100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

198

Transcript of 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

Page 1: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf
Page 2: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

NOTA

Otermo“lendas”utilizadonotítulodestaobraaplica-seemsentidoamplo,umavezqueolivroécompostoporlendas,contospopulareseperfisdepersonagens.Todosostextossãorecriaçõespessoaisdashistóriasqueatradiçãoconsagrou,comosacréscimosmínimoseinevitáveisdetoda“recontagem”,masque,emmomentoalgum,descaracterizamahistóriaoriginal.

Olivroestádivididoemtrêsseções:nasduasprimeirastemoslendasindígenasecontospopulares,enquantonaterceiraestãoesboçadososperfisdealgumasdasmaisimportantescriaturasmonstruosasouentidadessobrenaturaisdofolclorebrasileiro.

Nossofolclorepodeserdefinidocomoumaimensaobraaberta,enriquecidapelacontribuiçãodasmaisdiversasetnias.Quasenãohácontopopularcorrenteentrenós,porexemplo,quenãosejaumaadaptaçãodecontosdefadaseuropeusoudelendasafricanas.Como,porém,alémdeserembelaseengraçadas,essashistóriasestãodefinitivamenteincorporadasaoarsenaldanossaliteraturaoral,seriaumatolicepretenderexcluí-laspelosimplesfatodeseremimportadas.

Aquiloquepossuímosdemaisautênticoemnossofolclore,contudo,sãoasnossaslendasindígenas.Poressarazão,dediquei-lhesumaseçãoespecial,mesmoqueelassejampraticamentedesconhecidasdonossopovo.Estoucertodequealeituradestashistóriasdivertidaseoriginaisdaráaoleitorumanovaesurpreendentevisãodaextraordináriaculturadenossosverdadeirosancestrais.

Eassim,noconjunto,esperoterreunidoumbomapanhadodetudoquantoonossopovofoicapazdecriaretambémdeassimilardogranderepertóriouniversaldanarrativaoralepopular.

Umaboaleitura.

Page 3: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

PARTEI

LENDASINDÍGENAS

Page 4: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

OSFILHOSDOTROVÃO

(SAGADOSTÁRIAS–I)

Alendadaorigemdostárias,oufilhosdoTrovão(tambémditosfilhosdoSanguedoCéu)estálongedeseramaisfamosadasnossaslendasindígenas.Contudo,é,seguramente,umadasmaisinteressantes,razãopelaqualfoiescolhidaparaabrirestapequenamasrepresentativaamostradaextraordináriacapacidadeimaginativadosnossosverdadeirosancestrais.

Ostárias–outarianas–eramumatribodorioUaupés,situadonoAmazonas.Segundoosestudiosos,apalavra“tária”derivade“trovão”,elementogenésicoprimordialdessatribo.

Vamos,pois,àoriginalíssimalendaquecontaaorigemdostárias.Diz,então,quenumtempomuitoantigooTrovãodeuumestrondo

tãofortequeoCéurachouecomeçouagotejarsangue.Osanguecaiuemcimadelepróprio,Trovão–aquientendidocomoumentepersonalizado–,esecousobreoseucorpo.AlgumtemposepassoueoTrovãotrovejououtravez,eosanguequeestavasobreeleviroucarne.Maisadiante,umnovotrovejarfezcomqueacarnesedesprendessedoseucorpoefossecairsobreaTerra.Aotocarosolo,acarnesedespedaçouemmilpedaços,eestespedaçossetransformaramemgente–homensemulheres.

Assustadiçospornatureza,osfilhosdoTrovãocorreramlogoasemeternointeriordaprimeiragruta,assimqueanoiteceu(eleseramignorantesdascoisasdaTerra,então,aoveremosoldesaparecer,imaginaramqueelenuncamaisretornaria).

Quandocomeçouaamanhecer,porém,tiveramumagratasurpresa:océuvoltava,poucoapouco,atomarumacoloraçãovermelha,soboefeitodaluzdosol.

Elesobservaramosolsubiraocéue,quandoelechegouaozênite,sentiramfome.Noaltodeumaárvore,viram,então,umpássaroalimentando-sedeumfruto.

–Façamosomesmo!–disseumdosfilhosdoTrovão.Paraumaprimeirafrase,nãoestavanadamal.Demonstrava

prudênciaaliadaaumaboaobservação.Ostárias–jápodemoschamá-losassim–subiramnamesmaárvore

eforamcomerdosmesmosfrutoscomosquaisaavesealimentava.

Page 5: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

Empanturraram-seatéanoitevoltar,quandotodos,assaltadosnovamentepelomedo,foramsemeternointeriordagruta.

Nodiaseguinte,bemcedo,treparamoutraveznaárvoreparasaciarafome.Debaixodela,surgiramdoiscervos,machoefêmea,quetambémcomeçaramasealimentardosfrutosquecaíam.Daliapouco,umdoscervosmontousobreooutro,eosdoisesqueceram-sedetudoomais.

–Oqueestãofazendo?–disseumdostárias,queaindaignoravaascoisasdestemundo.

Elesobservarambemeretornaramparaointeriordagruta.Ninguémconseguiaesqueceroquesepassaraentreoscervos,eestavamtodosextraordinariamenteinquietos.

Duranteanoite,aMãedoSono–umadastantasCys,asmãesdivinasindígenasdetudoquantohánamata–visitou-osemsuagrutaparacontar-lhesquemeleseram.Depois,transformou-osemcervos,eelesforamcorrendoparabaixodaárvorerepetiralegrementeoqueocasaldecervosdeverdadehaviafeito.

Quandoodiaamanheceu,osparesaindaestavamabraçados,umhomemparacadamulher.

Efoiassimqueostáriasderaminícioàsuagloriosadescendência.

Page 6: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

OSTÁRIASAPRENDEMAFAZEREMBARCAÇÕES

(SAGADOSTÁRIAS–II)

Alendadostáriasétãointeressantequantoumasagaislandesa,ecomportaváriosepisódios.Comotantasoutraslendasextraviadasmundoafora,sónãogozadoreconhecimentouniversalporquelhefaltouquemadesenvolvesseemamplosevibrantespainéis.

Comovimosnoprimeiroconto,ostáriassurgiramdoTrovãoeaprenderamasereproduzirobservandoaspráticassexuaisdoscervos.(EleshaviamsidometamorfoseadospelaMãedoSononaquelesmesmosanimais,recuperandologodepois–éoquesesupõe–aantigaformahumana.)

Todasasnoitesoscasaisrepetiamaspráticasaprendidas,detalmodoquenãotardaramasurgirseusprimeirosfilhos.Aospoucos,elesaprenderamtambémaplantareacriaranimais.

Então,umdia,observandoorioAmazonas,elespensaramemcomopoderiam“andarcomopatossobreaságuas”.(Aexpressãoqueusaramfoiexatamenteesta,poisnãosabiamaindaoquefosse“navegar”.)

Todososdiaselessepostavamàsmargensdorioeficavamobservando,cheiosdeadmiração,oirevirserenodospatossobreaágua.

–Temosdeaprender,também,acaminharsobreaságuas!–disse,umdia,olídersupremodostárias.

Osíndios,deixandodeladoaobservação,passaramentãoàação.–Vá,mergulheefaçacomoeles!–disseocacique,atirandonaágua

umdostáriaspróximos.Opobreíndiocaiunaáguaeespadanoufeitoumdesesperado,e,se

nãofossemosdemaisretirarem-nodali,teriadescidoaofundocomoumapedra,semjamaisretornar.

Masostáriaserampersistentesecontinuaraminsistindo,atéqueumdiaumdeles,bafejadopelasorte,viupassarumpaudebubuiaflutuando.Numreflexofeliz,eleagarrou-seaotroncoeimediatamentesentiuquenãoafundavamais.Depois,comumpoucomaisdeprática,conseguiuguiarotroncocomasmãosmetidasdentrod’água.Então,elefoiparaondequis,eafelicidadeinundousuaalma.

Comonãohavianinguémporpertoparaadmirarsuafaçanha,oíndioretornouàmargemefoicorrendoàaldeiacomunicarasuafantástica

Page 7: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

descoberta.–Descobri,irmãos,ummeiodecaminharsobreaságuas!–gritava

ele,cheiodeorgulho.Logoaoamanhecertodosforamveraproeza.Otáriaatirou-sena

águamontadoemsuaboiaimprovisadae“andou”portodooriosemjamaisafundar.

Efoiassimqueostáriasaprenderama“andarcomoospatossobreaságuas”e,logodepois,aconstruirasuaprimeiraembarcação,amarrandotroncosunsnosoutros.

Page 8: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

APRIMEIRANAVEGAÇÃODOSTÁRIAS

(SAGADOSTÁRIAS–III)

Continuandocomadeliciosalendadostárias,vamossaberagoracomoosverdadeirospaisdanacionalidadeempreenderamasuaprimeiraegloriosanavegação.

Depoisdeteremaprendidoaconstruirumajangada,ostáriaslançaram-seansiosamenteaorio.Nãosesabeaocertosefoiapenasumaouseforammaisjangadas,masocertoéqueváriosindígenastomarampartenessaexpedição.Consigolevaramumfarneldeviagem.

Quandoosexpedicionáriospartiram,tudofoialegria.Porém,quandoaúltimamanchadeterrasumiu,elesengoliramemseco.

–Aterrasumiu!–disseumdosíndios,vagamentealarmado.Ochefedaexpedição,porém,nãoquisretroceder.–Adiante!–disseele,apontandoohorizonteplanodaságuas.Entãoacoragemretornouaosseuscorações,eelesseguiramalegres

econfiantesatéanoiteestreladadesabarsubitamenteaoseuredor,comoumacortinanegracheiadefuros.

Destavez,oânimodetodosdecaiuassustadoramente.–Alguémsabedizerondeestamos?–perguntouochefetária,

lutandoparadarumtomserenoàsuavoz.Naturalmenteque,naquelesprimórdiosdanavegação,aindanão

haviapassadopelacabeçadeninguémdividirtarefas,atribuindoaalguémafunçãodeguiaoupiloto.Justamenteporisso,todosresponderam,numaadmirávelconcordância,quenãofaziamamenorideiadeondeestavam.

Parapiorarascoisas,umventofortecomeçouasoprar,empurrando-osaindamaisparaashorrendasedesconhecidasvastidõesdorio.Emtrêsdiasacabouacomidae,quandoafomeapertouparavaler,umdostáriasavistoualgunstapurus(pequenaslarvas)nosinterstíciosdajangada.Eleencheuamãoeenfioutudonaboca.Acaretaquefezeradeagrado:acomidaeraboa.Asoutrasmãoscolheramavidamenteorestodostapurus,eassimosíndiossaciaramporalgumtempoasuafomeatroz.

Osviajantesvagaram,semremonemrumo,duranteváriasluas.Então,quandotudopareciaperdido,elesviram,aolonge,asombrada

Page 9: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

terra.–Terra!Terra!–gritouumdeles,dandooprimeirogritonáuticoda

históriadostárias.Osíndiosdesembarcaramnumlugarermo,muitoparecidocomsua

própriaterra.Numaeuforiadedoidos,elespuseram-seabeijarosoloeacometeroutrasloucurastípicasdenáufragosresgatados.Depois,comeramalgunsovosqueencontraramedecidiramfundarumaaldeiaalimesmo.

“Trêsluasdepois,aaldeiaestavapronta”,dizacrônicaoriginal.

Page 10: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

BUOPÉ,ONOBREGUERREIRO

(SAGADOSTÁRIAS–IV)

Aextraordináriasagadosíndiostáriaschega,agora,aoseuvibrantedesfecho.Destafeitaficaremossabendocomonossosancestraistornaram-segrandesconquistadores.

Ochefedaprimeiraexpediçãonáuticadostáriaschamava-seoriginalmenteUcaiari,passandodepoisaserconhecidoporBuopé.Eleeraumtuixaua,títulosupremodeumchefetária,ehaviachegadocomseushomensnumajangadaapósnavegarsemrumopelorioNegro.

Aocolocarospésemterra,onobreguerreirodecidiraseestabelecerali.

–Voltarcomo,senemsabemosparaqueladoseguir?–disseraeleaoscompanheiros.

Convictodisso,ochefeindígenamandou,então,construirumaaldeiaeseautoproclamousenhorabsolutodaterra,poisassimsefaziaemtodapartenosdiasantigos.

Emtrêsluas,anovaaldeiaestavapronta.Masnãodemoroumuitoeumdostáriastrouxeaochefeesta

péssimanotícia:–Grandetuixaua,encontreirastrosdepéshumanospróximosda

aldeia!ImediatamentenasceunopeitodeBuopéacertezadequeestavam

sendovigiados.–Vamos,então,espionarosespiões!–disseele,tomandooseu

tacape.Buopénãoqueriasaberdeninguémmaisemseusdomínios,mesmo

quejáestivessemalimuitoantesdele.Aquelaterra,agora,pertenciaaosfilhosdoSanguedoCéu.

Apóscertificar-sedequeaspegadaspertenciamaosmembrosdeumatribovizinha,Buopéreuniurapidamenteosseushomens.

–Alegrem-se,teremosguerra!–anunciouele,etodospuseram-seaconfeccionargrandesquantidadesdetacapes,arcos,flechas,fundaseorestantedearmasentãousadaspelosíndios.

Umaluadepois,ostáriasguerrearamcontraosseusinimigosnativos,derrotando-osfragorosamente.Alémdeconquistaremmaisuma

Page 11: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

boaporçãodeterritório,osfilhosdoTrovãoconquistaramtambémumaporçãodemulheresdatribovencida.

–Agora,jápodemosmultiplicaronúmerodetárias!–disseBuopé,emjúbilo.

TrêsanostranscorreramatéqueBuopéeosseusvalorososguerreirospudessementenderalínguadaquelasmulheres.Quandoissofinalmenteaconteceu,elesdescobriramqueoutraporçãodagentedelasvivianumlugarnãomuitodistantedali.

–Levem-nosatélá!–ordenouotuixauaàsmulheres.Imediatamente,foiorganizadaumanovaexpediçãodeconquista.

Quando“fezmãodelua”,ouseja,dentrodecincoluas,Buopéeosseuschegaramaolugar.

Abatalhaduroutrêsdias,eaocabodelaBuopéera,denovo,ovencedor.

–Maisventresparaespalharanossaraça!–disseochefeguerreiro,tomandoparasioutravezasmulheresdosinimigosmortos.

EassimochefetáriafoiconquistandotodosospovosàsmargensdorioNegro,atétornar-sesenhorabsolutodaregião.Quandoseusfilhosficaramadultos,mandou-osiremguerrearcontraastribosdecanibaisacimaeabaixodorio.

Buopétinhaocostumede,apósmatarosseusinimigos,iratéasmargensdorioecuspirdentrodeumfunildefolha.Depois,lançava-ocorrentezaabaixo,afimdechamarmagicamenteasuagentedistante.

Então,osanossepassarameeleenvelheceu,perdendofinalmenteasforças.Umanoite,aMãedoSonolheapareceuoutravezeofezsonharquetinhamorrido.Buopéviu,porentreasnévoasdosonho,queoseucorpojánãofaziamaissombraeque,aoredordele,todoschoravam.

Eraoavisodofim.Onobretuixauareuniuseusfilhos,deu-lhesasúltimasinstruçõese,

quandoosolsurgiu,umbeija-florsaiudedentrodoseupeitoedisparouemdireçãoaocéu.

OcorpodeBuopéfoienterradonumagrutasecreta,cujalocalizaçãopermaneceignorada.Descendentealgumrecebeuautorizaçãodeostentaroseunomeglorioso,etodoaquelequepretendeuutilizá-lo,mesmosobformasdisfarçadaseridículas,sofreuamaldiçãoimplacáveldetornar-se,portodososdiasdasuavida,umpobre-diabofracassadoerosnadordemaledicências.

Page 12: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

MAIRE-MONANEOSTRÊSDILÚVIOS

Ostupinambáscreemquehouve,nosprimórdiosdotempo,umserchamadoMonan.Segundoalgunsetnógrafos,elepodianãoserexatamenteumdeus,masaquiloqueseconvencionouchamardeum“heróicivilizador”.

Deusounão,ofatoéqueMonancriouoscéuseaTerra,etambémosanimais.Eleviveuentreoshomens,numclimadecordialidadeeharmonia,atéodiaemqueelesdeixaramdeserjustosebons.Então,Monaninvestiu-sedeumfurordivinoemandouumdilúviodefogosobreaTerra.

AtéaliaTerratinhasidoumlugarplano.Depoisdofogo,asuperfíciedoplanetatornou-seenrugadacomoumpapelqueimado,cheiadesaliênciasesulcosqueoshomens,maisadiante,chamariamdemontanhaseabismos.

Desseapocalipseindígenasobreviveuumúnicohomem,Irin-magé,quefoimorarnocéu.Ali,emvezdeconformar-secomopapeldefavoritodoscéus,elepreferiuconverter-seemdefensorobstinadodahumanidade,conseguindo,apósmuitassúplicas,amolecerocoraçãodeMonan.

SegundoIrin-magé,aterranãopoderiaficardojeitoqueestava,arrasadaesemhabitantes.

–Estábem,repovoareiaquelelugaramaldiçoado!–disseMonan,afinal.

Ahistória,comovemos,étãovelhaquantoomundo:umsersuperiorcriaumaraçaelogodepoisaextermina,tomando,porém,ocuidadodepouparumoumaisexemplaresdela,afimderecomeçartudooutravez.

Efoiexatamenteoqueaconteceu:MonanmandouumdilúvioàTerraparaapagarofogo(aquiodilúvioéreparador)eatornounovamentehabitável,autorizandooseurepovoamento.

Irin-magéfoiencarregadoderepovoaraTerracomoauxíliodeumamulhercriadaespecialmenteparaisto,edestauniãosurgiuoutropersonagemmíticofundamentaldamitologiatupinambá:Maire-monan.

EsseMaire-monantinhapoderessemelhantesaosdoprimeiroMonan,efoigraçasaistoquepôdecriarumasériedeoutrosseres–osanimais–,espalhando-osdepoissobreaTerra.

Apesardeserumaespéciedemongeegostardeviverlongedaspessoas,eleestavasemprecercadoporumacortedeadmiradoresedepedintes.Eletambémtinhaodomdesemetamorfosearemcriança.

Page 13: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

Quandootempoestavamuitosecoeascolheitastornavam-seescassas,bastavadarumaspalmadasnacriança-mágicaeachuvavoltavaadescercopiosamentedoscéus.Alémdisso,Maire-monanfezmuitasoutrascoisasúteisparaahumanidade,ensinando-lheoplantiodamandiocaedeoutrosalimentos,alémdeautorizarousodofogo,queatéentãoestavaocultonasespáduasdapreguiça.

Umdia,porém,ahumanidadecomeçouamurmurar.–EsteMaire-monanéumfeiticeiro!–diziaocochichointensodas

ocas.–Assimcomocriouvegetaiseanimais,essebruxohádecriarmonstroseTupãsabeoquemais!

Então,certodia,oshomensdecidiramaprontarumaarmadilhaparaessenovosemideus.Maire-monanfoiconvidadoparaumafesta,naquallheforamfeitostrêsdesafios.

–Belamaneiradeumanfitriãoreceberumconvidado!–disseMaire-monan,desconfiado.

–Ésimples,naverdade–disseochefedosconspiradores.–Vocêsóterádetranspor,semqueimar-se,estastrêsfogueiras.Paraumsercomovocê,issodevesermuitofácil!

Instigadopelosdesafiantes,etalvezumpoucoporsuaprópriavaidade,Maire-monanacabouaceitandoodesafio.

–Muitobem,vamosaisso!–disseele,querendopôrlogoumfimàcomédia.

Maire-monanpassouincólumepelaprimeirafogueira,masnasegundaacoisafoidiferente:tãologopisounela,grandeslabaredasoenvolveram.Diantedosolhosdetodososíndios,Maire-monanfoiconsumidopelaschamas,esuacabeçaexplodiu.Osestilhaçosdoseucérebrosubiramaoscéus,dandoorigemaosraioseaostrovõesquesãooprincipalatributodeTupã,odeustonantedostupinambásqueosjesuítas,aochegaremaoBrasil,converteramporcontapróprianoDeusdassagradasescrituras.

Dessesraiosetrovõesoriginou-seumsegundodilúvio,destavezarrasador.

Nofimdetudo,porém,asnuvenssedesfizeramepordetrásdelassurgiu,brilhando,umaestrelaresplandecente,queeratudoquantorestaradocorpodeMaire-monan,ascendidoaoscéus.

Page 14: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

***

Depoisqueomundoserecompôsdemaisumcataclismo,otempopassouevieramàTerradoisdescendentesdeMaire-monan:eleseramfilhosdeumcertoSommay,esechamavamTamendonareeAriconte.

Comonormalmenteacontecenaslendasenavidareal,arivalidadecedoseestabeleceuentreosdoisirmãos,enãotardouparaqueafogueiradadiscórdiaacirrasseosânimosnatriboondeviviam.

Tamendonareerabonzinhoepacífico,paidefamíliaexemplar,enquantoAriconteeraamantedaguerraetinhaocoraçãocheiodeinveja.Seusonhoerareduzirtodososíndios,inclusiveseuirmão,àcondiçãodeescravos.

Depoisdediversosincidentes,aconteceuumdiadeAriconteinvadirachoçadeseuirmãoelançarsobreochãoumtroféudeguerra.

Tamendonarepodiaserbom,massuabondadenãoiaaoextremodesuportarumadesfeitadessas.Erguendo-se,oirmãoafrontadogolpeouochãocomopéelogocomeçouabrotardarachaduraumfinoveiodeágua.

Aoveraquelarisquinhainofensivadeáguabrotardosolo,Aricontepôs-searirdebochadamente.

Acontecequearisquinharapidamenteconverteu-senumjorrod’água,enuminstanteochãosobospésdosdois,bemcomoosdetodaatribo,rachou-secomoacascadeumovo,deixandosubiràtonaumverdadeiromarimpetuoso.

Aterrorizado,oirmãoperversocorreucomsuaesposaatéumjenipapeiro,eamboscomeçaramaescalá-locomodoismacacos.Tamendonarefezomesmoe,depoisdetomaraesposapelamão,subiucomelanumapindoba(umaespéciedecoqueiro).

Eassimpermaneceramosdoiscasais,cadaqualtrepadonotopodasuaárvore,enquantoaságuascobriampelaterceiravezomundo–ou,pelomenos,aaldeiadeles.

Quandoaságuasbaixaram,osdoiscasaisdesceramàTerraerepovoaramoutravezomundo.DeTamendonareseoriginouatribodostupinambás,edeAricontebrotaramosTemininó.

Page 15: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

AVINGANÇADEMAIRE-POCHY

AsagadosdescendentesdeMonannãoterminoucomosdoisirmãosdocontoanterior.Depoisdeles,vieramoutros,edentreessessobressaiu-seumcertoMaire-Pochy.

Apesardanobreascendência,Maire-Pochy,poralgumadesgraçadodestino,nasceravotadoàinfelicidade.Alémdeservodocacique,eleerafeioecorcunda.

Maire-Pochygostavadepescar,ecertodiatrouxedorioumbelopeixe.Aovê-lo,afilhadoseuamolambeuoslábiosdeapetite.

–Quebeleza!Tudofariaparasaboreá-lo!Maire-Pochycorreulogoapreparar,elemesmo,obelopeixeno

moquém,umaespéciedegrelhanaqualosíndiosassamacarne.Opeixedeviasermuitoespecial,poistãologoajovemocomeu,ficou

grávida.Omeninonasceucomumarapidezinaudita,elogoopaidajovemquissaberquemeraopaidacriança.

Masninguémseapresentou,oqueobrigouocaciqueaterumaconversacomopajé.

–Osmiseráveisestãocalados,eninguémquerassumirapaternidade!–disseomorubixaba.–Comoheidesaberqueméopaidacriança?

Opajé,porém,quetinhareceitasparatodososmales,tinhaumatambémparaeste.

–Éfácildescobrir–disseele,comumaempáfiaserena.–Reúnatodososhomensdatriboeosfaçadesfilardiantedajovemportandoseusarcos.Quandooverdadeiropaiseapresentar,acriançatocaráoseuarco.

Ocaciquefezcomoopajédissera,etodososhomenssaudáveisdatribodesfilaramdiantedajovemcomobebêaocolo.Maisdecemíndios,detodosostamanhos,passaramàfrentedobebê,maselenãotocouoarcodenenhumdeles.

Então,oterrorcresceunaalmadocacique.–SeráAnhangá,oespíritomau,opaidacriança?Mas,quandotodosjáestavamsedispersando,opajégritou:–Esperem!FaltouMaire-Pochy,ocorcunda!Umcoroderisosexplodiuentreosíndios.–Estábrincando?–exclamouocaciqueaopajé.

Page 16: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

–Eleéumhomemsaudável,apesardaaparência–disseopajé.–Quedesfiletambém!

EntãoMaire-Pochydesfiloudiantedaíndiaedeseubebê.Assimqueelepassoudiantedosdois,portandooseuarco,ogarotoesticouobracinhoefezvibraracorda.

Umsomparecidocomodaharpasoou,fazendocalaratribointeira.–Afrontaevergonha!–gritouomorubixaba,fuzilandoafilhacomos

olhos.Nomesmodia,ocaciqueordenouqueatribointeirapartisse

daquelelugar,abandonandoafilhaeonetojuntocomMaire-Pochy.–Dehojeemdiante,nãotenhomaisfilha!–esbravejouocacique,

antesdepartir.Desdeaqueledia,atabaflorescenteconverteu-senumataba-

fantasma,habitadaapenaspelamulher,acriançaeMaire-Pochy.Malsabia,porém,ocaciqueque,aopartir,levaraconsigouma

maldição,poisnasnovasterrasverdejantesondeatriboseinstalounãocresciamaisumúnicotalodeerva,aáguahaviasecadoetodaacriaçãoperecera.

–IstosópodeserumamaldiçãodeMaire-Pochy!–disseocacique.Nasterrasondehaviampermanecidoocorcundaeaíndia,tudo

continuavaàsmilmaravilhas:asplantaçõesbrotavamporsimesmas,aáguacorriafrescaeestuanteeosanimaisprocriavamcomocoelhos.

Aosaberdosinfortúniosdocacique,Maire-Pochymandoudizeraelequepoderiamvirabastecer-senasterrasondeagoraeraosenhor.

–Maire-Pochydizquenãoguardamágoaalguma–disseoemissárioaocacique.

Omorubixabapensouumpoucoedisse:–É,nãotemoutrojeito,vamosterdenoshumilhardiantedaquele

miserável!Entãoapresentaram-sediantedocorcundaedajovem.–Abasteçam-sedetudoquantoquiserem–disseMaire-Pochy,com

umarpiedoso.Osesfomeadosselançaramàcomidafarta,espalhadapordúziasde

moquéns.Aoexperimentaremospitéus,noentanto,sobreveioimediatamenteadesgraça,poistudonãopassavadeumaarmadilha.Logotodoscomeçaramaseconverteremporcos,emgriloseemmaracanãs(espéciedeararamenor,deplumagemverde).Ocaciqueseconverteunumjacaré,enquantosuaesposavirouumatartaruga.

Cumpridaavingança,Maire-Pochyfezcomooseuantepassado

Page 17: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

Monanesubiuàsnuvens,paranuncamaisretornaràTerra.

Page 18: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

OCOCARDEFOGOEOSGÊMEOSMÍTICOS

OfilhodeMaire-Pochy,oíndiovingativodahistóriaanterior,viveualgumtempoentreostupinambásantesderegressaraoscéus,deonde,presumivelmente,viera.

OprosseguidordasagadosMonanpossuíaumcocardefogo,ouacangatara,quetinhaopoderdeincendiaracabeçadaquelequeresolvesseexperimentá-losemaautorizaçãododono.

Apesardisso,nãofaltouumimprudentedispostoaarriscar.Quandoaschamasenvolveramsuacabeça,elecorreuparaumalagoaemergulhou,convertendo-seinstantaneamentenumasaracura.Dizemqueéporissoqueessaavepossuiatéhojeobicoeaspatasvermelhas.

QuandoofilhoMaire-Pochyretornouàsuaverdadeiracasa,queeraoSol,deixounomundoumfilhoqueatendiapelonomedeMaire-Até.

Certafeita,Maire-Atéresolveufazerumaviagemcomsuaesposa.Masaesposa,alémdesermeiolenta,estavagrávidaenãoconseguia

acompanharospassosansiososdomarido.–Lentamesmo!–disseavozdeMaire-Até,sumindonamata.Apobremulhercaminhoudesatinadaatéperder-senocipoalda

floresta.–Maire-Até,ondeestávocê?–Elefoiporali!–disse,dealgumlugar,umavozfininha.Aíndiaestaqueou,assustada.–Quemdisseisso?–Sigaporaquelavereda,minhamãe!–disseavozinha,outravez.Sóentãoelacompreendeuqueavozvinhadedentrodasuabarriga.–Você?Entãojáfala?–disseelaparaopróprioventre.Umpica-pauqueobservavatudoparoudemartelarotroncoda

árvoreebalançouacabeça,desconsolado:–Outradoida!Maseraverdade,sim:ofetomiraculoso,antesmesmodenascer,já

tinhaodomdafala.–Vamos,minhamãe,alcancemeupai!–disseavozinha,impaciente.Amulherarremessou-senadireçãodaveredaecontinuouabuscar

Maire-Até,maselenãoeracapazdediminuiropassoecadavezdistanciava-semais.

Aopassarporumamoitacheiadefrutinhasvermelhas,avozinhagritou:

Page 19: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

–Espere,minhamãe,junteaquelasfrutinhas!Masaíndiaestavacompressaenãoquispararpornadadeste

mundo.–Euqueroasfrutinhas!–esbravejouacriança,sapateandono

ventredamãe.–Elasnãoprestam,dãodordebarriga!–exclamouaíndia.Aochegaraumaencruzilhada,elabateunabarriga.–Paraqueladoseupaifoi?Infelizmente,desdeaqueleinstante,avozinhaemudeceu.Aíndia

tentoudetodososmodosfazerseuventrefalaroutravez,mastudooqueconseguiuextrairdeleforamalgunsroncosdefome.

Entãosuaalmaconheceuopânico.Perdida!Sim,agoraelaestavapositivamenteperdida!Nãotardaria

paraqueosmausespíritosouascriasmonstruosasdaflorestaviessematazaná-la!

Depoisdemuitoandar,acabouenxergandoumaocaperdida.–GraçasaTupã,estousalva!Pelomenoseraoqueelapensava,poisnatalocaviviaumíndioque

estavahaviaanossemverumaíndia.Assimqueelapediuasuaajuda,elepuxou-aparadentrodaocaefezcomelaoquebemquis.

Resultado:aesposadeMaire-Atéficougrávidaoutravez.Quandotudoterminou,elacobriuorostocomasmãos.Noseupeito

misturavam-seavergonhaeosentimentodevingança.Osentimentodevingançaelavotava,antesdetudo,aoseumarido,quenãoquiseraesperá-la.Quando,porém,decidiulevaracaboasegundavingança,contraoseuagressor,descobriuqueumcastigosobrenaturaljáhaviadescidosobreoele:naesteiraondeelahaviasidoabusada,restavaapenas,nolugardoíndio,umgambáfedorento.

Aíndiaabandonouaocacertadequesuasdesditashaviamchegadoaofim,masaindahaviaummalmaiorguardado.Nembemdeixaraolugarquandodeparou-secomumíndiocanibal.EleseapresentoucomoJaguaretêedissequepretendiacomê-la.

Etalcomodisse,assimofez,detalsortequeapobreíndiafoidevoradaatéoúltimobocadopelotalJaguaretêepelosdasuacomunidade,conhecendoali,finalmente,ofimdassuasdesditas.

Antesdedevoraraíndia,porém,ocanibalretiroudoventreasduascrianças–ofilhodeMaire-Atéeodoíndioqueahaviaatacado–eatirou-asnomonturo.

Nodiaseguinte,algumasíndiaspiedosasrecolheramasduas

Page 20: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

crianças.Dizalendaque,aocrescerem,osdoisirmãosvingaramamorteda

mãeatraindooíndioeosseussequazesatéumailha,ondelhesprometeramfartaalimentação.Natravessiapelaágua,oscanibaissetransformaramemanimaisselvagens–possivelmenteemjaguares,jáque,segundoosestudiosos,onomedolíderJaguaretêremeteàfiguradojaguar.

Maire-Atécriouosdoisfilhos,olegítimoeoilegítimo.Oilegítimo,comonãopodiadeixardeser,eradiscriminadoemtodaparte,sendochamadode“ofilhodogambá”.

Maire-Atéeducou-os,porém,damesmamaneira,impondo-lhesasprovasrudesdaselva.Numadessasprovas,osdoisirmãosdeveriampassarporentreduasrochasquetinhamopoderdeesmagaraquelesquetentassempassarentreelas.Ofilhodogambáfoiesmagadoaotentaraproeza,enquantoofilhodeMaire-Atésaiu-sevitorioso.Penalizado,porém,domeio-irmão,ofilholegítimoressuscitou-o,poispossuíaosdonsmágicosdadescendênciadeMonan,osemideuscivilizador.

Mashavia,ainda,umaúltimaprova:furtarosutensíliosdepescadeAgnen,umsermíticocujaocupaçãoprincipaleraadepescaropeixeAlain,alimentodosmortos.

Decididoatersucessonoseufurto,ofilholegítimodeMaire-Atétornou-seumpeixee,depoisdedeixar-sepescar,furtoutudoquantoquisenquantoopescadorestavadistraído.

Ofilhodogambá,porém,saiu-semalaotentaromesmoestratagema,eacabousendomortomaisumavez.Felizmente,oseuirmãodemonstrounovamenteasuagenerosidadee,depoisderecolherasespinhasdofilhodogambá–lembremosqueelesemetamorfosearaempeixe–,assoprousobreelaseojovemretornou,destaforma,àvida.

Existemváriasversõesparaessasproezasdosgêmeosmíticos,quevariammuitoconformeatribo,masocertoéquesãodoispersonagensfundamentaisdareligiãoindígena.

Page 21: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

AONÇAEORAIO

Osíndiostaulipangs,habitantesdoextremonortedoBrasil,contamalendaaseguir.

Certafeita,aonçapasseavapelamataquandoencontrouoraioafabricarumporrete.Aonçanãoconheciabemoraio,poisnuncatinhavistoumemterra,muitomenosafabricarporretes,eporissoimaginouquesetratavadealgumanimal.

Entãoelacomeçouapisarmacioe,depoisdedaravolta,semservista,pulousobreoraio.

Oraio,porém,escapoucomumpuloveloz,semsofrernada.Aonça,desapontada,indagou:–Quemévocê?–Souoraio,nãovê?–Vocêémuitoforte,nãoé?–Estáenganada,nãosounadaforte.Aoescutarisso,aonçainflouopeitoeengrossouavoz.–Poiseusouoanimalmaisfortedestasmatas!Quandoestou

furiosa,nãosobranadainteiro!Então,parademonstrarasuaforça,aonçatrepounumaárvore

enormeecomeçouadevastartudo,quebrandoumporumdosgalhos.Depois,desceuparaosoloecomeçouaescavá-lo,atirandoparacimatufosderelvaedeterraatéestartudorevirado,comoseumtatudoidotivessepassadoporali.

–Muitobem,queachoudisso?–disseaonça,arfante.Oraioescutou,masnãodissenada.–Vamos,querovê-lofazeralgoparecido!–desafiouaonça.–Comopoderia,senãotenhoasuaforça?–disseoraio,afinal.Infladaaindamaispelaconfissãodoraio,aonçaentregou-seanova

demonstraçãodeforça,revolvendotudooutravezatéterabertoumaclareiranapartedamataondeestavam.

Enquantoaonçasorria,esbaforida,oraiotomouoseuporreteecomeçourepentinamenteavibrá-lonochãoeportudoaoredor,fazendoaonçaquicarerebolarpelosolocomoumbichodepano.Umaverdadeiratempestade,seguidaderaioseventania,tornoutudoaindamaissério,apontodeaonçaacharqueomundoseacabaria.Quandoatempestade

Page 22: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

finalmentecessou,aonçamalencontrouforçasparapôr-senovamenteempéeircorrendoesconder-seatrásdeumarocha.

Masoraiogostaradabrincadeiraearremessouumafagulhaquefezavoltanarocha,acertandocomprecisãoorabodaonça.Aonçadeuopulomaisaltodetodaasuavida,chamuscouacabeçanococardoSoledesceuàTerraoutravez,fugindoatodaavelocidade.

Oraiocontinuouavibraroseuporreteeaarremessarcoriscosefagulhascomtantaintensidadeparacimadapobrebichanaqueelaviu-seobrigadaaprocurarrefúgionatocadeumtatugigante.

Tudoemvão:oraiovarejouacovadotatueacertouemcheio,outravez,osfundilhosdaonça.Nãohaviajeito:ondequerqueaonçabuscasserefúgio,aliaalcançavaobraçolongodoraio.

Aomesmotempo,começouasoprarumventofrioeacairumachuvagelada,ecomoaonçajáestavaquasesempeloalgum,devidoàsqueimaduras,poucofaltouparaelacongelar-se.

–Depoisdofogo,ofrio!–ganiaela,batendoosdentes,todaenrodilhadanosolo.

Somenteaoverarivalarriadaecompletamentevencidafoiqueoraiosedeuporsatisfeito.

–Muitobem,agoradigaqueméomaisforteporaqui!Aonçatapouacabeçaparanãoterderesponder,enquantooraio

partia,agargalhar.Eaquiestá,segundoostaulipangs,arazãodeasonçastemerem

tantoostemporais.

Page 23: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

KONEWÓEASONÇAS

Ejáquesefaloudeonças,nadamelhordoquereferiralgumasdisputasdeKonewócontraasonças,poisostaulipangs,especialmenteascrianças,parecemadorá-lascomseuritmoágildedesenhoanimado.

Konewóéumíndioquepareciaternascidoparadisputarcomasbichanas.Certodia,eleestavasentado,encostadoaumaárvore,quandoumaonçachegoueperguntou:

–Porqueestáaísentado,aescorarestaárvore?–Paraqueelanãocaia–respondeuKonewó,secamente.–Todasas

árvoresestãoporcair.Porquenãofazomesmoqueeucomaquelaoutraárvoreali?

Aonçaviuumaárvorequepareciaprestesaruireachouqueseriaumaboadistraçãoficarescorando-a,poisnãotinhanadamelhorparafazer.

Depoisdeencostar-seaotronco,aonçafechouosolhos,sentindo-sevagamentevirtuosa.

“Devezemquandoébomserútil”,pensou,vaidosadasuavirtude.Masavirtudelogotransformou-seemsono,e,quandoaonça

começouaroncar,Konewóergueu-see,ligeirinho,amarrou-aaotroncocomcordastrançadasdecipó.

Konewódesapareceu,areprimiroriso,eaonçasóacordoualgumashorasdepois,completamenteimobilizada.

Osdiassepassarameelajáestavaquasemortadefomequandoummacacosurgiu.

–Oquefazaí,todaamarradaàárvore?–Fuiamarrada,nãoestávendo?–rugiuafera.–Vamos,solte-mejá!–Ah,issoeunãofaço,não!Sesoltá-la,vocêmecome!–Nãocomerei,dou-lheminhapalavra!Omacaconãofoimuitoatrásdaonça,eelaprecisouinsistirvárias

vezesparaqueelefinalmentesedecidisseaarriscaropelo.Comtodaacautela,eledesamarrouaonça,esóporissoescapouvivo.Atento,assimqueviuapatapeludaeriçarasunhasnasuadireção,deuumpuloparalonge.

Omacacodesapareceudentrodamata,enquantoaonçaficoumaquinandoasuavingançacontraoíndioqueaaprisionara.Depoisdeandarmuito,farejandoorastrodeKonewó,elafinalmenteencontrouoseudesafeto,destavezescoradonumarocha.

Page 24: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

–Ah!Aíestávocê!–disseela,pulandoàfrentedoíndio.–Destavezvocêmepaga!

Konewóolhouserenamenteparaaonça.–Oquequer?–disseele,friamente.–Vingança!Aoobservar,porém,acalmadoíndio,aonçanãopôdedeixarde

perguntar-lhe:–Ei!Oquefazescoradoaínessepedregulho?–Estouimpedindoqueelecaia.Todososrochedosestãoporcair.Konewó,então,olhouparaoladoeapontououtrorochedodezvezes

maior.–Sevocêfosseumaonçarealmenteútil,fariacomoeu,impedindo

queaquelerochedocaia.Umaespéciedenuvemestúpidadesceusobreamentedaonça,

obrigando-aairtomaroseulugar,masassimqueelaofez,oíndioergueu-se.

–Espereaí,sabichão,ondepensaquevai?–gritouela.–Tiveumaexcelenteideiaparapoupar-metrabalho.Vouprocurar

umtroncoparafazerumaescoraeassimlivrar-medeficarorestodavidaescorandoaminhapedra.

Aonçasentiuopedregulhochacoalharàssuascostasedeuumgrito:–Tragaumaescoraparamimtambém!Konewósumiuenuncamaisapareceucomescoraalguma.Quantoà

onça,dasduasuma:ouestáláatéhoje,escorandoopedregulho,outerminousepultadavivapelodesabamento.

***

Konewótambémgostavadepassaraconversanoshomensbrancos,poiseracrençademuitosíndiosqueasonçashaviamsidogenteantesdeviraremoquesãohoje.

CertodiaKonewóachouumgambáeintroduziudebaixodoseuraboumpunhadodemoedasdeprata.Depois,andandoporali,cruzoucomumhomembrancocarregandoumaredenovinhaemfolha.

–Belarede!–disseKonewó.–Quertrocá-laporumgambáquebotamoedasdeprata?

–Estámeachandocomcaradebobo,é?

Page 25: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

Então,Konewóapertouabarrigadogambá,easmoedassaltarampordebaixodorabo.

Ohomembrancoficoupasmo.–Eessefedorentofazissomuitasvezespordia?–perguntouele.–Quantasvezeslheapertaremoventre–respondeuoíndio,

apertandooutravezobuchodogambá.Asmoedassaltaramoutravez,eohomembrancofezonegóciona

hora.Assimqueoíndioafastou-se,ohomembrancoergueuorabodo

gambáequaseenfiouoolholádentro.–Vamosveristo!–disseele,apertandocomtodaaforçaabarriga

docoitado.Sóque,destavez,aúnicacoisaqueespirroufoiumjatofedorentode

fezes.

***

Maisadiante,Konewóaplicouumgolpeparecidoemoutrocivilizado.Depoisdependuraralgumasmoedasemalgunsgalhosdeumaárvore,chamouoprimeiroqueenxergou.

–Veja,homembranco,estaárvoredádinheiro!–disseele.Ohomemembasbacou-se.Eleestavacheiodemercadoriasque

atraíramacobiçadoíndio.–Sevocêmedertodasassuasmercadorias,entregoavocêesta

árvoremágica.Ohomembrancoolhouparaoseufarneledepoisparaaárvore,

aindaemdúvida.–Quantasvezesporanoeladámoedasassim?Estouvendopoucas

ali.–Équeestounofimdacolheita–disseoíndio.–Masnãose

preocupe,poisestaárvoredámoedasoanotodo.Estajáéadécimacolheita!

Fechadoonegócio,oíndiotratoudepegarodinheiroedarofora,enquantoohomembrancoolhavaparaameiadúziademoedaspenduradasnosgalhosaltos.Impaciente,elecomeçouachacoalharotronco,eduasmoedinhascaíramjuntocomumaporçãodefolhas.

Aindamaisimpaciente,elecontinuouachacoalharatéqueumgalhodespencouequaserachouasuacabeça,eistofoitudoqueeleviucair,

Page 26: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

depoisdoprimeirochacoalhão,daárvoreamaldiçoada.

