10.2.5_Poetas_classicistas

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FURG – ILA – Literatura Portuguesa I – prof. Artur Vaz – Classicismo português (1527-1580) - 2010 1. SÁ DE MIRANDA (1481 -1558) 1 Desarrezoado amor, dentro em meu peito Tem guerra com a razão. Amor que jaz I já de muitos dias, manda e faz Tudo o que quer, a torto e a direito. Não espera razões, tudo é despeito, Tudo soberba e força, faz, desfaz, Sem respeito nenhum, e quando em paz Cuidais que sois, então tudo é desfeito. Doutra parte a razão tempos espia, Espia ocasiões de tarde em tarde, Que ajunta o tempo: em fim vem o seu dia. Então não tem lugar certo onde aguarde Amor; trata treições, que não confia Nem dos seus. Que farei quando tudo arde? 2. SÁ DE MIRANDA O sol é grande, caem co’a calmas as aves Do tempo em tal sazão que soe ser fria. Esta água que d’alto cai acordar-me-ia? Do sono não, mas de cuidados graves. Ó cousas todas vãs, todas mudaves! Qual é tal coração qu’em vós confia? Passam os tempos, vai dia trás dia, Incertos muito mais que ao vento as naves. Eu vira já aqui sombras, vira flores, Vi tantas águas, vi tanta verdura, As aves todas cantavam d’amores. Tudo é seco e mudo, e de mestura, Também mudando-m’eu fi d’outras cores, E tudo o mais renova: isto é sem cura. 3 - ANTONIO FERREIRA 2 Ó olhos, donde Amor suas flechas tira Contra mim, cuja luz me espanta e cega; 1 GARCIA, Alexandre M. (org.). Poesia de Sá de Miranda. Lisboa: Editoral Comunicação, 1984. 2 HUE, Sheila Moura. Antologia de poesia portuguesa. Século XVI. 2. Ed. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007. Ó olhos, onde Amor se esconde, e prega As almas e, em pregando-as, se retira! Ó olhos, onde Amor amor inspira, E amor promete a todos, e amor nega; Ó olhos, onde Amor tão bem emprega, Por quem tão bem se chora e se suspira! Ó olhos, cujo fogo a neve fria Acende e queima; ó olhos poderosos De dar à noite luz, e vida à morte! Olhos, por quem mais claro nasce o dia, Por quem são os meus olhos tão ditosos, Que de chorar por vós lhes coube em sorte. 4 - DIOGO BERNARDES Nesses formosos olhos, que tão caro Me fazem custar sempre a vista deles, Quando, cruel Senhora, verei neles Algum sinal de amor, escuro ou claro? Não vêem eles nos meus um vivo faro De fogo, que no peito entra por eles? Do mesmo fogo não vêem sair aqueles Suspiros tristes, prova de amor raro? Se só num volver d’olhos tenho a vida, Que vos custa, Senhora, socorrer-me Com os volver a mim, para que viva? E se vos custa menos ver perder-me, Logo do triste peito se despida A vital aura leve, e fugitiva. 5 - FERNÃO RODRIGUES LOBO SOROPITA Cabelo em ricos laços ordenado De outro ouro de mais preço que Amor cria, Olhos que em vós trazeis o claro dia Que gasta a sombra vã de meu cuidado, 1

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1. SÁ DE MIRANDA (1481 -1558) 1 Desarrezoado amor, dentro em meu peitoTem guerra com a razão. Amor que jazI já de muitos dias, manda e fazTudo o que quer, a torto e a direito.

Não espera razões, tudo é despeito,Tudo soberba e força, faz, desfaz,Sem respeito nenhum, e quando em pazCuidais que sois, então tudo é desfeito.

Doutra parte a razão tempos espia,Espia ocasiões de tarde em tarde,Que ajunta o tempo: em fim vem o seu dia.

Então não tem lugar certo onde aguardeAmor; trata treições, que não confiaNem dos seus. Que farei quando tudo arde?

