a cultura, o lugar social dos ruandeses contava com um instrumento identitário

e que configurava também, o ter ou não ter poder.

Entendendo que “poder” deve ser visto como algo que possui em seu âmago a

tripartite: individuo, poder e relações sociais. As identidades, dizem de um grupo, mas é

o individuo que responde por ela, se relaciona a partir de seu lugar e tem ou não o poder

de acordo com sua identidade. Quando não percebemos esta tripartite, incorremos no

risco de não vermos o individuo e enxergarmos o Estado como o único responsável por

todo mal do mundo.

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Em 1946, a Organização das Nações Unidas, dá a Bélgica, a tutela de Ruanda,

assim, maiores poderes sobre o território lhe eram conferidos enquanto que, a Bélgica

era obrigada a prestar contas de sua administração. O resultado deste processo foi uma

mudança na metodologia administrativa dos colonizadores, que também colocava a

colônia aos passos da independência.

Em 1946, a Organização das Nações Unidas, dá a Bélgica, a tutela de Ruanda,

assim, maiores poderes sobre o território lhe eram conferidos enquanto que, a Bélgica era

obrigada a prestar contas de sua administração. O resultado deste processo foi uma

mudança na metodologia administrativa dos colonizadores, que além de fortalecerem as

influencias tutsis na administração local, por meio de concessão de cargos, também

colocava a colônia aos passos da independência.

Na década de 1950, a Bélgica, começara a pensar na possibilidade de emancipação

a longo prazo e, juntamente com a Organização das Nações Unidas (ONU), dar início a

preparação da descolonização da região. No entanto, o que fazem é uma transformação

dos grupos tradicionais em empregados civis e estas medidas acirraram ainda mais as

tensões entre os banyaruandas:

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No ano seguinte, os hutus, já sob forte protesto ao regime de exclusão total de

sua etnia da administração política local, começaram a reivindicar um governo

da maioria e por uma “revolução social”. Em março de 1957, um pequeno

grupo de intelectuais publicou um documento denominado “Manifesto Hutu”

e por meio dele aclamavam a “democracia”. (ARRUDA, p. 33, 2012)

Este “Manifesto”, que não buscava a extinção das carteiras de identidade étnicas, mas

sim, denunciava a exploração, reivindicavam direitos e também a independência.

As diferenças étnicas sofrem uma nova intervenção... Sendo os Hutus maioria

reivindicando seus direitos, consequentemente, os tutsis minoria, passariam para o lugar

do subordinado. Apesar dos mesmos também almejarem pela independência, não

significava que deveriam “reparar” atos antigos e assumirem outro espaço, que não fosse

o da elite, dos privilégios, afinal, não sejamos hipócritas, nós não faríamos isto!

A reação dos tutsis à ameaça de perda do lugar social, justificada pela

superioridade natural, fez com que o manifesto Hutu se radicalizasse e criassem então

dois partidos políticos: a Association pour la Promotion Sociale de la Masse -

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APROSOMA5 (1958), que teve como líder Joseph Habyarimana Gitera “cuja intenção, a

princípio, era forjar uma aliança política em termos de classe e definir uma agenda política

para abordar as linhas de pobreza e subdesenvolvimento.” (ARAUJO, p. 33-34, 2012), e

o Parti du Mouvement de l’Emancipation Hutu- PARMEHUTU (1959), tendo como chefe

Grégoire Kayibanda e contando com apoio no norte e no centro de Ruanda. Os tutsis se

5 Criada em 1957, porém torna-se partido em 1958.

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concentraram entre o Rassemblement Démocratique Ruandais-RADER (1959) e Union

National e Ruandaise- UNAR, ambos liderados por aristocratas tutsis, mas que contavam

com a participação de alguns hutus como Françóis Rukeba.

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Os caminhos foram se estreitando de tal forma que em 1º de novembro de 1959,

Dominique Mbonyumutwa, ativista político hutu foi brutalmente agredido em Gitarama6,

o resultado em menos de 24 horas foram ondas de ataques às autoridades tutsis. Antes

deste acontecimento, Gourevitch (2000) adverte não ter ocorrido nenhuma onda de

6 Segunda maior cidade de Ruanda, com uma população de 84. 669 habitantes segundo o senso de 2002. Era capital de uma dentre as doze (intara) províncias antigas do país até 2005 e está localizada no centro do país, oeste de Kigali.

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violência política sistemática entre as duas etnias. Este evento ficou conhecido como “o

vento da destruição” (Arruda, 2012) e causou grandes migrações tutsis para colônias

vizinhas, como Zaire, atual Congo, Burundi e Uganda.

A revolta popular, por mais controvérsia que pareça, além de ganhar visibilidade,

conseguiu também admiração do coronel belga Guy Logiest, que teve como uma de suas

ações trocar chefes e subchefes tutsis por hutus, no início de 1960, como salienta

ARRUDA (2012). Ainda em 1960, a Bélgica “decide realizar uma nova reforma

administrativa e extingue a classificação sous-cheffeires10, e cria em seu lugar 229 postos

de administração local e mais 10 prefeituras.” (ARRUDA, p. 35, 2012) e organiza

eleições, onde o partido PARMEHUTU, de Kayibanda, será o vencedor com 70% dos

votos.

Podemos perceber que a Revolução de 1959 marcou expressivamente uma

mudança no poder administrativo do país, antes dirigido por tutsis, agora com uma parcela

hutu. Acontecimentos de suma importância entraram em curso após a revolta, em especial

proclamação da Independência Unilateral de Ruanda em 1961, quando a administração

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belga decide conceder poderes provisórios às administrações locais até que houvesse um

consenso entre Bélgica e ONU sobre a data das eleições legislativas no país.

Com poderes concedidos, (Arruda, p. 35, 2012) expõe que:

O governo provisório proclamaria pouco depois a independência unilateral e

a criação da República do Ruanda, em 28 de janeiro de 1961, precisamente na

região de Gitarama, onde se situava a base social de apoio primária do

PARMEHUTU e do governo provisório. Perante a impotência da ONU, e da

potência tutelar, em face do “golpe de Estado hutu”, a Bélgica decide então

realizar ainda naquele ano um referendo sobre a monarquia e simultaneamente

eleições legislativas, que seriam novamente ganhas pelo PARMEHUTU, com

mais de 70% dos votos.

Os novos legisladores criam a Constituição que irá reger a República, elegem Grégoire

Kayibanda como presidente de Ruanda e proclamam oficialmente a Independência em 1º

de julho de 1962. As questões étnicas são evidenciadas, fortalecidas, porém não

resolvidas. O governo muda de tutsi para hutu, do que foi caracterizado como opressor,

para oprimido, mas o que a Independência traria de novo?

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