***

MasosgolpesprediletosdeKonewóeramaplicadosmesmoàsonças.Certodia,eleestavasentadoàbeiradeumriodeáguasprofundas

quandoumaonçasurgiupordetrás.–Quefazaí,bobão?–disseaonça,maiscuriosadoqueesfomeada.–Estoupensandoemmergulharnorioparaapanharaquelebolode

tapiocaqueestálánofundo.Konewóapontouparaoreflexodaluasobreaágua.–Entãová–disseaonça,desconfiada.–Queroverseconsegue

apanhá-lo!Konewótinhaescondidodebaixodatangaumpedaçodeboloe

mergulhouparalogoemseguidaretornar.–Ah,aquiestá!–disseele,dandoumadentadanobolo.Aonçalambeuosbeiços,masoíndioenfiouligeiroorestonaboca.–Porquenãotrouxeobolointeiro?–disseaonça,frustrada.–Acontecequesoumuitoleve–respondeuoíndio.–Porquevocê,

queémaispesada,nãodesceetrazorestantedobolo?Aonçaestavatãoávidaporprovaraqueladelíciaqueaceitouna

horaodesafio.–Amarreestapedraaopescoço–disseoíndio.–Elaaajudaráa

descermaisrápido,poishámuitacorrentezanestaságuas.Aonçaaceitou,edepoisdeteropedregulhobemamarradoao

pescoço,mergulhou.Quandochegouaofundodorio,porém,constatouquenãohaviaboloalgumporali.Olhouparacimaeviuqueobolo–oualua–agoraestavaboiandonasuperfície.

Eessafoiaúltimacoisaqueadesgraçadaviuantesdemorrerafogada.

***

Maisumacomonça.Konewóiaandandonamataquandoviuumatrilhadeantas.No

mesmoinstante,umaonçasurgiu.–Oqueespiaaí?–perguntouabichana.–Nãoestávendo?–respondeuoíndio.–Éorastrodeumaanta

Page 27: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

gorda.Aonçalambeu-setrêsvezesantesdevoltarafalar.–Achaqueestálonge?–Quenada!Veja,orastroaindaestáfresco!–Entãodeixecomigo!–disseaonça,preparando-separaumaboa

corrida.–Não,espere,tenhoumplanomelhor–disseKonewó.–Estávendo

aquelemorroelevadoecobertodevegetação?Foiporláqueelaseescondeu.Euvouatrásdela,evocêficaaquiembaixo.Vouassustá-laeencaminhá-labemnadireçãodasuaboca.

Aonçaadorouaideiaefoicolocar-senabasedomorro,enquantooíndiooescalava.Aochegaraotopo,Konewóencontrouumpedregulhoenormeerolou-oatéocomeçodadescida.

–Aívaiaanta!–gritouoíndio.Aoescutaroruídodealgopesadodescendo,aonçafirmou-senas

pernas.–Queantaenormedeveser!–disseela,lambendoosbigodes.Derepente,porém,surgiudomatagalinclinadoopedregulho

enorme,arolarfuriosamente,epassouporcimadaonça,deixando-aesmigalhadaefininhacomoumtapete.

Eessefoiofimdemaisumaonça.

***

Umaúltima.Konewóestavasentadoemumgalhoelevadodeumaenorme

árvore.Elehaviaencontradoumacolmeiaeestavasedeliciandocomomelquandoumaonçachegoueperguntou:

–Quefazaí?–Estousaboreandoestadelícia–disseKonewó,lambendoosdedos

douradosdemel.–Tambémquero!–disseaonça,apaixonadapormel.–Então,façamososeguinte:eudesçoecortoaárvore.Quandoela

cair,vocêaparaacolmeianosbraçoseficaorestododiasedeliciando.Aonçatopoueficouaguardandoenquantooíndiometiaomachado

naárvore.Quandoaárvorefinalmentecomeçouainclinar-se,aonçafez

mençãodesaircorrendo.–Idiota,fiquenolugar!–berrouKonewó.–Apareacolmeia,senão

Page 28: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

elavaiseestraçalhar.Aonçaseencheudecoragemeesticouosbraçosnadireçãoda

colmeia.Sóqueatrásdelavinhaaárvoreinteira,efoiassimqueapobrefelinaviu-seesmagadaecobertadepicadasdeabelhas.

***

Konewó,segundoalenda,teveumfimgrotesco,masqueoamoraosaberobrigaacontar.

Certodia,eleestavasealiviando,noaltodeumaárvore,quandoumbesourovira-bostaaproximou-se,láembaixo.Konewóolhouparaoserzinhoedisse,apiedado:

–Gostou?Aquidentrotemmuitomais!–disseele,apontandoparaotraseiro.

Ovira-bostasubiu,entrou-lhetraseiroadentroecomeuorestodaporcaria,ejuntocomelaastripasetudomais,dandoumfimmiserávelaomaiortapeadordeonçasjásurgidonasmatasbrasileiras.

Page 29: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

OUIRAPURU

Existemdiversaslendassobreessapequenaaveamazônica,cujocantodeslumbranteinspirouHeitorVilla-Lobosacomporumpoemasinfônico.

Estalendacontacomoduasamigastornaram-serivaispeloamordeummesmohomem.

Asduasmoçaschamavam-seMoemaeJuçara.Desdecrianças,elaseramapaixonadasporPeri,oíndiomaisbelodaaldeia.Nãohaviaíndiaquenãoseinteressasseporele,masasúnicasquetinhamcondiçãodedisputarocobiçadoprêmioeramasduasamigasinseparáveis.

Apesarderivais,asduasamigasnãoescondiamumadaoutraasuapretensão.

–AmoPeriperdidamente–diziaJuçaraaMoema.–Tambémsouloucaporele–diziaMoemaaJuçara.Ascoisasseguiramassim,numarivalidadeamistosa,atéodiaem

quedecidiramconsultaropajédaaldeiaparaveroquepoderiaserfeitopararesolverodilema.

–Perinãosabedizerqualdenósduasprefere–disseMoemaaopajé.

–Acontecequejáestamosemidadedecasar–disseJuçara.Entãoopajé,depoisdemeditar,elaborouaseguinteproposta:–Nãoháoutrojeito:vocêsterãodedisputá-loparaverquemfica

comele.Nodiaaprazado,asduasíndias,munidasdearcoeflecha,

apresentaram-senamata.–Quemacertaropássaroqueeuapontarseráavencedora–disse

Peri.Dearconamão,asduasíndiasficaramàesperadaordemdePeri.–Ali,atirem!–gritouoíndioaoverumaavebrancasurgirporentre

osgalhos.Duasflechasvelozespartiram,silvandonoar,massomenteuma

delasacertouapequenaave.–Aquiestá!–dissePeri,tomandonasmãosaavealvejada.Asduasflechasestavammarcadas,eaquelaqueestavaencravada

naavetinhaamarcadeJuçara.Desdeentão,JuçarapassouaseraesposadePeri.Quantoàpobre

Moema,decidiufugirdaaldeiaeirseescondernamataparalamentara

Page 30: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

suainfelicidade.Tupã,apiedadodamoça,decidiu,então,transformá-lanumaavede

cantomaravilhoso.–Oseucantoserátãobeloqueteráodomdecurarasuaprópria

tristeza–disseodeus.Moema,convertidanouirapuru–queemtupisignifica“pássaroque

nãoépássaro”–,passouamorarnafloresta,edesdeentãotodaelasilenciasemprequeseucantocomeçaasoar.

Page 31: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

OSURGIMENTODANOITE

Algumastribosamazônicascreemquenocomeçodostempossóhaviadia.Erasoldemanhã,soldetardeesoldenoite,esóquandoasnuvensapareciaméquesetinhaumdescansoparatantaluzecalor.

Masmesmosemsol,continuavasempredia.Équeanoite,diziameles,estavaadormecidanofundodorioAmazonas,eatéalininguémseanimaraadespertá-la.

Naquelesdias,aCobra-Grande,umdospersonagensmaisimportantesdofolcloreamazônico,nãosóviviaàsoltaporaícomotambémtinhaumalindafilha.

Oesposodessajovemandavamuitochateado,poiselanãoqueriadormircomeledejeitonenhum.Adesculpadaesposaerasempreamesma:

–Deitarporque,seaindanãoénoite?Opobretentavaargumentar,dizendoquenãoserianuncanoite,mas

nãotinhajeito.–Sódeitoquandoanoitecer–teimavaela.–Masequemvaidespertaranoitedofundodaságuas?–Minhamãesabeosegredo.Mandealguématélábuscarumcoco

detucumã.Nomesmoinstante,omaridomandoutrêsserviçaisatélá.Apesardemortosdemedo–poisnãoháíndioquenãosearrepieao

escutaronomedessaentidade–,osserviçaisforamatéaCobra-Grandeerelataram-lheopedidodafilha.

–Nãooabramemcircunstânciaalguma!–sibilouaserpente,entregandoococoaostrês.

Ococoforaseladocomumacoberturadebreu,afimdeevitaratentaçãodacuriosidade.

Osemissáriosretornarampelorionamesmacanoaemquehaviampartido.Duranteotrajeto,ocococomeçouavibrar,eumsombaixinho,aomesmotemporoucoefininho,escapoudasuacascalacrada.

–Oqueseráisto?–disseumdostrêsíndios,colandoaorelhaaococo.

–Oquenãoéparaservisto!–disseotimoneiro,arrancandoococodocurioso.

Masoterceirotambémestavacuriosoe,tomandoococo,colouneleaorelha.

Page 32: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

–Temummontedecoisasaquidentro!–disseele.–Talvezsejamjoias!–disseoprimeiro.Aoescutaressaspalavras,otimoneirotambémacabouporrender-

seàcuriosidade.–Estábem,vamospararacanoaeveroqueháaquidentro!Acanoaparoubemnomeiodorio,eelesacenderamuma

fogueirinhaparaenxergarmelhor.Comosempreacontece,oquemaisdiscursaracontraadesobediênciarevelava-seagoraomaisimpacienteporpraticá-la.

–Vamos,quebredeumavezessaporcaria!–disseotimoneiro,deolhosarregalados.

–Não!...Vamosretirarapenasobreu!–disseoutro,maiscauteloso.Comumamechadofogoelesderreteram,então,acoberturae

finalmenteabriramococo.Derepente,umanuvemnegraescapoudedentroeenvolveuacanoa

eorioeomundotodoenquantoosíndioscobriamascabeças,abaixados.Aomesmotempo,milharesdesaposegrilospularamparaforadococoeseespalharammundoafora,dandoànoiteasuainconfundíveltrilhasonora.

Anoiteseespalharaportudo,indoalcançaracasaondemoravaafilhadaCobra-Grandeeseuesposo.

–Veja,meumarido!–disseela.–Algoaconteceu!Maselenãopodiavernada,sequerasuaamadaesposa.–Senãopossovê-laduranteanoite,entãojamaisteremosanoite!–

disseele,enfurecido.Então,elefezmençãodeagarrá-la,mesmosemvê-la.–Não,espere!–gritouela.–Agorateremosdeesperarodia!Omaridocaiudarede,dedesgosto.–Ehaverádia,outravez?–disseele,desolado.–Sim,elenãotardará–afirmouajovem,confiante.Eassimfoi.Logo,umaluzinhadespontounaescuridãodoscéus.–Veja,aestrelad’alva!–disseela,apontandoaestrelaqueanuncia

odia.–Agoravousepararanoitedodia,detalsortequeteremosasduascoisas,alternadamente.

Comosurgimentodanoite,haviaocorridoumasériedemetamorfosesnanatureza.Bichoseavesdetodaespéciehaviamsurgido,equandoelaolhouparaomaridoviuquetambémelehaviasofridoumamudança.

–Meuadorado!–gritouela,radiante.–Quecujubilindovocêestá!

Page 33: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

Opobremaridohaviasetransformadonumagalinhapretadepenasesverdeadas.

–Quebesteiraéesta?–disseeleaoacordar,agitandoasasasefalandojápelobico.

–Oh,quemaravilha!–disseela.–Apartirdeagora,semprequeodianascer,vocêcantaráparamimemedespertarádeumanoitedeliciosadesono!

Ajovempareciamesmofeliz.Penaqueomaridonãoparecessetãoanimadocomamudança.

–Querdizerquevouserestaavehorrorosaorestodavida?–Horrorosa?!–exclamouajovem,ofendida.–Oh,Mãe-d’Água!

Semprereclamando!Nestemomento,ostrêsemissáriosdesastradosreapareceram.

Imediatamente,omaridopulounadireçãodeles.Masparouaoverqueostrêsemissáriostambémestavamcomoscorposcobertosdepelosnegros.

Ajovemcomeçouarirdesbragadamenteassimquealuzdaauroralhepermitiuvermelhornoqueostrêsimprudenteshaviamsidoconvertidos:trêsmacacosdedentesarreganhados.

–Muitobem,toleirões,aíestáoprêmiodasuaimprudência!–disseomarido,sentindo-semuitobemvingado.–Doravanteirãopulardegalhoemgalho,dediaedenoite!

Ostrêsmacacosderamdeombros,arreganharamosdentesoutravezesaírampulandoparadentrodaselva.Suasbocasestavampretasetinhammarcasamarelasnosbraços,umresquíciodobreuardentequeespirrarasobreelesquandoarrombaramococonomeiodorio.

Page 34: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

ACABEÇAQUEVIROULUA

Osíndioskaxináuasexplicamdeumamaneirarealmentecuriosaosurgimentodalua.

Ahistóriacomeçacomumacaçadaàcutia,umroedordasmatas.Doisíndioshaviamacabadodecaçá-laeretornavamàocadeumdeles.

–Hojeireiapresentá-loàminhamulher–disseoprimeiro.Quandochegaramdiantedaoca,porém,osolteironãoquisentrar.–Tenhovergonhadeapresentar-meassim–disseele,todosuadoe

despenteado.Odonodacasamandoueleesperaraliforaeretornouemseguida

comalgunsitensdehigiene.Oíndiotímidodeuumalimpadanosuor,ajeitouoscabelosecolocoualgunsenfeites.

–Pronto,estáperfeitamenteapresentável–disseoanfitrião,introduzindooamigonaoca.

Omaridoordenourispidamenteàesposaquedessedecomeraoamigo.

–Dê-lhetodacomidaquehouver!Queroquecomaatéestourar!Ajovemíndiatrouxeumalguidarrepletodecomida.Haviamingau,

macaxeira,bananasdetodosostipos,cruaseassadas,inhame,pipocaeummundodeoutrascomidas.

Ovisitantecomeuoquantopôdeedepoisguardouorestonumfarnelparalevarparacasa.

–Muitoobrigadopelaacolhida,masjáétardeedevopartir–disseele,afinal.

–Voucomvocê–disseoanfitrião,tomandoumfacãoantesdesair.–Paraqueofacão?–Voucortarmadeira.Estoufazendoumaenxadaeprecisodeum

cabo.Osdoispartirame,nomeiodocaminho,oanfitriãodesfeztodasas

gentilezasaocortarforaacabeçadooutro,semqualquerexplicação.Acabeçaroloupelochão,masocorpopermaneceuempé,

recusando-seamorrer.Enraivecido,omatadorcaiudefacãosobreocorpoatéprostrá-losemvida.

Enquantoisso,acabeça,emboracaídasobreosolo,permaneciaviva.–Queestáolhando?–rugiuomatador.Acabeçanãodissenada,masaspálpebrasbateramváriasvezes.Diantedoquejulgouumaafronta,omatadorcortouumpedaçode

Page 35: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

paucomofacão,aguçou-oeenfiouacabeçanaponta.Depois,colocouomarcomacabrobemnomeiodocaminhoedeunopé.

Logoemseguidasurgiuoutroíndio,tambémcaçador,quetomouumgrandesustoaoveraquelacabeçaespetadanaencruzilhada.

–Queroverdireitooqueéisto!–disseele,indopéantepé.Aochegarmaisperto,viuqueacabeçaaindabatiaaspálpebras,

derramandolágrimasenormes,eseucoraçãoencheu-sedeterror.–Anhangá!–gritouele,certodeestardiantedeumavisagem.Enquantofugia,porém,deu-secontadequeaquelacabeçapertencia

aummembrodesuatriboefoicorrendocontaraosrestantes.–Nossoirmãofoimorto,esuacabeçajazespetadanomeiodamata!Aosaberemdanotícia,todosdatribojuntaram-seeforamvero

prodígio.Umamultidãodeíndioscercouacabeçacomosefossemconsulentesávidosdeumoráculodasmatas.Sóqueaboca,apesardebateroslábios,nãoconseguiaemitirumaúnicapalavra.

Entãoumíndiomaisdestemidoarrancouacabeçadoposteeatirou-anumcesto.

–Vamosembora,naaldeiaveremosoquesehádefazer!–disseele,partindo.

Osíndiosseguiramatrásdovalentãodocesto,atéque,dadosalgunspassos,acabeçavarouapartedebaixodosamburáecaiuquicandonochão.Osquevinhamatráscomeçaramapular,esquivando-sedacabeçacomosefossedefogo,atéqueelaparouderolaraoalcançarumbarranco.

–Vamos,coloque-aemoutrocesto!–disseolíder.Acabeçafoiacomodadaeaprocissãorecomeçou,atéoinstanteem

queacabeça,apoderdedentadas,arrombouatramadofundooutravez.Umanovaefrenéticadançarecomeçouatéalguémsugerirquedeveriamretornarparaenterrarotroncodoíndiomorto.

–Enterradoocorpo,acabeçasossega–disseosabichão.Quatroíndiosretornarameenterraramocorpo.Aovoltarem,porém,

paraacompanhiadosdemais,encontraram-nosaospulos,poisagoraacabeça,alémdequicar,queriamorderatodos.

–Coloque-anumcestoforradoeleve-anascostas!–gritouochefeaumíndioparrudo.

Oíndiofezoqueochefemandara,eacomitivaretomouamarcha.Derepente,porém,escutou-seumberroagoniado.Todosvoltaram-

seeviram,estarrecidos,acabeçaensandecidacomosdentesnaorelhadoíndio.

–Socorro,acudam!–guinchavaopobrecoitado.

Page 36: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

Então,ochefetomouumadecisãorealmentesábia.–Deixemessacabeçaaímesmo!Eladeveestaramaldiçoadaesóirá

espalharmalefíciospelaaldeia!Todosconcordaramaumasóvoz,menosacabeça,queaover-sesóe

abandonadacomeçouaquicarvelozmenteatrásdeles.Então,foiumespalhardeíndiosemtodasasdireções.Alguns

buscaramasalvaçãoaoavistaremumriodeáguasrevoltas–Mergulhemos!Cabeçanenhumasabenadar!Todoscaíramnaáguaebracejaramcomfúriaatéalcançarema

outramargem.Estiradosnarelva,ensopadosesemfôlego,elesrelancearamumolharparaacorrentezadorio.

–Éela!–gritouumdeles.–Anhangávemvindo!Evinhamesmo.Fazendodasorelhasduasnadadeiras,acabeça

avançavavelozmente,espalhandoáguaparatodososlados.Entãoosíndiosreuniramoquelhesrestavadefôlegoetreparam,

comaagilidadedeonças,numpédebacupari.Ládoaltoelesviramquandoacabeça,apóssairdaágua,sacudindo-seecuspindoáguacomoumchafariz,começouarolarsinistramenteatéabasedaárvore.

Naquelaárvorehavia,agora,maisíndiosdoquefrutosdependurados.

–Desçamousacudireiestaporcariaatécaíremtodos!–rugiuacabeça,adquirindo,subitamente,odomdafala.

Aoverqueninguémaobedecia,acabeçacomeçouadarmarradasnotronco,comoumcabrito,enquantoosíndiosbalançavamnoaltocomofolhasnumvendaval.

Derepente,porém,acabeçaparou,talvezmeiotontacomtudoaquilo.

–Antesdedescerem,deem-mealgumasfrutas,poisfiqueicomfome!–gritouela.

Instantaneamentecomeçaramachoverfrutossobreacabeçaesfomeada.Eladeualgumasdentadasnosfrutos,mascuspiutudo,enojada.

–Pfúi!Estãoverdes!Deem-meosmaduros!Desses,elagostou.Penaque,aoengoli-los,eleslhesaíampelo

pescoçocortado,semnuncamatar-lheafome.Mesmoassim,continuavacomendo-os.

Então,umdosíndiostrepadosteveumaboaideia.

Page 37: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

–Joguemlongeosfrutos!Assimpoderemosfugirenquantoelavaibuscá-los!

Osfrutosforamarremessadosomaislongepossível,eacabeçasaiurolandoparaapanhá-los.

–Éagora!–gritouoautordaideia.Numasóvez,despencaramtodososíndios.Nembemseuspés

haviamtocadoosolo,puseram-seacorrerparaaaldeiafeitolunáticos.Aochegaremlá,encerraram-setodosemsuasocaseficaramesperandoopior,queeraachegadadacabeçamaldita.

Todosespiavamporentreasfrestasdasocas,atéqueseescutou,cadavezmaisnítido,umtum-tum-tumsinistrocrescerdedentrodamata.

–Anhangá!Éela!–gritaramvozesesganiçadasdetodosossexos.Acabeçafinalmentesurgiuefoipostar-senocentrodataba.Apenas

algumastochasiluminavamotétricocenário,poisnaqueletempoaindanãohavialumináriaalgumanoscéus.

–Toleirões!Senãomedeixarementraremsuasocasvoulançarumamaldiçãoquevaireduzirsuaaldeiaacinzas!

Osilêncio,porém,permaneceu,eentãoacabeçapassouagritarumamisturaincoerentedepromessaseameaças,quesóserviuparaaterrorizaraindamaisosíndios.

–Nãomedeixarãoentrar,então,malditos?Poissaibamque,apartirdehoje,subireiaoscéusemeconvertereinalua!Minhacabeçaseráalua,emeusolhos,asestrelas!Aparecereiemquartos,equandofizerminhaprimeiraapariçãoasmulheressangrarão,equandoestivercompletanoscéusoscãeseosdoidosseporãoauivarparamim!

Nesteinstante,umurubudesceudoscéus,farfalhandosuasasasnegras.Depoisdeenterrarsuasunhasaduncasnoscabelosdesgrenhadosdacabeça,aavesubiu,levando-aconsigo.

Todosviram,abandonandosuasocas,quandoourubugigantedepositouacabeçanoaltodocéu.Imediatamenteelacomeçouafosforesceremprateado,edassuasórbitasespocarammilharesdefaíscasdamesmacorque,apósseespalharemportodososquadrantes,seconverteramemestrelas.

Efoiassimque,segundooskaxináuas,aluasurgiu.

Page 38: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

OFURTODOFOGO

Segundoosíndiostembés,nostemposmíticosofogotinhaumúnicodono:ourubu-rei.Comoourubueramuitoavarodasuapreciosidade,osíndiosnãopodiamfazerusodechamaalguma,equandoqueriamcomercarnesólhesrestavaoexpedientedeexpô-lalongamenteaosol.

Issofoiatéodiaemqueumíndiomaisdestemidoresolveudarumfimàquilo.

–Vamosatrairourubu-reieasuatropainteira–disseele,matandoumaantaenorme.

Depoisdesangrarembemobicho,elesdeixaramocadáverexpostoaosol,paraatrairosurubus.

Nãodemoroumuitoeourubu-rei,atraídopelofedordacarniça,desceusobreaanta.

–Viva,temoshojebanquetefarto!Vamoslá,companheiros,hácarniçaparatodos!–disseele,dandoumgrasnido.

Logoocéuanoiteceucomachegadadeumaverdadeiranuvemdeurubus.Abicharadacaiusobreaanta,masalguémteveaideiadeacenderumfogoeprepararacarnenagrelha,ounomoquém,comosedizentreosíndios.

–Carnemoqueadatambémtemlásuasdelícias!–disseourubu-rei,retirandodedebaixodaasanegraumtiçãomuitobemescondidoparaacenderagrelha.

Osurubus,naqueletempo,tinhamodomdesetransformaremgentee,assim,antesdeselançaremàcomilança,despiramasasaseficaramcomaaparênciadehomens(daí,talvez,ogostoquetinhamemassaracarne,aoinvésdecomerem-nacrua,comohojenormalmentefazem).

–Ufa!Quecalorão!–disseourubu-rei,despindoomantodepenas.Nusfeitogente,osurubusatiraram-sefinalmenteàcarne,ejusto

nesteinstante,irrompendodedentrodamata,surgiramosíndios,deolhoacesonofogoqueardianagrelha.

–Depressa!Apanhemumtição!–gritouovelhopajé,organizadordoassalto.

Umgritodealertadourubuquevigiavaavisou,entretanto,osdemais,elogotodosvestiramseusmantosnegrosdepenaselevantaramvooestabanadamente.Antesdepartir,ourubu-reitomouaúltimafagulhaqueardianagrelhae,depoisdeocultá-ladebaixodaasa,juntou-seàs

Page 39: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

demaisavesnocéu.Opajécorreualucinadamenteatéagrelha,remexeunoborralhoe

encontrouumúltimocaquinhodecarvão,comumalistrinhalaranjacorrendopraláepracá.

–Aqui!Aqui!–gritoueleaosdemais.–Vamos,assoprem,nãodeixemapagar!

Quinzebocascercaramocarvãozinhoecomeçaramaassoprá-loagoniadamente,masofizeramcomtantaforçaquealistrinhalaranjaacabouporsefinar,eocarvãonuncamaisseacendeu.

–Idiotas!–exclamouopajé,irado.Quandoseacalmouumpouco,porém,viuqueaantaaindaestava

quaseinteira.–Elesvoltarãologo–disseele,animando-seoutravez.–Destavez,

vouficarbempróximodagrelha,evocêsdesapareçamesósurjamquandoeuordenaroataque!

Ostembésfizeramcomoopajéordenara,enquantoeletratavadecavarumburacobemaoladodacarniçaafimdeseenfiaralidentro.Omaucheirodaantadecompostaerainsuportável,masquemdissequefurtarfogoeracoisafácileprazenteira?

Daliapouco,osurubusvoltaram,loucosdefome.Apósdespiremseuscasacospretos,quefediammaisdoqueacarniça,reacenderamofogoerecomeçaramabanquetear-se.

Enquantocomiam,opajéaproveitouparairromperdasuatoca,ágilcomoumamarmota,emeteuamãodentrodagrelhaparaapanharumtição.

Assustados,osurubusapanharamsuasvesteselevantaramvoooutravez.Ourubu-reiaindatentouresgatarotição,oupelomenosextingui-lonamãodopajé,fazendoumaventaniadanadacomasasas,masovelhoíndiocerraraosdedoscomtantaforçaquenemumfuracãoteriacomoapagá-lo.

Nofimdetudo,osurubussumiramnoscéus,eopajéviu-sedonodotição,queaindaardiaemsuamão.QueAnhangáocarregasseseaquilonãoardiacomocemmilespetadas!

ComoumPrometeuenlouquecido,opajétratoudeatearfogoemtodasasárvoresdelenhoincandescentequeencontrava,afimdepreservarachama,eteriacolocadofogonamatainteiraseosdemaisíndiosnãotivessemcorridoparaapagaraquelaslabaredastodas.

Page 40: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

COMOSURGIUOOIAPOQUE

OsíndiosoiampisexplicamdemaneiramelancólicaosurgimentodorioOiapoque,noextremonortedoBrasil.

Tudocomeçounumtempomuitoantigo,quandoafomeeadoençaestavamafligindoaaldeiadosoiampis.Tarumã,umabelaíndia,estavagrávidaedecidiuprocurarumlugarlivredamoléstiaedapenúriaparacriarseufilho.Comabarrigapesada,apequenaíndiacomeçousuaperegrinaçãosolitáriapelamata,maspassadosalgunsdiassentiuquenãoteriamaisforçasparairalugaralgum.

–Ó,Tupã,nãopossomaisdarumpassoemorrereicommeufilhonoventre!–exclamouela,sozinhaeesfomeadanomeiodamata.

EntãoTupã,apiedado,transformou-anumaenormecobra.Tarumã,convertidanessacobra,encontrouforçasparaseguir

adiante,levandosempreofilhonoventre,atéque,umdia,encontrouumlugaraprazível,ondehaviaáguaeterraboaparaplantar.

–Aquihaveremostodosdeviver!–disseela,pensandoemretornaràspressasparaavisaragentedasuaaldeia.

Antesderetornar,porém,eladeuàluzumamenina.–GraçasaTupãnãonasceuumacobrinha!–disseela,aninhando

nassuasdobrasopequenoser.Tarumãrefeztodootrajetocomameninanagarupaatéchegarde

voltaàsuaaldeia.Entretanto,viu-sesurpreendidapelapéssimarecepçãodosseus.

Enãoeraparamenos,jáqueTarumãaindaostentavasuafiguradecobragigante.

–ÉaCobra-Grande!–disseumíndio,apavorado.Desdetemposimemoriaisqueosíndiosamazônicosnutremum

medoatrozdaCobra-Grande,umserfrioedevastador,cujoúnicopropósitoéalimentar-sedeíndioseanimais.Imediatamente,umgrupodevalentessurgiucomarcoseflechasecomeçouaarremessarumaverdadeirachuvadesetasparacimadapobreíndia-cobra.

Tarumãnãofoiatingida,protegidaqueestavaporsuasescamas,massuafilhinhanãoteveamesmasorteeacabouvaradaporumaflechadacerteira.

Aoverafilhamorta,acobralançouparaoarumsilvodedore

Page 41: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

tristezatãoaterradorqueosíndiossaíramcorrendoemtodasasdireções.Imediatamente,umverdadeiroriodelágrimasbrotoudaspupilasdacobra,preenchendotodoosulcoqueelaabriraduranteasuaviagemdeidaedevolta.Umrioimensoformou-se,eacobramergulhounassuaságuascaudalosas,desaparecendoparasempre.

Page 42: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

OSPOTESDANOITE

Dizemosíndiostembésqueoutroraocéunãoeratãoaltocomoagora,equeumdiaospassarinhosetodasasavesdocéu,querendomaisespaçoparaassuasacrobacias,convocaramumareuniãoparapôroassuntoemvotação.EsseencontrofoiquasetãoconcorridoquantoafamosaAssembleiadosPássaros,ocorridaláparaasbandasdoOriente,etinhaavedetodososjeitos,atémesmocriaturasquedeavessótinhamasasas,talcomoomorcego.

Aliás,omorcegofoioúnicoserprovidodeasasquerepudiouaideiadesuspenderotelhadodocéu.

–Océujánãoestáaltoobastante?–disseele.Masasavesnãoqueriamsaberdecéubaixoeaprovarampor

esmagadoramaioriaaelevaçãodaabóbadadoscéus.Foiumatrabalheiraimensa,masasavesconseguiram,afinal,erguer

ograndetelhadoazuldetalmodoque,apartirdali,sobrouespaçoparaaspiruetasaladasdetodososseresamigosdoar.Omorcego,porém,foipunidoporsuacasmurrice,edesdeentãopassouadormirdeponta-cabeça.

–Dehojeemdiante,dormirácomocéudebaixodospés!–disseacoruja,aodecretarasentença.

Mas,seospássarosestavamfelizescomasuspensãodocéu,osíndioscontinuavamdesgostososcomascoisasdoalto.Océuforasuspenso,masedaí?Nemporissoaclaridadediminuíra,jáquenãohavianoite,ainda,empartealgumadouniverso.Ostembésnãoaguentavammaisdormircomluznorosto,eeraprecisofazeralgumacoisaparaterem,pelaprimeiravez,umanoitededescansoreal.

Atéqueumdiaumvelhoíndio,chegadodosfundosdamata,trouxeumagrandenovidade.

–AcabeidedescobrirolocalondeomauespíritoAzãescondeseusdoisgrandespotes!

Aquilopareciahistóriadeumvelhomaluco,mas,mesmoassim,ocaciquedecidiutiraradúvida.

–Estáfalandodospotesqueguardamanoite?–disseele.–Sim,sim,elesmesmos!–bradouovelhote,sapateandoospésnus

sobreopó.Nomesmoinstante,ocaciqueorganizouumaexpediçãoàmatapara

arrebatarosdoispotes.Eleseramnegroscomoanoitequeescondiame

Page 43: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

estavammetidosentreosjoelhosdovelhodemônio,quenuncadormia.Quantomaisseaproximavam,maisescutavamoruídoquehaviadentrodospotes.Équedentroestavamguardados,alémdanoite,todososseresesparrentosqueapovoam,taiscomoosgrilos,ossaposetodaafaunagritonadastrevas.

–Tirarospotesdomeiodaspernasdodemôniojásevêquenãodá–disseocacique.

Então,chamandoseuarqueiromaishábil,ordenou-lhebaixinho:–Vareaquelesdoispotescomumaúnicaflechada.Oarqueirorastejounomusgoatéencontraraposiçãoideal.Quando

teveacertezadepoderespatifarosdoiscântaroscomumaúnicaflechada,eleabandonouaposiçãodecobrarastejanteeficoudejoelhos;depois,alçouoarcoecaprichoubemnamiraparasóentãodispararaseta.Umzumdeventocruzouamataepassouporentreaspernasdodemônio,espatifandoumdosvasos(ooutro,Azãconseguiuproteger,poisenganava-sequempensavaqueeledormia).Dequalquerjeito,umdospotesseespatifara,eseuscacossaltaramnacaradodemônio,deixando-omomentaneamentecego.

Comaexplosãodoprimeiropote,umjatovelozdetrevasjorrouparaforae,depoisdeengolirodemônioeseespalharportudo,continuouavançandoportodaaselva.Juntocomatreva,vinhamoshabitantesdanoite–onças,aranhas,cobras,morcegos,mosquitosepredadoresdetodaespécie,queseaproveitamdaescuridãoparaespalharoseureinadodeterroredesangue.

Aoveremaquilotudocrescerparacimadeles,osíndioslargaramacorrercomquantaspernastinham,poisanoiteserevelarapior,afinal,doqueodiasemfim.Elessópararamquandochegaramàsuaaldeia.Quasejuntocomeleschegouanoite,eentãoelesdesabaram,exaustos,sobreochão,poisnãohaviaquempudesseresistiràquelagostosaescuridãoparatirarumbomronco.Quandoestavam,porém,nobomdosono,abarradodiacomeçouaerguer-seoutravez,eumraiodesolferiuoolhodocacique.

–Danação!Quenoitemaiscurtaéesta?Defato,anoiteforamuitocurta.Então,elepercebeuqueteriade

quebrartambémosegundopote,queaindarestarainteironaselva.Oarqueiro,pressentindoochamado,apresentou-se,solícito.–Vocênão!–disseomorubixaba,expulsandooarqueirofajuto.Entãomandouchamarourutau,umdosajudantesdesuapredileção.

Page 44: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

(Naqueledias,ourutaueraaindaumíndio,comotodososoutros.)–Vávocêatéamataequebreosegundopote!Urutautomoudoarcoesefoi,emborapressentissecoisaruim.Ao

chegarpertodeAzã,viuqueeleaindaesfregavaosolhosmagoadoseaproveitouparaarremessarasuasetasobreopote.

Resultado:ovasorachouinteiro,enovaondadetrevasseespalhouportudo.

Assustado,oíndio-urutauabriuocompassodaspernasecomeçouacorrercomtodaaenergia,masacabouenredandoospésnumemaranhadodecipós,indodardecaranarelva.Então,antesquepudesseerguer-se,atrevafinalmentealcançou-o.Oíndiodeuumgritoecobriuacabeçacomosbraços.Quandodestapou-se,porém,foicomumpardeasasqueofez.Tambémumbicoenormehaviacrescidonolugardaboca,eumpardeolhosamarelosearregaladosdavaagoraàsuacaraumarpermanentedeespanto.

Efoidesdeestediaqueourutaudeixoudeserumíndioparaconverter-senaavenoturnaquehojeseconhece.Denoite,ourutaugrita,eduranteodianãofazoutracoisasenãoestarempoleiradonumgalhoeacompanhar,deolhosarregalados,amarchadosolpeloscéus.

Page 45: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

OGAVIÃOEODILÚVIO

Havia,numtempoantigo,doisirmãoscaçadoresdatribodostembés.Certafeita,decidiramsubirnumaárvoreparapegaroninhodogaviãoUiruuetê.Depoisdeimprovisaremumaescadadevaras,chamadamutá,omaisvelhoprontificou-seasubir.Eofez.Embaixoficaramsuaesposaeoirmãomaisnovo.

Derepente,algocaiudoaltoefoienroscar-senoscabelosdoirmãoqueficaraembaixo.

–Deixequeeudesenrosco–disseaesposadoíndioquehaviasubido.

Comdedoshábeis,abelaíndiapôs-seavasculharocabelodocunhado.Aovertudoissoládecima,oirmãomaisvelhoficoucheiodeciúme.

–Estoutonto,subavocê!–disseeleaoirmão,descendo.Osdoistrocaramdelugar.Oirmãomaisnovosubiu,enquantoo

outro,jánochão,cortavaascordasqueuniamosdegrausdaescada,desconjuntando-atoda.Depois,tomandoaesposapelobraço,arrastou-aparacasa,deixandoojovemdependuradonoalto,semmeiosdedesceroutravez.

Ojovemgritou,masoirmãomaisvelhodeixou-oentregueàprópriasorte.

–Estavocêhádemepagar!–disseele,brandindoopunho,ládoalto.

Então,semtermaisnadaparafazer,decidiuvasculharoninhodogavião.

–Háapenasumfilhote–disseele,aoinspecionaroespaçosoninho.Derepente,porém,chegouaesposadoUiruuetê,agitandoas

grandesasas.Umpequenotufãoquasederrubouoíndio,queficouparalisadodemedo,poisagoraeraogaviãoouoabismo.

Numprimeiromomento,elepreferiuarriscarcomaesposadogavião.

–Oquequeraqui,criaturapelada?–disseaave,encostandoobicoaduncononarizachatadodoíndio.

Oíndioconfessouquetinhaidoaliparapegaralgunsovos.–Poisdaquinãosairámais–disseaave,empurrando-ocomasasas

Page 46: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

paraofundodoninho.Oíndiosorriuamareloedissequefaziamuitogostoemficarporali.–Comgostoousemgosto,éassimqueserá–disseaesposado

Uiruuetê,atirandoaospésdoíndioocadáverdeummacaco.–Esfoleobugioatéeleficarparecidocomvocê.

Oíndiocomeçouaesfolaromacaco,maseratãodesajeitadoquelevouumtempãoparaarrancarapenasumpedaçodopelo.

–Olhelá!–disseaave,derepente,apontandoparaocéu.–Agoravocêvaivercomosefaz!

EraoUiruuetêchegandopelosarescomoutromacaco.Ogaviãomachopousouefincoulogoseusolhosarregaladosno

intruso.–Porquetrouxeestacomidaimprestávelparaonossofilhote?–

disseeleàesposa.–Nãosabequeacarnedessaraçaimundanãoagradanemaosurubus?

–Eleéonossonovoesfolador–disseela,semseintimidar.–Oquê?!–Éissomesmo.Estoufartadepelarbugiosenquantovocêvoa

alegrementeporaí.Atélogo.Ensine-oapelarosmacacosqueeuvoudarumavolta–disseela,levantandovoo.

Uiruuetêeoíndiopassaramorestododiacobertosdepeloedesanguecoaguladoenquantoofilhotinhodogavião,aosseuspés,nãoparavadepiar,loucodefome.

–Vocêgostariadetornar-seumgavião?–disseoUiruuetê,aofimdotrabalho.

–Estábrincando?–disseoíndio,nauseadodospésàcabeça.–Émuitomelhordoqueserhomem–disseogavião.–Nãogostaria

devoar?Oíndiopensounisso,edepoisnoirmãoqueoabandonaraali,eem

todaaraçahumanaquenãovaliamuitomaisdoqueoirmão,etomoufinalmenteadecisão.

–Muitobem,sereiumgavião!NomesmoinstanteoUiruuetêergueuvoo.–Espereaí,eujávolto!Oíndioolhouparabaixoedisseasimesmo:–Queoutracoisapossofazer,semasaouescada?Daliapouco,ogaviãoretornoucomumbandodeseuscolegas.O

índiosentiuosanguegelaraoimaginarqueestavaprestesaser

Page 47: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

transformadonãoemgavião,masnopratoprincipaldessaespécie.Osgaviõespousaramnoninhoecomeçaramumadança,atéqueo

índiosentiucrescer-lheportodoocorpoummantodepenas.Seusbraçosviraramasaspossantes,esuaspernasconverteram-seemdoismembrosásperosqueterminavamempatasdededoscomunhasaduncas.

–Oquehouvecomigo?–disseele,apalpando-setodocomasasas.–Vocêagoraéumdenós!–disse,triunfante,oUiruuetê.Oíndiograsnoualgoquenemmesmoosgaviõesentenderam.–Agoravamostiraradesforradoseuirmão!Oex-índioaprovouaideianahoraelançou-sejuntocomosoutros

nadireçãodaaldeia.Quandochegoupróximoaela,viuoirmãopintando-separaumagrandefestaqueiriaacontecernataba.

Aoveremobichopousado,osamigosdoíndioalertaram-no:–Vejaqueenormegavião!Acerte-ocomumaflechada!Oíndiogabolatomoudoarcoedisparouumaflechada,masogavião

desviou-secomnotáveldestreza.Outraflechafoiarremessada,edenovoogaviãodesviou-se.Então,fartodobrinquedo,ogavião-índioavançousobreoirmãoeenterrouasgarrasnoseucabelo.

–Socorro!–gritouodesgraçado,aomesmotempoemqueerasuspensonoar.

Aoalcançarumaboaaltitude,todososoutrosgaviõeslançaram-sesobreapresa,picando-ovivoemplenoar.Umachuvadeossosfoitudooqueretornoudoíndiomortoàsuaaldeianatal.

–Agoratratederetirarseuspaisdaaldeia,poisvamosatacá-la–disseoUiruuetê.

Ogavião-índiochegouàocadospaisedisseparaviremcomele.–Nãovamos!Vocêconverteu-seemdemônio!–responderam.Entãoogaviãocresceuemtamanhoe,depoisdeagarraraocacomo

bico,suspendeu-anosares.Aoveremaquilo,osdemaisíndiostentaramimpedirafugadaoca

voadora,pulandoeestendendoosbraços.Ospajéstomaramdosseuscachimbosepuseram-seaassoprarafumaçanadireçãodaoca,masistosóserviuparaempurrá-laaindamaisparalonge.

Assimqueaocadesapareceuporentreasnuvens,umachuvaradaequivalenteadezriosTocantinssendodespejadosdoaltocomeçouadesabarsobreaaldeia,submergindotudoemminutos.

Alguns,porém,conseguiramescapar,escalandopalmeiras.Duranteváriosdias,imersosemtrevas,eleslançaramcoquinhossobreaságuasparaverseelashaviambaixado,masoruídosoavasemprepróximo.

Page 48: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

Então,começaramachamar-seunsaosoutros,paraverseaindaviviam,etantogritaramqueoseuvozerioroucoacabouportransformá-losemsapos.

Alendanãoespecificasetodososíndiossobreviventessetransformaramemsapos,masdevemoscrerquenão,poisdoutraformaostembés,hoje,seriamtodoshabitantesdosrios.

Page 49: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

ACONVERSÃODEAUKÊ

AukêéumpersonagemdatriboKrahó,dasmargensdorioTocantins.Mesmoantesdenascer,essesersingularjáandavaaprontandoporaí,comoveremosagora.

Équeelenãoquerianascerdejeitonenhum.Assim,osmesesdagestaçãosepassavam,eelepermaneciaescondidonoventredamãe.Sóànoiteéqueeledavaumasaidinhaparavercomoeraomundo,transformadonumapreáounumapaca,maslogoaoamanhecerretornavaligeirinhoparaasuamoradanaturaleaconchegante.

Atéqueumdianãotevemaisjeito,eopequenoAukêfoiobrigadoafazerasuaentradaoficialnomundo.Todosoacharamumbelomenino,maselecresciamuitorapidamente.Alémdisso,tinhaodomrealmenteimpressionantedeficarigualzinhoatodososquedeleseaproximassem.

Assim,certafeita,aoreceberavisitadomembromaisvelhodaaldeia,umvelhotedecostasencurvadas,omolequetransformou-seinstantaneamentenumanciãoigualzinhoaele.