2. SÁ DE MIRANDA O sol é grande, caem co’a calmas as avesDo tempo em tal sazão que soe ser fria.Esta água que d’alto cai acordar-me-ia?Do sono não, mas de cuidados graves.

Ó cousas todas vãs, todas mudaves!Qual é tal coração qu’em vós confia?Passam os tempos, vai dia trás dia,Incertos muito mais que ao vento as naves.

Eu vira já aqui sombras, vira flores,Vi tantas águas, vi tanta verdura,As aves todas cantavam d’amores.

Tudo é seco e mudo, e de mestura,Também mudando-m’eu fi d’outras cores,E tudo o mais renova: isto é sem cura.

3 - ANTONIO FERREIRA2

Ó olhos, donde Amor suas flechas tiraContra mim, cuja luz me espanta e cega;Ó olhos, onde Amor se esconde, e pregaAs almas e, em pregando-as, se retira!

Ó olhos, onde Amor amor inspira,E amor promete a todos, e amor nega;Ó olhos, onde Amor tão bem emprega,Por quem tão bem se chora e se suspira!

Ó olhos, cujo fogo a neve friaAcende e queima; ó olhos poderososDe dar à noite luz, e vida à morte!

Olhos, por quem mais claro nasce o dia,Por quem são os meus olhos tão ditosos,Que de chorar por vós lhes coube em sorte.1 GARCIA, Alexandre M. (org.). Poesia de Sá de Miranda. Lisboa: Editoral Comunicação, 1984.2 HUE, Sheila Moura. Antologia de poesia portuguesa. Século XVI. 2. Ed. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007.

4 - DIOGO BERNARDESNesses formosos olhos, que tão caroMe fazem custar sempre a vista deles,Quando, cruel Senhora, verei nelesAlgum sinal de amor, escuro ou claro?

Não vêem eles nos meus um vivo faroDe fogo, que no peito entra por eles?Do mesmo fogo não vêem sair aquelesSuspiros tristes, prova de amor raro?

Se só num volver d’olhos tenho a vida,Que vos custa, Senhora, socorrer-meCom os volver a mim, para que viva?

E se vos custa menos ver perder-me,Logo do triste peito se despidaA vital aura leve, e fugitiva.5 - FERNÃO RODRIGUES LOBO SOROPITACabelo em ricos laços ordenadoDe outro ouro de mais preço que Amor cria,Olhos que em vós trazeis o claro diaQue gasta a sombra vã de meu cuidado,

Boca a cujos rubis Amor tem dadoOutra graça, outro ser, outra valia,Mãos de branco marfim que as almas liaPor quem o coração me foi roubado,Estranho padecer, doce perigo,Brando enleio que Amor no mundo pôsPor comunicar mais seus bens conosco,

Vós estais lá sem mim, eu cá sem vós,Mas nem vós deixais cá de estar comigo,Nem eu deixarei lá de estar convosco.

6 - PERO DE ANDRADE CAMINHAUns cabelos vi eu que embaraçadosOs olhos me deixaram, a luz perdidaQuase toda, e de todo alma vencida,E os pensamentos todos enlaçados.

Sem ordem, sem concerto derramadosMe tem desconcertada e triste a vida, Tudo em mim tem vencido, arrependidaNunca a alma já será destes cuidados.

Rodeados os vi de mil Amores,E vi outros mil Amores escondidos,Fazendo para as vidas muitos laços.

Quisera-me ocupar em seus louvores,Faltaram-me as palavras, e os sentidos,

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Tudo ali foram medos e embaraços. 7 - FERNÃO RODRIGUES LOBO SOROPITAQue leite foi cruel o que mamasteQue em teu peito imprimiu tão grã crueza?Que tigre te gerou de tal beleza,A que bafo de fera te criaste?

Por que brenhas incógnitas andaste,Que terras, montes, vales de aspereza,Que serras, por que partes de dureza,Que gente desumana conversaste?

Que peito haverá que não se abrande,Por mais e mais que tenha de mui duro,E que ao meu negue piedade,

Ou quem buscando a morte sempre andeA um sobejo amor tão limpo e puro,Quem, senão vossa grande crueldade?

