103 151 Direitos a Comunicacao Direitos Humanos Hamelink

49
DIREITOS HUMANOS PARA A SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO Cees J. Hamelink RESUMO O artigo propõe explorar como “os desenvolvimentos informativos” interagem com as sociedades em que ocorrem. Esses desenvolvimentos referem-se ao significado crescente dos produtos da informação (tais como notícias, propaganda, entretenimento e dados científicos) e de serviços de informação (tais como aqueles fornecidos pelo World Wide Web); os volumes crescentes da informação gerados, coletados, arma- zenados e disponibilizados; o papel essencial da tecnologia de infor- mação como a espinha dorsal de muitos serviços sociais e como o motor da produtividade econômica moderna. Propõe ainda uma tipologia dos desenvolvimentos informacionais como interações com sociedades e questiona as formas em que os padrões internacionais de Direitos Humanos são pertinentes a essas interações. Aponta para a necessidade do estabelecimento dos Direitos à Co- municação como protagonista e fundamento essencial de qualquer sistema democrático. INTRODUÇÃO Sociedade da Informação é um conceito ambíguo, ainda sem significado preciso ou definição estabelecida. Apesar dos argumentos sobre suas fraquezas, esse conceito se tornou parte do discurso político, econômico e cultural em nível internacional. Pode-se questionar se em algum lugar do mundo atual existe uma Sociedade da Informação. Talvez seja mais apropriado dizer que algumas HAMELINK, C. J. Direitos Humanos para a Sociedade da Informação. In MARQUES DE MELO, J.; SATHLER, L. Direitos à Comunicação na Sociedade da Informação. São Bernardo do Campo, SP: Umesp, 2005.

Transcript of 103 151 Direitos a Comunicacao Direitos Humanos Hamelink

Page 1: 103 151 Direitos a Comunicacao Direitos Humanos Hamelink

DIREITOS HUMANOS PARA ASOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

Cees J. Hamelink

RESUMOO artigo propõe explorar como “os desenvolvimentos informativos”

interagem com as sociedades em que ocorrem. Esses desenvolvimentos

referem-se ao significado crescente dos produtos da informação (tais

como notícias, propaganda, entretenimento e dados científicos) e de

serviços de informação (tais como aqueles fornecidos pelo World WideWeb); os volumes crescentes da informação gerados, coletados, arma-

zenados e disponibilizados; o papel essencial da tecnologia de infor-

mação como a espinha dorsal de muitos serviços sociais e como o motor

da produtividade econômica moderna.

Propõe ainda uma tipologia dos desenvolvimentos informacionais como

interações com sociedades e questiona as formas em que os padrões

internacionais de Direitos Humanos são pertinentes a essas interações.

Aponta para a necessidade do estabelecimento dos Direitos à Co-

municação como protagonista e fundamento essencial de qualquer

sistema democrático.

INTRODUÇÃOSociedade da Informação é um conceito ambíguo, ainda sem significado

preciso ou definição estabelecida. Apesar dos argumentos sobre suas

fraquezas, esse conceito se tornou parte do discurso político, econômico e

cultural em nível internacional.

Pode-se questionar se em algum lugar do mundo atual existe uma

Sociedade da Informação. Talvez seja mais apropriado dizer que algumas

HAMELINK, C. J. Direitos Humanos para a Sociedade da Informação. In MARQUES

DE MELO, J.; SATHLER, L. Direitos à Comunicação na Sociedade da Informação. São

Bernardo do Campo, SP: Umesp, 2005.

Page 2: 103 151 Direitos a Comunicacao Direitos Humanos Hamelink

DIREITOS À COMUNICAÇÃO NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

104

sociedades são confrontadas com “desenvolvimentos informacionais”. Essa

noção se refere à crescente importância dos produtos de informação (tais

como notícias, publicidade, entretenimento e dados científicos) e serviços de

informação (como os oferecidos pela World Wide Web); os crescentes volumes

de informação gerada, coletada, armazenada e disponibilizada; o papel

essencial da tecnologia da informação como espinha dorsal de muitos

serviços sociais e como motor da produtividade econômica e a entrada do

processamento de informação nas transações comerciais e financeiras. O

confronto social com os desenvolvimentos informacionais ocorre de

diversificadas formas, em diferentes níveis, com variadas velocidades e em

contextos históricos específicos. As sociedades concebem suas respostas a

esses desenvolvimentos por meio de políticas, planos e programas, seja com

iniciativas centralizadas ou com atividades descentralizadas, nos níveis

nacional e local. Muitas dessas iniciativas são motivadas por razões econô-

micas mostram-se fortemente tecnocêntricas. Os atores envolvidos são tanto

instituições públicas como organizações privadas, atua-se, cada vez mais, na

forma de parcerias público-privadas. As sociedades podem responder aos

desenvolvimentos informacionais com o estabelecimento de leis ou com

modelos de auto-regulação.