–Comovaionossomenino?–disseele,gengivando.–Seuvelhosujo!–respondeuomoleque,quetinhaviradooutro

velhosujo.Quandoovelhosaiu,chegouumhomembranco,debarbanacara.

Instantaneamenteumabarbapretacresceunorostodoindiozinhoatéeleficarcomacaraidênticadohomembranco.

SóquandocorriaparaosbraçosdamãeéqueAukêvoltavaaserumindiozinhonormal,pequenoepraládemoleque.

Essasmetamorfoses,porém,enchiamdeterroraaldeiainteira,elogotrataramdeenxergarnomeninoumaencarnaçãoqualquerdeAnhangá,ouoDiabodoshomensbrancos.

Então,quandoomedoestavabementranhado,passou-seestaconversaentreopaieoavôdeAukê,doisíndiosmuitomalvados:

–QuefaremoscomestacriadeJurupari?–disseopai.–Sóháumjeito–disseoavô,assoprandoamãocomoquemsopra

umrestodepó.Paraquemnãoentendeu,elestramavamamortedomenino.Assim,

namanhãseguinte,oavôavistouAukêbrincandonobarroelhedisse,comoquemconcedeomaisaltoprivilégiodaTerra:

–Venha,meunetinho!Venhapassearnamatacomovovô!Aukêlevantou-seeseguiu-o.Destavez,opequenoAukê,poralguma

Page 50: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

razãoquesóaslendasexplicam,nãosetransformounumacriaturaigualaoavô.

Osdoiscaminharammataadentroatéchegarempróximoaumabismo.

–Olhesócomoébeloeprofundo!–disseovelho,conduzindoomeninoatéabeira.

Aukêolhousuperficialmente,sóparasatisfazeroavô,poisnãoachavagraçaalgumanaquilo.

Nesteinstante,ovelhoempurrouogurievoltoutrotandoparaaaldeia.

Felizmente,nembemcomeçaraacair,ogarototransformou-senumafolhasecaefoidescendodemansinhoatépousar,sãoesalvo,nosolo.Nomesmodia,Aukêvoltouparacasacomosenadativesseacontecido.Aovê-lo,oavôcorreuparaabraçá-lo.

–Meunetinho!Penseiquetivessecaídoemorrido!Todosnóslamentávamosodesastre!

Atribointeiraestavaconsternada,sim,maseraporteromeninodevolta.

Nodiaseguinte,oavôlevouAukêparaumnovopasseionamata.Aochegaremnasbrenhas,ovelhomandouonetinhojuntarmadeiraefazerumafogueirabemgrande.

–Fogueirapraquê?–perguntouomenino,torcendoaboca.–Vamosmoquearumacarne!Ogarotoficouolhandodesconfiadoparaovelho.Moquearcarne

paraque,seoavônãotinhamaisnenhumdentenaboca?Ofatoéque,quandoafogueiraestavabemaltaecrepitante,ovelho

chegoupelascostasdeAukêeempurrou-oparadentrodaslabaredas.Destavez,nãohouveprodígioalgum:ogurientrounaschamasenão

saiumais.Apartirdaqueledia,olugarondeAukêmorrerasetornoulugarde

maldição,easpessoassóiamláemgrupos,afimdesaciaremasuasededemorbidez.

Numadessasexcursões,osvisitantesderamdecaracomumacasinhaerguidanolugarondearderaafogueira.Haviaalguémládentro,poisecoavavozdegente.

Assustados,osindígenasvoltaramcorrendoparaaaldeia.–Aukêressuscitoueestámorandonumacasa!–disseumdos

Page 51: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

fugitivos.–Onde?–gritouoavô.Umsegundoíndio,quenãoreconheceraovelho,esclareceu:–Láadiante,ondeoavômalvadoqueimouvivooneto.Todosreuniramcoragemevoltaramaolugar.Defato,láestavaa

casa,e,aoseuredor,umagrandeplantação.DedentrodacasasurgiuAukê,umíndioadulto,agora.Eleestavacasadocomumaíndiaeambospassavammuitobem.

–Vovô,comoestá?–disseAukê,aoreconhecerovelho.Emsuavoznãohaviaomenorsinalderancor.–Podeentrarsemsusto,meuavô,poisnãoguardorancoralgum.

Tornei-mecristão.Ovelhoficoudesconfiado.EntãoAukêlevoutodosatéabeiradorio,paralhescontaruma

parábola.Depoisquesetornaracristão,eleaprenderaapregarmoraleachouqueaquelaeraumaexcelenteocasiãoparaisso.

Aukêtomouumapedraelançou-aàágua.–Viramcomoelavaiaofundoaocair?Todosbalançaramobedientementeacabeça.–Assimseráaalmadevocêsquandomorrerem.Cairánopoçoda

morteenãosubiránuncaaocéu.Todosengoliramemseco.Aukêtomououtrapedra,envolveu-anumafolhasecaearremessou-

atambémnaágua.Apedratambémfoiaofundo,masafolhadestacou-seesubiuligeiroàtona.

–Aquelafolhaéaminhaalma.Apedraéocorpoquedesceàsepultura,masaalmacristãsobeimediatamenteaocéu.

Depoisdapregação,osíndiosforamlevadosdevoltaparaacasadeAukê.TodosderamgraçasaTupãqueocastigoselimitaraaumaameaçavaga.Aukêpresenteou-osricamente,dando-lhesespingardas,facões,pólvora.Àsuamãeeledeuumcaldeirão.Depois,despediu-sedetodos,fazendo-lhesosinaldacruz.

–Voltemsemprequequiserem,meusirmãosemCristo,equeDeusosabençoe!

Page 52: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

KOIERÉ,OMACHADOCANTANTE

Osíndioskrahós,dorioTocantins,possuíamoutroraummachadomágicochamadokoieré.Sualâminaerafeitadepedra,emformatodeâncora,eeleerausadotantonaguerraquantonascerimôniasreligiosasdatribo.

Oskrahósviviamemguerracomseusvizinhos.Oseumaiordesafetoeramoskrolkametrás,umatriborival.

Certafeita,asduastribosestavamseenfrentando,quandoumaflechadacerteiraabateuoportadordomachadocantante.Ovalenteguerreirokrahócaiuparaumlado,eomachado,paraooutro.

Comoumraio,omatadorcorreueapoderou-sedaarma.–Agoraokoierépertenceaoskrolkametrás!–urrouele,brandindo

noaromachado.Findaamatança,todosvoltaramsatisfeitosparaassuascasas,cada

ladolevandoosinimigosmortosparaseremassadosnasgrelhas.Masquemiafelizmesmoeraonovoportadordokoieré,queera

casadocomumabelaíndia.Antesmesmodechegaremcasa,decidiuque,agoraquesetornaraumpersonagemimportantedaaldeia,deveriaarrumarcoisaaindamelhordoqueasuabelaíndia.

Nãodemoroumuito,apareceuumacandidata,eoíndiosemudouparaaocadela.Napressa,porém,acabouesquecendoomachadodependuradoemcimadasuarede.

Duranteanoite,aíndiaabandonadaescutouporentreosintervalosdosseussoluçosomachadofalar-lhe:

–Mamãe,vamospassear!Índiassãomuitomaternais.Poralgummotivo,omachadopassaraa

chamá-lademamãe,ebastaraissoparaelaficarenternecidacomoobjeto.Tomando-onosbraços,elasaiuportaaforaparapassear.

Duranteanoiteinteiraaíndiaenjeitadaembrenhou-sepelasmatas,enquantoomachadolheensinavatodasascançõesdeamoredeguerradoskrahós.

Logo,todaaaldeiaficousabendodocaso,eanotíciaseespalhou,chegandoàaldeiadoskrahós.Então,oirmãodoprimitivodonodomachadodecidiurecuperá-lo.

Aestaaltura,onovodonojáhaviaretomadooobjetoefoicomraivaquerecebeuavisitadoemissário.

–Deformaalgumaorestituirei!–bradouele.

Page 53: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

Masocaciquedatribodissequehaviaregrasqueoobrigavamarestituiroobjetoaosinimigos.

–Anhangáemaldição!–rosnouonovodono.–Poissaibamquesóorestituireiàquelequemevencernacorridadetoras!

Corridadetoraseraumacompetiçãoqueosíndiosdisputavamtendoatravessadaàscostasumatorademadeiradecercadeummetrodecomprimento.

–Quemmevencerpoderánãosólevardevoltaomachadocomomematarecomeracarnedomeucorpo!–disseodesafiante,seguríssimo.

Oemissárioretornouaoskrahóserepetiuaopretendenteodesafio.–Corridadetorasnenhuma!–disseeste.–Vamosreaverokoieréà

força!Entãooskrahósarmaram-sedeflechaseporreteserumaramparaa

aldeiadoskrolkametrás,prontosparamaisumabeladançadasflechas.Quandochegaramàdivisadaaldeiainimiga,foramlançadosaoarosbradosdeguerradasduastribosvalorosas,easflechasassoviaramdenovo,paravaler.Masquemmaistrabalhoufoi,comosempre,omachadomágico,quenãoparoudecantarumsegundoenquantolevavaadianteasuaobraguerreiradeceifarvidas,destavezasdoskrahós,seusantigosdonos.

Acertaaltura,porém,onovodonodomachadoviu-secercadoporalgumasdezenasdeadversáriosenãotevealternativasenãocorrercommachadoetudo.Nãosabemosqueespéciedecançãoomachadoentoounafuga,masofatoéque,aoenfiaropénumburacodetatu,okrolkametráfoiaochãoeperdeu,alémdomachado,aprópriavida,estraçalhadopelaslançasadversárias.

Efoiassimqueokoierévoltouàtribodosíndioskrahós.

Page 54: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

PORQUEONÇANÃOGOSTADEGENTE

Osíndioskayapósexplicamdaseguintemaneiraarazãodeaonçadetestargente.

Tudocomeçouquandoumíndioviu-seabandonadonoaltodeumninhodeararas.Elesubiraláparapegaralgunsovos,masterminaraabandonadopeloirmãodepoisde,pordescuido,ter-lhejogadopedrasemvezdosovos.

Otempopassou,eoíndio,quesechamavaBotoque,jáestavaquasemortodefomequandoumaonçaapareceu.

–Querumaajudaparadescer?–disseapintada,aoveroíndiosozinholánoalto.

Apesardeesfomeado,oíndioachoumelhornãoirnaconversadaonça.

–Não,obrigado.Vocêquerémecomer!Aonçajurouquenãoofaria.Depoisdemuitanegociação,Botoquefinalmentedesceu,eaonça,

casoraroemepisódiosdestanatureza,nadafezparacomeroíndio.Emvezdisso,deixouqueelemontassenassuascostas.

–Vamosparaaminhacasa.Látemcarneassadaàvontade!Botoque,maismortodoquevivo,foisacolejandodebruçosnas

costasdaonçaatéacasaondeelamorava.Amulherdaonça,contudo,nãogostoudeBotoque.–QualBotoque!–disseela,antipatizandologocomoforasteiro.Depois,voltando-separaoesposo,alertou-o:–Deixedeseringênuo,queeuconheçoessagente!Essaéumaraça

mofinaeingrata!Masaonçafezouvidosmoucoseinstalouoíndionacasaemandou-o

servir-seàvontadedacarneassadaqueabundavaporcimadasgrelhas.Botoque,quenuncatinhavistocarneassada,adorou.Naverdade,a

suagentenãoconheciasequerofogo,efoicomgrandeespantoqueeleviuaonçaacendê-lonumtroncodejatobá.

Eamulhersemprereclamando.–Deixadeserbobo,olhaqueessaraçaétraiçoeira!Então,nodiaseguinte,quandoaonçasaiuparacaçaroutravez,a

fêmeacomeçouaazucrinaroíndio,tratando-odapiormaneirapossível,obrigando-oaesconder-seatéavoltadaonça.

Quandoofelinovoltou,resolveuensinaraoafilhadoousodoarco.

Page 55: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

–Olhasó!–exclamouafêmea,levandoasduasmãosàcabeça.–Ficouloucodevez?

Masaonçagostavacadavezmaisdacompanhiadojovem,eensinou-lhetodasasartesdoarcocomtamanhogostoquelogoBotoquetornou-sequasetãohábilquantooseumestre.

Então,quandoamulherdaonçacomeçouapersegui-lonovamente,naausênciadoesposo,Botoquenãotevedúvidaearremessouumaflechadacerteiranopeitodela,matando-anahora.

Depoisdisso,Botoquefugiu,nãosemanteslevarumfarnelinteirocomacarneassadadagrelha.Aochegarnasuaaldeia,contoutudoquantosepassaranocovildaonça.

–Elasabemanejarofogoeassarcarnecomoninguém!Abocadosíndiosencheu-sedeágua,etodospediramaBotoqueque

oslevasseatélá.–Nósprecisamosdofogo!–disseocacique.Entãoelesretornaramàspressasàcasadaonça.Comoelaainda

deviademorar,osíndiospuseram-searecolhertodaacarneassada,alémdeassaremasqueaindaestavamcruasegotejantesdesangue.Depois,ensacaramtudoenãodeixaramnadaparaaonça.

Masopiorfoiteremcarregadoconsigootroncodejatobáondeaonçacostumavaacenderoseufogo,nãodeixandonadaalisenão,pordescuido,umapequenabrasinha,queopássaroazulãorecolheucomobicoparalevaraoseuninhoafimdeesquentá-lonasnoitesfriasdeinverno.

Quandoanoitecaiu,aonçafinalmenteretornouedescobriuquenãohaviacarnenemfogo,equeasuamulherestavamorta,varadaporumaflecha.

–Pobreesposa,vocêestavacerta:essaraçaémofinamesmo!–disseele,envergonhado.

Desdeentão,detantodesgosto,aonçaficousemfogoalgum,eumbrilhoamarelonassuaspupilasfoitudoquantodelerestou.Desaprendeu,também,asartesdoarcoedaflecha,detalmodoquesuasarmaspassaramaserapenasassuaspresaseassuasgarrasdeunhaslongaseaduncas.

Page 56: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

OSAPOEAONÇA

EstalendavemdatriboKayapóeéumexemplarprimitivodaespécie“auniãofazaforça”.

Tudocomeçouquando,certodia,aonçaencontrouosaponumcharco,tambémchamadonoBrasildeigapó.Aonçaestavafuriosadesdequelhehaviamroubadoofogoenãoqueriaconversacomninguém,muitomenoscomumrelessapo.

–Bomdia,donaonça–disseosapo.Aonçaestavacommuitaraiva,dispostaaabocanharqualquerum

queseatravessassenoseucaminho,esónãoengoliuosapoporachá-lomuitoasqueroso.

–Comoousadirigirapalavraamim,serrepugnanteedesprezível?–rosnouela.

–Meuamigo,tudoéquestãodeopinião–respondeuosapo,fleumaticamente.–Assapinhasnãomeachamnadarepugnante,enãoconheçoninguémquemedespreze.

–Poiseuodesprezo!–Porfavor,nãobanqueatola.Semedesprezasse,nãoestariaaíme

ofendendo.Diantedisso,aonçaficouaindamaisfuriosa.–Desprezível,sim!Quemolhaparavocêcomrespeito?Ninguém!–Todosmerespeitam.Meugrito,porexemplo,éoqueinfundemais

terroremtodaafloresta.Pelaprimeiravezdesdequelhehaviamsurrupiadoofogo,aonça

arreganhouosdentessemserderaivaedespejouumagargalhada.–Riaeomundorirácontigo–disseosapo,superiormente.–Querdizerqueoseurugidoéomaisapavorantedafloresta?–

disseaonça,apósrecuperarofôlego.–Poisestaeupagoparaver!Entãoaonçatrepounumapedraelançouaosaresoseuurromais

tétricoedesafiador.Instantaneamente,umaalgazarradecoisasfugindoporterra,céue

águaagitouafloresta.Foitamanhaabalbúrdiaque,durantecercadecincominutos,sóseescutouoecohorrendodaferaedascriaturasseatropelandonafuga.Somentequandooúltimoecodoseugritosedesfeznoaraonçadesceulentamentedoseupedestaldeglória.Suacabeçaestavaerguida,eumbrilhoinsuportáveldesoberbafaziacomquesuaspupilasamarelascuspissemfaíscasderegozijo.

Page 57: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

Entãofoiavezdeosapodemonstraropoderdasuavoz.Depoisqueaonçaabandonaraoseuposto,osapogalgounumpuloapedra,encarapitando-senotopo.

–Muitobem,agoraourrodosapo!–anunciouele,comoummestrebalofodecerimônias.

Oruídodorisodaonçaobrigouosapoaaguardaralgunsinstantes.Somentequandotudofezsilênciooutravezfoiqueosapoencheubemopapoatétorná-lotranslúcidoearremessou,finalmente,oseucoaxarroucodesapo.

Então,aconteceuumaespéciedereverberaçãototal,comosealguémhouvesseespalhadopelaselvainteiramilharesdecaixasdesomamplificadasaomáximo.Asárvorestremeramdesdeasraízesatéasfolhas,enquantoosolochacoalhava.

Incapazdesuportarazoeiraterrificante,aonçalevouasduaspatasàsorelhas,tentandosuportardignamenteaquelecoaxarcolossal.Mas,quandoviuquenãopodiamaissuportar,atiroutudoparacimaetratoudedarnopé.

–Ei,espere!–gritouosapodoaltodapedra.–Querapostarcomosoutambémmaisveloz?

Masaonçajánãoescutavamaisnada,desaparecidaqueestavanasbrenhasdamata.

Sóentãoosapolançouumsegundocoaxar,quefoiaordemexpressaparacessaremtodososoutros,jáque,naverdade,nãosóelehaviagritado,mastodosossaposeassemelhadosdafloresta,taiscomoasjias,asrãs,aspererecas,oscururuseorestantedavalorosadinastiadosserescoaxantes.

Dizalendaque,duranteafuga,aonçaacabouperdendoumolhonumgraveto–umdetalhemórbidoquenãotemamenorimportânciaparaodesfechodesteconto,masquetemparaocomeçodoseguinte,noqualveremoselucidar-seumsurpreendenteenigmadanossafauna.

Page 58: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

ASPERNASCURTASDOTAMANDUÁ

ouPORQUEONÇANÃOGOSTADETAMANDUÁ

Sealguémsempreteveacuriosidadeemsaberporqueotamanduátemaspernascurtas,échegadaahoradematá-la,poisosíndioskayapós,desdesempre,sabemperfeitamentearazão.

Estessenhoresdescobriramque,empriscaseras,otamanduápossuíapernastãolongasquantoasdagarça.

Ninguémnamata,nemmesmoocoelho,podiavencerotamanduánumacorrida.

Alémdaspernascompridas,elepossuíatambémumgênioperverso,frutotalvezdasuavaidade.Foiestedefeitoqueofezpraticaroatoperversoquedáinício,deverdade,aestanarrativa.

Diz-se,pois,que,aofugirdosrugidosassustadoresdeumsapo–ou,antes,deumexércitodesapos,masqueelaimaginavaserapenasum–,aonçaacabouperdendoumdosseusolhos,aoroçá-lonumgalho.Caolhaeassustada,elafoisurgiraalgunsquilômetrosdeondesaíra.

–Ai,ai!Humilhadaesemumolho!–queixava-seela,quandootamanduáaescutou.

–Oquehouve,donaonça?–disseele,espichandooseunarigãoenxerido.

–Como“oquehouve”?Nãoestávendo?Perdiumdosmeusricosolhos!

–Nãosepreocupe–disseotamanduá,assumindoumarprofessoral.–Vourestituí-loparavocê.

Aonçasabiaperfeitamentequeotamanduánãoeramédiconemtinhadomsobrenaturalalgum.Nãohaviaqualquercomentárioemtodaaselvaquepudesselevá-laacrernisso.

–Otamanduánãopassadeumpatusco–diziamtodasasvozes.Acontecequeodesesperofazcresceraesperançaaténaspedras,e

foicomestesentimentodesatinadoqueaonçaseentregouàsartes

Page 59: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

médicasdotamanduá.–Porfavor,devolvameuolhoelhesereieternamentegrata!–disse

afelina,efezmuitíssimomalemdizer,poisqualquerumnasmatassabequegratidãonãoécoisadeonça.

Semperturbar-se,otamanduáespichouassuasunhasempinçaeordenou:

–Fecheoolhosão–falouele.–Quandoacordar,teráoutravezosseusdoisolhos.

Aonçafechouosolhos,expectante,esentiuumadoragudanaórbitacheia.

Quandoabriu-a,novamente,nãotinhamaisolhoalgum.Nesseponto,entraemcenaoazulão,aquelamesmaavequeficara

comoúltimotiçãodefogoarrebatadoàonçaporumíndioingrato(veroconto“Porqueonçanãogostadegente”).Oazulãosempreforaamigodaonça,eporisso,penalizado,decidiufazeralgoparaajudarabichana.

Ligeirinho,oazulãosaiuvoandoportudoedescobriuosdoisolhosperdidos.(Otamanduá,depoisdetercegadoaonça,trataradedarnopé.)Depois,retornouatéafelinaedisse:

–Fiquequieta,vourecolocarosseusolhos.–Oh,azulãoquerido!Sereieternamentegrataavocê!–choramingou

aonça.Numtrabalhodealtíssimaprecisãocirúrgica,oazulãoreintroduziu

osdoisolhosdaonçaemsuasrespectivasórbitas,colando-oscomumaresinadeárvore.

–Pronto,aíestá!–disseoazulão.Aonçaabriuosolhoseviutudoclarooutravez,inclusiveaavezinha,

quejáestavatrepadanotopodeumgalhoaltíssimo(poiselanãoerabobanemnada).

–Agoraaquelecanalhadotamanduámepaga!–rugiuaonça,disparandoatrásdoseumalfeitor.

Otamanduácorriafeitoumpédevento,masaonça,mesmoestandomuitoatrás,nãodesistia,etantoperseguiuoinimigoqueesteacaboucansando.

–Ojeitoémeescondernesteburacodetatu!–disseele,arfante,seenfiandonochão.

Misériaeraqueoburacofosseinfinitamentemenorqueele,eporissosuaspernascompridasacabaramficandodefora.Quandoaonçachegou,foiumafesta.

–Estaspernasmepertencem!–disseela,enumsaltoabocanhoue

Page 60: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

cortoupelametadeaspernasdotamanduá.Depoisdisso,otamanduápassouaandarcomaquelaspernascurtas

quetodomundoconhece.Mas,emcompensação,acaboudesenvolvendoosbraços,eécomoseufamoso“abraçodetamanduá”queessevalorosomamíferosedefende,desdeentão,daonçaedosseusinimigos.

Page 61: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

COMOSURGIRAMASDOENÇAS

Osíndiosumutinasexplicamosurgimentodasdoençascomoumasoluçãoparaevitarasuperpopulaçãodasaldeias.Naquelesdiasantigos,osvelhosnãomorriamdecoisaalguma,nemficavamdoentes,nemperdiamosdentes.Comotinhamtodososdentesnabocaeumapetitedeleão,comiamodiatodosemproduzirnada,tirandooalimentoatédascrianças.

Certafeita,trêshomensdecidiramencontrarumasoluçãoparaoproblema(semsedaremcontadequeumdiaelestambémseriamtratadoscomoumproblema).Foram,então,fazerumavisitaàLua,queentreosíndioséhomemesechamaHári.

–Quesoluçãovocêtemparaquenãoacabefaltandocomidaparatodos?–disseumdostrêsfuturosvelhos.

Hári,queeratambémumfeiticeiro,coçouacabeçaedisse:–Infelizmentenãopossoajudar.ProcuremMini.MinieraoSol.Ostrêsíndiosforamparaacasadele.Depoisdemuito

caminhar,chegaram,afinal,aoseudestino.–Bomdia,Mini.Dê-nosovenenomaisfortequetiveremseu

herbanário.OSolergueuassobrancelhas.–Venenoparaquê?–Queremosumvenenoparaacabarcomosvelhosdanossaaldeia.–Vocêsestãoloucos?–Não,nãoestamos.Éprecisofazerissoounossaaldeiainteira

morrerádefome.EntãooSolreconsiderouetrouxedasuasalademoléstiasuma

flechamágica.Juntocomelavinhamváriasdoenças.Osíndiosescutaramatentamenteepareceramsatisfeitos.–Mas,cuidado–alertouoSol.–Sóatiremaflechadepoisdese

esconderematrásdeumaárvore,poiselacostumavoltarparaatingiroseuarremessador.

Comosempreacontece,oavisofatalentrouporumouvidoesaiupelooutro.Tudoquantoelespensavameraemdarumjeitonosvelhosdatribo.

Ostrêsíndiosandarameandaramatéchegarem,enfim,àaldeia.–Vamosexperimentarestaflechadeumavez!–disseumdostrês.Apóstomardoarco,oarqueirofezpontariaemumvelhoqueestava

sentadoembaixodeumaárvoredesdeoraiardodiacomendomandiocae

Page 62: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

milhoverde.Antesdesuspenderoarco,oarqueiroescolheuumadoença.Entãoaflechanãotardouavoardiretonovelho.Elavarouoventre

deleeretornounadireçãodoarqueiro,quesónãofoiatingidoporquelembrou,noúltimoinstante,doavisodoSol.

Ostrêsficaramescondidosparaveroefeitodaseta.Emmenosdemeiominuto,ovelhocomeçouasesentirmaleacaboumorrendo.Eassimostrêsíndiossaíramescondidospelaaldeia,dandoflechadasnosvelhos.

Então,certodia,outroíndioresolveupediremprestadaaflechamágicaparacaçaranimais.

Napressa,ostrêsíndiosesqueceramdeavisaraelesobreovaievoltadaflecha,eocaçadorpartiualegremente,semdesconfiardoperigo.

Nomesmodiameteu-senaselvaeprocurouamelhorcaçaquepôde.–Temdeserumbichodaqueles!–disseasimesmo,enquanto

espreitava.Nãodemoroumuitoesurgiuumveadoenorme,maiordoqueum

cavalo.Oíndioassestouaflechaesoltouacorda.Asetafoiatéoveado,cumpriucomoseupapeldeabatê-loeretornouatéoarqueiro.Comoesteestavadesavisadodavolta,emvezdeesconder-seatrásdeumaárvore,ficouparadonomesmolugar,recebendoaflechadadavoltabemnomeiodopeito.

Page 63: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

COMOSURGIRAMASESTRELAS

Tudocomeçouquandoumgrupodemulheresandavanaflorestasocandomilhoparafazerpãesebolosparaosseusmaridos,queestavamnacaça.Umindiozinhoqueestavaporalisurrupioudamãeboapartedomilhoefugiu,escondido.Aochegaremcasa,pediuàavóquepreparasseumpãodemilhoparaeleeseusamiguinhos.

Obolofoisovadoeassado,eascriançascomeramatésefartar!Depois,commedodeserempunidos,resolveramcortaralínguadavóparaqueelanãopudessedenunciá-los.

Emseguida,fugiramparaamata,ondeamarraramunsnosoutrostodososcipósqueencontrarampenduradosnasárvores.

–Chamemocolibri!–gritouumdeles.Ocolibrisurgiu,pequenino,batendoasasas.–Tomeestapontanobicoesubaatéomaisaltocéu!–ordenouo

garoto.Aavezinhatomouapontadocipógiganteesubiuatésumirnas

nuvens.Imediatamente,osindiozinhoscomeçaramasubirpelacorda,

enquantoocolibriasustentavadoalto.Nestemeio-tempo,asmãesjátinhamchegadoàtabaedescobertoo

quetinhaacontecido.Aoolharemparalonge,avistaramosmeninossubindoaoscéuspelocipó.

Juntas,correramparaamatapedindoaelesquedescessem,poistemiamquecaíssem.Aoveremqueelesnãodesceriamjamais,asmulherespuseram-seasubirpelomesmocipó.

Derepente,umsompavorosoecoounoscéuseacordacaiu,trazendojuntotodasasmães.Antes,porém,dechegaremaochão,elastransformaram-seemferas,efoiassimquepassaramaviversobreaterra.Osindiozinhos,porsuavez,comojáestavamnocéu,nãoconseguirammaisvoltar.Desdeentãosãoobrigados,comseusolhinhosbrilhantes,aassistirládecimaodesfileperpétuodasmãesconvertidasemanimaisferozes.

Page 64: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

OBATISMODASESTRELAS

Comonamaioriadaslendasindígenas,tudosepassanumclimameiodesonho:numpassedemágica,arraiassetornamjatobás,edejatobássetornamestrelas.

Diz-se,pois,quecertafeitaumíndiofoipescarcomseufilho.Osdoisestavamvasculhandoaságuasdeumrioquandoogarotogritou:

–Veja,papai,umaarraia!Opaiavistouobichoe,apósfazerrápidapontaria,lançouaflecha.–Pimba!–gritouomenino,pulandodealegria.–Vamosassá-la,

papai!Estoucommuitafome!Opaimandou-o,então,acenderumafogueira,enquantoenrolavaa

arraianumasfolhas.Depoisdeajeitá-labemnopequenofornoimprovisado,oíndioretornouaorio.

–Vouversepescomaisalgumacoisa–disseele,enquantooindiozinhovigiavaoassado.

Umtemposepassou(nãomuito)atéqueogarotoberrou:–Papai,aarraiajáassou!Masoíndiosabiaqueeracedodemais.–Não!Éprecisoesperarmuitomais!Daliapouco(bempouquinhomesmo),omeninodenovo:–Papai,aarraiajáassou!–Assounada!Esperamaisumpouco!Masomeninotantoincomodou,loucodefomequeestava,queo

índioapareceucomcaradepoucosamigos.Depoisderetiraraarraiadoseuinvólucro,constatouque,defato,elaaindaestavacrua.

–Estávendo?Coma-acrua,agora!Oíndioatirouaarraialongeevoltousozinhoparacasa.Oindiozinhocomeçouagritareachorar.Nomesmoinstante,gritos

assustadoresexplodiramportodaamata,enchendo-odeterror.Então,sentindo-seindefeso,abraçou-seaumpédejatobáegritou:–Jatobá,meuavô,sobecomigo!Opé,queerapequeno,começouacrescercomoopédefeijãodo

João,levandoconsigoomenino.Quandoestavaaltíssimo,tãoaltoqueogarotopodiatocarocéu,ojatobáparoudecrescer.

Sóqueagritariadaflorestanãocessara.Quemapromoviaeramuns

Page 65: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

espíritoschamadosKogai,queestavamsempreaoredordojatobá.Então,anoitedesceu,e,umaauma,asestrelascomeçaramasurgir

comopirilamposaoredordomeninoempoleirado.Cadavezqueumasurgia,escutava-sedosespíritosalgoparecidocomumassovio,queéamaneiradeestesentessecomunicarem.

Quandoaprimeiraestrelasurgiu,oassobiolhedisseoseunome,edepoisfoidizendoonomedetodasasoutras,inclusivedasconstelações.

–AConstelaçãoAkiri!AsPequenasGarças!ATartarugadaÁgua!OsRastrosdaEma!

Ogarotoiaretendonamemóriacadaumdosnomes,epassoutodaanoitenessebrinquedo,atéqueaaurorasurgiu.Então,omantonegrodanoitefoirecolhidorapidamenteparaasprofundezasdohorizonte,levandoconsigotodasassuasjoiaseosseusadornos.

Asvozescessaram,eogaroto,sentindo-sesóeinfeliznaquelavastidãosemestrelas,pediuaojatobáquedescessecomele.Aárvoreobedeceu,eogarotopulou,feliz,paraochão,indolevaràsuaaldeiaoconhecimentoqueadquiriradurantetodaanoite.

Page 66: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

APESCARIADASMULHERES

Estalenda,umaverdadeirafarsasilvícola,tambémédosbororosenarraumadivertidadisputaentrehomensemulheres.

Tudocomeçouquandooshomens,perdendoasorteouahabilidadenapesca,começaramaretornar,todososdias,demãosabanandodorio.Aquilojávirararotina,eerasoboolhardecensuradasmulheresdaaldeiaqueeleschegavamdecabeçabaixaesamburávazio.

–Aíestá,nadadepeixe,outravez!–disseumaíndiavelha.–Oquehouve,seustolos,desaprenderamapescar?

Oshomensnãosabiamoquedizer,mastantodesaforoescutaramqueumdiaocaciqueresolveudesafiá-las.

–Vocêsfalam,falam,masnãoseriamcapazesdepescarnemumlambarimorto!

Entãoasmulheres,despeitadas,resolverammostrardoquantoeramcapazes.Tomandoosarcosdasmãosdosesposos,elaspartiramparadentrodamata,soborisogeral.

Aochegaremàbeiradorio,elascomeçaramachamarpelaslontras.–Venham,lontrasamigas,precisamosdasuaajuda!Aslontrasaparecerameforamrapidamenteinformadasdetudo.–Tragamomáximodepeixesquepuderem!–dissealíderdas

mulheres.Ignora-sequeespéciedetratofoifixadoentreasmulhereseas

lontras,masofatoéqueaslontrasmergulharamnaságuasecomeçaramacaçartodosospeixes,atirando-osparaamargem.Foiumaverdadeirachuvadepeixes,queasmulheresaparavamnossamburásatéelestransbordarem.

Quandoodiaestavaterminandoelasretornaram,enfim,paraaaldeia.Homemalgumfoicapazdeacreditarnoqueseusolhosviam.

–Vejam,ossamburástransbordam!–Sim,equepeixões!Nodiaseguinte,oshomensregressaramaorio,certosdequeamaré

viraraedequeelestambémseriamcapazesdeencherem-sedepeixes.Masretornaram,maisumavez,demãosabanando.–Dácáisto!–dissealíderdasmulheres,tomandonovamenteo

arco.Asmulheresvoltaramaorio,celebraramnovopactocomaslontras

e,nofimdodia,retornaramcomtantospeixesquetodososmoquénsda

Page 67: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

aldeiativeramdeseracesosparaevitarquetodaaquelacarneacabasseseestragando.

–Precisamosdescobriroqueelasfazemparaarranjartantopeixe!–disseocacique.

Ovelhomorubixabatemia,acimadetudo,queasmulheresvoltassemacomandarosdestinosdataba,talcomosediziateracontecidonosvelhosdiasdeopressãofeminina.

–Elassãoespertasenãopermitemquenosaproximemosenquantopescam–disseumíndioquetentouespiá-las,masacabouatingidoporumaflechanopé.

Entãoopajé,senhordossegredosdamata,foiincumbidodeencontrarumasolução.Depoisdeingerirumapuçangadeervaseentoarversosmágicos,elevidrouosolhosedisse,numtomcavernoso:

–Chamemaquituiréu!Quituiréueraumapequenaeprosaicaave,hábilnaespionagem.–Sigaasmulheresedescubraporqueelaspescamcomtanta

facilidade–disseomagoindígenaàavezinha,quesumiulogo,numpédevento,paradentrodamata.

Nofimdodia,antesqueasmulheresregressassem,apequenaaveespiãretornou.Todososíndiosacocoraram-seaoredordopajéenquantoaquituiréucochichavanacovadasuaorelhamarromograndesegredo.

Assimqueopássaroterminoudepipilar,opajéarregalouosolhoseanunciou:

–Asíndiastrapaceiamjuntocomaslontras!Entãoocaciquesepronunciou:–Nãofaçamnadaquandoelasvoltaremdapesca!–Comonão?–bradoualguém.–Vamosdar-lhesumaboasurra!–Nadadisso–insistiuocacique.–Façamosdecontaquenada

sabemos.Nãodemonstremossurpresanemcólera.Issoasdeixaráintrigadas,eéoquantonosbasta,porora.

Eassimsefez.Quandoasmulheresretornaramdesamburáscheios,oshomensnãoderamamínimaecontinuaramemsilêncio,deolhosfitosnoarounochão.

–Oquehouve?–disseaíndiavelha.Namanhãseguinte,oshomensanunciaramqueiriamtentarnova

pescaria.–Podemir–disseamulher,certadequeseriaoutrofracasso.–

GraçasaTupãtemospeixesuficienteparaaspróximastrintapescariasfracassadasdevocês.

Page 68: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

Malsabiamelas,porém,queoshomenslevavamconsigocordasrecobertasdevisgo,umaresinagrudenta.Aochegaremnabeiradorio,oquituiréuchamou,comsuavozfininha,aslontras.

Aslontras,imaginandotratar-seoutravezdasmulheres,surgiramdaságuasalegremente.

–Agora,atiremascordas!–gritouocacique.Osíndiospularamsobreaslontrasecomeçaramagarroteá-lasuma

auma.Somenteumaescapou,fugindoparadentrodaáguacomosolhosarregaladosdomaispuroterror.

–Muitobem,agoraquejádemosumjeitonessesbichosenganadores,podemosvoltarparaaaldeia–disseocacique.

–Nãovamospescar?–dissealguém.–Não–disseocacique.–Antesqueroveracaradasíndiasquando

vierempescareforemobrigadasaretornardesamburásvazios.Nodiaseguinte,asmulheresretornaram,defato,àpescariae,ao

chamaremassuascúmplices,viramsomentealontrasobreviventeemergirdaságuas.Acoitadasóamuitocustoconseguiurevelartodasasatrocidadespraticadaspeloshomensnodiaanterior.

–Miseráveis!Elesirãopagarbemcaroporisso!–bradouaíndiavelha.

Ora,acontecequeessaíndiatambémeraentendidaempuçangas,enomesmoinstantedeterminouquesuasamigasrecolhessemdasmatasumafrutachamadapequi.Essafrutinha,produtodasmatasbrasileiras,possuinumerososespinhosquerodeiamocaroço,pordebaixodapolpa.

–Preparemabeberagem!–disseaíndia,easoutraspassaramorestododiapreparandoapoçãovenenosa.

Quandoodiaacabou,elasretornaramàaldeia.–Ah!Ah!Ah!Ondeestãoospeixes,hoje?–gritavamoshomens,

rindomuito.–Orionãoestavaparapeixe,entãopreferimosgastarotempo

fazendoestabebidarevigorante–disseaíndiavelha,mostrandoabeberagemqueelastraziamemgrandescumbucas.

–Passemissoparacá!–disseramelesrepentinamente,arrebatando-lhesabebida.–Estamosloucosdesededetantorir!

Oshomensingeriramabebidaenãodemoroumuitoparacomeçarematossir,desesperados.Enquantoseengasgavam,grunhiamfeitoporcos,tentandoselivrardosespinhosencravadosnagarganta.

Efoiassimqueoshomensdaaldeiaacabaramsetransformandoemporcos.

Page 69: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

ACURADAVELHICE

Osíndioskadiuéuscontamquehavia,certafeita,umpadrequetomaraaresoluçãodecurarosvelhosdetodasassuasdoenças.

–Cure-osdavelhice,eosterácuradodasdoenças–corrigiu-lheumdiaumpajémaisastuto.

Essepadre,porém,nãotinhatantopoderassimedecidiuirprocurarquemotivesse.ErasabidoentreoskadiuéusqueumcertoGô-Noêno-Hôditinhaopoderdepôrfimaostormentosdavelhice.

–Vouprocurá-lo!–disseimediatamenteosantohomem,esquecidoatédoseudeus.

–Ninguémsabedireitoondeelevive–respondeuopajé.–Poisireidescobri-lo!–insistiuopadre,determinado.Opadreentroupelamataefoiembuscadolocalondediziamviver

esseserpoderoso.Enquantoandava,iaconversandocomasárvores,poisreceberadoscéusestedom.Aoavistarumaárvoresecaevelha,parouparadirigir-lhealgumaspalavras:

–Comovai,minhaamiga?–Mal,muitomal!–gemeuaárvore.–Sóaguardo,agora,oincêndio

quehádevirnaflorestaparavermeusdiasseacabarem!–Issonãohádeserassim,poisvouembuscadeGô-Noêno-Hôdi.

Podemedizercomofaçoparaencontrá-lo?Então,aárvorefezobomhomementraremcontatocomumespírito

dasmatas,queoguiouatéoesconderijodoxamãdafloresta.Nãohavianadaalidefabuloso,etudopareciacomonasoutrasaldeias.Amulherqueseaproximoudopadreeradomesmofeitiodasoutras.

–Oquedeseja?–disseela.–Vocênãoédaqui.Opadreexplicouqueprocuravaotaumaturgodasmatas,eela

apontou-lheumachoça.Imediatamente,opadrefoiatéláedeudecaracomumvelho.–OsenhoréGô-Noêno-Hôdi?–Não–respondeuovelho.–Sigaadianteatéchegaràquelacasa.Opadrefoieperguntou:–OsenhoréGô-Noêno-Hôdi?–Não,souapenasocabelodele.“Háalgumabrincadeiraaqui!”,pensouopadre,jáirritado.Opadrepassouporquatrooucincocasasmais,escutandosempre

respostasparecidas.

Page 70: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

“Pelojeitoessesujeitofoideixandoumpedaçodesiemcadacasa”,pensouele,jáconvictodeque,quandoencontrasseafinalGô-Noêno-Hôdi,nadaencontraria.

Entãoavozdoespíritolhedissequeapróximacasaeraatal.–Mascuidado!–alertouavozinha.–Nãofumenadaqueelelhe

oferecer!Opadreentroueavistou-se,finalmente,comosermisterioso,ea

primeiracoisaqueelefezfoilheoferecerotalcachimbo.Opadrefezquenãoviuecomeçouafalar.

–Grandesábio,venhoembuscadeconhecimento.Gô-Noêno-Hôdinãorespondeu,maslheofereceuumcigarrode

palha.Avozinhaqueestavaabrigadanacovadaorelhadopadrelhedisse

quetambémnãoaceitasse,eopadretambémfezquenãoouviuessenovooferecimento.

Diantedisso,omagosilvestrerendeu-se.–Parabéns,vocêescapouduasvezesdevirarumafera–disseele.–

Ocachimbotinhaexcrementodeonça,eocigarrotambém.Então,osábioperguntouaopadreoqueelequeria.–Queroumremédiopararejuvenescerosvelhosetambémas

árvores.Osábioolhouparadentrodasuachoçaegritou:–Minhafilha,tragaospentes.Entãoavozinhainteriorgritouaopadrequenãoaolhasse,pois

doutromodoaengravidaria.Amoçaentroucomostaispentes,masopadredesviouosolhosparaopódochão.

–Penteieoscabelosdomortocomumdestespentes,eelevoltaráaviver.Masfaçaissonomesmodiadasuamorte.

Opadreiaresponderquenãopediraumremédiopararessuscitar,maspararejuvenescer,masachoumelhorsecalar.Decertoque,aoressuscitar,omortovoltariaaserjovem.

–Equantoàsárvores?–disseopadre.–Minhafilha,tragaaresina–disseotaumaturgo.Afilhatrouxe,eopadrecolouosolhos,denovo,nochão.Quandoos

ergueu,porém,viuqueachoçasetransformaranumacasabonita,nocentrodaqualhaviaumamesaenorme.

–Passenelaaresina–disseomago.Opadrelambuzouamesa,edamadeiracomeçouabrotaruma

vegetaçãoespessa.Daliapouco,amesaseconverteunumaárvoreque

Page 71: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

cresceudesmesuradamenteatéfurarotetodacasa.Agorahaviaumaárvoreencravadabemnomeiodosalão.

Entãoopadreachouquejáerahoradepartir.Tomandoospentesearesina,eleganhouapicadaquelevavaparaforadamata,ejáiabemadiantequandoescutouàssuascostasavozdafilhadobruxo.

–Espere,espere!Osenhoresqueceuofumo!Pressentindoumacilada,opadreapertouopasso,semvoltar-se

paratrás.Ajovem,noentanto,foimaisrápidadoqueeleeconseguiuirpostar-seàsuafrente.

–Tomeoseufumo!–disseela.Opadredesceuosolhos,outravez,paraochão,sóquedestavez

enxergou,porinadvertência,odedodopédajovem,efoioquebastouparaelaengravidar.

Opadrefoiinformadodequeestavaproibido,desdeaqueleinstante,dedeixaroslimitesdaaldeia,masmesmoassiminsistiuempartir.