8 - CAMÕESFermoso Tejo meu, quão diferentete vejo e vi, me vês agora e viste:turvo te vejo a ti, tu a mi triste;claro te vi eu já, tu a mi contente.

A ti foi-te trocando a grossa enchente,a quem teu largo campo não resiste;a mi trocou-me a vista, em que consistemeu viver contente ou descontente.

Já que somos no mal participantes,sejamo-lo no bem. Ah, quem me deraque fôssemos em tudo semelhantes!

Lá virá então a fresca primavera:tu tornarás a ser quem eras dantes,eu não sei se serei quem dantes era.9 - D. MANUEL DE PORTUGALQueimado sejas tu e teus enganosAmor escandaloso, Amor cruel,Queimadas tuas flechas, teu cordel,E o arco com que fazes tantos danos.

Os teus prometimentos tão profanos,E teus afagos mais doces que o mel,Veja-os eu todos, pois se tornam felNo fogo em que queimas os humanos.

Veja-te eu, os olhos desatados,E vejas tu, os com que me mataste,Porque bem bastaria tal vingança.

Irias com os mais desesperados,

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Morreras mal, inda que bem mataste,Perdendo o remédio da esperança.10 - DIOGO BERNANDESEu me aparto de vós, campos do Tejo,Quando menos temia esta partida,E, se minh’alma vai à dor rendida,Nos olhos o vereis com que vos vejo.

Pequenas esperanças, mal sobejo,Vontade, que a Razão leva vencida,Asinha darão fim à triste vida,Se vos não torno a ver, como desejo.

Em tanto, nunca verá a noite nem diaApartar-se de vós minha lembrança,Amor, que vai comigo, o certifica.

Andarão sempre em minha companhia,Enquanto na tornada houver tardança,Saudades do bem que em vós me fica.

11 - CAMÕESEu me aparto de vós, ninfas do Tejo,Quando menos temia esta partida,E se minh’alma vai entristecida,Nos olhos o vereis com que vos vejo.

Pequenas esperanças, mal sobejo,Vontade que a razão leva vencidaAsinha darão triste fim à vida,Se vos não torno a ver como desejo.

Nunca a noite, entretanto, nunca o diaVerá de mim partir vossa lembrança,Amor que vai comigo o certifica.

Por mais que na tornada haja tardança,Sempre me farão triste companhiaSaudades do bem que em vós me fica.

12 - BALTAZAR ESTAÇO “A um poeta”

Que enfadonha certeza é celebrardesOs poetas profanos, olhos belos,E mais que sejam brancos, ou amarelos,Sempre verdes formosos os pintardes.

Que velhice tão certa nomeardesPor fino ouro quaisquer negros cabelos,E se os raios do sol ousaram a vê-losCos raios desse sol os comparardes.

Conceito que de usado já atormenta,Que trás canção, soneto, oitava, e trova,Ofendendo co uso toda a orelha,

Porque hoje mais agrada, e mais contenta,A novidade humilde, por ser nova,

Que a certeza sublime, sendo velha.

13 - ANDRÉ FALCÃO DE RESENDE“A Pero de Andrade Caminha”

O teu divino verso, ó raro Andrade,O esprito me levou tão altamenteCom doce som, que cria estar presenteNo sacro musal choro e irmandade.

Nem mais gosto sentira com verdade,Se no seu prado, sempre florescente,Cansado adormecera docemente,E da fonte sentira a suavidade.

Deixem pois o Parnaso e cabalina3

Água os que sua louvada sede move,Gozem de Andrade a viva e sã doutrina.

Falam por tua boca as Irmãs nove,De Apolo o alto cantar no teu se afina,Em ti do quarto céu seu saber chove.

14 - PERO DE ANDRADE CAMINHA “Resposta pelos mesmos consoantes”

Rara Falcão, rara ave desta idade,Que do Tejo voaste até o Oriente,E às Musas descobriste novamenteGlorioso nome e nova claridade:

Tu a meus versos deste autoridade,Tu me fizeste já deles contenteCom os teus, que podem confiadamenteCorrer iguais com toda antiguidade.

