100 Anos de Marcel Proust - Aranaldo Jabor

download 100 Anos de Marcel Proust - Aranaldo Jabor

of 3

Transcript of 100 Anos de Marcel Proust - Aranaldo Jabor

  • 7/26/2019 100 Anos de Marcel Proust - Aranaldo Jabor

    1/3

    19/11/13 100 anos de Marcel Proust - Jornal O Globo

    oglobo.globo.com/cultura/100-anos-de-marcel-proust-10812611 1/3

    Arnaldo JaborO colunista escreve s teras-feiras

    100 anos de Marcel

    ProustCustei a ler Proust e at 2007 s conhecia No caminho de Swann. Depois,

    no fiz outra coisa seno ler a obra completa de mais de trs mil pginas

    H cem anos saiu o primeiro livro de procura do Tempo Perdido deProust, comemorou outro dia o proustiano fita-azul Mario Sergio Conti.Tambm j escrevi aqui sobre esse gnio raro e volto hoje, citando-me,apesar de citao em boca prpria ser vituprio.

    Sim, eu confesso que custei a ler Proust e at 2007 s conhecia Nocaminho de Swann, como muita gente. Depois, me decidi, tranquei-me

    por quatro meses e no fiz outra coisa seno ler a obra completa de maisde trs mil pginas. Quando acabei, tive vontade de comear de novo.Fechei o livro como se perdesse um amigo. Como pude viver tantotempo sem conhecer este grande heri da solido da arte, que nosofertou sua prpria vida, uma vida que ele viveu fora da vida mesma,solitrio observador da malta de mundanos, quando frequentava os salesda Terceira Republica francesa, ainda com os ecos do Segundo Imprio?

    Aquela sociedade era a perfeita lente de aumento sobre paixes evaidades rasteiras em sua aparente sofisticao, ali, antes e durante aPrimeira Guerra, uma sociedade oscilante entre a aristocracia decadentee a burguesia afluente, ali, no comeo do antissemitismo do sculo XX edas tragdias que iam culminar em Hitler e que deixaram rastros at hoje.Como ns, ele viveu beira de catstrofes anunciadas qual sero asnossas? Ele se trancou no quarto e partiu para a epopeia deirrelevncias que guardassem verdades profundas sobre a sociedadefrancesa (e humana). No turbilho de acontecimentos terrveis, ele serefugiou para escrever e salvar-se pela beleza e arte.

    Proust ilumina o momento mais fecundo do modernismo, ele, um cubistados sentimentos, sob o mesmo vento que batia em Joyce, Picasso, Freud,Einstein, vergado sob a relatividade do espao-tempo, sofrendo aexploso do Sentido, a irrupo do Inconsciente. Mais que Joyce (pertode Proust, ele parece um frio fazedor de trocadilhos), ele inventa aliteratura moderna.

    Na vida que levo, comentando a vergonha de nossa poltica, tive asensao de ter lido-vivido uma coisa muito relevante, que entrevia omistrio inalcanvel da existncia, emoo que, em literatura, s tivecom Shakespeare e com a Ilada.

  • 7/26/2019 100 Anos de Marcel Proust - Aranaldo Jabor

    2/3

    19/11/13 100 anos de Marcel Proust - Jornal O Globo

    oglobo.globo.com/cultura/100-anos-de-marcel-proust-10812611 2/3

    O leitor vai torcer o nariz e perguntar, irritado com meu entusiasmo:Mas, afinal, por qu? Qual a dele, desse tal de Proust, que dizem queera veado?

    No quero fazer filosofia barata, mas acho que a dele era a seguinte:Proust encetou uma tarefa impossvel atingir o real. E a beleza dessaimpossibilidade acendeu a luz irradiante da obra. Ele busca a dissecao

    dos sentimentos na potica, assim como Freud, na tradio cientfica.Proust fez a geometria das emoes, descrevendo amores, inveja oumedo com a nitidez de um teorema, com a limpidez de um mapa degegrafo. Irritava-se quando diziam que ele era um microscpio dosdetalhes, pois ele queria descobrir leis, regras fixas que resumissem odiagrama dos comportamentos.

    Que imensa coragem a sua marginalizao escolhida! Que solido! O quefez esse homem ficar margem da vida, vivendo-a dentro, nosofrimento de tudo ver sobre a feliz insanidade dos homens comuns, ele,

    uma bicha solitria em pleno preconceito dos anos 1910, ele, com umasensibilidade que doa a cada ridculo, ele que transformou a prpriaanomalia em arte total, ele que escreveu uma Ilada interior, umHomero de aparentes irrelevncias, sem fim nem comeo, indo dainfncia at a morte num trajeto circular e recorrente, indo da naturezaque examinava em detalhes at os sales de duques e prncipes, ele quese detinha nos irisados matizes de uma corola das flores nos bosques atos tremores de clios da vaidade, os lbios vorazes da glria mundana, adentadura brutal do rancor, o esgar da inveja, o desespero da solido

    sexual nos bordis para masoquistas, a crueldade dos amores egostas, ocime como tortura desejada, tudo em uma sociedade se contorcendosob a luz negra da Primeira Guerra, Paris trmula, com viciados secomendo no breu dos tneis do metr, sob as bombas dos aviesalemes, a bravura sem prmio de soldados, a covardia de duquesarrogantes , o horror do caso Dreyfus, dividindo a sociedade emantissemitas e democratas, o ridculo profundo que ele analisava comcompaixo e sem dele se excluir, ele, que tudo via com uma mente picae com o olho feminino atento tanto para as nuances do vermelho

    Carpaccio das sedas da duquesa e dos azuis Veronese de um robe deFortuny como para a morte latejando nas artrias de velhos prncipes nossales, e sempre imolando a vida arte, querendo deixar algum vestgiono Tempo, pensando no em leitores que o aprovassem mas, generoso,

    para criar leitores de si mesmos, (como ele escreveu), para ser umaespcie de lupa que lhes desse meios de se lerem. Esta a sensao devazio que me toma. Enquanto eu o lia, eu me lia, estava perto de verdades

    profundas, aparentemente to rasas e mundanas. E agora que acabei,penso: Que ser de mim sem ele? A mediocridade geral da Repblicavolta como uma mar suja, as noticias do erro nacional, as imagens dafeira, a morte da beleza batem porta.

    Escrevo este artigo com sentimento de culpa (vejam vocs), pois estoufalando de Proust em vez dos presos do mensalo. Que vo pensar de

  • 7/26/2019 100 Anos de Marcel Proust - Aranaldo Jabor

    3/3

    19/11/13 100 anos de Marcel Proust - Jornal O Globo

    oglobo.globo.com/cultura/100-anos-de-marcel-proust-10812611 3/3

    mim? Imagino o leitor: Ser que ele est querendo se exibir, bancar oculto? Como ousa falar de algum artstico neste mundo em que asuperficialidade, a mediocridade da arte est na razo direta da

    profundidade crescente da tecnocincia?

    verdade. Talvez seja um pecado falar essas coisas. Proust viveu em ummundo acabado, no inicio do sculo XX, quando ainda havia a

    extraordinria importncia da arte, da pintura, msica, literatura. E haviaalguma esperana de Sentido, quando este sentido j se esvaa, e osgrandes artistas do modernismo tentavam salvar o afogado. Talvez omaior xtase de ler Proust resida em nos lembrarmos de como era a

    beleza, como era a esperana na arte.

    E tem mais: ns no estamos no futuro desse tempo passado, no. Nssomos sua decadncia.