–Deixem-meir!Tenhodecurarosvelhoseasárvoresdavelhice!Dizalendaqueelepartiu,masque,logoemseguida,morreu,tendo

deretornaràaldeiamisteriosaparacriaroseufilho.Elácontinuaatéhoje,prisioneiroperpétuodeumsonhovão.

Page 72: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

COMOSURGIRAMOSBICHOS

Houveumtempo,segundoosíndiosofayés,emqueoSolviviadependengacomoshomens.Oprincipalmotivoeraafaltadecaça.Nãohaviabichoempartealguma,eoshomensreclamavamotempotodocomoSolparaqueestelhesarrumasseoquecomer.

Oconflitoevoluiuatéque,certafeita,enfurecidos,osíndiosarremessaramtodasassuasflechascontraoSol,masnadaconseguiram,poiseleeraindestrutível.Noutraocasião,tentaramqueimá-lovivonumincêndionamata,masoSolsóconseguiuachargraçanaquilo,poiselejávivianaschamas.

Acoisafoiassimatéque,certodia,fartodaquilo,oSolresolveupuniroshomens.

–Elesqueremcaça?Poisentãoaterão!Nodiaseguinte,eleconvidouoshomensparairemconsigoàfloresta.–Quehaveremosdefazerlá?–disseramosíndios.–Lánãotem

nadaparacaçarmos!–Mastemárvorescarregadasdefrutosmuitosaborososqueeufiz

nascerduranteanoite–respondeuoSol.Osíndios,queandavamcommuitafome,decidiramirver,afinal.–Aquiestá–disseoSol,apontando-lhesumaárvoreenorme.–Essa

árvoreéumajabuticabeira,edelapodeisdesfrutardosfrutosmaissaborosos.

Osíndiostreparamnosgalhosecomeçaramachuparasjabuticabas.Empoucosminutosnãohaviamaisnenhumafrutinhaemtodaaárvore.

–Ondetemmais?–perguntaramosíndios,agoniados.OSollhesapontouumasegundajabuticabeira.Osíndiospularam

dosgalhosecorreramatéaoutraárvore,começandoaescalarosseusgalhos.

Denovooruídodosíndioschupandoasjabuticabasencheuafloresta.SóquedestavezoSol,postadoembaixodaárvore,agarrouotroncoecomeçouabruptamenteachacoalhá-lo.

Osíndios,assustados–poishaviamsubidomuitoalto,atéotopodaárvore,paraalcançaremasúltimasfrutinhas–,agarraram-sedesesperadamenteaosgalhosecomeçaramagritar.

–Pare!Quernosmatar?

Page 73: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

Nessemomento,oSollançouumfeitiçosobreeles,ecadaqualcomeçouasetransformaremumanimalantesdedespencarem.Oprimeiroanimalacairfoiumaanta.Depoisveioumacutia,eumveado,eumapaca,eumaonça,e,assim,umasériedeoutrosanimais.

Apesardetudo,porém,muitosíndiosaindaconseguiramsemanterpresosaosgalhos,eestesacabaramsendotransformadosemmacacos.

OsmacacosarreganharamosdentesparaoSol,lançandosobreelemilmaldições.

–Doquereclamam?–disseoSol,partindoparaocéu.–Nãoqueriamcaça?Agorajáhácaçaabundanteportodaafloresta!

Entãoumdosmacacos,enfurecido,desceuatéaterraecomeçouapuxardochãoasoutrasárvores,queeramtodasbaixinhas,elogoaflorestaencheu-sedeárvorestãograndesquantoajabuticabeira.Osmacacospuseram-seaentrelaçarascopasdasárvores,cerrandootetodaflorestacomummantoverde.

EfoidesdeessaépocaqueoSolviu-seimpedidodeentrarnafloresta.

Page 74: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

AESCADADEFLECHAS

Osíndioskaingangs,doextremosuldoBrasil,contamumalendainteressanteacercadeumaescaladaaoscéuspraticadaporelesemdiasmuitoantigos.

Naqueletempo,asonçascomiammuitomaisgentedoquehoje,eosíndiosnãoaguentavammaisvivernessaapreensão.Nãosepassavaumdiasemquealgumdelesfossecomidovivoporelasousimplesmenteraptadosemdeixarvestígios.Velhosecriançaseramaspresasmaiscomuns,masaverdadeéqueíndionenhumpodiasevangloriardeestarasalvodessespredadoresvorazes.Osíndioscolocavamvigiasnastabasefortificavam-nascompaliçadas,masasonçasacabavamcomendoosvigias.

–Chega!–disse,então,certodia,ocacique.Depoisdeconvocarofeiticeiro-mordaaldeia,exigiuqueele

apresentasseumasolução.–Soluçãoboasóháuma:fugir–disseopajé,semmaisrodeios.Ocaciqueenterrouosdedosnococar.–Fugir?Fugirparaonde?Defato,nãohavialugarnaterraondeasonçasnãopudessem

alcançaroshomens.–Sósenosmetermosdebaixod’água–disseochefedaaldeia.–Ousubirmosaoscéus–completouopajé,muitoseriamente.Ocaciquepensouqueopajéestivessebrincando,maseraverdade.

Apóstomarumaaljavacheiadeflechas,opajéfoiparaumdescampadoearremessouaprimeiraflechaemdireçãoaocéu.Todososdemaisencolheram-se,comreceiodequeTupãdevolvesseaflechacomumraiofulminante.

Felizmente,nadadissoaconteceu.Masomaisespantosoéqueaflechaficouencravadanocéu.

–Acertenela–disseopajé,entregandooarcoaoutroíndio,bomdepontaria.

Oíndiomiroueacertoubemnaextremidadedasetaencravada,encompridando-a.Eassimforamtodosarremessandoumaflechaapósoutra,atéteremformadoumaescadaquedesciadocéuatéaterra.

–Amanhãbemcedo,subiremostodosporestaescadaeiremosvivernocéu,bemlongedasonças–decretouocacique.

Page 75: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

Osíndiosvoltaramàtaba,afimdeseprepararemparaaescaladadodiaseguinte.

Quandoosolraiou,játodaaaldeiaestavaaospésdaescadadeflechas,quehaviasetransformadonumaescadadecipós,cheiadedegrausparafacilitarasubida.

–Vejam,Tupãnosajuda!–disseopajé,etodosseanimaram.Aocolocar,porém,opénoprimeirodegraudaescada,ocacique

escutouorugidoinequívocodeumaonçalánotopodocéu.–Serápossível?–exclamou.–Háonçastambémnocéu?Não,nuncahouvera,pelomenosatéanoiteanterior.Aconteceque,

enquantoosíndiosdormiam,umcasaldeonçasaproximara-sesorrateiramentedaescadaetreparanela.

Aquestãoagoranãoeramaisbuscarrefúgionocéu,umlugartambémpovoadodeonças,massaberquemiriaatéoaltocortaraescadaparaqueasonçasnãopudessemmaisdescerparaaterra.

Demorouumpoucoatéqueumcasaldevalentesseofereceu.Elessubirame,aochegaremaotopo,cortaramrapidamenteaescada,quefoiembolar-seaospésdosíndios.

Ocasal,porém,jamaispôdedescer,eacredita-sequeatéhojevivanocéu,juntocomocasaldeonças.

Page 76: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

AVITÓRIA-RÉGIA

Umadasplantasmaistípicasdavegetaçãoaquáticabrasileirafoiassimbatizadaemhomenagemaumarainhainglesa.“Vitória-régia”significa“RainhaVitória”.Amoçaquedeuorigemàlenda,porém,eraumaíndiainfinitamentemaisbelaesimpáticadoqueaquelarainha,eécomelaquecomeçamosesteconto.

Aracieraumaíndiaquetinhaumúnicopropósitoemsuavida:odetocaralua.Todasasnoites,quandoaluasurgianoscéus,especialmentequandoestavacheiaeresplandecente,Aracisubianaárvoremaisaltaqueencontravae,napontadospésdogalhomaiselevado,tentava,portodososmeios,tocarafacedograndeastroprateado.

Aracitevemuitasorte,escapando,maisdeumavez,dedespencarparaamorteemsuastentativasvãs.Masnadadissoaimpressionava,poisteimava,atodopano,emtocaralua.

Então,certanoite,elaresolveusubirnumaárvorequeficavanabeiradeumrio.Aoescalaroúltimogalho,Araciviualuarefletidanaságuaseimaginouqueelabanhava-senorio.

–Viva,hojevoupodertocá-la!–disseela,preparando-separamergulhar.

Aracidesceuatéofundo,masnãohavialuaalgumaali.Aovoltaràtona,elaviuoreflexodaluaaindanaságuas.Sóqueele

estavacadavezmaisafastadodesi.Aracinadou,masaluaeramaisrápida,enadadealcançá-la.A

jovemnadou,nadouenadouatéestarmuitolongedasduasmargens.Sóentãodescobriuquenãotinhamaisfôlegonemforçaspararetornaràterra.Nesteinstante,elasoubequeseudestinoseriaodeperecernaságuas.Sabendoinúteistodososesforços,abelaíndiarecolheuosbraçosedeixou-seafundar.

EassimpereceuabelaAraci,semalcançaralua.Alua,porém,queerahomem,sentiuremorsospornãoterajudadoa

jovem.–Jáquenãopossotrazê-ladevolta,ireiaomenoshomenageá-la–

disseoastro.Nomesmoinstante,brotoudaságuasumaplantaesverdeada,que

passouaboiaremcimadaágua.Elapareciaumaenormebandejaetraziaconsigoumaplantamuitobonita,decoloraçãobrancaerosa.

Desdeentão,todasasmoçasdaaldeiapassaramaenfeitar-secomas

Page 77: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

pétalasdaplanta,consideradasinfalíveisparaatrairnamorado.

Page 78: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

BAHIRAEORAPTODOFOGO

Históriassobreraptosdofogosãotãoantigasquantoohomem.Jávimosanteriormenteaversãodosíndiostembésparaotema,nalenda“OFurtodoFogo”.Agora,éavezdeconhecermosaversãodosparintintinsparaesseepisódio.Talcomonaprimeiralenda,tambémaquiourubuéconsideradoodonodofogo.Elenãooconcediaaninguém,eoshomensnãosabiamoqueerautilizar-sedaschamasparacozinharumacomidaouaquecer-sedofrio.Osoleraaúnicafontedecalor,eeranelequeoshomensbuscavamremediarasuaprivação.Masmesmoassimelessentiamanecessidadedeterememseupoderousodiretodaschamas.

Issofoiassim,atéqueumdiaelesresolveramrecorreraBahira,umsemideuscivilizadordasmatas.

–Traga-nosofogoqueourubu-reinãonosquerconceder.Penalizadodoshomens,Bahiraarmouumplano.Apósdeitar-seno

meiodafloresta,fingiu-sedemorto,cobrindoocorpocomsinaisfalsosdeputrefação,afimdeatrairoapetitedoSenhordoFogo.

Quemchegouprimeirofoiamoscavarejeira.Apóspassearportodoocorpoinertedosemideus,elafoilevaranotíciaaourubu-rei.

Semhesitar,ourubuenvergouseucasaconegrodepenasemergulhounadireçãodaterra.AoverocorpodeBahira,pousouecomeçouaprepararofogoparaassá-lo.Bahira,comumolhoentreaberto,viuquandoourubudepositouapreciosachamasobreosgravetose,numpulo,apoderou-sedela.

–Ladrão!–gritouaave,agitandoasasas.Bahiradisparounacorridaenquantoourubudavaaoscéusoseu

gritodealerta:–Aqui,todos!Umanuvemdeurubusdesceudoscéus,etodossepuseramno

encalçodosemideus.Bahiraenfiou-senumtroncoocoesaiupelooutrolado.Osurubusfizeramomesmo.Depois,meteu-senumabrenhadetaquaras,ealiosurubusnãoconseguirampenetrar.

–Ufa,achoqueconsegui!–suspiroubaixinhoosemideus.Então,depoisqueosurubusjátinhamsedispersado,resignados

comaderrota,eleabandonouoseuesconderijoefoiatéabeiradorio.Aoverumacobrad’águapassar,apanhou-ae,depoisdecolocarotiçãodefogonassuascostas,disse:

–Vá,minhaamiga.Atravesseorioeleveofogoatéosíndios.

Page 79: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

Acobracomeçouanadar,masofogoemsuascostasardiatantoqueelaacabousucumbindonomeiodajornada.Acorrentezatrouxeoseucorpoenegrecidodevoltaàmargemondeestavaosemideus.

Ocamarãopassavaporali,eBahiraoapanhou.–Vocêéomensageirocertoparaconduzirofogo!–disseele,

encravandoachamanascostasdocrustáceo,quepôs-seanadarrioadentro.

Quasenofimdotrajeto,porém,eletambémsucumbiuàterrívelardência.

–Maldição!–exclamouosemideus,aoreceberdevoltaocadáververmelhodocamarão.

Então,aoergueremdesesperoosolhosparaocéu,avistouasaracura.

–Éisto,ofogoirápeloscéus!Aaverecebeuofogonascostaselevantouvoo,mas,antesdechegar

àoutramargem,faltou-lheofôlegoeelacaiudentrod’água,queimada.Nessemomento,Bahiraavistouomensageiroideal:osapo-cururu.

Dizia-sequeessacriaturadosbrejostinhaohábitodeingerirbrasas,pensandotratar-sedevaga-lumes.Bahiraofezengolirabrasaejogou-onaágua.

Destaveztudocorreubem,eosaporegurgitouabrasaassimquepulouparaaterra,entregando-aaosíndiosparintintins.Emrecompensa,foipremiadocomasupremahonradetornar-sepajédaaldeia.

Page 80: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

AMÁSCARADASUCURI

Nosdiasantigos,osíndiosparintintinscaçavamtodoequalqueranimalàmão,poisdesconheciamousodaflechaoudequalqueroutraarma.Assim,quandosaíamparacaçar,namaioriadasvezesseviamtransformadoselesprópriosnacaça.

Então,certodia,Bahira,osemideusdessatribo,decidiudarmaisumaajudaaosseusprotegidos.Cortouumacascagrandedeárvoreecomeçouamodelá-lacomasmãosatétorná-laumamáscaracomasfeiçõesidênticasàdeumasucuri.Aojulgá-lapronta,colocouoartefatonacaraeviuquetodososmacacostrepadosnasárvoresfugiram,comosdentesarreganhadosdepuroterror.

Bahiramergulhouentãonaságuasedesceuacorrentezaatéalcançarumatribovizinharival.Oshabitantesdaquelaaldeiaeramexímiosfabricantesdeflechaserecusavam-seaensinarsuaarteaosíndiosrivais.MasBahiraestavadecididoaarrancar-lhes,senãoosegredodaconfecçãodasflechas,pelomenosalgumasdelasparaqueosseusprotegidospudessemdispordessasarmastambém.

Bahiradeslizoumaisumpouco,sobacorrente,atépassarbemaoladodaaldeia.Então,suspendendoacabeçamascarada,começouasibilarcomoumaverdadeirasucuri.

Osíndios,aoveremaquelacobramonstruosa,correramatéosseusarcosecomeçaramaalvejá-lacomumaverdadeirasaraivadadeflechas.

Osemideusdeixouqueasflechasseencravassemtodasnasuamáscara,detalsorteque,quandoeleretornouparaasuaaldeia,maispareciaamáscaradeumporco-espinhodoqueadeumacobra.

Osparintintinspegaramasflechasecomemoraramofeitocomumagrandepajelança.Nomeiodafesta,porém,umíndiodecidiuquepoderiarepetiraproezacommuitomaissucesso.

“Voufazerumamáscaraparaocorpointeiroevoltarcobertodeflechas!”,pensouele,antegozandoosabordotriunfo.

Nomesmoinstanteeleabandonouafestaefoiparaamatafabricarasuamáscara,ejánamanhãseguinte,bemcedinho,mergulhavanaságuasdorioparaperpetrarseufeitoaindamaior.

Quandochegouàaldeiarival,oíndiopôs-seasilvareespadanaráguaparatodososlados.

Page 81: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

–Vejam,outrasucurimaldita!–gritouocaciquedatribo.Então,tomandodeumaflechapontuda–amaispontudaemortífera

dasquehavianaaldeia–,elearremessou-abemnacabeçadoíndiofantasiadodecobra.Asetaatravessouasuacabeçaeelecaiumortodentrod’água,semanecessidadedemaisnenhumaoutraflecha.

Seucorpofoiretiradoimediatamentedorioeassadonagrelha.Nessemeio-tempo,chegaraàaldeiaBahira,poisjádescobriratudoo

queoíndiotramara.–Grandecacique,venhobuscarumhomemimprudentedaminha

tribo–disseosemideus.Ocaciqueapontouparaagrelha,ondechiavamospedaços

esquartejadosdopobreíndio.–Podeescolheropedaçoquemaislheagradar–disseo

morubixaba.Bahirafoiatéagrelhaeencontrouapenasalgunspedaçosque

haviamrestadodofestim.Nãoeramuitacoisa,masBahira,decididoalevaracoisaatéofim,começouaassoprá-los,afimdequetornassemàvida.Deumaisoumenoscerto:sópartedocorpodoíndiosurgiu.Infelizmente,orestantedocorpojáhaviasidodevoradopelosindígenas.

Nofimdascontas,Bahirameteutudonumcestoe,duranteocaminhoderetorno,foilançandoosrestosdoíndiopelamata.Aocaíremnosolo,elesforamsetransformandoemanimais,taiscomoacotiaeoquati.

Page 82: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

COMOSURGIUODIA

OsíndiosdoXingutêmumalendamuitodivertidaeoriginalparaexplicaraorigemdodia.Aoriginalidadecomeçapelofatodeosolnadateravercomaluminosidadeoucomodia,talcomoacontecenaBíblia.TantooSolquantoaLuaestavamimersosnamesmatrevadoshomens,sendoosvaga-lumesaúnicafontedeluznaquelesdias,ouantes,naquelasnoites.

Masaverdadeéquealuzdosvaga-lumeseramuitopoucaerarefeita,eninguémaguentavamaisvivernastrevas.Então,certanoite,doisgêmeoschamadosInaêePorãresolveramcolocarumpontofinalnesseproblema.

–Vocêsabeperfeitamentequeourubu-reiéodonodaluz–disseInaêaoSol.–Atéquandovaipermanecerinerte,semfazerumacordocomele?

OSol,imersonatreva,coçouacabeçaedisse:–Ascoisasnãosãotãofáceisassim.Terapropriedadeexclusivada

luzfazdourubu-reiumsermuitopoderoso.Ninguémabremãodeumpoderporsimplesliberalidade.

–Ora,ourubunãoficarásemluz,apenasadividiráconosco!–exclamouInaê.

–Eperderá,assim,otrunfosupremodaexclusividadedaluz–completouoSol.

–Ora,masaluzéparatodos!–Muitobem,seourubu-reinãoquiserdividirporbemaluz

conosco,iremostomá-laporoutromeio!–exclamouoSol,determinado.Osgêmeosexpuseramentãoumplanoe,namesmanoite,trataram

deconfeccionarumaantademadeira,colocandodentrodelaummontedeesterco.Nãodemoroumuito,eosescaravelhoscomeçaramaentrareasairdaantapelasfrestas,carregandosuasbolasfedorentas.

–Muitobem,játemosobastante!–disseoSol,mandandoembrulharosescaravelhos.

OSolconvocou,então,asmoscasparaquelevassemoembrulhoparaourubu-rei.

–Oquequerem?–disseourubuaumadasmoscas.Comonãoentendiaoqueasmoscasdiziam,oSolmandoubuscaro

japim.Ojapiméumpássaroversadonocantodetodasasaves,doqual,

maisadiante,leremosumalenda.Infelizmente,nestecaso,comose

Page 83: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

tratavamdemoscas,opássarotradutornadapôdefazer.–Melhorchamarmeuprimo–disseojapim.Ourubu-reifezcarafeiaemandouchamarotalprimo,umcerto

joão-conguinhoque,apesardesermenordoqueojapim,diziaentenderoidiomadosinsetos.

Aavezinhaveioe,nahora,decifrouozumbidodamosca.–ElastrazemumpresentedaTerradasTrevasparaoSenhorda

Luz.–Muitobem,digaentãoqueopresenteestáaceito,equevoemtodos

devoltaparaastrevas!–disseourubu-rei,apoderando-seavidamentedoembrulho,poisumodordepodridãohaviaatiçadoaquelamáscaraquerecobreoorifícionasaldourubuedamaioriadasaves.

–Escaravelhoscombolinhosdeesterco!–exclamouele,devorando,emquestãodesegundos,todooembrulho.

AquiloforatãobomqueosoberanodecidiuconvocarumareuniãodeemergênciadoseuConselho.

–LánaTerradasTrevasdeveter,porcerto,muitomaisdessesquitutessaborosíssimos!–disseourubu-reiaosconselheiros,umbandodeurubusquesósabiambalançaracabeçadecimaparabaixotodavezqueoreifalava.

NamesmahoraourubuorganizouumacomitivaparairatéaTerradasTrevas.Juntocomeleiriamavesdetodosostipos,enãosóurubus.

Enquantoisso,naaldeiatrevosa,oSoleaLuajáestavamdentrodaantademadeira.

–Tudopelaabençoadaluz!–diziaoSol,atéqueourubu-reichegou,afinal,comasuacomitiva.

–Queremosmaisquitutesdaqueles!–ordenouele,comoumconquistador.

Imediatamenteasmoscaslheapontaramaantagigante,todacobertadeescaravelhosesuasbolinhasdeesterco.Todasasavessearremessaram,numvooalucinado,nadireçãodoboneco.

Nesteinstante,oSolaproveitouparaespiarnoburacodestinadoaosolhos,paraverseourubutambémvinha.Masogavião,queficaranoar,fiscalizandotudo,percebeuoperigoedeuoalerta:

–Cuidado,majestade!Obonecomexeuosolhos!Masagulaeratantaquenemmesmoourubu-reiteveouvidospara

escutaraadvertência.Logo,todasasavesestavamsobreaantade

Page 84: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

mentira,abocanhandotodososescaravelhosqueenxergavam.Então,quandoacomilançaestavanoauge,oSolespichouobraço

paraforaeagarrouapernadourubu-rei.Umgrasnidoaterradorescapoudasuagarganta,fazendoasoutrasaveslevantaremvooedesapareceremnoscéus.Sóourubu-reipermaneceuprisioneironadesoladaTerradasTrevas,juntocomojacubim,umaavezinhavalentequenãocostumavafugirdalutaquandoascoisasiammal.

–Solte-me!–gritavaourubu-rei.–Dê-nosodiaepoderávoltarparaoseureino!Ourubu-reirenitiuoquantopôde,masteve,afinal,deceder.–Vábuscaraararavermelha!–disseourubu-reiaojacubim.Aararavermelhaeraaportadoradaluze,depoisdealgumashoras,

retornoujuntocomojacubim.Assimqueaavedepenasescarlatespousounumgalhoalto,odiacomeçouaraiarpelaprimeiravezparaosíndiosdaTerradasTrevas.

Umcorodeespantosubiuaoscéus,eoSolfoicolocar-senoseulugar.

–Quandoodiaterminar,seráasuavezdeirocuparolugardoSol–disseourubuàLua.

OsíndiosdoXinguficaramtãoagradecidosaourubu-reique,desdeessedia,passaramadepositaroferendasregularesdecarneapodrecidanoslugaresaltosdaaldeiaaogenerosodoadordaluz.

Page 85: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

PORQUEATERRATREME

Osíndioskaiapóscontamumalendaqueexplicaarazãodostremoresdeterra.

Havia,certafeita,umaíndiaqueeramuitomácomseusfilhos.Entãoopajé,decididoapôrumfimàsuamalvadeza,transformouaelaeaosfilhosemporcos.(Naqueletempoajustiçaerameioprimitiva,emuitasvezespunia-se,aomesmotempo,malfeitorevítima.)

Estaraçadeporcoseradiferentedasoutrasexistentes,ejustamenteporteremtidoumaorigemmágicaosíndiosdecidirampreservá-los,colocando-osdentrodeumacaverna.

Acavernafoilacradacompedraseninguémmaisbuliucomosporcos,atéqueumdiaaquelemesmopajédecidiudescobrirquegostoteriaasuacarne.

–Jáestoufartodessescaititus!–disseele,aproximando-sedacavernacomumafaca.

Caitituseraaúnicaespéciedeporcoexistentenaaldeiaantesdesurgiremosoutros.

Opajématoudoisporcos,levou-osescondidosparaaaldeiaecomeu-osinteirinhos.

Osoutrosíndios,porém,desconfiandodoodordiferentedoassado,foramfalarcomofilhodopajé.

–Essesporcosqueoseupaicomeusozinho,deondevieram?Ofilhodesconversou:–Delonge.–Mostre-nosonde.–Nãoposso,estoucomopémachucado.Entãoumíndiocolocouomeninonascostaseordenou:–Agoraleve-nosatélá!Umgrupodeguerreirosseguiu-osatéchegaremàentradada

caverna.Começaramadesobstruirapassagem,deslocandoaspedras.–Queremosprovartambémacarnedessesbichos!Quandoterminaramdeabrir,porém,osporcosarreganharamos

dentes.–Corram!Fujam!–gritaramosguerreiros,atirandoaslançasparao

alto.Todomundocorreuparaapartemaiselevadadaserra,maso

menino,queestavacomopémachucado,nãoteveamesmasorteeacabou

Page 86: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

apanhadoedevoradopelosporcos.Sósobraramseusossos.Opajé,aosaberdadesgraça,correuatéláe

conseguiuressuscitaromenino,assoprandosobreosossos.–Essesporcosvãoversó!–disseele,recolhendo-osecolocando-os

outraveznacaverna.Sóque,destavez,eleescavouumsubterrâneoprofundo,obrigando

osporcosadescerematéasprofundezas.Umavezláembaixo,elecomeçouasurrarabicharadacomtantaganaqueprovocouumtremordeterraemtodaaaldeia,devastandotudo.

Desdeentão,semprequeumnovotremordeterraacontecenaaldeia,todosjásabemquesãoosporcosdopajéfazendosuascorreriasloucaspordebaixodaterra.

Page 87: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

APRIMEIRACOBRA

Nestalenda,conta-seaorigemdeumaautênticacobraindígena,damesmaestirpedaCobra-Grande,serbrutoeirracionalquesópensavaemcomeredevastar.

Eiscomo,segundoosíndioskaiapós,acobraveioaomundo.Ahistóriacomeçouquandoumcasaldeíndios,fartodeviverna

aldeia,resolveuemigrarparaoutrasterras.Depoisdemuitoandarem,acharamumlugaridealealiseestabeleceram.

Certatarde,oíndiofoibanhar-senumigarapé,queéumpequenorio.Acontecequeriozinhoeraencantado,eelelogoseviutransformadonaprimeiracobradomundo.

Aoretornarparacasa,ohomem-cobradeuumsustonamulher,quenuncatinhavistonadaparecidonavida.

–Socorro!Acuda,meumarido!–berravaela,histérica.–Sossega,soueu!–sibilouacobra.Amulhercustouaaceitarofatodequeteriadeviverparasempre

aoladodaqueleserhorrorosoquematavaecomiaosanimaisdamata.Otempopassou,eosíndiosdaantigaaldeiamandaramum

mensageirosaberoqueforafeitodocasal.Oíndiochegoueencontrousóamulher.

–Comoestãoascoisas?–disseele.Amulherprocurousorriredissequeiatudobem.Masomensageiro,sentindoqueelaescondiaalgo,insistiu:–Ondeestáoseumarido?–Opobremorreu!–disseaíndia.–Vamos,faleaverdade!–disseomensageiro.Entãoelaconfessou,deumavez,queomaridoviraraumacobra.

Destavez,apobrezinhachoravadeverdade.–Poisqueroverseéverdade!–disseomensageiro,acomodando-se

narede.Daliapouco,escutou-seoruídodealgoquesearrasta.Eraacobra

devoltadassuasmatanças.Acriaturahaviaaumentadodezvezesdetamanhodesdeoseusurgimento.

Oíndioficoutãoapavoradoquefugiudevoltaparaaaldeia.Daliaalgunsdias,apareceuoutroíndio.

Page 88: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

–Querovercomoéacobra–disseeleàesposadoofídio.Efoiesconder-senumjirau,dentrodacasa.Assimqueacobra

entrou,espichoualínguafendidaecaptouoodordapresençahumana.–Estousentindocheirodegente!–sibilouacobra.Acobra,mesmotendorecémcomidoumboiinteiro,pediuàmulher

quelhetrouxessemaiscomida.Elatrouxe,eacobracomeuatéempanzinar-se.Depois,pôs-seacantarolarumcantomeiohipnóticoqueobrigouoíndioescondidoaacompanhá-lo.

–Eusabiaquetinhamaisalguémaquidentro!–exclamouacobra,furiosa.

Oíndio,aterrado,surgiucomasduasmãosespalmadas.–Calma,amigo,soudaaldeiaevimapenasparavercomoestão.Masacobranãoestavaparafalasmansaseabocanhouoíndio

inteiro.Otempopassou,eosíndiosmandaramumgrupodeguerreirospara

exterminaracobra.Péantepé,elesadentraramacasadaíndiae,quandoacobradormiaasonosolto,caíramderijoemcimadelacomlançasetacapes,matando-a.

Aíndiachorouelamentou,masocrimejáestavafeito.Elafoilevadadevoltaparaaaldeia,aosprantos,masoqueelesnãosabiaméqueelaestavagrávidadeumaninhadadecobrinhas,quedeuàluzassimquechegouàaldeia.Quandoosíndiosdescobriram,muniram-sedecacetesparaabaterosfilhotes,masaíndiaespantou-ostodosparaamata.

–Vão,escondam-senamata!Desdeentão,ascobrasandamàsoltaporaí.

Page 89: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

COMOOSKAIAPÓSDESCERAMDOCÉU

Oskaiapóstêmumaexplicaçãoparaosurgimentodasuaraça.Segundoeles,omundosempreestevedivididoemtrêspartes:océu,

aTerraeosubterrâneo.Sóque,nosdiasantigos,osseresvivossóviviamnocéuenãodesconfiavamdaexistênciademaisnada.

Então,umdia,umcaçadorceleste,correndoatrásdeumtatu,viuabrir-sesubitamenteochãodocéu.Acaçadespencounoabismo,emdireçãoàTerra,deixando-oboquiaberto.

–Oquehaveráláparabaixo?–disseele.Então,pendurou-senaextremidadedeumaraizeviutudooque

haviaaquiembaixo.Ocaçadorficoutãoeufóricocomoqueviuquecorreuparaasuaaldeiaparatransmitiranovidade.

–Háummundomaravilhosoláembaixo!Háflorestas,riosecamposparaplantaçãoecriação!

Avidadeviasermuitochatalápelocéu,jáqueseushabitantesnãopensaramduasvezesantesdedecidiremmudar-separaaTerra.

–Mascomofaremosparaalcançaraquelaprofundeza?–dissealguém.

Depoisdepensarumpouco,ocaçadorachouasolução.–Vamosfabricarumacordabemgrossaeresistente!Parafabricaracorda,porém,eraprecisoantesplantaralgodão.As

mulhereslançaram-seàplantaçãoe,daliaalgumtempo,fez-seacolheita.Osfiosforamtrançados,eacordaimensaeresistentefoilevadaatéobalcãosuspensodocéu.

–Joguem-na!–disseocaçador.Apontadacordafoiatiradanoabismoeveiosedesenrolandoaté

alcançarochãodaTerra.Imediatamenteosíndiosmaisaudaciososcomeçaramadescer,umporum,comoformigasnumbarbante.

Entretanto,aoperaçãonãoaconteceusemincidenteseinfortúnios.Muitosdosantigoshabitantesdocéu,porexemplo,sóchegarammortosàTerra,poisduranteadescida,pordescuidooucansaço,acabaramdespencandodoalto.Quandoessasnotíciaschegaramláemcima,muitosdosqueaindafaltavamdescersentiram-setomadospelomedoenãoquiserammaisfazê-lo.

–Estábem,covardes,fiquemaí!–disseramosoutros,ecortaram

Page 90: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

comumafacaacorda.Desdeentão,cessouadescidadosíndiosdocéu,eosvalentesque

conseguiramchegaràTerrapassaramaserchamadosdekaiapós.

Page 91: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

OSURGIMENTODAPLANTAÇÃO

Estalendatambéméprotagonizadaporumacriaturacelestequesalvouumaaldeiademorrerdefome.

Nostemposantigos,segundooskaiapós,avidanaterraeramuitodifícil.Aspessoasnãotinhamoquecomer,senãolagartas,raízes,orelhas-de-pauecoisasdestetipo.Frutosnãoexistiam,nemninguémsabiaplantar.Quantoàcaça,eraimpraticável,poisoshomensnãosabiamempunharnemumavarademarmelo.

Certodia,umíndioqueandavapelamatadebarrigavaziafoisurpreendidoporumachuvaradadaquelas.Opéd’águaduroupouco,masbastouparaencharcartudo.Oíndio,agachando-se,começouabeberdaspoçasparaencher,pelomenoscomágua,abarriga,quandoescutoualguémchamá-lodoalto.

–Psiu!–diziaumavozmaviosa.Eleolhouparaoaltoeviuumaíndialindíssimasentadanogalhode

umaárvore.Elaestavanuaepareciaesconderalgoentreaspernas.Afomedoíndioeratantaqueelenãopensounoutracoisasenãoem

comida.–Porfavor,moça,medêessafrutaqueestáescondendoaí!Aíndianãodemorouaentenderoequívocoecomeçouarir.Oíndioestranhouasformasroliçasdajovem,poisnaaldeiatodasas

índiasestavammuitomagras.–Quemévocê?–disseele.–Nuncaaviporaqui.–Descidocéu,juntocomachuva–disseela,torcendooscabelos

reluzentes.–Porquê?–Mecanseideviverlá.Meuspaisnãotempaciênciacomigonemeu

comeles.Tomadoporumapaixãoinstantânea,oíndiodecidiucasar-secom

ela.–Venhacomigoparaaaldeia–disseele.Então,elesesperaramanoitecaireelelevou-a,àsescondidas,para

asuacasa.–Sóapareçaquandoeumandar–disseele,escondendo-adentrode

umaenormecabaça.

Page 92: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

Oíndiomoravacomamãe,umavelhacomcaradeespectro.Seutemperamento,contudo,eraamável,equandoeladescobriu,certodia,ajovemdentrodacabaça,nãopensouuminstanteemfazermalaela,edisse:

–Quejovemlinda!Deondeveio?Então,aíndiacontouquemeraefoilogochamadaportodaaaldeia

deFilhadoCéu.Elacasou-secomoíndio,eambosficaramvivendonacasadavelhaíndia.

Entretanto,apesardobomtratamento,logoajovemcomeçouasentirosefeitosdapenúria,emagrecendoaolhosvistos.

–Istonãopodecontinuarassim.Vouvoltarparaocéuetrazerdeláalgumassementes.

–Mascomopoderáfazerisso?–Ora,eudouumjeito!–disseela,seguradesi.–Venhacomigo!Ocasalatravessouamataatéencontrarumaárvoredegalhos

resistenteseflexíveis.–Ótimo,estaéperfeita!–disseela,começandoaescalarotronco.Oíndioficouobservando-asonhadoramente,arelembraroseu

primeiroencontro.–Oqueestáesperando?Subacomigo!–ralhouela,doalto.Osdoisencarapitaram-senogalhomaisalto,quecomeçouavergar

atéatingirochão.–Agora,desça–disseela,comamesmasegurançadesempre.–Masvocêpodesemachucar!–gemeuele.–Ah,quebobagem!–disseela,botando-opraforadogalhocomum

empurrão.Assimqueoíndiocaiu,ogalhocatapultouajovemparaoalto,numa

velocidadeespantosa.–Meaguarde,euvoltarei!–disseela,misturadajácomasnuvens.Otempopassouatéque,noprimeirotemporal,oíndiocomeçoua

correrpratodolado,esperandoadescidadaamada.Daliainstantes,enxergou-apenduradanumgalho.

–Meajude,istoestápesado!–disseaíndia.Elaatiroudoaltoumsacoenormecheiodesementesquequase

esmagouomaridoedepoisdesceu,numpulo,comasuavidadequelheerapeculiar.

–Oqueestáfazendo?Omaridoestavacomendoassementescomasduasmãos.–Istonãoéparacomer,masparaplantar!

Page 93: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

Entãoelaensinouokaiapóafazerumaroça,edepoisasemeá-la.–Vocênãovaiacreditarnoquevaisurgirdaqui!–disseela,vaidosa.Nãodemoroumuitoecomeçouasurgirumaplantaçãoenormede

milho.–Puxa,quelindo!–exclamouele.–Masedestasoutras,porque

nadanasceu?–Vocêquepensa!–disseela,arrancandodedebaixodosolo

tubérculosenormesdebatata,inhameemandioca.–Maistardenascerãoasárvoresfrutíferas,emuitasdelíciasmais!

Osdoisseabraçaram,felizes,edesdeentãoafomedeixoudeafligiroskaiapós.

Page 94: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

OSURGIMENTODOSPEIXES

TudocomeçoucomoaparecimentonaaldeiadeumcertoBirá.Eraumíndiosedutor,oterrordahonradetodososhomens.Eleeraumaameaçaconstante,comoseusorrisodepermanentedesafioaosrivais.

Então,numbelodia,osíndiospediramaopajéparalançarumfeitiçosobreokaiapósedutor.

Aconspiraçãoevoluiu,eopajéfezopobreBirátomarumapoçãomalditaduranteumapajelançaqueotransformouemumaanta.

–Nãobasta,éprecisomataraanta!–disseochefedaconjura.Então,depoisdemataremopobreBirá,levaram-noparaaaldeia

comosefosseumacaçacomum.–Hojetemmoquémdeantacomfarinha!–anunciouocacique,

pondooseucocarmaisvistoso.Todasasmulheresforamobrigadasaseservirdospedaçosdaanta.Então,quandoaceiatribalterminou,ocaciqueergueu-seefeza

hediondarevelação:–Mulherespérfidas!VocêsacabaramdecomerBirá,osedutor

maldito!Instantaneamente,aspobrezinhascomeçaramavomitareachorar.Nodiaseguinteoshomensforamcaçar,deixandonacompanhiadas

mulheressomenteosvelhosincapazes.GraçasaTupãnãohaviamaisBiráparaaproveitar-sedaausênciadeles!

Asíndias,contudo,reuniram-seedecidiramfugiresejogarnorio.Antes,pintaramseuscorposdasmaneirasmaisdiversas,compintas,riscasemanchasdetodasascores.

Aochegaremàbeiradorioepularem,transformaram-seempeixes.–Oqueestãofazendo?–gritaramosvelhos,aochegarem,depois.Muitosdeleslançaram-senaágua,tentandosalvá-las,masacabaram

transformadosemsaposearraias.Quandoosíndiosretornaramesouberamdadesgraça,ficaram

duplamentedesolados.Alémdeperderemasesposas,sofreram,ainda,aafrontadeverem-setrocadospelasaudadedeummorto.

Semmaismulheres,osíndiosficaramloucosecometeramsuaúltimatolice,pois,emvezdeseatiraremaorio,juntando-seassimàssuasmulheres,foramtodosparaamata,ondeacabaramsetransformandoemmacacos,cutiasetodaespéciedeanimaissilvestres.

Page 95: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

OJACARÉEOMUTUM

Oskanassas,comotodasastribos,possuemváriaslendasetiológicas,ouseja,queexplicamarazãodeserdascoisas.Nesteconto,ficaremossabendocomoojacaréganhouasuacauda,eomutum,umapequenaavedasmatas,oseutopete.

Primeiro,ojacaré.Diz-sequeumdiaumpajékanassachegouàterradojacarée

encontrou-oralandomandioca.Foradaslendas,umjacaréralandomandiocaseriacoisamuitocuriosadesever,masopajéachoutudomuitonaturalefoilogoperguntando:

–Mediga,jacaré:ondeéquevocêguardaoraladordepoisdeusá-lo?

Ojacarélançouumolharfrioaopajé.–Euoguardonascostas.–Deixeeuvercomofica–disseoíndio.Ojacaréolhouparaoíndio,quaseincrédulo,masresolveu,afinal,

fazeroqueooutropedia,sóparaselivrardoimportuno.–Não,nãoficanadabem–disseopajé,apósobservá-lodetodosos

ângulos.Ojacaréretirouoraladordascostas,aborrecido,evoltouaralar

mandioca.–Experimentecolocaremcimadorabo–falouopajé.Perdendofinalmenteacalma,ojacaréexclamou:–Vocêestádegozaçãocomigo?–Ponhaemcimadorabo,vamosver–insistiuooutro.–Sóseprometerque,depoisdisso,iráembora.Opajéprometeuqueiria,esóentãoojacarépegouoraladore

colocou-oemcimadorabo,umrabolisinhocomoacaudadaslagartixas.–Ótimo,ótimo!–disseopajé,subitamenteentusiasmado.–Ficou

perfeito!Então,antesqueojacarépudessefazeralgo,opajélançouumfeitiço

sobreele.Desdeentão,ojacaréficoucomoraboásperoecheiodefraturas,

comoumraladordemandioca.

***

Page 96: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

Agora,alendadomutum.Omesmopajéandoumaisumpoucopelamataatéencontraro

mutum.Estesertambémestavatodoatarefado,preparandoumpequenoenfeitedepenas.

Opajéachouqueinterromperotrabalhodooutroeraumaboamaneiradedemonstrarasuasimpatiaeasuacordialidade,eperguntouaomutum:

–Oqueestáfazendoaí?–Umenfeitedepenasparaafastaríndioschatos–disseomutum.Opajé,imperturbável,sentou-seeesperouomutumterminarasua

obra.–Vamosverquetalvaificar.Omutumolhouparaopajécomimpaciência.–Vaipôrnacabeça?–disseopajé.–Sim–disseele.–Entãoponha,oqueestáesperando?Derepente,omutumtemeuestardiantedeumloucoeresolveu

fazeroqueoíndiodizia.Depoisdecolocaroenormepenachonoaltodacabeça,ficouparado,comcaradebobo.

–Parecebom–disseopajé.Acalmadoporessepequenoafagonavaidade,omutumcomeçoua

voardeláparacá.–Maisrápido!Omutumvoouemtodosossentidos,atédeponta-cabeça.Nesse

ponto,otopetesedesprendeuecaiumiseravelmente.–Aíestá!–disseoíndio,dandoumapalmadanacoxa.–Ponhade

novo!Omutumrecolocouopenacho,eopajéaproveitouparalançarsobre

eleumfeitiço.Nomesmoinstante,openachoenraizou-senococurutodaavezinhaedalinuncamaissaiu.

Page 97: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

OÍNDIOQUEQUERIAMATAROSONO

Certanoite,umíndioconcebeuodesejoextravagantedematarosono.

–Graçasaeledeixodefazermuitascoisasúteis,perdendometadedashorasdaminhapreciosavida–disseeleaosdaaldeia,antesdepartirparaasuaextravagantecaçada.

Osíndiosfizeramdetudoparademovê-lodasandice,maseleteimouepartiuparaafloresta.

–Dizemqueosonovemdelá.Poiséláqueomatarei.Oíndiometeu-senocoraçãodaflorestaamazônicae,agachadoecom

umtacapeenormenamão,passouaesperarachegadadoinimigo.Quandoanoitecaiuelearregalouaindamaisosolhos.Erapreciso

estaralerta.Abarulheiradossapos,dosinsetosedosanimaiscaçandoesendocaçadoserainfernal.Aindaassim,oíndiosentia,cadavezmais,queasuapresaseaproximava.

Então,quandoosonofinalmentechegou,oíndiodesabounosolo.Quandoacordou,viu,desolado,queasuapresatinhafugido.

–Maldição!Estavaquasenasminhasmãos!Entãopreparou-separa,nanoiteseguinte,terasuadesforra.–Destavezelenãomeescapa!Oíndiofezumchábemforteparamanter-sedesperto,masasua

presa,adivinhandoaartimanha,sófoiaparecerquandoodiaestavaquasenascendo.

Quandoosonochegouoíndiodesabououtravez,comotacapenasmãos.