De teu amor minha alma é certo dina;Crê-mo, sem esperar que o tempo o prove,Mas é de tua Musa a minha indi[g]na.

Com mil louvores inda o mundo aproveQuanto com teu esprito Febo4 ensina,E com teu claro nome o seu renove.

15 - FERNÃO RODRIGUES LOBO SOROPITADamas de corte, em cujas arandelas,Copetes, fraldelhins e verdugadasSe escondem mais peçonhas disfarçadasDo que nas aparências partes belas,

Antes quero serranas mui singelas,No vestir e falar pouco atiladasQue a vossas falsas pílulas douradas,Compostas de invenções e cautelas.

As simples aldeãs bem parecidas,Para mais de três coisas tem virtude,Que são mui desiguais no vosso trato,

Estas mostras que dão não são fingidas,3 Referência a Pégaso, que fez brotar a fonte de Hipocrene.4 Febo, Sol e ‘quarto céu’ são sinônimos.

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São mui medicinais para a saúde,Dão melhor gosto, acendem mais barato.16- FREI AGOSTINHO DA CRUZ

“A quem ler”Os versos que cantei importunadoDa mocidade cega a quem seguiaQueimei (como vergonha me pedia)Chorando por haver tão mal cantado.

Se nestes não ficar tão desculpadoQuanto o mais alto estilo requeria,Não me podem negar a melhoriaDa mudança que fiz dum noutro estado.

Que vai que sejam bem ou mal aceitos?Pois não os escrevi para louvoresHumanos, pelo menos perigosos,

Senão para plantar em frios peitosDesejos de colher divinas floresÀ força de suspiros saudosos.

17 - PERO DE ANDRADE CAMINHAPassa o dia e a noite, o mês e o ano,Segue ao brando verão o inverno duro,O dia agora é claro, agora escuro,O sol ora aproveita, ora faz dano.

Na calma à doce sombra o alegre enganoDe seu amor, chora a ave em canto puro,Depois o tempo que em nada é seguroLhe dá triste silêncio e desengano.

Tudo tem suas mudanças, corre o tempoOra assim, ora assim, se de durezaOntem usou, hoje usa de brandura.

Em mim só uma tristíssima tristezaSinto sempre tão firme, grave e dura,Que não abranda ou muda ano nem tempo.

18 - DIOGO BERNARDES “Em louvor de Luís de Camões”

Quem louvará Camões que ele não seja?Quem não vê que cansa em vão engenho e arte?Ele se louva a si só, em toda a parte,E toda parte ele só enche d’inveja.

Quem juntos num esprito ver desejaQuantos dons, entre mil Febo reparte(Quer ele de Amor cante, quer de Marte)Por mais não desejar, ele só veja.

Honrou a pátria em tudo, imiga sorteA fez, com ele só, ser encolhidaEm prêmio de estender dela a memória.

Mas se lhe foi fortuna escassa em vida,Não lhe pôde tirar depois da morte

Um rico emparo5 de sua fama e glória.19 - DIOGO BERNARDESVós, que de amor cruel nunca sentistesO fogo onde grão tempo ardi tremendo,Que mil erros notais, estou já vendo,Na lição triste destas rimas tristes.

Mas em vós, que vos vedes, ou já vistes,Em sua viva chama andar ardendo,Desculpa e piedade achar entendoDe quantas faltas nelas descobristes.

Dos mais por satisfeito me darei,Se deste vão trabalho (o que duvido)Colherem fruto algum, ou passatempo,

E quando assim não for, bem sofrerei,Até de vós não ser bem recebido,Em pena de tão mal gastado tempo.

20 - FERNÃO RODRIGUES LOBO SOROPITA“Carta de um negro a uma dama com um soneto”

Amor por vosso amor me açoita e pingaE, depois de me ter por vós assado,Cada vez contra mim mais emperrado,Não sei que birras são as que em mim vinga.