Dizemqueoíndioteimosoestáatéhojemetidonoscafundósdaflorestatentandomatarosono.

Page 98: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

AVIDAHUMANA

Certafeita,segundoosíndiosbororo,apedraeataquaraderaminícioaumdebateparasaberqualdasduasseassemelhavamaisàvidahumana.

–Semdúvidaalguma,avidahumanaseparecemaiscomigo–disseapedra,categoricamente–,poisavidahumanaétãoresistentesobreaTerraquantoaspedras.

Nesteponto,ataquaracontestou:–Deformaalguma,amigapedra.Avidahumanaseparececomigo,e

nãocomvocê.Oshomensmorremcomoastaquaras,aoinvésdeduraremperpetuamentecomoaspedras.

Apedraalterou-seligeiramente.–Ora,tolices!Avidahumanaseparececomigo!Nãovê,então,como

elaresisteaofrioeaocalor,nãosedobrandonemaovento,nemàsintempéries?

–Não,não,enganas-te–disseataquara.–Ohomem,naverdade,tembempoucodepedra.Elemorrecomonós,astaquaras,morremos,porémrenascenosseusfilhos.

Então,mostrandoàpedraosseusfilhos–ataquaraestavadentrodeumenormeeruidosotaquaral–,elapôs,porassimdizer,umapedrasobreaquestão:

–Vejacomosomosparecidoscomoshomens:somosmaleáveis,temosapelefrágile,finalmente,nosreproduzimossemparar.

Entãoapedra,reconhecendoaderrota,ficoumudaenuncamaisdissepalavra.

Page 99: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

OJAPIMPLAGIADOR

Ojapim,tambémchamadodexexéu,moravanocéujuntocomTupã,odeusdotrovão.

Diz-seque,certaépoca,umadoençaterrívelseabateusobreosíndiostupis,causandomuitasmortes.EntãoelesclamaramaTupãparaquemandassealgumaajuda.

–Vá,japim,ecure-osdadoença–disseodeus,espantandoaavezinha.

Ojapim,umabelaaveazuleamarela,desceudocéuefoipousarnaaldeiainfectada.Imediatamente,elecomeçouaentoaroseucantobeloeoriginal,queaprenderanocéu.

Osíndiosficaramabismadoscomabelezadocanto,emboraachassemaquilomuitopouco.

–Ébelo,sim,mascantorianãocuranossosmales!–reclamouaoscéusopajé.

Aospoucos,porém,ocantodaavefoiinfundindopoderescurativossobrenaturaisnosdoentes,curando-osumporumdamoléstia.

Então,quandoadoençafoiextinta,ojapimanunciouqueretornariaaoscéus.

–Oh,não,permaneçaconosco!–clamaramtodos,e,maisdoquetodos,opajé.

Tupã,doaltodasuabondade,decidiu,afinal,deixarojapimentreosíndios.

Houvefestaemtodaaaldeia,eaavezinhamilagrosafoicelebradaduranteumasemanainteira,comosefosseopróprioTupã.Nãodemoroumuitoeojapim,vaidoso,começouaseconsiderarumaavesagrada.

Apartirdaí,passouadesprezaracompanhiadasoutrasaves,eatémesmoaridicularizá-las,debochandodequalquercantodeavequenãofosseoseu.

Quandoasoutrasavesseencheram,afinal,dessahistória,foramqueixar-seaTupã.

–Ninguémaguentamaisasoberbadojapim!Graçasaela,seucantoperdeutodasaspropriedadescurativas.Jánãohámaisrazãoalgumaparaalguémdesejarasuapresençanaterra.

Então,Tupã,dandorazãoàsaves,decidiupunirojapim.–Poisapartirdeagoraeleperderáoseucanto,sópodendoimitaro

cantodosoutros!

Page 100: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

Masasavesacharampouco,poisqueriambemlongeojapimeseusdeboches.Então,destruíramseuninhoequiseramcorrê-lodaaldeia,obrigando-oapedirproteçãoaosmarimbondos.

–Porfavor,deixem-meconstruirmeuninhopertodasuacasa!–disseaavezinha.

Osmarimbondosaceitaram,desdequeojapimnãoarremedasseozumbidodeles.

Desdeentão,ojapimviveprotegidodoataquedasoutrasaves,emborajamaistenhareadquiridoodomdecantaroseuprópriocanto.

Page 101: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

PARTEII

CONTOSTRADICIONAIS

Page 102: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

ARAPOSACARENTE

Umaraposamortaque,emvida,tiveraumapaixãoporserobsequiadaresolveuforçarofavordeumhomembom,indopostar-senomeiodaestrada.

–Oh,umaraposamorta!–disseohomembom,penalizado,aoverapobrebichanadeolhosvidradoselínguadefora.–Pobrezinha,vouenterrá-la!

Araposaestavamorta,masaindaassimsentiuumaondadeprazeraover-sealvodaquelefavor.

Ohomembomenterrouaraposaeseguiuadiante.Masaraposacarentegostoutantodonegócio–houveatéumabênçãosobreoseutúmulo,imagina!–quesedesenterrouàspressasefoicorrendopostar-seoutraveznocaminhodohomembom.

–SantoDeus,outraraposamorta!–disseeleaoverabichanaestrebuchadasobumanuvemdemoscas.

Apósexpulsaromosquedo,ohomembompegouocadáverdaraposa,cobriu-odefolhasedepoispartiu.Assimqueelepartiu,ofocinhodaraposamortasurgiudafolharada.Elapareciaumpouquinhofrustrada,destavez,poisaquelasepulturadefolhasnãoforacomoogloriososepultamentosobaterra.Mas,aindaassim,foraumaltofavor,consolou-searaposacarente,contentando-secommenos.

–Defavoresnãoheidemecansarjamais!–disseela,enquantoohomembomseafastava.

Apóslivrar-sedasfolhas,elacorreuporumatalhodentrodamataefoiesparramar-senovamente,bemmaisadiante,nocaminhodohomembom.

–Serápossível?–disseele,jácontrariado.–Alguémandaexterminandoraposasporaqui!

Destavez,haviaumanotadeirritaçãonavozdohomembomquandoelearredouadefuntacomopéatéasombradescobertadeumaárvoreantesdepartir.

Assimqueohomembomdesapareceu,araposacarenteabriuumolhoedisse:

–Ascoisasjáforambemmelhores,éprecisoadmitir.Mas,enfim,foisempreumfavor!

Oh,comoelaambicionavaseramada!Cegaporessedesejo,araposacarentefoicorrendoencontraroutroatalhoparasaborearnemquefosse

Page 103: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

aúltimamigalhadoafetoalheio.Destavez,porém,aoavistararaposamorta,ohomembomjáestava

fartoedeuumchutenocorpodaraposa.–Dane-sevocê!–exclamouele,irritado.Araposacarenterodopiouefoicairdentrodamata,enquantoo

homembom,apassosfirmeseraivosos,foisermauemoutraparte.Esfolada,araposadescobriu,então,queforçaroafetoéforçaro

enfado.

Page 104: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

OPEQUENOHOMEM

Haviaumavezumpríncipequegostavadecaçar.Certafeita,eleentrounaflorestacomseusirmãoseacabouperdendo-sedeles.

–Eesta,agora!–disseele,olhandoparatodososlados.Semosseuscães,opríncipeeraumzeroàesquerdanafloresta.

Desorientado,errouemtodasasdireções,sóparadescobrirque,emtodososquadrantes,continuavaperdido.

Então,apóstomarumrumoàscegas,foidarnumaterradegigantes.Issoelesoubequandoviuumacasaquemaispareciaumamontanhademadeira.

Apósbaternaporta,eleviu-sediantedeumhomemgigantesco,quelheperguntouquemeleera.

–Estouperdido,meuamigo,eprecisodeabrigo.Ogigante,quenãoeramuitoamigodeintrusos,fingiuser

hospitaleiroaoreconhecernafiguradohomenzinhoperdidoopríncipedoreinovizinho.

–Podeentrar–disse,demávontade.Juntocomogigantemoravamsuaesposaesuafilha.Afilha,que

tambémeragigante,chamava-seGuimara.Opríncipeficouabrigadonacasacolossal,àesperadequeviessem

buscá-lo.Enquantoosirmãosnãoapareciam,acabouapaixonando-sepelaprincesagigante.Ela,porsuavez,tambémachouqualidadesbastantesnaqueleserminúsculoparaporeleseapaixonar.

OpaideGuimara,noentanto,nãogostoudissoeresolveucomplicaravidadopríncipe.

–Chegou-meaosouvidosquevocêpretende,numasónoite,erguerumnovopalácioparamim–disseogigante.–Seforverdade,querovê-lofazer.Senãofor,querovê-lomorrer.

Apavorado,opríncipetevedeconfirmartudo.–Certamentequeofarei–balbuciouele.–Isso,amanhãveremos–respondeuogigante,desaparecendo.Ohomenzinhofoichorarasmágoasparaasuaamada,quetratoude

acalmá-lo.–Deixacomigo,belohomenzinho.Souumamaga,epossofazertudo

issonumestalardededos.Edefato,duranteanoite,elaconstruiuummajestosopalácio.Namanhãseguinte,aoveropalácio,ogiganteficoucomcarade

Page 105: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

palhaço.–Aquitemtruque!–disseele,massóparasi.Então,ogiganteprocuroudenovoohomenzinhoeodesafioua

limparaIlhadasFerasBravias,tornando-aumjardimamenoeaprazível.–Seforverdade,querovê-lofazer.Senãofor,querovê-lomorrer.Ohomenzinhocorreu,então,novamente,àamada,quetratoude

limparaIlhadasFerasBravias,transformando-anumverdadeiroJardimBotânico.

Ogigantetorceuabocaaoveroresultado.–Oqueestáfeito,estáfeito,masoquehádeserfeito,tambémháde

serfeito.Oqueelequeriadizercomsuacharadaéquepretendiamatar

naquelamesmanoitetantoohomenzinhoinsolentequantoasuaprópriafilhadesobediente.

Guimaraeohomenzinho,porém,fugiramdoquartoantesdachegadadopai,deixandosoboslençóisduasbananeiras,umagiganteeaoutrapequena.

Osdoisfugitivosganharamanoitemontadosnumcavaloveloz,levandoconsigoumaespingarda.Aodescobrirologro,ogigantemontounoutrocavalovelozepartiunoseuencalço.

Ora,acontecequeocavalodogiganteeramaisveloz,enãodemoroumuitoparaqueosfugitivosseconvencessemdequelogoseriamalcançados.

–Vamospassar-lheoutrologro–disseamulhergigante.Quandoogigantechegouàbeiradeumrio,foiistoqueencontrou:

Guimaratransformadanumriacho;ohomenzinho,numpretovelho;ocavalo,numaárvore;aseladocavalo,numaréstiadecebolas;e,finalmente,aespingarda,numbeija-flor.

Opretovelhobanhava-senorio.–Digalá,nãoviupassarporaquiumcasaldefugitivosacavalo?Opretovelho,jogandoáguasobreoscabeloscomacovadasmãos,

disse,olhandoparaascebolas:–Oqueeuseiéqueplanteiestascebolas,masnãoseisemesairão

boas!“Quemaluco!”,pensouogigante,desviandooolhar.Então,aoverobeija-flor,correuatéele.Masaavezinhaestavatão

bravaquequasefurou-lheosolhos,oqueoobrigouavoltarcorrendoparacasa.

–Danação,perdiapistadosdois!–disseeleàesposa.

Page 106: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

–Vocêéumbobo,mesmo!–disseela.–Entãonãovêqueétudotruque?

Pontoporponto,amãegigantedeslindouostruquesdafilha,fazendocomqueogigante,enfurecido,montassenocavaloepartissenovamentenoencalçodosfugitivos.

Aovê-lo,afilhaseconverteunumacatedraletransformouoamadonumpadre,aselanumaltar,aespingardanumlivroderezaeocavalonumsino.

Aoveracatedralresplandecente,ogiganteseatirouparadentro.–HomemdeDeus,osenhorviuporaíminhafilhaeum

homenzinho?Opadre,comonarizenterradonomissal,respondeuemfeitiode

poesia:

Nadavi,não,Queestouemoração,EquemmeazucrinaEntraemdanação.

Assustado,ogiganteretornou,persignando-setodo,efoicontartudoàesposa.

–Seubobo!–disseela.–Étudoenganaçãodamarota!Elásefoidenovoogigante,sedentodavidadafilhaedo

homenzinho.Destavez,noentanto,Guimararesolveumudardetática.Apóstomar

umpunhadodecinzas,atirou-asparaoaltoeumaneblinaescandinavadesceu,comopormágica,sobreafloresta.

Ogiganteperdeu-sedevez,enquantoocasalchegava,finalmente,aocastelodopríncipe.Antesdeentrar,porém,agigantelhefezestaestranhaadvertência:

–Quandoentrar,nãobeijeamãodesuatia,oumeesqueceráparasempre.

Éclaroqueaprimeiracoisaqueopríncipefezfoiircorrendobeijaramãodatia,oqueprovocouoimediatoesquecimentodasuaamada.Desdeentão,Guimaraconverteu-senumamulherzinhapequenaetriste.Comodoida,elapassouaperambularnoiteediapelascercaniasdopalácio,natentativainútildeconvenceropríncipedequeumdiaforaasuaamada.

Page 107: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

AMOURATORTA

EsteéumdoscontosmaispopularesdovastorepertórioquecirculapelointeriordoBrasil.Comoaimensamaioria,nãoécriaçãobrasileira,masumaadaptaçãodeumdoscontosmaisdivulgadosdaliteraturaoraldetodoomundo.

Havia,pois,certafeita,umreiquemandouofilhocorrermundo.Opríncipeganhouaestradae,depoisdeencerarmeiomundo,topoucomumavelhinhadobradaacarregarumfeixedelenha.Acadapasso,elagemiasoboseufardo,oqueencheudedóopríncipe.

–Deixe,boavelhinha,queeucarregooseufeixe–disseopríncipe.Avelhadeuumsuspiroearriouacarga.–Obrigada,meujovem–disseela,aliviada,porémsemendireitaras

costas,poiseracorcunda.Então,elaretiroudeseualforjetrêslaranjasnovinhaseentregou-as

aoseubenfeitor.–Comaestaslaranjassemprequesentirsede–disseela.–Mas

cuidado:sóascomaquandoestiverpertodeumcursod’água.Opríncipejurouqueassimofaria,embora,desdejá,saibamosque

assimnãoofará.Defato,aosentirsedepelaprimeiravez,eledescascouumadas

laranjasnumdescampado.Dedentrodelasaltouumabelajovem,dizendo:–Dá-meáguaoumorrerei!Comonãohaviaáguaporperto,apobrezinhamorreudesedefeito

ummosquitinho.Daliadoisdiasopríncipe,quedeviasermuitoesquecido,sentiu

sededenovoedescascouasegundalaranjasemteràvistaqualquercórregod’água.Umasegundajovem,aindamaisbeladoqueaprimeira,saltoudedentroerepetiualadainha:

–Dá-meáguaoumorrerei!Morreurealmentedesede,apobre.Naterceiravezemquesentiusede,opríncipelembrou-se,

finalmente,doavisodavelhaeprocurouabeiradeumrioantesdedescascaraterceiralaranja.

–Vejamosdestavez!–disseele,metendoafaca.Entãoumaterceirajovem,maisbeladoqueasoutrasduas,surgiu

comomesmopedido:–Dá-meáguaoumorrerei!

Page 108: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

Eletomou-anosbraçoselevou-a,àspressas,atéasmargensdorio.–Beba,lindajovem!–disseopríncipe,instantaneamente

apaixonado.Comoestavapertodecasa,opríncipedecidiucasar-selogocomela.

Mascomoajovemestavanua,nãohaviacomolevá-la,assim,aopalácio.–Subanoaltodestaárvoreemeaguardeenquantovoubuscaruma

roupa!–disseele.Nuacomoestava,ajovemtrepounogalhomaisaltoealificou

sentada,àespera.Umabrisafrescapassandoporentreasramagensrefrescavaseucorpo,eelaachouaquilomuitobom.

Odiapassouatéque,derepente,umamulhermuitofeiaaproximou-sedasmargens.ErachamadadeMouraTorta,pois,alémdefeíssimaecaolha,tambémeracorcunda.

AMouratinhaidobuscarágua,poiseraacriadamaisrelesdopalácio.Aodebruçar-senorioelaviu,porém,oreflexodealgonaágua.Primeirolhepareceuqueumaromãmaduraedepolparosadaflutuavanaágua.Elatentouapanhá-la,masafrutadesapareceu.

–Irra,afundou!–esganiçouaMoura.Depoisqueaáguaserenou,elaviuaimagemdeumrostobelíssimoe

embasbacou-se.–Nossa,comosoubela!–gritouela,dealegriaesurpresa.Jogandoparaoaltoocântaro,elavoltouaopaláciodispostaaser

tratadadeacordocomasuabeleza.–Dehojeemdiante,queroomelhorquartodacriadagemeodireito

deserconcubinadorei!Umcoroderisosededesaforosdesceusobreela.–Tomaoutrocântaroevaibuscarágua,Mourahorrorosa!–disseo

chefedacriadagem.Apobrevoltouàmargemdoriocertadetersofridoalgumdelírio,

mas,aoabaixar-seoutravezparaapanharágua,viuaimagemdamesmajovemasorrir.

–Aíestá!Soueuounãosou?–disseela,pondoasmãosnasancas.Denovo,voltouaopaláciocomomesmoaranzeldequeeraa

criaturamaislindadomundo.–AMouraficoudoidadevez!–diziamtodospeloscorredores.Entãolhederamumterceiropoteeaameaçaramdemortecaso

voltassesemaáguaecomaquelemesmoteterémdealuada.Nabeiradorio,aMouraviu-selindaoutravez,sóque,destavez,a

imagem,antesmuda,rompeunumagargalhada.

Page 109: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

–Ah,entãoeravocê,lindafadinha!–guinchouaMouraaoveramoça.–Desça,meninanua!Querovertantabelezadeperto!

Ajovemdesceu,eaMouracomeçouaelogiá-la.–Muitolinda,você!Masdeixeeuajeitarmelhorosseuscabelos!Então,pegandoumalfinetemágico,espetou-onacabeçadajovem,

quevirouimediatamenteumapomba.–Xô,desavergonhada!–disseaMoura,enxotandoaavezinha.Aover,porém,queoprínciperetornava,aMouradespiu-seinteirae

subiuligeiraaotopodaárvore.–Voltei,meuamor!Agora,vistaisto!–disseele,carregandovestes

dignasdeumaprincesa.Masalgoaconteceracomaprincesa.Suapelealvaficaraescurae

mosqueada.–Oquehouvecomasuapele,antestãoclara?–disseele,frustrado.–Oh,meuamor!Vocêdemoroutantoquequeimei-meinteiraaosol!

–respondeuaserva.–Eesseolhovazado?–Foiumespinho,meuadorado!–Eessesdentesestragados?–Comiumafrutapodreeassementesarruinaram-meosdentes!EntãoaMourapediuqueelealevasseaopalácio,queláela

recobrariaseuestadoanterior.Opríncipeconsentiu.–Estábem,láveremosoquesehádefazer.Umaveznacorte,aMouraobrigouopríncipeacumprirsua

promessadecasar-secomela.–Recobreounãoaminhabeleza,vocêdevecumprircomasua

palavra!–insistiatodosantodia.Nãoteveoutrojeito,easnúpciasforammarcadas.Então,quandotudopareciaperdido,apombinhaencantada

aproximou-sedopríncipe,nosjardinsdopalácio,bemnodiadocasamento.Eladeuváriasvoltasaoredordopríncipeatéqueeleatomounasmãosecomeçouaacariciarasuacabeça.

–Lindapombinha,seminhafuturaesposafosseaomenosparecidaconsigo!

Derepente,porém,sentiuquehaviaumcaroçonacabeçadaave,edescobriuacabeçadeumalfinete.Aopuxá-lo,agrandesurpresa:apombavoltouasetransformarnasuaantigaamada.

–Você,adorada!–exclamouele,abraçando-aperdidamente.Nofimdascontas,tudoexplicado,opríncipecasou-secomaamada,

Page 110: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

enquantoaMouraTortafoilançadavivanumafogueira,restandodesiapenasumamontoadodecinzas.

Page 111: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

ARAPOSINHA

Estecontonarraasperipéciasqueumpríncipepassouparaarrumarumremédioparaoseupaicego.

Diz-se,então,queopríncipe,depoisdemuitoandar,chegouaumlugarondeumgrupodehomensocupava-seemsurrarumdefuntocomumpau.

–Monstros!Porquecometemtalatrocidade?–gritouele,indignado.–Estehomemeraumcaloteiro!–explicouochefedobando.–Maseleestámorto!–Edaí?Emnossacidade,aleiéseveraparacomoscorruptoseos

desonestos,enemmesmoosmortosescapamàpunição!–Quantoeledevia?–disseopríncipe,epagouoqueodefuntodevia.

–Agora,enterrem-nocomoaumcristão.Depoisdisso,opríncipeseguiuadianteatédarcomumaraposinha.–Aondevai,meupríncipe?–dissearaposa.–Vouembuscadeumremédioparaosolhosdomeupai.–Poissaibaqueremédioparaolhodereicegosóháum:cocôde

papagaio.–Eondeencontrococôdopapagaio?–disseopríncipe.–NoReinodosPapagaios,naturalmente–respondeuaraposa.–Ondeficaessereino?Araposaensinouocaminhoedepoiscompletou:–Chegueláàmeia-noiteeescolhaopapagaiomaistristedagaiola

maistoscaquehouver.Opríncipefoieencontrouotalreino.Aoentrarnele,viugaiolasde

todosostiposeformatospenduradasportodaparte.Todaseramdeouro,ecadaqualtraziadentroumpapagaiomaissaudável,felizetagarelaqueosoutros.Nãoéprecisodizerqueopríncipeagarrouagaiolamaisbonitaqueviu.

Lánofimdacidade,nobairrodospapagaiospobres,estavaumagaioladepau,cobertadeexcrementosecomumpapagaiotodotristenoseuinterior,queopríncipenemviu.

Opríncipejáiacruzandooportãodacidadequandoopapagaiodagaioladeourogritou,alertandoosguardas.

–Muitobem,espertinho,oquelevaaí?–disseoguarda,umenormepapagaio.

Opríncipeexplicouoseudramaatécomoveropapagaião.

Page 112: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

–Muitobem,massólevaráagaiolasetrouxerantesumaespadadoReinodasEspadas.

Opríncipesuspiroue,depoisdelargaragaiola,foiembuscadotalReino.

–Sempreessasrepetições!–disseele,chutandoumapedraquequaseacertouofocinhodaraposa,queandavaperambulandopelaestrada.

–Oqueresmungaaí,meupríncipe?–disseela.Eleexplicou,earaposa,desgostosa,abanouacabeça.–Tsc,tsc,tsc!Eunãodisseparapegaragaiolamaistosca?Pois

agoraváaoReinodasEspadasefaçacomoeudigo:entreàmeia-noiteepegueaespadamaisfajutaquehouver.

Nãoéprecisodizerqueopríncipefoiepegouaespadamaisbelaquehavia,todadeouro,deixandodeladoamaisfeia.Nasaída,aespadadeuumestalo,eoguardabarrouapassagemdopríncipe.

–VáaoReinodosCavalosemetragaumdelá.Sóentãopoderálevaraespada.

Opríncipequasedesmaiouderaiva.Eatirou-se,deumavez,paraoReinoAmaldiçoadodosCavalos.Aestaaltura,jásabemostudooquesepassou:opríncipecruzou

comaraposa,ouviudelaumanovarepreensãoeescutouoconselhodeescolheropangarémaisfeioquehouvessenoreino.

Algumashorassepassaram,evemos,agora,opríncipemontadonomaisbelopuro-sangue,adeixaroReinodosCavalos.Então,ocavalorelinchou,ecomeçoutudooutravez.

–Aondevaicomnossomelhorcavalo?–relinchouoguarda.Opríncipeexplicou.–Poissópodelevarocavalosefurtarafilhadorei–retrucouo

cavalo.Opríncipepartiu,muitoaliviado.Opesadelodasrepetiçõesparecia

ter-seacabado!Nocaminho,elecruzoupelaúltimavezcomaraposa.–Aondevai?–disseela.Opríncipeexplicoumaisumavez.Araposaolhoubemopríncipenosolhosedisse,muitosolenemente:–Muitobem,chegouahoradarevelação:eusouaalmadaquele

caloteiroqueoscobradoressurravam.Infelizmente,vocênãoouviumeusconselhos,eporissotodaessaconfusão.

Page 113: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

Então,araposadisseaopríncipeoqueeledeveriafazer,edestavezelefezdireitinho.Paracomeçar,furtouaprincesa.Depois,pegouopangarénoReinodosCavalos,aespadaferruginosanoReinodasEspadaseopapagaiotristenoReinodosPapagaios.

Quandojáianocaminhodecasa,encontrouseusirmãos,unsmalvadosquelogoconceberamumplanoparaseapossaremdetudooqueeletrazia.

–Oqueestáfazendonestaestradacheiadeladrões?–disserameles,falsamentezelosos.–Tomeaqueleatalho,poissóassimchegaráaonossopaláciosãoesalvo.

Aotomaroatalhodeserto,eleencontrounovamenteosirmãos,queoamarrarameolançaramnumacovaparamorrer.

–Essascoisasnósmesmoslevaremos!–disserameles,carregandoaprincesa,ocavaloeorestantequeopríncipetrouxera.

Aochegaremdiantedorei,porém,aprincesaficoufeia,opapagaioficouaindamaistriste,aespadadesmanchou-seeocavalocobriu-sedesarnas.

–Patifes!Quegracejoéeste?–disseorei,queapesardecegonãoerabobo.–Prendam-nosnamaisprofundamasmorra!

Logoqueosmausfilhosforamaprisionados,opríncipedeambuladorchegou,radiante.Araposa,numúltimoatodegratidão,libertara-odacova,eeleagorajápodiaapresentar-sediantedopai.

Assimqueopríncipecolocouospésnopalácio,aprincesavoltouaserbela,aespadatornou-sedeouro,ocavaloengordou,eopapagaiodeixoudesertriste.

Oreicegoteveseusolhosbesuntadosepassou,desdeentão,aenxergar.

Quantoaopríncipe,casou-secomaprincesaeviveucomelafelizparasempre.

Page 114: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

JOÃOGURUMETE

Estecontotambéméimportadodofolcloreeuropeu,constituindoumavariantedo“AlfaiateValente”dosIrmãosGrimm.Comoemtantasoutrasterras,oMata-SetetambémseaclimatoumuitobemnoBrasil.

Ocontocomeçadizendoquehavia,certafeita,porestessertões,umsapateiromuitomedroso.Umdia,elederramouumpoucodecolanamesae,daliapouco,setemoscasacabaramgrudadasnameleca.

Umdosseuscolegas,muitoamigodegracejos,inventoulogoestebordãoparaoamigo:

–JoãoGurumete,quedeumgolpematousete!Desdeessedia,osapateiromedrosoganhouafamadevalentepor

todoosertão.Então,certodia,apareceuumaferadevastandotudo.Elacomia

qualquercoisaquerespirasse.E,maisquetudo,adoravaonúmerosete:tinhasetecabeças,setelínguas,ecomiasuasvítimasdeseteemsete.

Umdosreisdosertão–naqueletempohaviareisespalhadosportodoosertão,chamados“coronéis”–mandousetetropasparaliquidarcomobicho,maselecomeutodasassete.

Então,alguémdisseaoreiqueJoãoGurumeteeraasalvação.–Aquelequedeumorteasete?–Sim,elemesmo.Joãofoichamadoeintimadoamatarsozinhoafera.–Aíestáoquevocêfoiinventar!–queixou-seopobreJoãoaoamigo

gozador.–Queroveragoracomoheidemehavercomessemonstro!Oamigo,porém,tinhaumasolução.–Façacomolhedigoederrotaráomonstro.Joãoescutouefoiemfrente.Apósatrairaferaatéumaigrejavelha,

entrouparadentroesaiupelaportadosfundos,cerrando-acomcadeadosetrancas.Nãotendooutromeiodesair,obichoseesvaiudefome,esóentãooGurumeteentrouláparacortarforaassetecabeçasdafera.

–Setevezesvalente!–disseorei,aoreceberassetecabeçasdomonstro.

JoãoGurumetevirouconde,porobradorei,eviuchovermuitodinheirosobresi.

***

Page 115: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

Otempopassouatéquesurgiuumnovomonstropelossertões.Naverdade,novosmonstros,jáqueeramtrês.Elesroubavamematavam.

–JoãoGurumete,éteuodesafio!–disse-lheorei,outravez.Osapateirocovardeencheuascalçasantesdeirtercomoseu

amigo.–Eesta,agora!Seumjáeradifícil,quedirátrêsmonstros!Destavez

estouperdido!Masoamigosabiatodasasmanhasparaderrotarmonstros.–Façacomodigoesesairábemoutravez.Gurumetefoiefez.Depoisdedescobrirolocalondeosgigantes

descansavamdasuaruindade,àsombradeumaárvoreenorme,aproveitouaausênciadelesependuroutrêspedraspesadíssimasnoalto.Quandoostrêsretornarameforamdescansardebaixodaárvore,Joãocortouacordadaprimeirapedra,quefoicairnacabeçadoprimeirogigante.

–Começaramasgraçolas?–disseeste,aosentirumapoeirinharoçar-lheatesta.–Ésempreassimquandovoutirarumapestana!

Osoutrosdoissefizeramdesurdos,elogoostrêsroncavamàvelasolta.

Gurumetecortouasegundapedra,quefoidarnatestadosegundogigante.

–Quemfoiocretino?–disseele,alisandoatesta.–Bemsabem,idiotas,quenãotoleroperturbaçõesnomeusono!

Quasehouveumabrigadaquelas,mas,graçasaocansaço,logoostrêsvoltaramadormir.

Então,Joãocortouaterceiracorda,eopedregulhoacertoubemnomeiodosolhosdoterceirogigante.Acontecequeesseterceirogigantenãoeradeameaças,masdebrigamesmo,elogoaconfusãocomeçouparavaler.Depoisdaluta,ostrêsestavamestendidosemortossobaárvore.Joãodesceuecortouforaacabeçadecadaumdostrês,levando-asparaorei.

JoãoGurumetefoiagraciadocomumnovotítuloeganhoumaisummontãodedinheiro.

–Quantomais,melhor–disseoamigo,embolsandoasuaparte.

***

OúltimodesafiodeJoãoGurumetenãofoivencermonstroalgum,massubstituirumgeneraldoreiquemorreraemcombatenumaguerra

Page 116: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

feroz.–Sevenceraguerra,lhedareiminhafilhaemcasamento–disseo

rei.OamigodeGurumetelhedissequesevestissecomoele.–Vistasuafardaemonteemseucavalo.Ajacomoele,etudosairá

bem.Noacampamento,soldadoalgumsabiadamortedogeneral,pois

temia-sequeoanúnciodamortedispersassetodooexército.JoãoGurumetemontounocavaloesurgiudiantedatropa.

–Ogeneralvoltou!–gritavamtodos,emêxtase.Nesteinstante,ocavaloassustou-secomagritariaelargouacorrer

nadianteiradatropa.TudoissoiamuitocontraavontadedeJoão,quepôs-seagritareaespernearfeitodoido.

–Ouçam,éogritodeguerradogeneral!–disseramossoldados,eufóricos.

Imediatamenteatropajuntou-seeseguiucomentusiasmooseugeneral,destroçandoemmenosdeumahoraoexércitoinimigo.

JoãoGurumete,vitorioso,casou-seafinalcomaprincesae,nanoitedenúpcias,depoisdebebermuitovinho,começouasonhareafalarbobagensdoseutempodesapateiroemplenoleitomatrimonial,comoseestivessenasuaoficina.

–Casei-mecomumrelessapateiro,enãocomumguerreiro!–reclamouaprincesaaorei.

Nodiaseguinte,Joãofoiavisadopeloamigofieldequeiriateracabeçacortadacasocontinuassecomaquelasconversasrelesdesapateiro.Então,JoãoGurumetedeitou-secomumchanfalhodolado,queeraumaespéciedeespada,efingiuanoiteinteiraqueguerreavacomoumcavaleironotável,esónãomatouaesposaporqueestasaiu,descabelada,correndodoleito.

–Meumaridoé,deveras,umgrandeguerreiro!–disseela,entreassustadaeadmirada.

Desdeentão,JoãoGurumeteaprendeuasonharemsilêncio,efoiassimquecontinuouacortareremendardocementeocouronosseusmaislindossonhos.

Page 117: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

ARAPOSAEOTUCANO

Certafeita,araposadecidiupregarumapeçanotucano.–Ó,amigotucano,venhacomerláemcasa!Envaidecidopeloconvite,otucanoaceitounahora.Quandochegouà

casadaraposa,estalheserviuummingaunumaesparrelacompridaerasa.

–Comaàvontade!–dissearaposa,preparando-separarir.Opobretucanotentoucomeromingauespalhado,masoseubico

nãoconseguiarecolhernadaanãoserumasrelesgotinhase,detantobicaraesparrela,acaboucomobicoenormerachado.

Otucanopartiu,masdecidiusevingar.–Adoreiasuahospitalidade–disseele,diasdepois.–Agora,éasua

vezdeaparecerláemcasa.Araposa,tornando-sesubitamenteingênua,aceitou.–Muitobem,láestarei,nahoramarcada.Quandochegouodia,araposafoiobsequiadacomomesmomingau,

sóqueelefoiservidonumajarradegargaloestreito.Otucanoenfiouobicoládentroesedeliciouàvontade,enquantoaraposa,comseufocinhocurto,nãoconseguialambernemumagotinha.

Nofimdascontas,adesgraçadaficoucomofocinhoentaladoeacaboumorrendosufocada.

Efoiassimquearaposa,metidaagraciosa,levouoseutroco.

Page 118: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

OPADREDESPREOCUPADO

Havia,certafeita,umpadredespreocupado.Suadespreocupaçãoeratamanhaquenadaeracapazdetirá-lodesuapaz.Naentradadesuacasa,mandaragravaratéestedísticoparaquetodossoubessemoquantoprezavaadespreocupação:“Aquinestacasamoraopadredespreocupado”.

Asuafamacresceutantoquechegouaosouvidosdorei.–Nãoépossívelquenummundocomoonossoessehomemnãose

preocupecomnada–disseele,quenãosabiafazeroutracoisanomundoanãoserpreocupar-se.

Oconselheirorealtinhaumateoriaarespeito.–Estepadreéumhomemsembensesemmulheroufilhos,daía

suatotaldespreocupação–disseele.–Quemnadatemaperder,denadasearreceia.

–Seforassim,entãoninguémémaisfelizdoqueosmortos,poisnadamaistêmaperder–disseorei.

–Felizesnão,alteza.Despreocupados,talvez.Entãooreidecidiutiraraprovadopadredespreocupado.–Convoque-oaopalácio.Digaquevenhadentrodetrêsdias

responder-meatrêsperguntasqueheidelhefazer.Casonãoasresponda,teráasuacabeçacortada.

Ummensageirofoienviadoatéopadrecomaconvocação.Apóslerapartefinaldamensagem,opadreconheceu,pelaprimeiraveznavida,apontadaagudadapreocupação.

–Arre!Morrerécoisaséria!–disseele,coçando,nervoso,acoroaraspada.

Desdeessedia,opadredespreocupadonãosoubemaisoqueeradormirnemcomer,atéque,aodespontaroterceirodia,acordouemverdadeiropânico.Apósvestiràspressasabatina,bateuasineta,chamandoocriado.Explicou-lheoseudramaepediuaoserviçalumconselhoquenemtodasasluzesdasuareligiãohaviampodidolhedar.

–Seomeuamoquiser,ireinoseulugar–disseoservo,muitosegurodesi.

“VirgemSantíssima!Aíestáalguémrealmentedespreocupado!”,pensouopadre,admirado.

–Estádisposto,então,amorreremmeulugar?–Nãomorrerei,bomamo–respondeuooutro,imperturbável.

Page 119: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

Oservovestiuabatinadopadre,raspouococurutoefoitercomorei.

–Évocê,então,otalpadredespreocupado?–disse-lheorei.–Exatamente,majestade.–Continuadespreocupado?–Perfeitamente,alteza.–Então,merespondaisto:quantoscestosdeareiaháalinaquele

monte?Numcantodosalãoreal,haviaumapequenamontanhadeareia

empilhada.–Háali,alteza,umúnicocestodeareia.–Umcesto,só?–Sim,poisbastafazerumcestograndeobastanteparacontertoda

aareia.Oreicoçouacabeçaporbaixodacoroaeaplaudiu,afinal,aresposta.–Muitobem,agoradiga-me,senhordespreocupado,quantas

estrelashánocéu?Opadrefalsodeuumnúmeroexatoedesproporcional,nacasa

quebradadoscinquentilhões,setalcoisaexiste,deixandooreiembasbacado.

–Impossívelalguémsaberonúmeroexato!Opadredearaque,porém,respondeu,imperturbável:–Tãoimpossível,alteza,quantoalguémsabernãoseresteonúmero

exato.Oreicoçououtravezacoroaedeu-seporvencido.–Vá,passa!–disseele,cerzindoosolhos.–Agorarespondaaúltima

emaisdifícilpergunta:oqueestoupensandonesteexatomomento?Ocriadotravestidodepadreempertigou-setodoefulminou:–VossaAltezapensaestarfalandocomopadre,masfalamesmoé

comoseucriado.

Page 120: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

ACAVEIRAFALANTE

Certavez,iaumcaçadorpelamataquandosedeparoucomumacaveiraadescansarsobrearelva.Aoverqueelacontinuavaviva,perguntou-lhe:

–Quemtetrouxeatéaqui?Acaveirabateuamandíbula,comoumbonecodeventríloquo,e

respondeu:–Minhabocagrandemetrouxeatéaqui!Ocaçador,assombrado,foicorrendofalarcomorei.–Majestade,encontreiumacaveirafalantenomeiodomato!Orei,desconfiado,olhouocaçadordecimaabaixo.–Éverdade,majestade!Atéfaleicomela!Oreidecidiumandarumsoldadojuntocomocaçadorparaverificar

seahistóriaeraverdade.–Seestivermentindo,passe-lheaespada!–disseorei,amanteda

severidade.Ocaçadoreoguardapenetraramoutraveznamata.Chovia.Depois

dechapinharnalama,ocaçadoravistouacaveiranomesmolugarondeadeixara.

–Láestáela!Acaveira,lavadapelachuva,reluzia.Ocaçadoraproximou-se,

chamandooguarda.–Fala,caveira!–disseele,numrasgodecoragem.Masacaveira,nada.Umruídorascantedeespadasendoretiradadabainhagelouo

sanguedocaçador.Numavertigemdedesespero,elelembroudaperguntaquefizeranaoutraocasião.

–Quemtetrouxeatéaqui,caveira?Diga!Silêncio,denovo.Então,opânicoapoderou-sedaalmadocaçador.–Fala,desgraçada!Quemtetrouxeatéaqui?Masacaveiranadadisse,eaquiseacaboutudoparaocaçador.O

guarda,manuseandoaespadacomadmiráveldestreza,cortouforanumzás!acabeçadomentiroso.

Depoisqueocarrascopartiu,acaveira,virando-separaacabeça,lhedisse:

–Agora,digalá,minhaamiga:quemtetrouxeatéaqui?

Page 121: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

Acabeçadecepadavirou-seedisse:–Minhabocagrandemetrouxeatéaqui!

Page 122: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

APRINCESADEBAMBULUÁ

Havia,hámuitotempo,umagrutasituadaentreduascidades.Elaeraassombrada,etodanoiteacabeçadeumadonzelameigasurgiaparapediraoshomensquenelaseaventuravamqueadesencantassem.Ajovemintitulava-se“princesadeBambuluá”efaziaseupedidoaosprantos.

Muitostentaram,masoresultadoerasempreumasériedeprovasrudesqueacabavamporfazeropretendentefugirmataafora.

Certodia,surgiuporaliumsujeitinhoamareloeenfezado.Eleestavaexaustoenãosabiamaisoquefazerdavida.Depoisdesentar-seàentradadagruta,começoualamentar-se.

–Estoucansadodeserfeioefraco!Então,derepente,surgiuflutuandoacabeçadaprincesa.–Nãoquerdesencantar-me,belojovem?–disseela,namaismaviosa

dasvozes.Osujeitinhofeioso,quesechamavaJoão,estavatopandoqualquer

coisa,aindamaisumpedidofeitoporumacabeçatãolinda.Imediatamenteeleaceitouaproposta,mas,antesdedesencantá-la,pediuparacomerebeberalgo.Acabeçalindalevouosujeitinhoparaointeriordagruta,ondeumamesafartapôsfimàsuafomeeàsuasede.

–Agoraváatéoaltodaserraedeite-sedebaixodaárvoremaisaltaqueláhouver–disseabelacabeça.–Hajaoquehouver,suportetudoatéofim.

JoãoAmarelofezoqueeladissee,quandoestavadeitadodebaixodaárvore,viuchoversobresiumatempestadedepauladas,atéqueeleroloudevoltaparaagruta.

Parasuasurpresa,descobriuqueaprincesaestavadesencantadadeumterçodocorpo,podendo-severjáafiguradesdeacabeçaatéobustopudicamentecoberto.

Aprincesatratoudosferimentosdojovem,masjánanoiteseguinteeletevederetornaraoseucalvário,noaltodaserra.

–Nãoseesqueça,suportetudosemreclamarougemer!–disseobusto.

JoãoAmarelofoiesuportouasovaoutravez,voltandoparaagrutacomoumapedraquerola.Paraseuconsolo,aprincesajáestavadesencantadaatéacintura,combraçosetudo.

–Maisumanoiteeestareicompletamentedesencantada!–disseela,enquantoJoãomordiaoslábiosrachadosdeapreensão:seráque

Page 123: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

aguentariamaisumasova?Aguentou,sim,masnãofoifácil.Destavez,osagressoresinvisíveis

meteram-nodentrodeumbarrilcheiodeespinhosecacosdevidroerolaram-nopelanoiteinteira.Aover-sedevoltaàgruta,porém,todoomartíriofoirecompensadocomavisãodaprincesadeBambuluátotalmentedesencantada.

***

AsegundapartecomeçacomumaviagemqueJoãoeaprincesafizeramatéumacidadevizinha.

–Agorapartoparameureino–disseela.–Enquantoestiverlá,vocêdeveráinstruir-seaquinalinguagemdospássaroseemtodososdemaissaberesdeumhomemquepretendesermeuesposo.

Joãoprometeuqueestudariatudooquefossepreciso.–Deanoemanovireivê-lo,atécumprirem-secincoanos–

acrescentouaprincesa.–Minhavisitaanualserácurtíssima,durandoapenasumahora.Adeus.

Joãoficounacasadeumapreceptoravelhaehorrível,masquepossuíaduasfilhasjovenselindas.Logonosprimeirosmeses,aoverqueojovem,apesardefeioeamarelo,eramuitoestudioso,avelhadecidiucasá-locomumadasfilhas.

–Aprincesaquearrumeoutro!–disseela.Quandofechouoprimeiroano,aprincesaveioverJoão,masavelha

havialhedadouma“dormideira”,queécomosechamam,noscontosdefadas,aspoçõesparaadormecer.

Resultado:Joãonãopôdeverasuaadoradaprincesa,eelaretornou,muitofrustrada,àcorte.

Nosanosseguintes,acoisaserepetiu,eaprincesavinhaepartiasemverseupretendente.Então,aocumprirem-seoscincoanos,elachegouàconclusãodequeeleahaviaesquecido.

QuandoJoãosoubequeaprincesanãoqueriamaisvê-lo,entrouempânicoefugiudacasadavelhaparaencontraroreinodaamada.Depoisdeandarportudo,foidarnumacasinhaàbeira-mar.

–Ódefora,entrejáeagora!–disseumavozinhanointerior.Joãoentrouedeparou-secomumvelhovelhíssimo.–Sente-se–disseofiodevoz,queeraquaseumpipilar.JoãocontouqueprocuravaoreinodeBambuluá.–SouoPríncipedosPássaros–respondeuovelho.–Podeserque

Page 124: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

algumdemeussúditossaibalheindicarocaminho.Ovelhotomoudeumamatracaecomeçouagirá-la,réc-réc-réc,e

surgiudoscéusumatamanhanuvemdepássarosqueodiaquasevirounoite.Asavesentrarampelasjanelaseportodososvãosdacasa,ecomeçaramaatacarojovem,julgando-ouminimigo.

Depoisqueovelhoacalmouasaves,fezuminquéritoparasaberqualdelassabiaocaminhoparaoreinodeBambuluá.

Nenhumasabia.–Entãosólherestairamanhãbemcedoperguntarameupaionde

fica–disseovelho.–Seupai?–exclamouJoão,incrédulodequeaquelevelhoainda

pudesseterpai.–EleéoReidosPássarosemoralá,emtallugar–disseoPríncipe

dosPássaros,que,peloandardacarruagem,pareciaquejamaischegariaaserrei.

AcasadoReidosPássarosficavanaencostadeummorro.Otalreieratãovelhoquemaispareciaumaboladepenasencolhidajuntoàlareira.

–ReidosPássaros,precisosaberondeficaoreinodeBambuluá–disseovisitante.

Dentreosdedosrecurvosdovelhopássaroestavaumapitodeprata,queelelevouàboca.Umassovioestridenteescapoudoapito,enovanuvemdeavestapouosoleocéu.Apassaradaquisbotar-seinteira,também,contraoforasteiro,masoReiimpediuomassacre.

–Digamondeficaoreinoqueojovemprocura–ordenouovelho.Infelizmente,ninguémsabia,esórestouaoReidosPássarossugerir

aovisitantequefossefazerumavisitaaoseupai,oImperadordosPássaros.

–Como?–disseojovem,nolimitedaincredulidade.–Asuacasaficaemtallugar–disseoRei.–Eleéimperador,e

imperadoressabemdetudo.Joãosaiuesubiuumacolinaenormeatédeparar-secomuma

casinhabranca.Destavez,ninguémmandou-oentrar,oqueelefezporcontaprópria.Napequenasala,nãohavianadasenãoumacabaçasuspensanumganchoemcimadofogo.Joãoolhouparadentroeviuumpequenopássaro,todoenroladoemramasdealgodão.EraopoderosoImperadordosPássaros.

–SenhorImperador,peloamordetodasasavesdomundo,diga-meondeficaoreinodeBambuluáouvoumorrerdedesgostoeexaustão!

Page 125: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

OImperador,movidopelapiedade,tomoudasramasdoalgodãoumossodeemaeassoprouporentreosfuros.Umruídofinomasestridentecortouosares,efoitudodenovo,obandodepássaros,depoisasbicadasnointruso,atéqueconfessaramnãosaberdenada.

Umurubuvelhoedepenado,noentanto,queficaranumcanto,pareciasaberfinalmentearesposta.

–OreinodeBambuluáficaparaalémdoInferno,masanteséprecisosobrevoaracaldeiradoDiabo.

OImperadordosPássarosordenouaJoãoquedesseumboiinteiroparaourubucomer,poisseriaeleasuamontariaparatransporofogodoInferno.

–Ele?–disseJoão,aoverourubuquasepelado.–Dê-lhedecomereamanhãestarácomoumgavião–disseo

imperador.Ourubucomeuoboiinteiroereadquiriu,comopormágica,todasas

suaspenas.Nomesmoinstante,Joãomontounascostasdaave,epuseram-seacaminhodoreinodaamadaprincesa.

Joãofechouosolhos,etudooqueconheceudoinfernotranspostofoiumcalorenormenotraseiro.Então,quandosentiuumabrisadivinamenterefrescante,reabriuosolhoseviu-senumacampinaverdeeamena.Ourubudeu-lheadeus,eJoãoseguiusozinhoatéavistar,notopodeumamontanha,umpaláciorealmentedeslumbrante.Nocaminhodopalácio,eleparounacasadeumavelhasolícita.

–Façaumpousoaqui,jovemandarilho–disseela.Então,semdizernada,avelhasacouumviolinoestropiadoe

começouatocarumamisturaestridentedevalsaemazurca.Joãopediuparaavelhalhedaroinstrumento.

–Tenhocordasnovas–disseele,poisaprincesalhederaumconjuntoantesdepartir.

Joãotrocouascordasecomeçouatocarelemesmo.Ascordaseramencantadas,elogoavelhacomeçouarequebrar-sefeitodoida.Empoucotempo,todomundoquepassavanaruaentravaepunha-setambémadançarfreneticamente.

Umamensageiratinhasidoenviadaaopalácioparapedircomida.Aochegardevolta,porém,elaatirouotabuleiroparacimaesaiudançandojuntocomosoutros.Enquantoisso,nopalácio,mandaramoutramensageiracommaiscomida,imaginandoqueaprimeirativesseseperdido.Resultado:asegundatambémcaiunadança,etodosnopalácioficaramaindamaisintrigados.

Page 126: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

–Quealaúzasepassaláembaixo?–perguntouarainha,afinal.Apósjuntar-secomassuasdamasdecompanhia,adigníssima

senhorafoiverpessoalmenteoquesepassavaeterminou,elatambém,caindonadança.Logoemseguida,oreifoiveroquehouveracomarainhaenãodeuoutra,caindoeletambémnafesta.

TodosestariamdançandoatéhojeseJoãonãotivessepostoumfimàsuaarte.

–Minhafilhasecasaamanhã–esbravejouorei.–Vocêhádetocarnafestaouentãoterásuacabeçacortada!

QuandoJoãochegouaopalácio,aprincesareconheceuneleimediatamenteoantigobenfeitor.Sempestanejar,elaanunciouaopaiquenãosecasariamaiscomoseunoivo,umoficialenfadonhodebigodesenceradoscomoganchos,mascomoseuprimeiroeverdadeiroamor,otocadorderabeca.

Page 127: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

AMENINADOSBRINCOSDEOURO

Aindahojecirculaporaíestecontosaboroso,quecomeçaassim.Haviaumameninaquegostavadeirbuscaráguanafonte,sempre

comseusbrincosdeouro.Todaadelíciadasuavidaeraver-serefletidanaáguacomaquelesdoispingentesdourados,umemcadaorelha.

Certodia,elaresolveutirá-losumpouco,parabanhar-senaágua,poistinhamuitomedodeperdê-losnacorrenteza.Aosair,porém,esqueceu-sederecolocá-los,eelesficaramlánamargem.

Aochegaremcasaeverqueesqueceraosbrincosamados,elavoltoucorrendoàfonte.Aoretornarlá,porém,deparou-secomumvelhoasqueroso.

–Oquequer,fedelha?–rosnouovelho.–Osenhornãoviuporaíunsbrincosdourados?–Não,masestouvendoumabelameninadecabelosdourados!Apesardevelho,eleaindatinhaforçaobastanteparafazer

ruindadee,comumarapidezespantosa,tomouameninaeenfiou-anumsaco.

–Agora,vocêvaificarquietinhaaídentrodosurrãoatéeumandarvocêcantar!–disseovelho,levando-anascostas,aomesmotempoemquelheensinavaumacantigaqueeladeveriarepetirsemprequeovelhofossefazerseuspeditórios.

Eledizia:“Canta,canta,meusurrão,senãotemetooporretão!”,enquantoelatinhaderesponder:“Metidanosurrãodecouro,neleheidesofrer,porcausadeunsbrincosdeouro,quenafonteacheideperder!”.

Osdoisandarampracimaeprabaixoodiainteiro,eacadanovopedidodovelhoumabordoadanosacofaziaapobremeninarepetirasualadainha:

–Metidanosurrãodecouro,neleheidesofrer,porcausadeunsbrincosdeouro,quenafonteacheideperder!

Certodia,asandançasdovelholevaram-noàcasadamãedameninadosbrincosdeouro.Aoreconheceravozdafilha,amãe,aflitíssima,convidouovelhoparapassaranoitenacasa.

–Osenhorestámuitocansado.Coma,bebaedepoisponha-seadescansar!

Ovelhoencantou-secomtantacaridade,especialmentecomaquelenegóciodebeber.Depoisdeentornarquaseumapipadevinho,eleseatirounumaesteiraecomeçouaroncarfeitoumbugio.

Page 128: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

Entãoamãe,expedita,tratoudeabrirlogoosurrãoeretirarafilha,quasemorta,doseuinterior.

–Filhinhaamada!–disseamãe,enternecida,aoverameninaaindacomosbrincosdeouroqueelalhederanoseuaniversário.

Enquantoovelhodormia,amãeencheuosurrãodeexcrementosdosporcosegalinhasdacasa,edeixou-opartirnodiaseguintecomoselevasseaindanosurrãoapobremenina.

–Adeus,masvoltarei,poisaquipasseimuitobem!–disseovelho.Depoisdeandarumquartodehora,afomevoltouaroerastripas

dovelho.–Prepare-se,menina,poiséhoradecantar!Aochegaraoutracasa,bateupalmaseumasenhoraapareceu.Como

sempreeledisseaosurrão:–Canta,canta,meusurrão,senãotemetooporretão!Sóquedestavezosurrãoficoumudo.–Querapanhar,fedelha?–disseele,repetindoorefrão:–Canta,

canta,meusurrão,senãotemetooporretão!Nadaoutravez.Então,tomandooporrete,ovelhoaplicouumapauladacomtalforça

nosurrãoqueeleexplodiu,enchendo-odetiticadeporcoedegalinha,dospésàcabeça.

Ovelho,depoisdisso,foipresoeenforcado,paraaprenderanuncamaisandarporaíraptandomeninascomousembrincosdeouro.

Page 129: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

OSQUATROLADRÕES

SegundoCâmaraCascudo,ocontoquevamosleragoraétãoantigo“quefaziariraoscruzados”.“Osquatroladrões”,defato,éumdoscontosmaisdisseminadospelomundo–suaprimeiraapariçãosefeznaÍndia,namaisremotaAntiguidade,atéencontrarnoBrasilasuamodernaversãotropical.

Diz-se,pois,quequatroladrõesestavamdescansandocertodiadebaixodeumaárvorequandovirampassarumsujeitogordolevandoconsigoumboienormeerechonchudo.

–Vejam,amigos!–disseoLadrãoUm.–Alitemoscarneparaoanotodo!

–Psiu!Vamospassarlogoapernanobobo–disseoLadrãoTrês.OLadrãoQuatro,quenãoerademuitaconversa,simplesmente

seguiuosdemais.JáestavamquasechegandoquandooLadrãoUmteveumaideia

melhor.–Mesmoestandoemquatro,estegorduchoaindapodenoscriar

problemas.Vamosnossepararefazeroseguinte.Eleexplicoudireitinhooplano,elogoosquatroestavamespalhados

pelamata.OproprietáriocontinuouseucaminhocomoboiatéoLadrãoUmlhe

aparecerpelafrente.–Bomdia,senhorcachorreiro!–disseele,sorridente.Ogorduchoapertouosolhosparaverquemeraoautordabobagem.–Cachorreiro,dissevocê?Ondehácachorroporaqui?OLadrãoUmfezumardepasmoeretrucou:–Ora,eestecãozinhofelpudoaqui,oqueé?–epassavaamãono

cachaçodotouro,enquantoassoviava.Ogordo,meioassustado,deuascostasesaiuligeiro,puxandooboi

pelacorda.–Sódáloucoporaqui!AndoumaisalgunspassosesedeparoucomoLadrãoDois.–Lindamanhãparapassearcomofila!–disseeste.–Estámaluco?Quefila?–exclamouogorducho.–Ocãofila,aí.Meusparabéns,devesercaçador,edosbons!–Seeleéumfila,vocêéumvira-lata!–exclamouogorducho,

levandooboi.

Page 130: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

AndoumaisumpoucoatétoparcomoLadrãoTrês.–Ora,viva–disseeste.–Jávaicedopracaça?–Ah,meuDeus!Quecaça?Nãovê,então,quelevoumboi?OLadrãoTrêscaiunagargalhada.–Ah,ah!Boa,esta!Masqueécão,é!Ecãodosbons!OLadrãoTrêscomeçouaalisarasfuçaschatasdoboi.–Estefocinhopontudoaquinãoengana!Devefarejarumacutiaa

quilômetrosdedistância!–Adeus!–disseogorducho,levandooboidearrasto.Noseuíntimo,porém,cresciacadavezmaisadúvida.–Seráboimesmo?–disseele,parando,acertaaltura,paraconferir.Elehaviacompradoobichonafeira,masagoracomeçavaa

desconfiardealgumlogromuitobemengendrado.Nestepontooboimugiualto,paradesfazeradúvida,eo

proprietárioacalmou-se.–GraçasaDeus!Éboi,mesmo!Equemugido!Seguiuadiante,certodequeumaepidemiadeloucuragrassavapor

perto.Derepente,porém,surgiu-lhepelafrenteoLadrãoQuatro.–Ah,aíestá!–disseele,asorrir.–Pelolatidobemviqueeraum

senhorperdigueiro!–Queloucura!–exclamouogordo.–Ondehácachorroalgumpor

aqui?Nãovê,então,queéumboi,estrupício?Oboiabanouacauda,nervoso,eoLadrãoQuatroarreganhouainda

maisosdentes.–Ah,ah!Abanaoraboquenemcachorromateiro!Evemmedizer

queéboi!Aestaalturaoboi,apavorado,pressentindoqueiavirarumassado

antesdotempo,começouadeitarpelabocaumaespumabranca.–Oh,masquepena!–disseoLadrãoQuatro.–Parecequeoseucão

estáhidrófobo!Depoisdesta,ogorduchonãoquissaberdemaisnada:atiroua

cordapracimaesaiucorrendomataaforaantesqueobuldogueraivosooestraçalhasse.

Assimqueogorduchosumiu,osquatroladrõessereuniramepassaramafacanoboi.

Aoqueconsta,estãocarneandoobichoatéhoje.

Page 131: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

AVENTURASDEPEDROMALAZARTEI

PedroMalazarteéumpersonagemladino.EleemigroudaEspanhaedePortugalparaoBrasileacabouseaclimatandomuitobemporaqui.ÉoreidaespertezaecontinuapopularíssimoportodoointeriordoBrasil.

Certafeita,Pedrofoitrabalharemumafazenda.Opatrãogostavadearrancar,literalmente,ocourodosseusempregados.(Pedrotinhaumirmãoquevoltaraparacasasemumatiradecouronascostas.)

AssimqueMalazartechegouàfazenda,oproprietáriolhedeuumacadelinha.

–Jáviu,hein!Váparaaplantaçãoesóvolteparaalmoçarquandoacadelinhaquiser!

Jáeramduasdatardeeacadelinha,esparramadanasombra,nãofaziamençãodesemexer,eabarrigadeMalazarteroncandodefome.Entãoeleassobioueapontouparaacasa.Acadelinhaabriuumbocejodeengoliromundo.Depois,mastigouoartrêsouquatrovezeserecaiunamodorra.

–Jáviatapeação!–dissePedro,injuriado.Tomandoumpedaçodepau,eleaplicouumalambadadaquelasnos

quartosdacadela.Comoumraio,abichasaiuganindoecoxeandonadireçãodacasa.

PedroMalazarteapareceu,emseguida,navarandadoproprietário.–Tambémquerocomer–disseele,sisudo.Oproprietário,refesteladoàmesa,torceuonarizedisseparaPedro

iràcozinha“seaviarcomoquehouvesse”.Malazarteraspouosrestosdaspanelasevoltouàplantaçãocoma

cadela.Alipelasoitodanoite,quandoatéosoljádesmaiaradeinsolação,Pedroviuacadeladeitadadebarrigaparacima,semdaramenormostradequererretornar.

Entãoeleaaçoitoucomopau,outravez,eacadelavoltoudeolhosarregaladosparacasa.

Antesdedeitar,Pedrofoicomunicadodatarefadodiaseguinte.–Jáviu,hein!Amanhãvailimpararoçademandioca!Malazartepagouospecados,maslimpouinteiraaroçamaldita.–Estálimpa,meupatrão–disseele.Ofazendeirofezcarafeiaelatiuoutraordem,queparaissoeleera

Page 132: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

bom.–Jáviu,hein!Amanhãvaitrazerocarroçãocarregadodepausem

nó!Malazartecortoutodoobananal,queépausemnó,eentregoutudo.Então,nodiaseguinte,opatrãomandoumeterocarrodeboispara

dentrodeumcasebrezinho.–Põetudoládentro,masvêlá,hein,sempassarpelaporta!Opatrãoeraprecavido.Antesdeirdeitartratoudepassarachave

naportadocasebre,sóparasegarantir.Depoisescondeumuitobemachave.

Aochegaraocasebreeverqueaportaestavasemjeitodeabrir,Pedrotomoudeummachadoefoipracimadacarroçaedosboisepicoutudoempedaços.Depoisfoiatéajanelaeatirouparteporparteparadentrodocasebre.

–Estátudoládentro,meupatrão–disseeleaofazendeiro.–Entãoprepare-sequeamanhã,antesdosol,vocêvaiàfeiravender

porco.Nesteponto,odiaboroncounastripasdeMalazarte,eeledecidiu

queerahoradeaprontar,também,pracimadofazendeiro.Aochegaràfeira,cortouorabodosporcosantesdevendê-los.Depois,enterrou-os,àsescondidas,numlamaçal,napropriedadedofazendeiro,efoitercomele.

–Acuda,senhor,queaporcadaestáatoladanobarro!Ofazendeiro,apavorado,foicorrendosalvaroprejuízo,enquanto

Malazartetomavaemprestadodinheirodacaseiraparacompraraspásparadesenterrarabichada.

–Dê-melogo,foiopatrãoquempediu!–disseele.Opatrãoarrancoudalamasóorabodosporcos,eficoucertodeque

orestoaterracomera.Ficoudecamatrêsdias,consoladounicamentecomofatodequeodesgosto,tirando-lheoapetite,lhediminuíatambémoprejuízo.

Malazarteaprontououtrasparaopatrão,eacadadiaeraumnovoprejuízo.Então,opatrãodecidiuqueomelhoreraliquidardeumavezcomopatife.

–Umladrãoderêsandaporaí–disseeleaMalazarte.–Jáviu,hein!Amanhãvoumontarguardanocurral.Àmeia-noiteemponto,venhamesubstituir!

Nahoraaprazada,Pedro,farejandoatocaia,correuatéaesposado

Page 133: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

fazendeiro.–Rápido,seumaridoaesperanocurral.Leveestebacamarte,pois

háladrãoporaí.Avelhatomouobacamarteesefoiaocurral.Aoseaproximardo

cercado,apanhouumatalcargadechumboevidromoídopelacaraquedesaboumortaporterra.

Nesteinstante,Malazartesurgiu,acusadoramente.–Aqui!Acudamtodos,queopatrãomatouaesposa!Todagentecorreuparaveradesgraça.Oproprietário,sentindoa

cordadaleinopescoço,ofereceuumalforjecheiodedinheiroparaMalazartesumirenuncamaisfalarnadaarespeito.

EfoiassimquePedroMalazartevoltouricoparacasa,ecomtodaapelenocorpo.

Page 134: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

AVENTURASDEPEDROMALAZARTEII

Malazarteandouàsvoltascomumurubuadivinho.Comotudoissoaconteceu,saberemosagora.

Andandopelaroça,PedroMalazartetopou,umdia,comumurubutodomachucado.Tinhaumaasapartida,umapernaquebrada,easpenasnocorpocontavamumasim,outranão.

–Paraalgoaindahádeservir–disseele,enfiandoobichomoribundoparadentrodeumsaco.

Pedroseguiuviagematéchegar,noitealta,aumacasamuitobonita.–Ô,decasa,temcomidaparaumviajante?–disseele,batendo

palmas.Umamulherderostotodopintadosurgiunovãodeumapersiana.–Nãotemcomidanenhuma,dêofora!–ralhouela.Malazartesubiunumaárvoreeviuamulherescondendonum

armáriováriastravessascheiasdecomida,alémdequatrobotijasdeumvinhogostosodefazerbico.

Malazartedesceuevoltouàcarga,batendopalmas.–Senãotemcomida,dê-meabrigo.–Eia,fora!Meumaridonãoestáemcasa!–disseela,azeda.–Não

heidereceberpelaportadafrenteumhomemestranho,comoumadesavergonhada!

Daliapouco,chegououtrohomem,todoembuçado.Estenãoeraestranhoefoirecebidopelaportadosfundos.

Ojantarianoaugequandoomarido,chegandoderepente,desceudocavaloeentrounacasa.Assimqueaportadafrentesefechou,adosfundosseabriueovisitantediscretosumiu.

Malazarteachouqueeraahoracertaparavoltaracarga.–Ó,meusenhor,dá-mecomida!Destavez,elefoilevadocondignamenteatéasaladejantar.A

comidaqueveio,porém,eraumalavagemdeporcopertodaquelaqueelevirapelajanela.Então,aoselembrardourubu,elecomeçouacochicharalgocomele.

–Comquemoamigoconversa?–disseodonodacasa,revirandonopratoomingaufedorento.

–Oh,nãoénada,não–disseMalazarte,indiferente.–Ésóumurubu

Page 135: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

adivinho.–Urubuadivinho?Estaéforte!Nuncavital!Faça-oadivinharalgo!EntãoPedrocochichoucomobichomoribundo,queseremexeu

dentrodosaco,lançandoumgrasnidolamentável.–Eledizquedentrodaquelearmáriohácomidaebebidadedeuses.–Mulher,abrajáessearmário!–ordenouodonodacasa.Torcendoabocadetodasasformas,aaltíssimadamaescancarouos

batenteseretirouacomidaapetitosacomaqualelaeovisitantediscretohaviamserefesteladoumpoucoantes.

–Oraviva,esteurubuérealmenteprodigioso!–disseodonodacasa.

Malazartecomeuebebeudobomedomelhore,antesdeseretirar,aindavendeuourubuprofetaaodonodacasaporumapequenafortuna.

Antesdepartir,ourubudeuumsilvo,eodonodacasaquissaberoqueera.

–Eleacaboudeprofetizaracoisamaisimportantedavidadele.Malazartepicouamulae,logodepois,ourubudeuocouroàsvaras,

ouseja,morreu.

Page 136: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

AVENTURASDEPEDROMALAZARTEIII

MaisduastrapaçasfamosasdoMalazarte.Naprimeira,vinhaeleporumapicadanamataquandoviuumcocô

daquelesdepositadonochão.Homematentoaossinaisdouniverso,decidiuquealihaviaumparaele,bemevidente.

Apóstirarochapéu,colocou-oemcimadonegócio,comoquemprendealgomuitovalioso,eassimesteveatéveravançarpelapicadaoprimeirobobododia.

Osujeito,bemvestidoecomumarsimplório,aproximou-se,curioso.–Oquetemaídebaixodochapéu?Malazarteenterroucommaisforçaochapéu,comoquemtenta

impedirafugadealgo.–AcabeidecapturaropássaromaisraroevaliosodetodooBrasil!Osujeitosentiuáguanaboca.–Nãodiga!Deixaeuver!–Nãotemver,nemmeiover!Querqueobichofuja?–Valemuito,é?–PoisnãodissequeéopássaromaisrarodoBrasil?–Entãoeuocompro,agora,devocê!Quantoquer?Malazartemirounaluaepediuumapequenafortuna.–Fechado,passeaavepracá!Malazarterecebeuodinheiroedepoisdisse:–Espereaqui.Voucomprarumagaiolaparaquevocêpossalevaro

pássarocomsegurança.Ohomemficouencantado.–Oh,émuitagentileza!Euficoaguardando!Malazarteapertoubemoscadarçosdasbotinasedeuasdevila-

diogo,comosediziapraládeantigamente,queéomesmoquedizerquesemandouparanuncamaisaparecer.

Ootárioficouumtempãodecócorassobosol,pressionandoochapéucontraochão,mas,aoverqueooutronãoretornavadejeitonenhum,decidiulevaraaveparacasanaprópriamão.

Erguendomuitodeleveaabadochapéu,eleintroduziuamãoatétocaremalgo.

–Ah,maganão,tenho-tepreso!–disseele,cerrandooscincodedosaoredordacoisa.

Entãosentiu,aterrorizado,queacoisaseesmigalharatoda,feito

Page 137: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

sabão.–Mãedascorujas,esmagueiobichinho!Esóaoretirarochapéufoiqueeleviuococôfedidoqueagarrara.

***

AsegundatrapaçadoMalazartefoiaseguinte.Estavaeleviajandopelointeriorquandodecidiupararnocaminho

parasaborearumasopadeguisadinhocombatata,coisamuitodasuapredileção.

Depoisdepegarsuavelhapanelinha,acendeuumfogoemandoubrasanafervura.Nãodemoroumuitoeasopacomeçouaborbulharealargarumafumacinhabrancadedargosto.

Nesteinstante,aproximou-seumbandodematutosnumacarroça.Ligeirinho,Malazartedesmanchouafogueiraaténãorestarqualquervestígiodefogo.Apanela,aindafervente,ficousobreopórasodochão.

Quandoosmatutospassarameviramaquelapanelafervendosemfogoalgumporbaixo,deixaramcairosqueixosdeestupor.

–Ó,cumpadre,quepanelaheregeéessaquecosesemfogo?Malazartecontinuoumexendocomacolher,espalhandoafumaça

olorosa.–Éumapanelamoderna,importadapelomar–disse,comdesdém.–Ecomodiachocosesemfogo?–Éometal.Largoucoisadentro,eleferveporsi.Osmatutosficaramtãoabismadosqueresolveramfazerumaoferta

pelapanela.–Ematutolátemfundosparapagarumbrincodesses?–exclamouo

Malazarte.Osmatutosretiraramdosbolsososseuslençosdequadradose

começaramapalmearosníqueis,enquantoMalazartebufavadedesprezo.–Éescusadocontar,quenãopaganemacolher!Entãoumdeles,retirandodosocultosdacarroçaumacanastravelha

ecarunchada,extraiudelaumembrulhocheiodenotasverdesegraúdas.–Vaientregarosguardadostodos?–disseumdosmatutos,coçando

ococuruto.–Ósevou!–disseodacanastra.–Umapaneladessasvaleouro,

cumpadre!Omatutopegouosmaçosdenotasemaisosníqueisdosoutrose

despejoutudoaospésdeMalazarte.

Page 138: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

–Aítemdinheiroquechegue?Malazartedeuumaolhadadeesguelhaedepoissuspirou,comoum

mártirdomundo.–Vá,édevocês,massódepoisdeeuterminaraminhasopa.Quandonãotinhamaisumrestinhodecomidanofundodapanela,

foiqueeleentregouaosmatutosasuapreciosidade.–Adeus,efaçammuitobomproveito!Malazartecaiunaestradaesumiu.Quantoaosmatutos,estariam

comendocomidacruaatéhojesenãotivessemseresignado,depoisdeinfinitastentativas,ameterumasbrasinhasdebaixodapanela.

Page 139: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

OCOELHOEATARTARUGA

Umdosgênerosmaisapreciadosdaliteraturaoralmundialéodadisputadevelocidadeentrebichosougente.Pode-sedizerqueacoisavemdesdeascavernas,nãohavendopartealgumadomundoondenãosecontealgumavariantedafábulaque,tambémnoBrasil,conheceumaisdeumaversão.

Diz-se,pois,queocoelho,semtermaiscoisaparafazer,decidiudesafiaralguémparaumacorrida.Comodetestavaperder,escolheuadedooseuadversário:atartaruga.

Parasuasurpresa,noentanto,arivalaceitouonegócionahora.–Quandoquiser–disseela,serena.–Euvoupelatrilha,evocêpelo

mato.Aoouvirisso,ocoelhoarreganhouosdentõesderaivae

desconfiança.–Ah,quermoleza,é?Poissóhaverácorridaseeuforpelatrilha,e

vocêpelomato!–Poisseja–respondeuatartaruga,aparentandogrande

contrariedade.Ocoelhosorriudiantedasuaprimeiravitória.Mas,porviadas

dúvidas,decidiucomerumaporçãoextradecenourasantesdacompetição.

Namanhãseguinte,quandochegouaolocaldoencontro,atartarugajáoaguardava.

–Penseiquenãovinhamais–disseela,dandoumbocejo.Ocoelho,então,foipostar-senatrilhadechãobatido,enquantoa

tartarugameteu-senomato.–Já!–gritouodesafiante.Ocoelhocorreucomoumraiopelatrilha,levantandoumpóde

furacão.Quandojáestavaamaisdametadedopercurso,olhouparaoladoegritouparadentrodamata:

–Eaí,moleirona,ondeestá?Umavozdetartaruga,muitoadiantedele,respondeu:–Seapresse,dentuço!Maisumpoucoecruzoalinha!Brancodeterror,ocoelhoapertouopassoecorreucomoumraio.

Quandofaltavamalgunsmetros,viuumchacoalhardearbustos,muito

Page 140: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

adiante,dooutroladodamata.–Andoucomendocenourademais,gorducho!–disse,outravez,a

mesmavozfanhosa.Loucodepânico,ocoelhocriouasasnaspatasatéalcançaralinhade

chegada.Quandoseaproximava,porém,enxergouovultodatartaruga,ládooutrolado,encostadanomarcoedepernatrançada.

Derrotadoehumilhado,sórestouaocoelhoabandonaraflorestaparanuncamaisaparecer.

Quandoocoelhofanfarrãohaviadesaparecido,atartarugaergueuavoz,paratrás,esaudouasseteoutrasamigasque,dispostasaolongodopercurso,haviamfeitoasvezesdelaparaorival.

Eaquiestácomoatartarugavenceuocoelhosemsairdolugar.

Page 141: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

OTOUROEOHOMEM

Estecontopossuiváriasversõesmundoafora.Emvezdotouro,comonaversãoqueagoraleremos,aparece,dependendodolugar,olobo,oleopardo,otigre,oleãoouqualqueroutroanimalcélebrepelasuaforça.

Diz-se,então,que,certafeita,otouro,metidonasprofundezasdafloresta,sóouviafalardohomemedesuasproezas.Comonãooconhecia,decidiu,umdia,tiraraprovadaforçadeambos.

Depoisdepercorrerquilômetrosdentrodamata,ganhouaestrada,afinal.

–Muitobem,agora,certamente,havereidedeparar-mecomumhomem!–disseotouro,deventasarreganhadas.

Andouumpoucopelaestradaatéavistarumserbípedeetodoencurvado.

–Este,certamente,nãoéumhomem–disseotouro,avistando,naverdade,umpobrevelho.

Mas,porviadasdúvidas,eledecidiuperguntar:–Évocê,porventura,umhomem?Ovelhocustouaergueracabeçaerespondeu,batendoasgengivas:–Jáfuiumhomem,mashámuitodeixeideser!Otouro,cheiodedesprezopeloex-homem,insistiu:–Então,diga-meondepossoencontrarumhomem!–Sigaadiante,elesestãoportodaparte–disseovelho,

desencantado.Otouroempertigou-seeseguiuadianteatéencontrarumamulher

feiaeazeda.–Certamentequevocênãoéobichohomem!–disseotouro,com

ironia.–Sósevocêforavaca–disseamulher,quenãoandavaparagraças.Otourofuzilou-acomumolharirritado.–Digalogoondeencontroobichohomem!–Sigaadiante,chifrudo,evaidardefocinhocomumadezenadeles!Maisadiante,otourodeparou-secomummolecote.–Évocêobichohomem?–disse,logodecara,otouro.–Aindanão,massereiembreve!–disseomoleque,estufandoo

peito.–Acontecequeeunãotenhotempoparaesperar–respondeuo

touro,dandoadeus.

Page 142: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

Quandootourojácomeçavaaacharqueaquelahistóriadebichohomemnãopassavadeumainvenção,apareceu,finalmente,nofimdaestrada,umbichohomeminteiroeacabado.

Algonoíntimodotourolhedissequeencontraraoseurival.Depoisdefirmar-sebemsobreaspernaseprepararoschifresparaumaboamarrada,estavaprontoparaoconfronto.

–Muitobem,fanfarrão!Évocêobichohomem?–bufouele.Ohomem,queestavacomumbacamartenamão,olhouparaotouro

econfirmou:–Decertoquesouobichohomem.Porquequersaber?–Porquequeroquemeprove,agora,queéomaisfortedosanimais!Aoescutarisso,ohomemempinouobacamarteedespejouuma

cargadechumbonacaradotouro,quesaiucorrendodevoltaparaamatacomquantaspernastinha.

Algumtemposepassouatéqueotourosecurassedasferidas.Então,recebeuavisitadeumacomissãodeanimaisparasaberquecoisaacharadotalbichohomem.

Apesardetantotempopassado,otouronãopodiaesconderoassombroquealembrançadoencontroaindalhecausava.

–Defato,obichohomeméomaisforteetemíveldosanimais!–gemeuele.

Depois,mostrandoasferidasnacara,acrescentou:–Poissesócomumespirromefeztodoesteestrago...!

Page 143: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

ODECRETODAPAZ

Diz-se,pois,quenotempoemqueosanimaisaindafalavam,todosbrigavamesecomiamaindamaisdoquehoje,numadisputaperpétua.

Então,certodia,ogalo,doaltodoseupoleiro,avistouaraposaaproximar-se.Elejápreparava-separadarseugritodealertaaogalinheiroquandoaraposa,abanandoacauda,gritou:

–Nãocarecemaisdealerta,compadregalo!Oleão,reidaselva,acaboudepromulgarumdecretoestabelecendoapazuniversalentreosbichos!

Ogalonãoacreditounumapalavraecontinuoulimpandoagargantaparaabriroberreiro.

–Vamos,compadre,desçadaíevenhalercomseusprópriosolhos!–insistiuaraposa.–Tragocomigoumacópiadomaravilhosodecreto!

Masaúltimacoisaqueogalopensavaemfazereradescerparaleroquequerquefosseaoladodamaiordevoradoradegalináceos.

–Vamos,compadre,nãosejamedroso!Acha,então,queeuserialoucaapontodedesrespeitarumdecretodoreidosanimais?

Nestemomento,ocãodeguardadogalinheiro,ummastimdotamanhodeumaonça,surgiuninguémsabedeonde,dedentesarreganhados,numacorridavelozparacimadaraposa.Umacachoeiradesalivasederramavapelosqueixosdocãozarrão,oqueobrigouaraposaapassarsebonasquatropatas.

Aoveraraposafugir,ogalo,doaltodopoleiro,começouentãoagritarearir:

–Nãofuja,comadreraposa!Mostreaocãoodecreto!Efoiassimquefurou-seologrodaraposa.

Page 144: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

OADIVINHO

Havia,pois,umsujeitoque,cansadodepassarnecessidade,decidiuumdiafazer-seadivinho.Depoisdeseapresentarnopaláciodoreieprovarsuashabilidadesdivinatórias,conseguiutornar-sehóspedereal.Apartirdaí,osabichãopassoualevarumavidaboaecheiaderegalos.

Certodia,porém,oreidecidiupôràprovaosdotesfabulososdoseuadivinho.

–Grandeadivinho,precisodosseusserviços!Algummiserávelfurtouaminhacoroareal!

Oadivinhoergueu-sedoseuleitodesedase,depoisdeenvergaroseumantoestreladoecolocarsobreacabeçaochapéubicudodemago,mandoureunirnosalãorealtodososcriadosdopalácio.

Aochegaremlá,depararam-setodoscomumapequenacriaturacolocadasobreumpoleiro.Elaestavaenvoltanumpanotambémestrelado.

–Aquiestáogalocarijódesuamajestade–anunciouoadivinho,numtomcavernoso.–Doravante,cadaumdevósdeveráintroduziramãopordebaixodomantoeacariciarascostasdogalo.Aquelequeofizercantarseráoculpadodofurtodacoroa.

Umaum,oscriadosforamalisarogalo.Cadavezqueumdelesintroduziaamãopordebaixodomanto,oadivinhogritavaalgumaspalavrasextravagantescomoestas:

–Carijóreal,apontaoladrãoassimqueolarápiometer-lheamão!Ficaramnissoodiainteiro,atéque,encerradasasalisações,o

adivinhomandoutodososcriadosestenderemamãocomaqualhaviamalisadoocarijó.

Detodososcriados,apenasumnãotinhaamãosujadefuligem.–Muitobem,éesteoladrão–disseomagoaorei,apontandoo

sujeitodasmãoslimpas.Umoh!deassombrosubiuatéaabóbadadosalãoedesceucomoum

eco.–Comofezparadescobrir?–disseorei,curiosíssimo.–Muitosimples,alteza.Ascostasdocarijóestavambesuntadasde

fuligem.Todososqueaalisaramficaramcomasmãossujas,maseste,temendoserdenunciado,apenasfingiualisá-la.

Efoiassimque,pelaprimeiraveznaquelereino,umladrãoteveacabeçacortadaporterasmãoslimpas.

Page 145: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

OCASAMENTODAMÃE-D’ÁGUA

Havia,pois,umpescadorquedepescador,ultimamente,sótinhaonome,poisnãoconseguialevarparacasapeixealgum.Então,certodia,obstinando-seemderrotaramarédeazar,eledecidiupermanecerpescandonoiteadentro,atéarrancarqualquercoisaquefossedaságuas.

–Daquisósaiocomumpeixãodeencherosolhos!–anunciouele,lançandooanzol.

Osolsefoi,anoitechegou,enadadepeixe,atéque,derepente,lápelastantasdamadrugada,umclarãosefeznomareumacantoriademulhersubiuharmoniosadaságuas.

Aquilotinhatodojeitodevisagem,eopescadorseencolheutodo,dandoquaseparaseesconderatrásdosamburávazio.Masacantorianãocessava,atéqueumacriaturaesplendorosamentebelaemergiudaságuasefoiacomodar-senumadaspedras,umpoucodepoisdarebentação.

Bem,seopescadorqueriaalgodeencherosolhos,realmenteconseguiuoquequeria,poisacriaturaerarealmentedeslumbrante.Dacabeçaàcinturaelaeramulher,edacinturaparabaixoerapeixe.

Opescador,quenãotinhamulhernempeixe,sentiu-seduplamenterecompensado.

–Deusémesmomaravilhoso!–disseele,depoisdeblasfemaranoitetoda.

Derepente,amulher-peixemergulhoueopescadorentrouempânico.

–Espere,volte...!–gritouele.Fez-seosilêncio,atéqueacantoriarecomeçou,destavezbem

próxima,apontodeopescadorficarmeiohipnotizado.Eleentrounomar,ficandocomaáguapelacintura,atéqueamulher-peixeapareceubemnasuafrente.Comoscabelosmolhadoseotorsocompletamentenu,eraumavisãodesonhooudepesadelodeleitoso,oqueacharemmelhor.

–Quemévocê?–balbuciouele.–SouaMãe-d’Água,evouensiná-loapescar–disseasereia

tupiniquim.Opescadorapanhoutantopeixenaquelanoitequeosamburá

vergoudepeso.

***

Page 146: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

Apartirdaí,começouumromanceentreopescadoreaMãe-d’Água,queculminounumpedidodecasamento.

–Sim,euquero!–disseela,donzelaingênuaesedentadosprazeresdomatrimônio.

–Vocêirávivercomigo?–perguntouopescador.–Estábem,vouviveremterracomvocê–disseela,cedendo.–Mas

imponhoumacondição.Opescadorfranziuatesta,poiseraumtipotruculento.–Sóvivereicomvocêenquantonãodesfizerdaminhagentedomar.Opescadorsuspiroualiviado!–Éclaro,jamaisfalareimaldasuagente!–disseele,esquecendo-se

logodoqueprometera.Apartirdessedia,osdoisforamvivernacabanadopescador.

QuandoaMãe-d’Águachegouao“ninhodeamor”,entretanto,tevedefazerumesforçoenormeparaesconderasuadecepção.

“Quepobreza!”,pensouela,aoadentrarocasebrededuaspeças.Ummormaçosufocantepairavaalidentro.Nãohaviacamanemrede

paradeitar,sóumaesteiraatiradanochãobatido.Amesa,porsuavez,nadamaiseradoqueumatábuacompridadeitadasobreduaspilhasdetijolos.Doislatõesvaziosdeóleodecozinha,postosdecadaladodamesa,completavamamobília.

Masoquerealmenteaincomodaraforaamudançanocaráterdoesposo.Desdeachegada,elaperceberaqueosmodosdogalantepescadorhaviamsealteradoradicalmente.

–Deite-seaí!Temaesteirainteirinhadandosopaali.Iaraaproximou-secautelosamentedaesteiratodadesfiada.Quando

estavaaumpassodela,porém,retrocedeuinstintivamente:umalufadadeurinasecaexplodiranassuasnarinasrosadascomoumabofetada.

–Águaesabãotêmporaí,peixinha.Tratedelimparacasa.AMãe-d’Águavirou-separaoesposo,maselejásaíra.Efoiassim

quecomeçouoseumartírioterrestre.

***

Otempopassou,eomaridodasereiafoificandocadavezmaisgrosseiro.

Jánosegundodia,otratamentoafetuosomudou.Odiainteiroeraumtalde“façaisso!”ou“façaaquilo!”quedavaengulhosnapobremoça.

Diaapósdia,aMãe-d’Água,obrigadaavivernaquelamalocajunto

Page 147: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

comumhomemtãogrosseiro,foiperdendotodooencantopelocasamento.–Então,éistoviveremterra?–diziadesiparasi.–Oqueestáreclamando,agora?–perguntouomarido.Eladesvencilhou-se,enojada,maseleagarrou-abrutalmente.–Escuteaqui!Comigonãotemchoradeira–disseele.“Ondeestáaquelepescadoringênuoeadorável?”,pensouela.Então,eladecidiuque,quemsabetornandoomaridorico,pudesse

torná-lonovamentegentil.Graçasaosseusdonsmágicos,asbênçãoscomeçaramachoversobreocasal,elogoelesestavammorandonumpalácioàbeira-mar.Penaqueelativessedelimparsozinhatodosostrezentosaposentos.

–Nãovoupagarcriadaalgumatendoumamulheremcasa!–disseopescador,commodosaindapioresdoqueosdotempodapenúria.

Entãoeladesesperou-sedetudoe,apartirdaí,nãofezmaisoutracoisanavidasenãopostar-se,diaenoite,nojanelãodopalácioquedavaparaomareentoarseuscânticosaquáticosdesaudade.

Infelizmente,assuasáriasdelicadasepungentessóconseguiamirritaraindamaisomarido.

Umdia,finalmente,eladecidiuvoltarparacasa,custasseoquecustasse.

***

AMãe-d’Águasofreumuitonasmãosdomaridoaocomunicaroseudesejo,mas,perdendotodoomedo,resolveuenfrentá-lo.

–Nãosuportomaisestavidaemterra!Querovoltarparajuntodosmeus!

–Oquequerjuntodospeixesmalditos?Nesteinstante,umalívioabençoadodesceusobreaMãe-d’Água.Ela

estavafinalmenteliberta,poisomiserávelacabarademaldizerosseusparentesdomar!

Derepente,océuficounegroeumaondamedonhacomeçouaformar-senalinhadohorizonte.Opescadorarregalouosolhosaoveramassad’águaavançarnadireçãodopalácioe,abandonandoaesposa,correucomoumalucinadoparaomorromaisalto.

Aságuasinvadiramtudo,cobrindoopaláciodouradoatéotopo,equandorefluíramparadentrodomararrastaramconsigoajovemsereiaeopaláciointeiro,atéasuaúltimapedra.

EfoiassimqueaMãe-d’Águavoltouamorarnosseusadorados

Page 148: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

domínios,enquantoopescadorvoltouaserumpobre-diaboazaradoesolitário.Nuncamaisconseguiutirarcoisaalgumadomar,nemmesmoastatuírasdaareia,quelheescorriamágeispelosdedos,semjamaisdeixarem-seagarrar.

Page 149: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

OSTRÊSGIGANTESNEGROS

Alémdeterdeixadoinfluênciamarcantenoscultosreligiososbrasileiros,osafricanosnoslegaramtambémalgumaslendasdeliciosamentefantásticas,talcomoestadostrêsgigantesnegros.