O coração que nunca lhe respinga,Às soltas que lhe pôs já costumado,Quer mais emanquecer neste cuidadoQue quanto vem do Congo e de Mandinga6.

Assim morro por vós, e tanto em graçaTomais vós esta dor que me fastia,Que não há quem de mim lembrar-vos faça.

Até que em tantos dias venha um diaQue, queixando-me ao som de uma almofaça,Me acabe de estirar na estrebaria.

21 - PERO DE ANDRADE CAMINHA“Da imitação d’Antônio Ferreira”

A imitação tem sua autoridadeEm seguir só o antigo, o escolhido;Ganha assim melhor nome e gravidadeE com razão lhe é mais louvor devido.Mas se alguém se igualar à antiguidade,Por que imitado não será e seguido?Eu a só meu Ferreira sempre imitoIgual em tudo a todo antigo esprito.

5 Emparo e amparo são sinônimos.6 Congo e Mandinga são regiões da África ocidental.

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22 - ANDRÉ FALCÃO DE RESENDE“À livraria de Bartolomeu Ferreira”

Lá onde o fértil Nilo rega e cria De plantas e animais grã variedade, Plantou a Apolo e à imortalidade Um grã pomar um Rei d’Alexandria.

Mas sem a distinção, que dar devia, Do venenoso fruto ao de bondade, E sem tirar da má letra a verdade, Só juntou copiosa livraria.

Do pátrio Tejo cá na alta ribeira, Que honras, leão benigno, e nos cultivas, Vês que pomar plantou nosso Ferreira!

Regado só de puras fontes vivas, E ornado da mão sua, douta e inteira. Que livros tem, e que obras tão altivas!

23 - LUÍS DE CAMÕES7

1. O sulmonense Ovídio8, desterrado 2. na aspereza do Ponto, imaginando 3. ver-se de seus parentes apartado;

4. sua cara mulher desamparando, 5. seus doces filhos, seu contentamento, 6. de sua pátria os olhos apartando;

7. não podendo encobrir o sentimento, 8. aos montes e às águas se queixava 9. de seu escuro e triste nascimento.

10.O curso das estrelas contemplava, 11.como, por sua ordem, discorria 12.o céu, o ar e a terra adonde estava.

13.Os peixes pelo mar nadando via, 14.as feras pelo monte, procedendo 15.como seu natural lhes permitia.

16.De suas fontes via estar nascendo 17.os saudosos rios de cristal, 18.à sua natureza obedecendo.

19.Assi só, de seu próprio natural 20.apartado, se via em terra estranha, 21.a cuja triste dor não acha igual.

22.Só sua doce Musa o acompanha, 23.nos versos saudosos que escrevia, 24.e lágrimas com que ali o campo banha.

7 CAMÕES, Luís de. Canções e elegias. Lisboa: Europa-América, 1959.8 Ovídio (séc. I a.C.), poeta latino contemporâneo de Virgílio, era de Sulmona e foi desterrado para o Ponto, na costa do Mar Negro, perto da foz do Danúbio.

25.Dest'arte me afigura a fantasia 26.a vida com que vivo, desterrado 27.do bem que noutro tempo possuía.

28.Ali contemplo o gosto já passado, 29.que nunca passará pola memória 30.de quem o tem na mente debuxado.

31.Ali vejo a caduca e débil glória 32.desenganar meu erro, co’a mudança 33.que faz a frágil vida transitória.

34.Ali me representa esta lembrança 35.quão pouca culpa tenho; e me entristece 36.ver sem razão a pena que me alcança.

37.Que a pena que com causa se padece, 38.a causa tira o sentimento dela; 39.mas muito dói a que se não merece.

40.Quando a roxa manhã, fermosa e bela, 41.abre as portas ao Sol, e cai o orvalho, 42.e torna a seus queixumes Filomela9;

43.este cuidado, que co sono atalho, 44.em sonhos me parece; que o que a gente 45.para descanso tem, me dá trabalho.