Havia,certafeita,porestessertões,umvelhocomtrêsfilhas.Umdia,asjovensseencheramdeviveralieresolveramdarumlustronomundo.Apóspercorreremmeiosertão,foramdarnumlugarermoedesconhecido;exaustas,entraramnumcasebreabandonadoealificaramparacurarasbolhasdospés.

Nestemeio-tempo,chegaramtambémaolugartrêsgigantesferozes,osdonosdatapera.Umdelestinhatrêsolhos,ooutro,dois,eoterceirotinhaapenasumolho.Aoperceberemquehaviagentenocasebre,quiseramlogosaberquemeramasintrusas.

–Quemestáaí?–disseoGiganteTrês.Aoverorostodogigante,asjovensmodularamtrêsgritosperfeitos

dehisterismo.Osgigantes,queestavamabsolutamentecalmos,disseramparaelas

tambémseacalmarem.–Nãolhesfaremosmal–mentiudescaradamenteoGiganteDois.Paracomprovarabondadedeles,oGiganteUmlhesofereceuuma

bebidaquematavaqualquersede.Nesteinstante,amaisjovemdasmoçaslembrou-sedoavisoquerecebera,ameiocaminho,deumpássaro.

–Nãobebacoisaalgumaoferecidaporgiganteshorrendos!Umavisotãodesnecessário,pensaraela,queseesqueceraatéde

avisarasirmãs.Acontecequeasirmãseramduastolasetomaramlogoabeberagem.

Resultado:asduasadormeceram.Nomesmoinstante,ajovemdesperta,numímpetoaudaz,começouaentoarumcânticomágicoafricanoquefezosgigantesfugiremcomasmãosnosouvidos.

Felizcomotriunfo,elaacordouasirmãs,etodassaíramcorrendocatingaafora.

Nembemhaviamcomeçadoacorrer,porém,ejáostrêsgigantessurgiramvelozesatrásdelas,comotrêsmontanhasnegrejandoaosol.

–Corram!–disseairmãmaisjovem.Oproblemaéquenãohaviamaisondeserefugiaremsenãonuma

únicaárvorequeconseguiraresistiraosfragoresescaldantesdaseca.–Subam!–disseajovem.

Page 150: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

Asduasobedeceram,elogoastrêsestavamencarapitadasnotopo.GraçasàsuaMãeOxum,asjovensdescobriram,aliviadíssimas,queosgigantesnãoeramtãoaltosquantoaárvorenaqualelashaviamtrepado.

Entãochegou,emprimeirolugar,oGiganteTrês.Apesardetertantosolhos,elenãoviunenhumadastrêsfugitivasescondidasnasfolhagensralas.

–Asdesgraçadasfugiram!–disseele,seguindoadiante.Ochãotremeuenquantoelepartia,evoltouatremerlogoem

seguidacomachegadadosegundogigante.OGiganteDoismiroubemseusdoisolhossobreaárvore,mastambémnãoviucoisaalguma.

Ochãotremeu,seacalmouevoltouatremeroutravezcomaspisadasdoterceirogigante.Este,quesótinhaumolhoparaenxergaroóbvio,viulogoastrêsmoçoilasescondidasnacopadaárvore.

–Aquempensamqueenganam?–rugiuele.–Desçamjádaárvore!Elasnãoobedeceram,claro,nemteriamporquê.–Desçam,covardes,elutemcomoverdadeirasmeninas!–gritou,

agarradoaotronco.Sacando,então,deummachado,ogigantecomeçouagolpearo

troncocomfúria.Asjovenschacoalharamnoaltocomobambus,masnenhumacaiu.

–Canta!Cantadenovo!–imploraramasirmãs.Entãoairmãcantorapuxoudamemóriamaisumacantigaancestral

iorubaecantounoouvidodogigante.Destavez,porém,ograndalhãogostouecomeçouaacompanhá-la.Acoisafoilonge,equandoacantoriacomeçavaasetornar

realmenteinsuportável,aquelemesmopássaroquederaoalertadabeberagemsurgiudoscéusefoipousarnacopadaárvore.

–Depressa,leveumadelas!–disseairmãcantora,entreaspausasdoseucanto.

Opássarotomounobicoumadasirmãselevou-aembora.Depois,voltouelevou,damesmaforma,asegundairmã.Então,aoretornarparalevarairmãrestante,opássarosetransformou,subitamente,numlindopríncipenegro.Portandoumalfanje,elecortouforaacabeçadogiganteetomounosbraçosajovemcantora.

Opríncipeeajovemcasaram-seeforameternamentefelizes.Quantoaoquefoifeitodasirmãsedosoutrosgigantes,istoninguémjamaissepreocupouemsaber.

Page 151: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

COBRA-NORATO

Certavez,umamulherficougrávidadoBoto,omaisfamososedutordaságuasparaenses.Umcasaldegêmeosnasceu.Eraumlindocasal,sóqueumcasaldecobrasd’água.

Amãenãoquissaberdelesefoipedirinstruçõesaumpajé.–ElessãocriadaCobra-Grande!–disseela,assustada.Opajé,depoisdeconsultarseusmanes,dissequeeladeveria

abandoná-losàsmargensdoTocantins,eassimfoifeito.Otempopassou,eascobrinhasgêmeasviraramduascobras

gigantes.UmadelassechamavaHonorato,ousimplesmenteNorato,eeraumacobramachoboaecordata.Suairmã,porém,tornou-semáevingativa,egraçasaoseugênioruimfoichamadaMariaCaninana(malchamada,jáquecaninana,nalínguatupi,querdizer“cobranãovenenosa”).

Durantemuitotempo,Cobra-Noratotentoudemoverairmãdapráticademaldades,maselanãosabiafazeroutracoisasenãoafogarbanhistaseafundarembarcações.

–Minhairmã,destavezvocêpassoudoslimites!–disse-lheNorato,certafeita,depoisqueelaforabulircomumacobraencantadaquemoravadebaixodoaltardeumaigrejaemÓbidos.

Elasabiaqueseacobrasaíssedaliaigrejainteiraruiria.Mesmoassim,mexeucomelaeacobraremexeu-se.Parafelicidadedasvelhasbeatas,aigrejanãoruiu,masganhouumarachaduradealtoabaixo.

–Tomatento,encrenqueira!–disseNorato.–Quetento,nemvento!Quempensaqueé?–silvouaCaninana.EntãoNoratoatracou-secomairmãe,depoisdeumalutatitânica

naságuas,matou-a.Desdeentão,passouahaverapenasumacobrasobrenaturalno

Tocantins,queeraCobra-Norato.Apósestraçalharairmã,elerecuperouaalegriadeviver,tendoadquiridoatéohábitodefazeralgumasvisitinhasàsaldeiaspróximasdorio,especialmenteànoite,talcomoseupaiBotocostumavafazer.

Cobra-Noratoadoravadançare,semprequehaviaumbaile,saíadaságuasparaseduziralgumamoçaribeirinha.Eletinhaodomdesetransportarmagicamentedeumlugarparaooutro,eeraassimquepodia

Page 152: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

servisto,numamesmanoite,emquatrooucincolugaresmuitodistantes.Quandoeleabandonavaorioparafazersuasincursõesterrestres,

costumavadeixarnasmargensasuapeledecobra.Dedentrodelasurgiaumrapazbeloecharmoso,irresistívelàsmocinhas.

Noratogostavatantodassuassurtidasnoturnasquedesejoutornar-seumserhumanocomoosoutros.Havia,porém,umsortilégioqueoimpediadeabandonaraságuas.

Certodia,numbaile,elepediuaumamoçaquequebrasseamaldição.

–Ésimples–disseele.–Bastaquevocêdespejealgumasgotasdeleitesobreaminhacabeçaedepoisdêumgolpesobreela,osuficienteparatiraralgumasgotasdesangue.

–Jamaispoderiaferi-lo!–disseela,emprantos.Norato,porém,arrastou-aatéasmargensdorioeteimouparaque

elaolivrassedomal.Antes,porém,eledeviaassumirsuaformaoriginaldecobra,efoiaíquetudodeupratrás.Aoveracobramonstruosa,apobremeninasaiucorrendodevoltaparaacidade.

Norato,desconsolado,pediuatodomundoqueolivrassedamaldição,maserasempreamesmacoisa.Nemmesmoasuamãetiveracoragemobastanteparaencararomonstroelivrá-lodamaldição.

Certafeita,porém,duranteumadasfestasàsquaiselecompareceu,umsoldadovalenteseprontificouacolocarumfimaosortilégiodoamigo.

OsoldadoacompanhouNoratoatéasmargensdorio,levandoconsigoumagarrafadeleiteeasuainseparávelespada.

–Podevestirapele!–disseele,aochegaremaorio.Noratoentrouparadentrodapeleesetransformou,outravez,na

temívelcobra.Osoldadoficoupálidocomoalua,masnãorecuou.Depoisdeabriragarrafa,despejoualgumasgotasdeleitenacabeçadacobrae,emseguida,aplicou-lheumavalentecutiladanacabeça.Algumasgotasminaramdaferida,misturando-seaoleite,e,comopormágica,Noratotornou-sedefinitivamentehomem.

Desdeentão,ofabulosoCobra-Noratodeixoudesercobra.Oquefoifeitodeledepois,ninguémsabe.Háquemdigaquevirousoldadoefoiservirnomesmobatalhãodoamigoqueodesencantou,masistodeveserpatranhadealgumcaboclomalicioso.

Page 153: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

AFESTANOCÉU

Estecontoéumdosmaisfamososdogêneroetiológico,ouseja,daquelequeexplicaoporquêdeascoisasseremcomosão.Apesardasuafaunaabundantesugerirumcontopuramentebrasileiro,écertoquesetratadefábulaimportadadesdeomaislongínquoOriente.Esopo,Fedro,LaFontaineequasetodososfabulistasdomundorecontaramestalendaquepretendeexplicararazãodeosapo–ou,dependendodaversão,atartarugaouojabuti–terocorpocheioderemendos.

Diz-se,então,que,certafeita,anunciou-seumafestanocéu.Todasasavesforamconvidadas,masosapo,aosaberdacoisa,tambémquisir.

–Você?–disse-lheumgrou,numtomdedeboche.–Ecomopensachegaraocéu?

Osapopiscouosolhosarregaladosváriasvezes,comoquemésurpreendidoporumaboapergunta.

–Bem,eudouumjeito–disseele,deixandoaquestãoparadepois.Masqueeleiria,iria.Nomesmodia,osapofoivisitarourubu,queeraotocadordeviola

oficialdosbailescelestiais.–Olá,compadreurubu–disseele,saltitando.–Comovai,compadresapo?–respondeuourubu,enquantoafinava

asuaviola.Ourubutiroualgunsacordes,quasesemdarpelapresençado

amigo,etornouafalar.–Éverdadeoqueandamdizendoporaí?–Dizendooquê?–Quevocêvaiàfestanocéu.–Sim,comtodaacerteza.Ourubudedilhouascordasmaisumpoucoenãotocoumaisno

assunto.Daliapouco,osapofezmençãodepartir.–Bem,jávouindoparaafesta.–Já?!Umdiaantes?–Claro.Comonãotenhoasas,devopartirbemantesqueosdemais.Osapopartiu,saltitando,enquantoourubuficouasorrirdepiedade.–Coitado!Nemtodosconseguemseconformarcomsuaslimitações!Verdadeéqueelepoderiateridoalémdacomiseraçãoeoferecido

Page 154: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

umacaronaaosapo.Masissoseriaumaamolação,afinal,eelenãoeratãoamigodosapoassimparaincomodar-seporele.

Aover,então,queselivraradosapo,ourubulevantou-separairfecharacasa.Nessemomento,porém,osapo,quenãotinhaidoemboracoisanenhuma,retornouescondidoeentroudenovopelosfundos,indometer-seligeironointeriordaviola.

–Pronto,agoraéficarbemquietinho!–disse,encolhendo-setodonofundodoinstrumento.

Namanhãseguinte,ourubulevantouvoonadireçãodocéu,levandoatiracoloaviola.Osapofeztodaaviagemalidentro,semsemexer,efoiassimquechegouaocéujuntocomoamigocarniceiro.

Quandoafestaiacomeçar,ourubudeuosprimeirosacordesnaviolaeumroncogrotescosefezouvirdedentrodoinstrumento.

–Ora,maseuafinei-adireitinhoontemànoite!–disseourubu,desculpando-se.

–Essetaldeurubujáfoivioleiro!Jáfoi...!–disse,debicoempinado,umagarçaantipática.

Ourubufuzilouagarçacomumolhare,depoisdeafinarnovamente,umaporuma,asdezcordasdaviola,começouumanovamodinha.

–Coach!–fezalgonotampo,quebrandotodaaharmoniadosacordes.

Umcoroviperinoderisosecooupelocéu.Sóentãoosapo,surgindoporentreascordas,fezasuaaparição

triunfal.Ourubu,feridonomaisprofundodasuavaidadeartística,sentiu

ganasdeestrangularointrusonascordas,esónãoofezporqueosapofoimuitobemrecebidoportodos.

Ah,ah,ah!,istoéqueeraserengraçado!,diziamtodos,vertendolágrimasderiso,enquantoourubu,depernatrançada,entortavaobico.

Quandotudocessou,porém,afestacomeçoueseestendeuportodoodia,entrandonoiteadentro.Obailefoiumsucessotremendo:todomundodançou,comeu,bebeuàvontade,atéque,chegadaahoradoencerramento,cadaqualtratoudepartir.

Quantoaosapo,retornoudomesmomodoqueviera,dentrodavioladourubu.

–Podevir,amigão!–disseovioleiro,comoquemjáesqueceraomaugracejo.

Page 155: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

Quandoretornavam,porém,emplenoar,ourubutomouaviolaetocoualgunsacordes,chacoalhandooinstrumentocomtantaforçaqueosaposaltouparafora,caindonoabismo.

Opobresapoveiorebolandopeloaratéesborrachar-senaspedras,partindo-seemváriospedaços.Diz-se,porém,queDeusficoutãosentidocomasuasortequerejuntoutodasaspartes,recosturandoocouroporcima,eéporistoqueosapotem,atéhoje,apeletodaremendada.

Page 156: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

ONEGRINHODOPASTOREIO

Semdúvidaalguma,alendamaispopularnoextremosuldoBrasilaindaéadoNegrinhodoPastoreio,umahistóriatristeeviolenta.

OescritorgaúchoSimõesLopesNetofoiomaiordivulgadordalenda,aqualreconta-seagora,emoutraseinferiorespalavras.

Havia,nostemposidos,umestancieiroperversoqueadoravamaltratarosescravos.Naestânciadessedemônio,viviaumnegrinhochamadosimplesmentedeNegrinho.Nãotendomãenempai,ninguémselembraradebatizá-lo.Graçasaisso,dizia-sequeeraafilhadodeNossaSenhora.

Certodia,oestancieiroperversoresolveuorganizarumacorridadecavalos.ONegrinho,bomdecavalhadas,deveriaconduzirocavalodopatrão.

–Seperderacorridajásabe!–ameaçouoestancieiro,mostrando-lheopunho.

Deu-se,então,acorrida,eoNegrinholevouapior.Masapior,mesmo,eleaindaestavaporlevar.Oestancieiroperverso

haviaperdidomilonçasdeouro,equeriasevingarnomenino.–Essetiçãomepaga!–diziaele,vibrandoorelhonoar,emjurasde

ódio.Nembemopovaréuseespalharaaoredordosespetosdecarne

gorda,oNegrinhoviu-seamarradonumaestaca,naquallevouumahorrendasurra.Láficouanoiteinteira,esóquandoamanheceufoiretiradoelevadoaumpedaçoermodecampo.

–Vaificaraquipastoreandoogadodurantetrintadias,poistrintaquadrastinhaacancharetaondeperdeuacorrida!–disseopatrão,deixandooNegrinhosobosolescaldante,sobogranizofurioso,sobofrioenregelante,esobtudooquehádemolestonamãenatureza.

Duranteasnoites,oNegrinhoprovavaoutracolheradacheiadoinferno:cercadoporcorujas,onças,lobos,javalisououtrosbichosquehaviaentãopelospampas,sóencontravaalgumsossegoaolembrardasuaMadrinha,eaíadormeciacomumsorrisonoslábios.

Efoijustonumadessaspausasdosofrimentoqueasuaruínasecompletou:umbandodeladrõesdegado,aproveitandoosonodopequenovigia,levouconsigotodoogado.

Nãoéprecisodizerque,nodiaseguinte,oNegrinhoprovououtrasurradaquelas.

Page 157: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

–Agoravaiprocurarogadoquedeixoulevarem!–disseopatrão,mandando-o,noitefechada,paraoscamposabertos.

ONegrinhopassouantesnacapelinhadasuaVirgemMadrinhaelevouumavelaparaalumiaroscaminhos.Enquantoavançavapeloscampos,deixavacairumpoucodaceraincandescente.Ospingosficavamqueimandopelochão,comopirilampos,enquantoeleavançava.

Então,detantoavançar,elefinalmenteachouocampodopastoreio.Ogadoestavalá,eelesedeitouparadormir,agradecendoàMadrinhaCeleste.Nomeiodanoite,noentanto,ofilhodoestancieiro,umrapazaindapiordoqueopai,veiodemansinhoeespantou,outravez,osanimais.

Olaçocantoudenovo,edestavezoNegrinhonãoresistiuemorreu.Acoisatodasedeuemcampoaberto,eopatrãodesgraçadoachou

queoNegrinhonãomerecianemmesmoumacova.–Atire-oalinoformigueiro!–disseaofilho.OcorpodoNegrinhofoipostosobreoformigueiro,easformigas

caíramemcima,comendotudo.Quandochegouemcasa,oestancieirosonhouqueeleeramil

estancieiros,equetinhamilfilhos,emilnegrinhosparamaltratar,emilmilonçasdeouroparagastarembobagens.

Durantetrêsnoites,oestancieirosonhouomesmosonho.Então,naterceiranoite,tomadopeloremorso–oupelomedodeserdescoberto–,resolveuvoltaraoformigueiroparaverseasformigashaviamcomidotodoocorpo.Aochegarlá,porém,deparou-secomafiguradoNegrinho,empésobreoformigueiro,sãoesemmarcaalgumadeferida.Aoseulado,estavaasuaSantaMadrinha,todaserenaefosforescendoemazul.Osbichosperdidostambémestavamtodosali.

Oestancieirocaiudejoelhosemãospostas,arrependido,masoqueelesentiamesmoeraummedoterríveldequealgumcastigocaíssesobresi.

Enquantooestancieiroseenchiademedo,oNegrinhomontou,empelo,emcimadeumdoscavalosesaiuatocaralegrementeatropapelascoxilhas.

Apartirdaqueledia,oNegrinhopassouaserchamadodeNegrinhodoPastoreio.Encarregadodeencontrarcoisasperdidas,elefazabuscadebomgrado,massemprepedindoumavelaparaasuamadrinha.

Page 158: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

OQUERO-QUERO

PássarotípicodoRioGrandedoSul,oquero-querodesfrutadamaisamplasimpatiaeconsideraçãodosgaúchos,apesardopapelingratoquelhecoubenalendaqueexplicaarazãodepossuirestenome.

Diz-se,pois,que,duranteafugadaSagradaFamíliadoEgito,JoséeMariaforambuscarrefúgionumoásis,emplenodeserto.Enquantodescansava,Mariapediuaospássarosdooásisquefizessemsilêncio,afimdenãoatraíremaatençãodosseusperseguidores.

–Silêncio,avezinhas!–disseela,comodedonoslábios.MariatinhanosbraçosoDivinoBebê,enquantoseuesposo,José,

vigiavatudocomolhosdeáguia.Diantedoseudivinopedido,todasasavesforamsilenciandooseucanto,umaauma,atéquesórestouocantoensurdecedordeumaúnicaave.

–Porfavor,avezinha!–insistiuMaria.–QuerqueossoldadosdeHerodesnosencontrem?

–Quero!Quero!–continuouaaveaberrar,aplenospulmões.Joséavistou,então,umgrupodesoldadosavançandonasuadireção

edeuumjeitodeesconderMariaeobebêatrásdumasfolhagens.OssoldadosdeHerodeschegaramecomeçaramainvestigarolugar.

Porém,comoestavamexaustosdemais,preferirampararasbuscasebanhar-senaságuasdeumpequenocórregoquepassavapelooásis.Enquantoisso,opássaronãodavatrégua,umsegundo,noseucanto.

Organizou-seumacaçadaàave,masninguémconseguiuespantá-la.Porfim,tantoelaincomodouqueossoldadosresolverampartir.

Quandoelesdesapareceram,aVirgemlançou,então,estamaldiçãoaopássaroberrador:

–PorquaseteresprovocadoamortedoDivinoRedentor,oteucantoserá,parasempre,omesmo!

Edesdeentãoaaveteimosanãofazoutracoisasenãorepetiroseuperpétuorefrão:

–Quero-quero!Quero-quero!

Page 159: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

OPULODOGATO

Ocontoqueencerraestapequenacoletâneadanarrativaoralbrasileiraé,semdúvidaalguma,umadasfábulasmaisengenhosasqueoespíritohumanojáconcebeu.Elacontacomoogatoensinou,certodia,ocachorroapular.

Estava,pois,ogatoadescansarquandooseueternorival,ocachorro,apareceu.

–Lávemvocêdenovo!–disseobichano,mostrandoasunhas.–Calma!–disseocão,tentandoacalmarogato.–Digalogooquequeredesapareça!Ocãofezumacaretaimplorativaedisse:–Nãobriguecomigo,velhoamigo,poisvimestabelecerumapaz

definitivaentrenós.Obichanoacinzentadomoveuacabeçaparaolado,descrente.–Ésério!Ecomoprovadaminhaamizade,prometoensinar-lhe

todasashabilidadesdeumcão!–Equemdissequeeuqueroaprenderalgodevocê?Masocãoconseguiuconvenceroantigorivaldequetinha,defato,

muitacoisaalheensinar,eministrou-lhealgumasliçõesutilíssimas.Diantedisso,ogatoconsentiuemensinaraocão,também,algumas

desuashabilidades.–Queroapenasquemeensineapular!–disseocão,esperançoso.–Muitobem,conheçotodosospulosdafloresta–disseogato,de

boavontade.Ogatopassouodiatodoensinandoaocãotodosospulospossíveis,

detodososanimaisdafloresta.–Bem,éisto–disseele,depoisdeensinaroúltimopulo.Nesteinstanteocãoarreganhouosdentese,depoisdeescolhero

pulomaisvelozaprendido,mergulhounadireçãodogato.Este,porém,saltouparaoaltofeitoumamoladepelos,fezumaespetacularacrobaciaaéreaefoipousar,sãoesalvo,muitolongedocão.

–Seutratante!–ralhouocachorro.–Estepulovocênãomeensinou!Entãoogato,empertigando-setodo,explicou:–Esteéopulodogato,bobão.Esteeunãoensinoaninguém.

Page 160: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

PARTEIII

PERFIS

Page 161: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

ALAMOA

AAlamoaéumaadorávelprincesa-fantasmaquehabita,desdetemposimemoriais,asgrutasdolitoraldeFernandodeNoronha.Éassimchamadaporque,noentendimentodopovo,elaéloiracomoumaalemã.

Pelosimplesdetalhedonome,vê-selogoquesetratadeummitoimportado.Princesasloirasquevivemencantadasnaentradadecavernasermasequaseinacessíveissãocomunsnofolclore,emespecialoeuropeu.

Quandootempoestáparatempestade,elaabandonaagrutaevaidançarnuanasareiasdapraia,afimdeatrairaatençãodosmatutos.Nãodemoramuitoeaprimeiravítimaseapresenta,vencidanãotantopelosdotesartísticosdajovemquantoporsuaenormebeleza.

EspéciedeIarasedutora,aAlamoatambémcostumalevaradesgraçaaosseusapaixonados.Sobopretextodedesenterrarumtesouroescondidonamaisaltadasgrutas,elaosconduzatéaentrada,comoseestivessemhipnotizados.

Umaveznointeriordagruta,oincautovêocorpodaAlamoasederreterdiantedosseusolhos,restandoapenasumacaveiradedentesarreganhados.Comumarisadatétrica,ademôniaarrasta,então,ocaboclodesgraçadoparaasprofundezasdacaverna,ondeamorteouumarondaperpétuadetorturasselvagensoaguarda.

Napróximatempestade,aAlamoa,reconstituídaemtodaasuabeleza,voltaaexecutarnasareiasdapraiaoseuchamadosedutor.

Page 162: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

ALMA-DE-GATO

Entidadequaseabstratadonossofolclore,esteAlma-de-Gatooriginou-senosarredoresdoRioGrandedoNorteedaParaíba.Osterroresqueeleespalhavanostemposantigos,especialmenteentreacriançada,operavam-sequasequeexclusivamentepelaforçasugestivadoseunome,jáquejamaissedeixavaavistar.

Aolongodosanos,porém,eleacabouassociadoàfiguradogato,geralmentedecorpreta.

Emsetratandodequalquermitobrasílico,porém,hásempreumaavenasredondezasparaexplicá-lo,poisafloresta,desdesempre,foiviveironaturaldemitos.

Aaveque,segundoalgunsestudiosos,originouoAlma-de-GatoseriaumacertaTinguaçu–literalmente,“Bico-Grande”–,avedemauagourofamosapordarorigem,depoisdemorta,aumaplantacapazdeconcederodomdainvisibilidadeaquemmascasseumadassuasfolhas.

Masquecoisasterríveisfaz,afinal,esteAlma-de-Gato?Concretamente,nada.OAlma-de-Gatooperademodo

exclusivamentepsicológico,nãoexistindonenhumrelatoacercadosatosquecometeoudosfinsqueelebusca.Omáximoquealgumaimaginaçãoinfantilexacerbadaconseguiuatéhojefoientrever-lheovulto,escurocomoodetodososvultos,eumpardeolhosaofuscaremnomeiodanoite.Porém,açãoconcreta,nenhuma.

OAlma-de-Gato,dizemtodososseusestudiosos,nãosequestracriançasnemtampoucoasdevora.Nãoexisterelatoalgumdeviolênciacometidacontraquemquerqueseja.Noentanto,nossosmolequesinterioranoscontinuamavotar-lheummedosistemático,diantedoanúnciovagodesuapresença–umapresençaque,detãosutil,équaseumaausência.

Page 163: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

ANHANGÁ

EntidadesobrenaturaldossilvícolasqueosjesuítaselevaramàcondiçãodeDiabo,oAnhangáéumdosespíritosmaistemidospelosíndios.RivaldeJurupari,oespíritodospesadelos,aquemosjesuítastambémaplicaramapechadedemônio,esteAnhangá(ouAnhanga,semacento)era,naverdade,oespíritodacaçadasflorestasamazônicas,esómetiamedomesmonosdesafetosdasmatas.

Suafiguraégarbosa,apresentando-sesobaformadeumcervobrancodeolhosembrasa,comodetalhedoschifrescobertosdepelos.Aoqueparece,oscatequistastambémderamumtoquepiedosonasuafigura,jáque,emalgummomento,ocervopassouapossuirumacruzbemnomeiodatesta(dequalquermodo,algoestranhonatestadeumdemônio).Apesardasuabelaaparência,nãoémuitoaconselháveltentaravistaroAnhangá,poisdiz-sequeasimplesvisãodestecervofantasmaéobastanteparadeixarumapessoalouca.Esealguém,aindaassim,pretendercaçá-lo,émelhoresquecer:oAnhangáéumacriaturatãoseguradesique,emvezdefugirdocanodeumaespingarda,põe-seamastigá-lotranquilamente,comosefossecanadeaçúcar.

Segundoosmelhoresestudiosos,oAnhangácervo,consideradocomonumeprotetordafloresta,foiconfundidocomoutroserdemesmonome,associadoàsassombraçõeseaosmalefícios.

Repetiu-se,destemodo,nasAméricas,amesmametamorfoseocorridanasflorestasdavelhaEuropapagã,quandoCernunoseoutrasdivindadespré-cristãs,tambémdotadasdechifres,passaramaencarnar,noimagináriocristão,oDiabo.Aquinãofoidiferente,eosprópriosíndios,fascinadosmaispelomedodoquepelabeleza,passaramaprivilegiarahistóriaqueapontaAnhangácomoumaversãocabocladeSatanás,relegandoocervobrancoaumsegundoeindignoplano.

MasolegítimoAnhangácontinuaráasersempreocervoguardiãodasflorestas.

Page 164: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

BOITATÁ

ChamadomuitasvezesdeMboitatá,estacriaturaéoutrodospersonagensobrigatóriosdequalquercoletâneafantástico-zoológicadoBrasil.

Apesardonome,oBoitatánadatemavercombois,mascomumacobratransparentequeirradiaumaluzofuscantenasnoitestristesdasmatasbrasileiras(istonãoimpediu,porém,queelefossedescritocomoumtourodeolhoscoruscantes,constituindoesteumdosexemplosmaiscuriososdopoderdemutaçãooperadopelaspalavras).Felizmente,mesmoaqui,hálimites:noNordeste,emborasendochamadodeBatatão,ninguémaindaselembroudelhedarumaconformaçãodebatata.

Boitatásignifica“Coisadefogo”,emrazãodofogoquedeleemana,constituindo-seoanimal,naverdade,numarepresentaçãofiguradadofogo-fátuo.Tambéméidentificado–ouconfundido–comaBoiúnaeaCobra-Grande,mitosaquáticosassemelhados.

Apesardosfogos-fátuosexistirememtodoomundo,oBoitatáoriginalresistiurelativamentebemaoassédiodainfluênciaeuropeia,permanecendosemconformaçãofísicaoupsicológicahumanaalguma.Eleéumacobra–ou,maisexatamente,umespectrodecobra–,cujafunçãoúnicaéadecomereatemorizar.

Somentequandoomitoabandonaasmatas,ganhandoascidades,équeoBoitatácomeçaadegeneraremsuapureza,recebendoadendosextravagantes,importadosdosmaisdiversosfabulários(masque,mesmonestecaso,nãoforamsuficientesparadesfigurá-locompletamente).

OBoitatá,dizem,alimenta-sesomentedosolhosdassuasvítimas,apontodeoseucorpotranslúcidoficarrepletodeolhoschamejantes.Paraescaparàsuafúria,ocorajosodevemunir-sedeumaboadosedesangue-frio:permanecerparadoedeolhosfechadoséoquebastaparafazeraserpentesedesinteressardele.Senãofuncionar,sugere-seatáticamaisrudedearremessar-lheumobjetodeferro.

Indoadianteadeturpação,chegou-se,enfim,àsmutaçõescompropósitosmoraiseecológicos:oBoitatátransforma-se,dizem,numpedaçoardentedemadeiraafimdepunirosagressoresdasmatas.

Apesardetudoisso,podemosnosdarporfelizespelofatodeninguém,nofimdascontas,terconseguidotransformaroBoitatáemmaisumsátirodaságuas,comosucedeuaoBoto,ounumasereiasuspirante,comosucedeuàCobra-Grande,rebatizadade“Iara”.

Page 165: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

BOTO

OBotoéumaespéciedegolfinhoque,segundoalendaamazônica,nasnoitesquentessaidasuamoradaaquáticaparairseduzir,nosbailesribeirinhos,asmulheresincautas.

AssimcomoaIara,oBotoéumadasnossaslendasmaispopularese,aomesmotempo,menosautenticamenteindígenas.Praticamenteoúnicotraçoarestardomitooriginaléofatodeacriaturaemergirfantasticamentedaságuasparaentraremcontatodiretoeterrenocomoshomens–ou,maisexatamente,comasmulheres.(Sefosseumalendaautenticamenteindígena,semmescladecorrupção,oBotosairiadaságuassimplesmenteparadevorareespalharadevastação,semrecorreraosestratagemassensuaisimportadosetípicosdasraçasvestidas.)

AexemplodaCobra-Norato–outradeturpaçãodomitodaCobra-Grande–,oBoto,despindo-sedesuaaparênciaaquática,transforma-semagicamentenumgalantesedutor,trajadodebrancoecomumchapéudoqualjamaissedesfaz(artefatoimprescindívelparaesconderoorifícioderespiraçãoqueohomem-golfinhopossuinotopodacabeça).Seuúnicoobjetivo,umavezforadoseuelemento,éseduzirasmoçaseengravidá-las,gerandoumaestirpedaqualseignoraoresultadofinal(nãosabemosseosfilhosherdamascaracterísticasdopaiousenascememorremcomohumanosquaisquer).

Oolhosecodoboto-tucuxiéusadoatéhojecomotalismãparaatrairoamordasmulheresqueserecusamacairnalábiadoshomensdespidosdequalquerencanto.

Page 166: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

BRADADOR

OBradadorpertenceàmesmaespéciequaseabstratadoAlma-de-GatooudoPédegarrafa,sendoconhecidoapenaspelaverdadeirapaixãoquenutrepeloescândalo.

Defato,nenhumaoutracriaturadonossofolclorepersonificamelhoressetraçoespalhafatosodosnossosentessobrenaturaisdoqueessepersonagemhabitantedoCentro-SuldoBrasil.

Espécieanômaladeassombração–jáque,segundoaboadoutrina,nãosetratadeumfantasma–,oBradador,mesmoassim,costumafazersuasapariçõesàmeia-noiteempontodetodasassextas-feiras.Sóque,emvezdearrastar-seemsilêncio,preferelançar-senumacorreriadesatinada,aomesmotempoemqueberrafeitoumdoidovarrido.

DesdeoinstanteemqueoBradadorcomeçaasuarondahistérica,criaturanenhumaconseguemaisdormir,genteouanimal,devidoàestridênciadosseusgritos.

AquestãodeoBradadorserounãoumaalmapenadapareceestarresolvidaapartirdomomentoemquesebuscaasuaorigem.Segundoamaioriadosestudiosos,oBradadororigina-se,emregra,docorpomumificadodealgumcadáverincorrupto,sendo,poristomesmo,chamadotambémde“corpo-seco”.Tratar-se-ia,pois,deumcorpoandante,comooszumbishaitianosouasmúmiasegípcias,enãodeumaalmapenada,queéumsersutileincorpóreo.

OfolcloristaparanaenseFranciscoLeiteafirmatervisto,emsuajuventude,umadessasmúmiasdesenterradaeencostadanumpédeimbuia,“acompletaroseufadomaterialsobreosolo”.(Seviumesmo,devetersidoduranteodia,enquantoeladormia,poiséconsensoabsolutoentreosestudiososqueasimplesvisãodoBradadoracarretaamorteimediatadoenxerido.)

AexemplodaCabra-Cabriola,estemitoparecetambémtersidoimportado,emborasejadifícilimaginarumlugardaTerraondenãopossavicejar,espontaneamente,umparentequalquerdaespécie.EmPortugal,porexemplo,existeumaversãofemininadonossoBradador,aZorraBerradeira,umacriaturapossivelmentedezvezesmaisescandalosa.NoValedoSãoFrancisco,temosoGritador.

Page 167: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

BRUXA

Personagemonipresenteemtodososrecantosassombradosdomundo,abruxa,noBrasil,tambémconheceuumaprósperadivulgação.Modelodoqualpartemtodasassuasparentas–dasquais,poraqui,aCucapareceseramaisfamosa–,demodogeralelasurgecomoaspectoclássicodavelhahorrendatrajadadenegro,onarizcompridocomverruganaponta,olhosremelentos,vassouraempunho,ogatopretoaopé,ocaldeirãofumeganteetc.

Esta,porém,éabruxaclássicaeuropeia.Anossatemalgunsadendosparticularesdesconhecidosdamaioriadaspessoas.

Nemtodossabem,porexemplo,queabruxatemopoderdesetransformaremcoruja,morcego,oumesmoemumamariposanegra.Poucosdenóssabem,também,queasétimafilhadeseteirmãsestáfadadaaserbruxa.Tambéméparcamentesabido–especialmentenasregiõesurbanas,lamentavelmentedesinformadasdestasquestõestranscendentes–queabruxatemopoderdeseinfiltrarnasmenoresfrestas,nãoadiantando,porisso,passarachavenaportasemmeteralgodãonasfrinchas.

Criançasdeatéseteanosqueaindanãoreceberamobatismosãoumdosalvosprediletosdessacriaturanojenta,poiselaadorasorverosanguedebebêpagão.

Segundoacrendice,háumamaneirainfalíveldeseidentificarumabruxa:seelacumprimentarsemprecomamãoesquerda,podemosestarcertosdesetratardeumadasconcubinasdoDiabo,mesmoqueacriaturaseapresentecomumaadorávelaparência.

NonortedoBrasil,nãosedizbruxa,mas“feiticeira”,oquenãodiminuiemnadaasuapericulosidade.Felizmente,porlá,nãoacontecemosfamosossabásnoturnos,nosquaisasbruxas,montadasnuassobrevassouras,cruzamoscéus,tendoaofundoasilhuetaprateadadalua.

Paradefender-sedabruxa,osestudiososindicamumasériedetalismãs.Aestreladecincoouseispontas,aspalhassecasdoDomingodeRamos,postasemcruz,ouentãoummolhodefios,queabruxanãopodedeixardecontarantesdeoperarosseusmales,sãoosmaislembrados.Muitoútil,também,éespalharfacasoutesourasabertas,alémdepunhadosdesal,portodaacasa.

Page 168: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

CABEÇADECUIA

NoPiauí,temorigemumacriaturabastanteoriginal.OenteterrificantesechamaCabeçadeCuiaetemfeitooterrordemuitosnadadorespiauienses.

Umdosseustraçosmaismarcanteséaonipresençadonúmero7nasuabiografia.Estenúmeropareceestarligadoaoseudestinocomoumamaldiçãobabilônica.

Masonde,exatamente,habitaestemonstrodoPiauí?EleseescondenaságuasdorioParnaíba,efoipararalidepoisde

termaltratadoaprópriamãe.Elaoamaldiçoou,obrigando-oapassar49anosseguidos(7x7)dentrodorio,comosepeixefosse.

OCabeçadeCuiaémagérrimo,temocabeloescorridonatestaesuacabeçatemaforma,evidentemente,deumacuia.Elechegamansamente,comoquemnãoquernada,epuxarepentinamenteparaasprofundezasomatutodesprevenidoqueestiver,então,sebanhando.

DizalendaquedeseteemseteanoseletemdecomerumamoçavirgemchamadaMaria.Quandonãoaparecenenhuma,elesecontentaempescarqualquerumqueestiverporali.

QuandotivercomidosuasseteMarias,afirmamosentendidos,oencantosedesfaráeoCabeçadeCuiavoltaráaserummoçoestudiosoefilhoexemplar.

Page 169: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

CABRA-CABRIOLA

Comestenomequesoavagamenteaumainocentecantigaderoda,podemos,naverdade,identificarumadascriaturasmaisviolentaserepulsivasdonossofolclore.

Importada,aoqueparece,aCabra-Cabriolaaclimatou-semelhornoNordeste,ondecomeçouaempreenderoseureinadodeterror.

Comoopróprionomediz,aCabra-Cabriolaéumsermonstruosoqueadoracabriolar,ouseja,darsaltoserequebros.Poroutrolado,aomenosnoBrasil,elanãopossuiqualquerfeiçãoingenuamentecaprina,umavezquesuacarasedestaca,acimadetudo,pelapresençadeumasérieafiadíssimadedentesedeumpardeolhoschamejantes.Suabocaesuasnarinastambémexpelemfogoefuligem.

Seualimentoprediletosãoascrianças,enãosóasdesobedientes.Ànoiteelagostadeespreitaracasaondeasmães,poralgumarazão,estãoausentese,pormeiodeestratagemassolertescomoodeimitaravozdasmesmas,induzascriançasaabriremaporta.Umavezconseguidoointento,acriaturainvadeacasaaosberros,sórestandoàssuaspequenasvítimaspularempelasjanelasouinvocaremoauxíliodoseuanjodaguarda.

***

Conta-seque,certafeita,aCabra-Cabriolaestavaàespreitaparamaisumataquenasredondezasdeumacasaondeumamãedeviasairànoiteparatrabalhar.

Amulhersaiu,afinal,eacriaturanefastaesperoualgumashorasantesdeiràportapediràscriançasqueabrissem.

–Abram,filhinhos!Soueu,asuaqueridamamãe!–disseaCabra.Como,noentanto,nãotivessetidoocuidadodedisfarçaravoz,viu-

selogoexpulsapelosgritosdascriançasdentrodacasa.–Fora,Cabramaldita!Bemsabemosquenãoéanossaquerida

mamãe!Nodiaseguinte,acriaturainfernalprocurouumferreiroemandou

martelarasualínguaatéelaganharumacompleiçãomaismaleável,capazdereproduziramaviosavozdamãedascrianças.

Namesmanoite,elaretornouàscercaniasdacasae,depoisdeamulhersaireumbompedaçodanoitetertranscorrido,foibateroutravez

Page 170: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

àporta.–Abram,filhinhos!Soueu,asuaqueridamamãe!Destavez,asuavozsooutãoperfeitamentematernaefeminilqueas

pobrescrianças,sematentaremparaafiguradequemlhesfalava,escancararamaporta,aliviadas.

MasquemficoualiviadamesmofoiaCabra-Cabriola,aover-sesenhoradasituação.Eofinalterrível,dignodosirmãosGrimm,émaisumaprovaseguradaimportaçãodomito.

Page 171: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

CACHORRADAPALMEIRA

QueopadreCíceroespalhabênçãosportodooNordeste,ésabidodetodos.Mas,comoemtodasascoisassagradas,hánele,também,umladoperigoso,comoqualnãoconvémmexer.

Ora,certafeitaumajovemresolveubrincarcomeleeacaboumal.Acoisasedeualgumassemanasdepoisdopassamentodosanto

padredosertão.Umajovemacabaradevermorrersuacachorrinhaeandavamuitochateadaquandoumavelhabeata,aindainconsolávelcomamortedoseumentorespiritual,travouumaconversacomela.Asenhoraestavatrajandolutoe,questionadapelajovemdarazãodaquilo,disse,muitoindignada:

–Ora,porquê!EstoudelutopelamortedomeuPadreCíceroRomãoBatista!

Entãoajovem,meiodebicando,retrucou:–Poisdeveriabotarlutoerapelaminhacachorrinha!Dizemque,nomesmoinstante,apobrecriaturaviroucadelaesaiu,

feitodoida,acorrerpelosertão.Dizemalgunsestudiososqueseuirmãoconseguiucapturá-laeque

atéhojeelaviveenjaulada.Presanoiteedia,passaotempolatindoeuivando,semcomernadafeitoempanela(sabe-seláarazão),massomentecarnedecabritonovo,istoquandonãoróiosprópriosossos.

Estaassombraçãoécoisarelativamenterecentenosanaisdonossofolclore:datade1934etemsemantidocomrazoávelsaúdenacrônicaassombrosadoNordeste,ajulgar-sepelonúmerodepoemasdecordelquecirculamsobreotema,emtodasasfeirasnordestinas.

ACachorradaPalmeiraéummitoqueversa,aomesmotempo,sobreotabureligiosoeopreconceitomoral,jáqueacadelaremete,especialmentenossertõesnordestinos,àprostituta.

Page 172: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

CAIPORA

Paramuitosestudiosos,oCaipora(ouCaapora)éumasimplesderivaçãodoCurupira.Pertencenteàmesmaclassedosentesprotetoresdafloresta–maisexatamente,dacaça–,eledesenvolveu,contudo,umtipoprópriobastantediferenciadodoCurupira:enquantoesteseapresentacomoummolequefranzinoedepésinvertidos,oCaiporatomaafiguradeumbrutamontescomocorpocobertodepelosemontadonumgigantescoporco-do-mato.(NoNordeste,porém,oCaiporatemoaspectodeumindiozinhoperneta,havendoaquiumacuriosafusãodoSaciedoCurupira.)

Caapora,emtupi,significa“habitantedomato”,denominaçãofieldesteserque,nosprimórdiosdacolonizaçãoportuguesa,foiignoradopelosjesuítas,tãohábeisemrecensearosmildisfarcesdequesevaleuoDiaboparaintroduzir-senasmatasbrasileiras.Omáximoque,naquelesdias,sepôdeevocardelefoiumaespéciedeespectrosilvestreesemforma,semnadaquelembreaespetaculosidadedehomenspeludoscavalgandojavalisouporcosgigantes.

Emalgumasregiões,oCaiporatrocadesexo,epassaaser“a”Caipora,umamulher,tambémprotetoradacaça,masquenãosefurtaaentraremintimidadescomoscaçadores,chegandoapraticarsexolivrementecomeles.Depoisqueoromanceengata,porém,elasetornaciumentaepossessiva,capazdepuniramenortraiçãocomumasurraletaldecipóespinhento.

Assimcomooseuconfrademasculino,aCaiporatemohábitodecavalgarporcoseressuscitaracaçaabatida.(Conta-seque,certafeita,umgrupodecaçadoresestavaassandoumtatunamataquandoaCaipora,passandoderepente,montadanumporco,deuogrito:“Vambora,João!”,eotatu,tostadoesemvísceras,pulouagilmentedoespetoesaiu-lhenoencalço,vivinhodasilva.)

ApesardeoCurupiraserpopularnoRioGrandedoSul,nemporissooescritorgaúchoSimõesLopesNetodeixoudemencionar,também,o“homemagigantado”,dando-nosoconhecimentodequeaversãoexpandidadoCurupira,apóspercorrertodooBrasil,chegouaalcançaroextremosul.

Aexpressão“caipora”comosinônimodeazaradoprovémdestepersonagem.Dizia-seantigamentedetodocaçadorinfeliznacaçaqueele“estavacomoCaipora”,equetodoaquelequeseencontravacomoser

Page 173: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

monstruosoestavavotado,apartirdeentão,afracassaremtodacoisaqueintentasse.

Page 174: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

CAPELOBO

OCapeloboéumamisturagrotescadequasetodososmonstrosdonossofolclore.

EletemorigemnoParáenoMaranhão.NorioXingu,asuafamaestátãoarraigadaquequasenãoháíndiovivoquenãolheguardeomedomaisprofundo.Aexplicação,decerto,estánacrençadequetodoíndio,depoisdemuitovelho,terminasetransformandonesteentebizarro.

Capeloboquerdizer“lobotorto”,umloboforadoesquadro,eéoqueeleparecejustamentesercomasuaconformaçãoesdrúxula.Suaformavariaconformeolocaldasuaaparição.NoMaranhão,alémdeteronomeligeiramentealterado(alielesechamaCupelobo),elepossuiumfocinhodetamanduá,aocontráriodasoutrasregiões,ondeseapresentacomofocinhodeumaantaoudeumcachorro.

Orestantedoseucorpotambémestáenvoltoemcontrovérsias:enquanto,paraalguns,elepossuiocorpodeumaanta,paraoutrospossuiumcorposemelhanteaodohomem,sóquerecobertodepelos.

Háaindaoutraexcentricidade,queaproximaoCapelobodoSaci:segundoalgunsestudiosos,elepossuiapenasumaperna–ou,pelomenos,umaúnicapata–,queéredondacomoadoPédegarrafa.

Comoamaioriadosnossosmonstros,oCapelobotambémanunciaasuachegadapormeiodeumagritariainfernal.

OCapelobocostumaabraçar-seàsuavítimacomoaumvelhoamigo.Sóqueasamabilidadesterminamquandoeleintroduzrepentinamenteasuatrombaagudanocrâniodavítimaepõe-seasugaraquelequepareceseroseualimentopredileto:océrebrohumano.

OCapelobo,noentanto,nãoésomenteantropofágico:elealimenta-setambémdefilhotesdecãesedegatos,epodesermortoseforatingido,talcomooMapinguari,bemnomeiodoumbigo.

Page 175: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

CARBÚNCULO

OCarbúnculoéumaespéciedelagartomágicoquevivenoRioGrandedoSul.

DizalendaqueumsacristãodaigrejadeSãoToméviusairacriatura,certodia,daságuasdeumalagoavizinha.Elaeraparecidacomumlagarto,sóqueenorme,levandonacabeçaumapedratãobrilhantequefaziaofuscarasvistas.Apesardadificuldadeemcapturá-lo,osacristãoconseguiuapoderar-sedeleelevá-loparacasa.Ali,eledescobriu,deliciado,queoCarbúnculotinhaopoderdedarriquezasinfinitasaoseupossuidor,alémdetransformar-se,ànoite,numalindamulher.

Osacristão,então,passouadevotartodososseuscuidadosàcriaturasobrenatural,esquecidodeDeusedoshomens.

Ainveja,porém,faloumaisforte,eoshomensdebemdacidadedecidiramprenderoex-sacristão,condenando-oàmorte.OCarbúnculo,porém,veioemseusocorroe,depoisdeespalharamorteeadevastação,raptouoamigodasmãosdosseuscarrascos,desaparecendocomele.

Dizalendaqueosacristãoviveatéhoje,nocerrodoJarau,emmeioàsriquezas,juntodoseuamigodopeito,queànoitecontinuaasemetamorfosearembelaninfa.

Opersonagem,porém,nãoécrianativadosgaúchos.Segundoosestudiosos,eleestáespalhadopelasregiõesandinas,eatémesmoFlaubertchegouainvocá-loemATentaçãodeSantoAntão.Pertenceaociclodascriaturasmágicasocultadorasdetesouros,tradiçãoquevemdesdeosmourose,aindamaisremotamente,doantigoOriente.Naslendasmaisantigas,oCarbúnculosódespertadecememcemanos,quandoapedraluminosacaidasuatesta.

Page 176: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

CAVALO-MARINHO

OCavalo-marinhoémaisumadastantascriaturasemersasdorioAmazonas,umriotãopródigodelas.Aocontráriodamaioriadosseuscolegas,porém,estacriaturanãoéferoznemtemohábitodesairporaíexercitandoosseusdotessensuaisdeconquistador.

Seupeloéalvíssimo–umatestemunhaocularafirmaqueelepossuitantopelonasancas“queparecemumcolchão”–,esuacrina,assimcomoacauda,étecidadomaispuroouro.Osolhossãotristescomoosdoserhumano,enasuatestabrilhaumaestrela,quetambéménaturalmentedourada.

NossohipocampobrasileironãoestásubmetidoaNetunonemadeusalgum.Éumserdiscretoepacífico,queemergeevoltaparaaságuasdoAmazonasaseubel-prazer.

Segundoosestudiosos,oCavalo-marinhonãopodesercriaçãoindígenajáqueosnativosnãoconheciamocavaloatéachegadadosportugueses.Porém,incorporadorapidamenteàslendasnativas,oCavalo-marinhotornou-sepopularnasregiõesamazônicas,ondecontinuaafazersuasapariçõesfugazesmasinesquecíveis.

Ninguématéhojeconseguiuextrairumsófiodeourodasuacrinaoudasuacauda.

Page 177: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

CHIBAMBA

OriundodeMinasGerais,oChibamba,emboraestejaassociadoàmitologiaindígena,temumnomequetraisuaorigemafricana(“chibamba”,nodialetobantu,éonomedeumamodalidadedecanto).

Sejacomofor,oqueprecisamossaberacercadestepersonageméqueeleéumsertodorecobertoporfolhasdebananeirasequesuafunçãoterrenaéadefazersossegaremascriançaschoronas.

Naverdade,talcomoacontececomaCucaeoBicho-Papão,oquefazcomqueascriançaschoronascessemoseuberreiroéaameaçadaapariçãodoChibamba,enãopropriamenteasuaaparição,coisaqueasfaria,certamente,redobrardeintensidadeasuaalaúza.

OChibambanãofalanemgrita,apenasroncacomoumporcoeseapresentaexecutandoospassosdadançaquedeuorigemaoseunome.

Osseusmeiosdeatuaçãosãodesconhecidos.Sabe-seapenasqueadorasaborearumacriançachorona,emborasuspeite-sequeistotambémnãopassedemaisumtruqueidealizadopelospaisparaveremseusfilhoscessaremoalarido.

Page 178: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

CHUPA-CABRA

OChupa-CabraadquiriuumanotoriedadetãograndedesdeoseuaparecimentorecentenaregiãoSudestequeadquiriuodireitodefigurarnacondiçãodepersonagemfolclóricodestaedeváriasoutrascoletâneas.Nempoderiaserdiferente,jáqueofolclore,nãosendoalgocompletoeacabado,comosãoasmitologias,estásempreaptoagerarnovosseresenovaslendas.

Primeiroentesobrenaturaldofolclorebrasileiroatirarsuaorigemdeumavidaextraterrena–talcomoaentendemos,modernamente–,oChupa-Cabraaindaguardaemsiapurezaferozdosmitosrecém-criados,bastandoatentar-separaoseunomedesaborautenticamentebárbaro.

OChupa-Cabra,segundoacrença,éumseralienígenaferoz,oriundodealgumplanetadesconhecido.Possuiolhosvermelhos,trêsdedosdeunhasafiadaseascostascravejadasdeespinhos.Suamaiorpaixãopareceseradechuparosanguedascabrasoudeoutrosanimaismenores,comocãesegalinhas,atéprivá-losdavida.Poucomaissesabeacercadele,poisaindaestamosnaprimeirapercepçãobárbaradomito,dosermisteriosoeterríficoque,surgidoabruptamentederegiõesignoradas,parecenãoquereroutracoisasenãosaciarafomeedevastarimpunemente.Nessesentido,aindaguardaapurezadaBoiúnaedasserpentesaquáticassimilares,simplesmáquinasdematar,singelaseamorais.

Dequalquerforma,écertoque,comachegadadoChupa-Cabra,ofolclorebrasileirodáumsaltogigantescoparaofuturo.Apartirdele,osmonstrospassamacairtambémdoscéus,comoemergiamantesdaságuasedaterra,antigoseinesgotáveisviveirosdeaberrações,ampliandoextraordinariamenteaspossibilidadesdainvençãopoética.

Page 179: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

CUCA

Espécieanômaladebruxa,aCucaéumapersonagemimportadadePortugaledaEspanha.NoBrasil,gozadegrandepopularidadegraças,emgrandeparte,àvelhacantigadeninarcomqueseapavoram,aindahoje,ascriançasdoBrasil(Nana,nenê,queaCucavempegar).

AversãomaisprosaicacostumaapresentaraCucacomoumavelhacorcundaemagérrima,cujoofícioprincipaléoderaptarascriançasqueserecusamadormir,enfiando-asdentrodeumsaco.

Existe,porém,umaversão,muitomaiscriativa,queenriquecesuafiguradedetalhesexóticos.Aquielaéapresentadacomoumaespéciededragão–oujacaré,comosevianosvelhosepisódiostelevisivosdoSítiodoPicapauAmarelo–,compernasesquálidasdegrilo,asasestendidaseumacaudaenorme.(NaGalíciaounoMinho,exibia-seumacriaturaidêntica,nasprocissõesdeCorpusChristi.)

Cuca,segundoosestudiosos,provémde“cabeça”,ou“coca”,docastelhanoantigo,umespectroquecostumava,nostemposidos,assombrarosniñosdelá.

Page 180: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

CURUPIRA

TalcomooSaci,oCurupiraéumdospersonagensmaispopularesdonossofolclore.Apesardeter-seoriginadodealgunsmitosindígenas,aolongodotempoomolequedospésviradosfoiganhandopredicadosimportados,apontodetransformar-senumhíbridodeduendeeuropeucommitobrasílico.

Doistraçosseussãofundamentais,enãoháquemnãoosconheça:osjáreferidospésinvertidoseacabeleiravermelha,traçoaproximativoqueoligaaoSaci,comsuacarapuçadamesmacor.Existem,porém,outrascaracterísticasmenosconhecidas.Umadelaséofatodeelenãopossuirorifícioalgumnocorpo.

OCurupiraéumaespéciededuendeguardiãodasflorestas.Quandootempoestáparachuva,elecostumabatercomumbordãonostroncosdasárvoresparaalertá-lassobreachegadadastempestades.Outrosdizemqueéparaconfundirosintrusosdasmatas,tirando-lhesorumodecasa.

QuandoAnchietaeseusamigoschegaramaoBrasil,oCurupirajáeraconhecidopelasmatascomooterrordosíndios(apesardeprotegerafloresta,elenuncafoimuitoamigodossilvícolas,quelhedevotamgrandemedo)esóeraaplacadoemsuaperversidadeporgenerosasofertas.

Curupirasexistemportodoomundo,comváriosnomes.Ondehouverumafloresta,torna-seinevitáveloseusurgimento.Nummesmopaíselepodesurgircomváriasdenominações.ÉassimqueoCurupira,saindodaAmazônia,passaachamar-seCaiporaemoutrasregiões,sofrendo,nestaviagem,algumasrudesmutações.(EsteCaipora,ouCaapora,segundoalgunsestudiosos,éumbrutamontespeludomontadonumporco-do-mato,podendoser,também,umamegeraciumentacomosmesmosatributosdefiscaldacaça.)

Seutraçomaismarcante,ospésvirados,éumacaracterísticaclássicaextraídadosbestiárioseuropeus,queospadresportuguesestrouxeramnabagagemjuntamentecomTomásdeAquinoeSantoAgostinho.

Apesardehábilnasartesdeenganar,oCurupiratambémpodeserfeitodebobo.Sealguémestiversendoperseguidoporele,bastalargarpelocaminhoalgunscipóstrançados.Elenãoresisteaodesejodepararparadesfazê-los,umaum,situaçãoqueremete,outravez,aosvelhosmitos:Atalanta,emsuacorrida,temdepararpararecolherosfrutos

Page 181: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

douradosqueorivalHipomenesdeixacairaochão.Mesclaquesejademitosindígenaseeuropeus,averdadeéqueo

Curupira,talcomootempoeopovooplasmaram,continuaaserumadasfigurasmaisqueridasdonossoimagináriocoletivo.

Page 182: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

GORJALA

OGorjalaéumgigantetodopretooriundodoNortedoBrasil.Suafiguraestáassociadaàdosgigantestradicionaisdofabulário

universaleseconstituinumaespéciedePolifemooudeumGoliasbarrocamenteexacerbado,provavelmenteimportadoeaclimatadoàsnossasflorestas,jáquenossosíndiosnuncaforamapaixonadosporgigantes.

OpróprionomeGorjalaremeteàindumentáriamedievaleuropeia:gorjaleraumapeçadaarmaduradoscavaleirosandantes,destinadaaprotegeragarganta,ouagorja,comosediziaarcaicamente(“Mentespelagorja,vilão!”,eraumdosreptospreferidosdasvelhasgestasportuguesas).Dessaassociação,passou-seinevitavelmenteàimagemdeumsercomabocadesproporcional.

Elecostumaocultar-senasserrasenospenhascoscobertosdefraturaseescarpaspoisadora,nosseusmomentosdeação,empreenderlongascaminhadassobreosabismoseosprecipícios,vencendo-osemlargaspassadas,comosenadafossem.

Espéciedeguardiãoancestraldasflorestas,temfunçãosimilaràdamaioriadosseuscolegasdeofício,queéadeperseguiratéamorteosinvasoresdosseusverdesdomínios.

TalcomooMapinguari,oGorjalatemohábitohorripilantedeenfiarasuapresadebaixodosovacoeircomendo-aaospedacinhos.Estapresaégeralmenteumcaçadorextraviado,eseusgritoslancinantessoamparaonossocolossodeébanocomoocantoharmoniosodamaisafinadadasaves.

Page 183: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

IARA

IaraéumadeturpaçãopseudoindigenistaquesefezàfiguradaCobra-Grande,umdosmitosfluviaismaisimportantesdaAmazônia.TambémchamadadeMãe-d’Água,elaassumiuquasetodasascaracterísticasdeumasereia,chegandoaserapresentada,muitasvezes,comoraboescamadodelas.

OmitodoIpupiara,umhomem-marinhoquesaíadaságuasparamatarosíndios,parecetambémterexercidoinfluêncianaconformaçãooriginaldaIara.Criaturassaindodedentrodaságuasparaespalharadevastaçãoéumaconstantenoimaginárioindígena.Osacréscimosfantásticos,porém,comocantoriaslúbricaseofertasdetesourosocultosparaatrairasvítimas,sãosempredesenvolvimentosposteriores,frutodamiscigenaçãooperadaentreomitoindígenaeaslendastrazidaspelocolonizadoreuropeu.

Demodogeral,aIaraéapresentadacomoumacriaturaloiraedeolhosacintosamenteazuis(emboraalguémtente,vezporoutra,dar-lheaspectosindígenas,ateimosiapopularretrocedesempreaopadrãoclássicodamulher-peixedetraçosgermânicos).Dotadadevozmaviosa,écomseucantoarrebatadorqueasereiatentaatrairoscaboclosparaofundodaságuas,ondehabitaumcastelosubmersorepletoderiquezas.

Écertoqueatradiçãodasmourasencantadas,guardiãsdetesourossubmersosouescondidosemgrutas,popularíssimaemPortugal,tambémexerceugrandeinfluênciasobreanossaIara.

Tambémnãosepodeesquecerainfluênciaafricana:IemanjáeOxum,divindadesaquáticas,nãoraroseapresentamsobafigurademulheresdecorbrancaevestesvaporosamenteazuis,queremetem,deumaformaoudeoutra,àfiguraobsessivadasereia.

Page 184: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

IPUPIARA

SeformosdarcréditoaumcertoBaltazarFerreira,oIpupiara,monstromarinhodevoradordegente,deixoudeexistirem1564.Essesenhorafirmacategoricamentetermatadoomonstro,aespada,nalocalidadedeSãoVicente,naqueledistantealvorecerdanacionalidade.

Paranãodeixardúvida,eledescreveacriaturacomotendo“quinzepalmosdecomprido”,todarecobertadepelos,alémdeternofocinho“umassedasmuigrandescomobigodes”.

JosédeAnchieta,sempreinteressadonosdisfarcesdodemo,tambémouviufalarnosermonstruoso,emborajamaisotenhavisto,emuitomenoslutadonumcorpoacorpocomele.

OIpupiara,segundoomelhorentendimento,pertenceàclassedosseresmarinhosdevastadores,comoaCobra-GrandeeaBoiúna.Semserumacobra,eleparticipadamesmaespécienamedidaemquesetratadeumasimplesmáquinadematar,apesardoepítetoquelheaplicaramde“homem-marinho”.

UmtraçosingularéqueoIpupiara,depoisdevirarosbarcosouascanoas,sósealimentadosolhosedonarizdassuasvítimas,lançandoforatodooresto.(Umcronistamaisantigo–opadreFernãoCardim–afirmaqueoIpupiaratambémsealimentavadagenitáliaedaspontasdosdedosdospésedasmãosdassuasvítimas.)

OIpupiarapossuifêmea,também,segundoessemesmocronista,decabeloslongoseformosa,umapossívelantecipaçãodaIaraloiracomfeitiodesereia,quetantosucessoaindafaria.Paraessepadre-cronista,ohomem-peixematadaseguintemaneira:surgidoabruptamentedaságuasremansosas,eleseabraçaàsuavítima,numespaventoderespingos,“beijando-a”tãofortementequeadeixa“todaempedaços”.Depois,dando“algunsgemidos,comodesentimento”,fogecomapresa,ouabandona-a,semmesmodelasealimentar.

Assimcomomata,porém,oIpupiaratambémpodesermortodequalquermaneira,oquenoslevaadaralgumcréditoàpretensafaçanhadosr.BaltazarFerreira.

Page 185: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

JURUPARI

Segundoosprimeiroscolonizadoresportugueses,antesmesmodeeleschegaremaoBrasiloDiabojáreinavacomplenasoberaniaemtodasasnossasmatas.DisfarçadosobopseudônimodeJurupari,eraelequemarrastavaparaoinfernoossilvícolas,algoquesócomeçouaterfimquandoCabraldesembarcouemnossaspraiastrazendoconsigoaCruzRedentora.

Segundoamaioriadasversõesindígenas,oJuruparié,defato,umaentidademaléfica,cujoâmbitodeaçãoprediletoéopesadelo–segundoalgumasfontes,seupróprionome,Jurupari,significa“oquevemaoleito”–,oquenãoimplicadizerqueelesejanecessariamenteoDiabodoscristãos.

ExisteumasegundaversãoquecolocaoJuruparicomoumaespéciedelegisladordivinobenéfico.Segundoessamesmaversão,JurupariseriafilhodoSoledeumavirgem,tendovindoaomundocomamissãodeprocurarumaesposaparaopai.

MasaversãomaispopularcontinuaasituaroJuruparicomoumdeusmaléfico,antítesedeTupã,espéciedeespíritodotrovão,queosjesuítastambémfalsearam,transformando-onoDeusdocatecismo.

Quantoaoseuaspecto,ninguématéhojesepreocupouemlhedarumaformaprecisa.Algunsilustradoresmodernos,nafaltadedadosmaisprecisos,costumampintá-locomoumsercobertodefolhasoudeflores,umavezqueeleprovémdasprofundezasdasmatas.

Comoquasetudo,porém,nasflorestasestáassociadotambémàsaves,Juruparinãoescapoudeterumaligaçãoestreitacomelas.Ostupinambás,porexemplo,acreditamqueelemantinharelaçõessexuaisfrequentescomcertasavesdemauagouro,equeelasdepoischocavamosseusovos.

Page 186: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

LABATUT

Casoraríssimodeentidademonstruosaderivadadeumserhumanorealeplenamenteidentificável,oLabatutéumahomenagemqueonossofolcloreprestouaumadasfigurasmaisviolentasquejápisaramonossosolo,ogeneralfrancêsPierreLabatut,oficialdeNapoleão.

Antesdemorrereconverter-seemmonstro,Labatutexerceudiversoscargosnacortebrasileira,aindasoboreinadodeD.PedroI.Dentreoutrasmissões,LabatuttomoupartenaschamadasGuerrasdaIndependência,naBahia,alémdeterchefiado,posteriormente,umaexpediçãodesastradaaoRioGrandedoSul,duranteaGuerradosFarrapos.

Muitossoldadosqueserviramsoboseucomandosofrerammaus-tratos,detalformaque,pormaisdeumavez,omilitarfrancêsviu-seobrigadoaenfrentaredebelarrebeliões.

Segundoodepoimentodosseuscontemporâneos,Labatutpossuíacaracterísticasfísicasexacerbadasquejáprenunciavamomonstrodofuturo:tamanhoagigantado,pésenormeseavozretumbante.

MasfoisódepoisdemortoqueLabatutfoiconvertidopelaimaginaçãopopularnumenteferoz,consideradomaisperigosodoqueopróprioLobisomem.

Segundoosmaisfidedignosestudiososdoassunto,oLabatutéumogrodeporteavantajadoecabeloscompridosedesgrenhados.Seucorpoestácobertodeespinhostãodurosquantoosdoporco-espinho,eseuspéssãoredondoscomoosdeumelefante.Nesseúltimoaspecto,eleguardaumasimilitudeevidentecomosinistroeinformePédegarrafa,umadascriaçõesmaissutilmentesurreaisdonossopanteãonacionaldemonstros.

Seurostoemolduradopelasgrenhasrevoltassedestaca,acimadetudo,peloúnicoolhoquetemfincadonocentrodatesta,emboraaspresaslongaseaguçadasquelheescapamdosdoiscantosdabocaexerçam,numsegundomomento,umimpactoaindamaisdilacerantesobreassuasvítimas.

LabatutmoraemumaregiãosituadaentreoCearáeoRioGrandedoNorte,ealiviveemestadodefomepermanente.Seualimentoprediletosãoascrianças,esuamaneiradeatacarésutileinsidiosa.Labatutpreferecolaroouvidonasportasouintroduziroseuolhopeloburacodafechaduraantesdeefetuaroataque.

Page 187: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

LOBISOMEM

OLobisomemdispensamaioresapresentações.Nãoháquemnãooconheçadassuasterrificantesapariçõescinematográficasouliterárias:ohomemtransformadoemloboque,nasnoitesdeluacheia,saiparaabastecer-sedasuaraçãoregulardesanguehumano.

Há,contudo,algunsdetalhescuriososquepoucosconhecem.Porexemplo:queocaçuladeumafamíliadesetefilhoshomensserá,

infalivelmente,umlobisomem,assimcomoasétimafilhadeseteirmãsestáfadadaaserbruxa.Diz-se,também,queaosofrerodesencanto,bemnahoraemqueogalocanta,ohomem-lobopodedeixardefinitivamentedeserlobo,bastandoquealgumcorajosotire,nestahoramágica,umpoucodoseusangue.

OLobisomem,naverdade,éumserimportadodasregiõeseuropeiasondeolobo,muitomaisdoqueaqui,abundaportodasasflorestas.(Nãoseconhecenasnossaslendasindígenasalgumsilvícolaque,nasnoitesdeluacheia,tenhaviradoloboparairsaciarasuasededesanguehumano.)

Enquantonãoviralobo,eleseapresentasemprecomoaspectodeumhomemmagérrimo,detezamareladaeaspectodoentio.

Àsvezes,nosfundõesdoBrasil,onossocaipiratrocaolobopeloporco,maisbrasileiro.No“InquéritodoSaci”promovidoporMonteiroLobato,em1917,háodepoimentodeumsenhorquejuratervistoumhomemtransformar-seemumporco“calçadodebotinas”esairporaíacomersabãoelambertachosdegordura.Aindaassim,odepoentepersisteemchamá-lodeLobisomem.

Nãoexistemulher-lobisomem.Omáximoqueseconseguiu,nessesentido,foramaproximaçõesinócuas,comoaMulasemCabeçaouaCachorradaPalmeira.

Page 188: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

LOIRADOBANHEIRO

Outrainvençãorecentíssima,emtermosfolclóricos.JuntocomoChupa-Cabra,aintriganteLoiravemacrescentarnovosecuriosíssimoselementosaofolcloreurbano,estapartetãonegligenciadapelosestudiososacadêmicosdoimagináriooralepopular.

Masqueméessafigura?ALoiradoBanheiro,comoopróprionomediz,éumaentidade

misteriosa–possivelmenteumespectro–quetemseuhabitatnaturalnosbanheirospúblicos,preferencialmenteosescolares.

TambémchamadadeMulher-Algodão,pelofatodeterabocaeasnarinasentupidasdealgodão,elacostumaaparecernosbanheirosfemininossemprequealgumafrequentadoradesavisadaesolitáriaaliseintroduz(elanuncaapareceamaisdeumapessoaejamaistornacategóricaasuaexistência).

AsvestesdaLoirasãobrancas,decertoparamisturar-semaiseficientementeaosladrilhoseàslajotas.

Háummeioconsideradoinfalívelparainvocá-la.Assim,todagarotaquequisertravarumconhecimentomaisíntimocomaLoiradeveráentrarnaúltimacabinedobanheiroepuxaradescargaportrêsvezes,dizendosolenemente:“Loiraum,Loiradois,Loiratrês!”.Oporquêdastrêsrepetiçõesnãosesabe.

Quandoainvocaçãoéfeitacomsucesso,diz-sequeaLoirasurgerefletidanoespelho,tentandoatrairparadentrodeleasuavítima,afim,decerto,depovoarasuasolidão.

Suapresença,porenquanto,estárestritaaSãoPauloeaoCentro-Sul.

Page 189: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

MAPINGUARI

CriadoAmazonas,oMapinguariéumdosmonstrosmaisoriginaisdanossaextravagantegaleria.Asdescriçõesacercadelevariammuitopoucodeautorparaautor,demodoquepodemostraçarumquadrorazoavelmentesegurodassuasexorbitânciasfísicas.

Suaformabásicapareceseradeumgrandemacaco.Ummacaconaturalmentepeludo,masnãointeiramente,jáqueelenãopossuipeloalgumnaregiãodoumbigo.Este,aliás,éoseucalcanhardeAquiles,poisumMapinguarisópodesermortoseforatingidonesselocal.

Logoacimadoumbigo,maisexatamentenaalturadoestômago,ficaasuaboca.Parafecharoquadrodasdescrições,éprecisodizer,ainda,queelepossuiumpardecascosdeburrovoltadosparatrás.(DaíaorigemdoseunomeindígenaMapinguari,ouseja,“aquelequetemospésvirados”.)

Quantoàsrefeições,oMapinguaricostumafazê-lasduranteodia,preferencialmenteporocasiãodopôrdosol.Antes,porém,quecaiamosnatentaçãodeenxergaraquialgumlirismoecológico–acriaturagenuinamentenacionaladevoraroseuhonestorepastoàluzdodeslumbrantecrepúsculoamazônico–,saibamosdesdejáquenós,sereshumanos,somososeupratopredileto.

Umdetalheimportante:oMapinguarisócomeacabeçadaspessoas.Osantropólogosnãodescartamapossibilidadedehaveraquialgum

simbolismopsicológicoancestraldotipo“aíestáoqueacontecequandoosujeitovirabichoeperdeacabeça”–,masomaisprovávelmesmoéqueoMapinguarisimplesmentegostedecomercérebro.

Page 190: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

MULASEMCABEÇA

Nãoháquemnãosaiba,portodosestessertõesdoBrasil,quemulherquesecasacompadre,cedooutarde,viraMulasemCabeça.

Essaéagêneseclássicadeumadascriaturasassombrosasmaispopularesdoimagináriobrasileiro.Asuacontrapartidamasculina,oCavalosemCabeça–ouseja,ohomemquesecasacomumafreira–,nemdelongegozoudamesmapopularidade,comprovandootriunfodopreconceitomachista.(OBrasilpareceserumdospoucoslugaresdomundoondeatransformaçãodamulheremmulaououtroanimalqualquerestáassociadadiretamenteaumapuniçãomoral.)

Apesardenãopossuircabeça,nolugarondeeladeveriaestarpode-sever,nasnoitesapavorantesemqueacriaturasurge,oexpeliriradodejatosdefogo.Alémdelançarfogopelasventasinvisíveis,elarelinchademaneiramilvezesmaisaudíveldoqueumamulanormal.

Outrodetalhenotáveléofatodeelacarregarnopescoçoimaginárioofreiodeferro.Quemconseguirarrancá-lo,quebraofeitiço,voltandoaternosbraçosamulheroriginal.Antes,porém,detentaraproeza,éprecisotomarocuidadodeesconderbemasunhaseosdentes,pois,poralgumarazão,elaodeiaestasduascoisas.(Háquemdigaqueelasealimentadessasduascoisas,pormaisabsurdoquepareça.)

Suaspatadassãomortíferas,eseugalope,quaseimpossíveldeserdetido,daíarazãodeninguémaindaterconseguidoextrair-lheofreioorladodesanguedosdentesinvisíveis.

Opelo,segundooentendimentodamaioriadosestudiosos,énegro.Àsvezes,acrescentam-lhe,porornato,umacruzdecabelosbrancos,paraevidenciarasuaorigemsacrílega.Jáoraboéumaespéciedefaroltraseiro,reluzindonanoitecomoumfachodeluz.

AMulasemCabeçanosveiodePortugalearredores.Arazãodeoanimalserumamulapareceseradequeospreladoscostumavamseguir,emsuasandançaspiedosas,trepadosnumamula,montariaidealparavencerterrenosacidentados.

Page 191: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

PAIDOMATO

OPaidoMatoéumacriaturadonossofolclorequelembramuitoodeusPãdosgregosou,maismodernamente,osents,aquelesguardiõesdasflorestascomformatodeárvoreecaradegente.

OPaidoMatoémaiordoquequalquerárvoreconhecida,andatododespenteado,possuiumabarbicha,orelhasdecavaloepatasdecabrito.Suacoloraçãoéamesmadeumporcopretoenlameado,esuaurinapossuiumatonalidadesurrealmenteazul.

Masoseutraçomaismarcanteé,semdúvidaalguma,otamanhodisparatadodassuasunhas,quepodemalcançaratédezmetrosdecomprimento,emborasuafinalidadepareçasermeramenteornamental.

AexemplodoMapinguari,eletemoseupontofraconoumbigo,queanatureza,poralgummotivoabsurdo,resolveudestacarcomumcírculo,tornando-o,assim,umalvoperfeitoparaamiradoscaçadoresoudequalquerumqueseanimeaenfrentá-lo.(Nãoestádescartada,contudo,apossibilidadedetratar-sedealgumaartimanhanaturaldestinadaaatrairapresunçãodooponente,jáque,segundoacrençaarraigada,nembala,nemfacaomatam.)

OPaidoMatoébarulhentocomoamaioriadosnossosmonstros,sóqueadoratambémgargalharestentoreamente,sabe-seládoquê.

ÉorigináriodePernambucoedeRondônia.

Page 192: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

PISADEIRA

OestadodeSãoPauloeosarredoresdeMinasGeraissãoasduasregiõesondeaPisadeira,estaverdadeiracriadanoite,costumasurgirparaespalharoseucortejohorrendodepesadelos.

HojeécoisafirmadaentreoseruditosqueaPisadeiraéummitoimportadodePortugal,comnomeetudo.Masnãoéexclusivodelánemdelugaralgum,poisdesdesempreospovosseacostumaramàpresençaincômodadessesermaléfico,cujadistraçãoprediletaéadesentar-sesobreoestômagodoadormecido,impedindo-lhearespiração.

Versãopopulardosdemôniosnoturnos,aPisadeiraéumaalegoriaevidentedaindigestão,moléstianoturnaqueainsaciávelfantasiahumanadotoudecausassobrenaturais.(Nãoéporacasoqueapalavrapesadeloprovémde“peso”.)

OlocalpreferidodaPisadeirasãoostelhadoseaschaminés,porondeelaseintroduzlogonocomeçodanoiteparadarexercício,maistarde,àssuasatividadesnoturnasdeperturbadoradosono.

Prima-irmãdoFradinhodaMãoFurada–tambémesteumentegenuinamenteportuguês–edonossobrasileiríssimoJurupari,ambosversadosnasartesdopesadelo,aPisadeiratemasfeiçõesclássicasdabruxa:narizaduncocutucandooqueixoapontadoparacima,osolhoschispanteseasgadeiasesparramadas.Apesardemagricela,elasabebemfazer-sepesarquandoseacocorasobreoestômagodasuavítima(algoquefazcomperfeitanaturalidade,jáquepossuiaspernascurtas).

OutroatributofundamentaldaPisadeirasãoassuasmãosenormes,dededosaduncoseunhasafiadas.Quandoelapousaessasverdadeiraspatasdemegerasobreoestômagodoglutãoadormecido,éaíentãoqueprincipiaparaeleomartírionoturno.

Masacoisapodeseraindapior:quandoaPisadeiraquermesmoatrapalharavidadasuavítima,elalhepressionaoestômagocomfirmezaaindamaior,afimdeprovocarumvômitoque,pelaposiçãodoadormecido,podelevá-loatéamorteporsufocação

Namaioriadasvezes,porém,apósdebater-seumanoiteinteira,omaisterrívelquepodesucederaocomilãooubeberrãoimprudenteéacordarnamanhãseguintecomasfacesarranhadaspelasunhasaduncasdademôniaeumbelopardeolheiras.

Page 193: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

PRINCESADEJERICOACOARA

AexemplodaAlamoaedasMãesdoOuroespalhadasportodooBrasil,aPrincesadeJericoacoaraéoutracriaturadaestirpedasprincesasencantadas,guardiãsdetesourosemgrutasoucavernas,quetantosucessofizeramemPortugal,naversãodasmourasencantadas.

HabitantedoCeará,elatemsuamoradanacidadequeaimortalizou,Jericoacoara.Porartesdealgumfeitiço,aprincesa,outrorabelaedeslumbrante,estáagoratransformadanumaserpente.Felizmente,suacabeçapermaneceamesmadosseusdiasdebeleza,bemcomoosseuspés.

Paradesencantá-la,éprecisoacoragemdeumhomemdeverdade,dispostoaomartírio,poissomentecomosacrifíciodeumavidahumanaelapoderáretomarsuaantigaforma(quesefaçaumsinaldacruznodorsodacobracomosanguedosacrificadoéoquebastaparaodesmanchedofeitiço).Entãoestarãoabertos,comopormágica,osportõesdagrutaondeseocultaopalácioesplendorosodaprincesa,repletodetodasasriquezasconcebíveisdestemundo.

Ariqueza,entretanto,seráparaosoutros,nãoparaoheróiabnegado,aquemcaberáapenasahonraeternadeterliberadoamaislindadasprincesasdoseufadoinfeliz.

Page 194: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

QUIBUNGO

OQuibungoéumdospersonagensmaisassustadoresdonossofolclore,emboratambémnãosejacriaçãonativadasterrasbaianas,ondecostumaatuar,masumaadaptaçãodoantiquíssimoVelhodoSacoedeoutrospersonagensassemelhados,espalhadosportodoomundo.(OHomemdoSurrãoportuguêspareceseroseuprotótipomaispróximo.)

Seunomedenuncialogoasuaorigemafricana,poisQuibungosignifica“lobo”.

Aocontráriodamaioriadosnossosmonstros,oQuibungovivenoscamposaoinvésdenasmatas.Eleéumamisturadegenteedebicho,pendendomuitomaisparaosegundo.

Esseraptordemoleques,noentanto,nãocarregaconsigoumsacoouosurrãolegitimamentelusitano(umaespéciedebolsaousacoladecouro)paraenfiarassuasvítimas.Aocurvar-separaapanhá-las,umafendaenormeabre-senassuascostas,eénessacavernalombarqueeleasintroduz.Oburacotornaafechar-senaturalmentequandoeleespicha-setodooutravez.

Realmente,demetermedo.Descreve-senormalmenteesseserhediondocomoumaespéciede

lobisomemou,maishabitualmente,comoumpretovelhomaltrapilho.Felizmente,oQuibungo,àdiferençadasoutrascriaturas

monstruosas,podesermortocomoqualquerhomemnormal.

Page 195: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

SACI-PERERÊ

OSaci-pererêdisputa,juntocomoCurupira,otítulodepersonagemmaisfamosodonossofolclore.SuafiguraéconhecidaemtodooBrasil,mesmonasregiõesondeeleémenos“cultuado”.

MasnemsempreoSaciteveafiguraquehojeconhecemos.Desdeasuaprimeiraversão,elesofreuumasérieradicaldealteraçõeseacréscimos,atétransformar-senaversãobrasileiradosgnomoseduendeseuropeusquehojeconhecemos.

AversãomaisautenticamentenacionaldoSaciéaindígena,queoapresentacomoumasimplesave.(Matintapereiraéumadasdiversasavesàsquaisseatribuiagênesedomito,masexistetantacontrovérsiasobreoassuntoquepodemosestarcertosdejamaisvirmosasaberaverdade.)

Segundoacrença,essaavemisteriosatemporhábitofazercomqueosviajantessepercamnafloresta,graçasaopoderdoseucantoenganador–oquetambémnãoénenhumanovidade,jáque,espalhadasportodaaAméricaLatina,abundamavessimilares,apontodemuitasdelastambémteremseconvertido,comopassardosanos,emclonesdonossoSaci(oCrispinargentino,ouoEcacoboliviano–comgorrovermelhoetudo–sãoapenasdoisexemplaresdaenormelistaqueseestendedaArgentinaaoMéxico).

Àmedidaqueomitodesceparaocentro-suldoBrasil,elevaisetransformando,porforçadainfluênciaeuropeiaeafricana,atéseconverternomolequequehojeconhecemos.

SegueumabrevedescriçãodoSaci:OSaciéummolequedeumapernasó–muitoraramente

apresentadocomduas–eaparecegeralmentenu,portandoapenasumacarapuçavermelhanacabeça.(Acarapuçamágicaéumelementoimportadodeseusprotótiposeuropeus–osanõeseduendestambémpossuemgorrosencantados,capazesdeoperarprodígios–,emboraalgunsnacionalistasinveteradosqueiramvernacarapuçaumameraadaptaçãodacabeleiravermelhadocurupira,sematentarparaofatodequetambémonossomolequedospésinvertidosestárepletodetraçosalienígenas.)AlémdetornaroSaciinvisível,acarapuça,umavezarrancadadasuacabeça,temodomdepremiaroladrãocompedidosmágicos.

OSaciépersonagemtraquinasporexcelência:alémdeextraviarviajantesedepromovertodasortedebagunçasnolar,gostamuito

Page 196: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

tambémdemontaremcavalosepromoverdisparadasnoturnas,fazendoumamaçarocanascrinasdosbichos.Fumafeitoumcondenadoeperdeasestribeirascomtodoviajantequeserecusaareabasteceroseucachimbo.Andainvariavelmentenointeriordeumredemoinhoepodeserapanhadoseocaçadordesacisatirar,bemnomeio,umapeneirainvertida,trançadaemformadecruz,ouumterçoouumrosáriodecapim.Algunstambémoapresentamcomasmãosfuradas,outrodetalheimportado,retiradodoseuprotótipoportuguês,oFradinhodaMãoFurada,primo-irmãodaPisadeiraedeoutrasentidadesmaléficasdopesadelo.(Asmãosfuradassãoparaimpedirqueavítimamorrasufocadaduranteassuasinvestidasnoturnas.)

Page 197: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

TUTU

IrmãodoBicho-PapãoedoBoidaCaraPreta,oTutuéumacriaturatodanegra,semter,porém,formadiscernívelalguma.(ApalavraTutu,segundoCâmaraCascudo,provémdotermoafricanoquitutu,quesignifica“ogro”ou“papão”.)

ApesardenãosertãopopularquantooBicho-Papão,quechegouavirartermoproverbial,oTutuésenhordosterroresnoturnosinfantisnaBahia,emPernambuco,noRiodeJaneiroeemMinasGerais.

Existemváriasmodalidadesdacriatura,dasquaisamaissingularéadoTutu-zambê,que,alémdenãopossuirforma,nãopossuitambémacabeça.NaBahia,porsuavez,oTutudeixadeserumamerasombraparaassumiraformaexplícitadeumporco-do-mato,graçasàsemelhançadostermostutuecaititu.(Ocaititu,ouqueixada,éumaespéciedeporcoselvagem,montariaprediletadoCaiporanortista.)

Segundoacrença,oTutupersegueascriançasarteirase,principalmente,aquelasquenãoqueremdormir.Omito,segundoCâmaraCascudo,éimportadodaEuropaedaÁfrica.Nossasmãesindígenas,aocontrário,preferiaminvocar,numaadmirávelliçãodedelicadeza,oauxíliodospássarosouanimaisdesonoprolongado,afimdequeoemprestassemaseusindiozinhosinsones.(Acatipuru,emprestateusono/parameufilhodormir.../Iacuturu,emprestateusono/parameupequenofilhodormir...,diz,comonumaoração,osuaveacalanto.)

Page 198: 100 Lendas do Folclore Brasileiro - A.S Franchini.pdf

ZUMBI

OZumbiéoutracriaçãobrasileiracalcadanotipouniversalmenteconhecidodomorto-vivo,emboraaquielesejaumfantasmaincorpóreo,enãoumcadáverteleguiado,comoestamosacostumadosavernasrecorrentesversõescinematográficas.Apesardisso,tornou-sequaseimpossíveldissociaraimagemdeumedeoutro,detalformaque,namentalidadepopular,osdoispersonagenstornaram-sesósias.

Naversãobrasileira,porém,oZumbiémais“elétrico”egostadedarsustonaspessoas,enquantoomorto-vivodosfilmes,mesmoquandoestáempenhadoemestraçalharematar,ofazmergulhadonumestadodeapatiacatatônica.

Zumbiacaboutornando-seemblema,também,domaiorheróinegrodanossanacionalidade,oguerreiroZumbidosPalmares,quenadatinhadeapático.

Dizanossacrendice–eesteéumtraçorealmenteoriginaldonossoZumbi–que,quantomaispertoavítimaestádele,maiselecresceemestatura,inclinando-separadiantedeumaformasinistra.

Graçasàorigemafricanadotermo–nzumbi,“fantasma”–,oZumbiénormalmentevistocomoumhomemnegro,masnadaimpedequepossamosverpasseandopelasnossasmatasecidadesversõesétnicasmaisclarasdoseramedrontador.

AfamadoZumbiémaisconsistentenosestadosdaBahia,doRio,deMinasedeSergipe.

FIM