46.E depois de acordado, cegamente 47.(ou, por melhor dizer, desacordado, 48.que pouco acordo tem um descontente)

49.dali me vou, com passo carregado, 50.a um outeiro10 erguido, e ali me assento, 51.soltando a rédea toda a meu cuidado.

52.Depois de farto já de meu tormento, 53.dali estendo os olhos saudosos 54.à parte aonde tenho o pensamento.

55.Não vejo senão montes pedregosos; 56.e os campos sem graça e secos vejo 57.que já floridos vira e graciosos.

58.Vejo o puro, suave e brando Tejo, 59.com as côncovas barcas, que, nadando, 60.vão pondo em doce efeito seu desejo.

61.U’as com brando vento navegando, 62.outras, cos leves remos, brandamente 63.as cristalinas águas apartando.

64.Dali falo co’a água, que não sente 65.com cujo sentimento a alma sai 66.em lágrimas desfeita claramente.

9 Filomela, através de um mito grego, é sinônimo de rouxinol, pássaro europeu.10 Outeiro é um pequeno monte.

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67.Ó fugitivas ondas, esperai! 68.que, pois me não levais em companhia,69.ao menos estas lágrimas levai,

70.até que venha aquele alegre dia 71.que eu vá onde vós is, contente e ledo. 72.Mas tanto tempo quem o passaria?

73.Não pode tanto bem chegar tão cedo, 74.porque primeiro a vida acabará 75.que se acabe tão áspero degredo.

76.Mas esta triste morte que virá, 77.se em tão contrário estado me acabasse, 78.a alma impaciente adonde irá?

79.Que, se às portas tartáreas chegasse, 80.temo que tanto mal pola memória 81.nem ao passar de Lete11 lhe passasse.

82.Que, se a Tântalo e Tício12 for notória 83.a pena com que vai que a atormenta, 84.a pena que lá têm terão por glória.

85.Essa imaginação me acrescenta 86.mil mágoas no sentido, porque a vida 87.de imaginações tristes se sustenta.

88.Que, pois de todo vive consumida, 89.por que o mal que possui se resuma, 90.imagina na glória possuída,

91.até que a noite eterna me consuma, 92.ou veja aquele dia desejado, 93.em que Fortuna faça o que costuma;

94.se nela há mudar um triste estado.

24 - LUÍS DE CAMÕES 1. A instabilidade da Fortuna, 2. os enganos suaves de Amor cego, 3. (suaves, se duraram longamente), 4. direi, por dar à vida algum sossego; 5. que, pois a grave pena me importuna, 6. importune meu canto a toda a gente. 7. E se o passado bem co mal presente 8. me endurece a voz no peito frio, 9. o grande desvario 10.dará de minha pena sinal certo, 11.que um erro em tantos erros é concerto. 12.E, pois nesta verdade me confio 13.(se verdade se achar no mal que digo), 14.saiba o mundo de Amor o desconcerto, 15.que já co’a Razão se fez amigo, 16.só por não deixar culpa sem castigo. 11 Na mitologia grega, quem bebia a água do rio Lete acabava por esquecer de sua vida e do seu passado.12 Personagem cujo fígado é eternamente bicado por uma águia durante o dia e reconstuído pela noite.

17.Já Amor fez leis, sem ter comigo algu’a; 18.já se tornou, de cego, arrazoado, 19.só por usar comigo sem-razões. 20.E, se em algu’a cousa o tenho errado, 21.com siso, grande dor não vi nenhu’a, 22.nem ele deu sem erros afeições. 23.Mas, por usar de suas isenções, 24.buscou fingidas causas por matar-me; 25.que, para derrubar-me 26.no abismo infernal de meu tormento, 27.não foi soberbo nunca o pensamento, 28.nem pretende mais alto alevantar-me 29.daquilo que ele quis; e se ele ordena 30.que eu pague seu ousado atrevimento, 31.saiba que o mesmo Amor que me condena 32.me fez cair na culpa e mais na pena.

33.Os olhos que eu adoro, aquele dia 34.que desceram ao baixo pensamento, 35.n'alma os aposentei suavemente; 36.e pretendendo mais, como avarento, 37.o coração lhe dei por iguaria, 38.que a meu mandado tinha obediente. 39.Porém como ante si lhe foi presente 40.que entenderam o fim de meu desejo, 41.ou por outro despejo, que a língua 42.descobriu por desvario, 43.de sede morto estou posto num rio, 44.onde de meu serviço o fruto vejo; 45.mas logo se alça se a colhê-lo venho, 46.e foge-me a água, se beber porfio13; 47.assi que em fome e sede me mantenho: 48.não tem Tântalo14 a pena que eu sustenho.

49.Depois que aquela em quem minh'alma vive

50.quis alcançar o baixo atrevimento, 51.debaixo deste engano a alcancei: 52.a nuvem do contino pensamento 53.ma afigurou nos braços, e assi a tive, 54.sonhando o que acordado desejei. 55.Porque a meu desejo me gabei 56.de alcançar um bem de tanto preço, 57.além do que padeço, 58.atado a u’a roda estou penando, 59.que em mil mudanças me anda rodeando,60.onde, se a algum bem subo, logo deço.61.E assi ganho e perco a confiança; 62.e assi de mi fugindo, tras mi ando; 63.e assi me tem atado ua vingança, 64.como Ixião15, tão firme na mudança.

13 Porfiar é insistir.14 Por ter roubado os manjares dos deuses para dá-los aos homens, Tântalo foi condenado a estar perto de água, que se afastava quando tentava bebê-la, e sob árvores que encolhiam os ramos quando lhes tentava colher os frutos.15 O mito de Ixião é representado por uma roda eternamente em movimento, parado e em movimento ao mesmo tempo.

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65.Quando a vista suave e inumana 66.meu humano desejo, de atrevido, 67.cometeu, sem saber o que fazia 68.(que de sua beleza foi nacido69.o cego Moço, que, co a seta insana, 70.o pecado vingou desta ousadia), 71.e afora este mal que eu merecia, 72.me deu outra maneira de tormento: 73.que nunca o pensamento, 74.que sempre voa du’a a outra parte, 75.destas entranhas tristes não se farte, 76.imaginando sobre o famulento16, 77.quanto mais come, mais está crescendo, 78.porque de atormentar-me não se aparte.79.Assi que para a pena estou vivendo, 80.sou outro novo Tício, e não me entendo.

81.De vontades alheias, que roubava, 82.e que enganosamente recolhia 83.em meu fingido peito, me mantinha. 84.De maneira o engano lhe fingia, 85.que despois que a meu mando as

sojugava, 86.com amor as matava, que eu não tinha. 87.Porém, logo o castigo que convinha 88.o vingativo Amor me fez sentir, 89.fazendo-me subir 90.ao monte da aspereza que em vós vejo, 91.co pesado penedo do desejo, 92.que do cume do bem me vai cair.93.Torno a subi-lo ao desejado assento, 94.torna a cair-me; embalde, enfim, pelejo. 95.Não te espantes, Sísifo17, deste alento, 96.que as costas o subi do sofrimento.

97.Dest'arte o sumo bem se me oferece 98.ao faminto desejo, porque sinta 99.a perda de perdê-lo mais penosa. 100. Como o avaro a quem o sonho pinta 101. achar tesouro grande, onde enriquece 102. e farta sua sede cobiçosa. 103. e acordando com fúria pressurosa 104. vai cavar o lugar onde sonhava, 105. mas tudo o que buscava 106. lhe converte em carvão a desventura; 107. ali sua cobiça mais se apura, 108. por lhe faltar aquilo que esperava: 109. dest'arte Amor me faz perder o siso. 110. Porque aqueles que estão na noite

escura, 111. nunca sentirão tanto o triste abiso, 112. se ignorarem o bem do Paraíso.

113. Canção, nô mais, que já não sei que digo;

16 Famulento é sinônimo de faminto.17 Personagem mitológico obrigado a levar uma pedra ao topo do monte, que então cai e tem que repetir a tarefa.

114. mas porque a dor me seja menos forte, 115. diga o pregão a causa desta morte.

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