Este capítulo propõe uma tipologia dos desenvolvimentos

informacionais como interações com sociedades e questiona as formas em

que os padrões internacionais de Direitos Humanos são pertinentes a essas

interações.

POR QUE DIREITOS HUMANOS?A decisão de analisar aquilo que o campo dos Direitos Humanos

internacionais pode oferecer à discussão dos desenvolvimentos infor-

macionais é, obviamente, uma opção normativa. Esses desenvolvimentos

também podem ser abordados pelo ângulo dos acordos internacionais de

comércio ou pelas convenções técnicas de padronização. Este capítulo é

inspirado pela noção de que os desenvolvimentos informacionais afetam as

pessoas em múltiplos níveis, sendo moldados e governados por iniciativas

humanas. As futuras sociedades da informação serão as configurações

sociopolíticas nas quais os indivíduos e os grupos sociais conduzirão suas

vidas, trabalharão, amarão, jogarão, desfrutarão e sofrerão. Desta forma, é

uma opção legítima de abordagem, de olhar para o futuro e tentar construir

algo novo de forma a atender melhor aos interesses do povo.

Page 3: 103 151 Direitos a Comunicacao Direitos Humanos Hamelink

DIREITOS HUMANOS PARA A SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

105

Uma definição do interesse popular é uma tarefa complexa, porque não

pode ser expressa de uma forma singular, nem um fórum claramente

identificável. Por isso, o interesse popular precisa ser inferido a partir de um

conjunto de padrões, claramente identificável e sobre o qual haja comum

acordo. Isso parece quase impossível, dado que, num mundo multicultural,

com sociedades multiestratificadas, as pessoas terão interesses distintos e

farão escolhas normativas diferentes. Contudo, apesar das tentações de um

relativismo normativo e a justificada suspeita de julgamentos de valor

unitários, é possível inferir o interesse popular dos padrões universalmente

aceitos. Esses padrões são dados pelos Direitos Humanos internacionais. Os

Direitos Humanos formam, atualmente, o único conjunto universalmente

disponível de padrões para a dignidade e a integridade de todos os seres

humanos. É no interesse de todas as pessoas que eles são respeitados. As

disposições das leis de Direitos Humanos internacionais representam os

interesses de homens, mulheres e crianças, cidadãos comuns, seja como

indivíduos, ou como grupos e comunidades.

Existe, no presente, consenso político internacional sobre Direitos

Humanos. A comunidade política global tem reconhecido a existência dos

Direitos Humanos, sua universalidade e indivisibilidade, e tem aceito a

concepção de formas para o seu contínuo reforço. Em 1993, a Conferência de

Viena sobre Direitos Humanos reforçou a natureza universal dos padrões dos

Direitos Humanos. Isso significa que as leis internacionais de Direitos

Humanos representam, ainda que ineficazmente, um conjunto universalmente

aceito de reivindicações morais. Desta forma, temos um guia normativo

legítimo para as respostas das sociedades aos desenvolvimentos informacionais.

INTERAÇÕES ENTRE SOCIEDADES EDESENVOLVIMENTOS INFORMACIONAIS

As sociedades e os desenvolvimentos informacionais interagem de

muitas formas. Essas interações podem ser diferenciadas por quatro

dimensões, citadas a seguir.

Dimensão tecnológica da interação. A tecnologia objetivamente desempenha

papel essencial nos desenvolvimentos informacionais. O escopo, volume e

impacto desses desenvolvimentos são, em larga medida, moldados pelas

inovações tecnológicas e as oportunidades que elas criam. A interação é um

processo no qual as forças sociais e os interesses também contribuem para

Page 4: 103 151 Direitos a Comunicacao Direitos Humanos Hamelink

DIREITOS À COMUNICAÇÃO NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

106

moldar as inovações tecnológicas. Nessa dimensão, são colocadas questões

sobre o controle e o acesso à tecnologia e a determinação de quem se beneficia

dela, bem como os riscos sociais embutidos nas inovações e suas aplicações.

Dimensão cultural da interação. As formas das sociedades lidarem com a

provisão e o processamento de informação são determinadas por perspectivas

culturais. Conteúdos informacionais são produtos culturais. A informação é

parte de uma produção cultural da sociedade. Entre as questões importantes

dessa dimensão está o compartilhamento do conhecimento e a proteção da

identidade cultural.

Dimensão sociopolítica da interação. Informação e tecnologia de informação

têm impacto no desenvolvimento, no progresso e no sistema político das

sociedades. Entre as questões importantes relativas a essa dimensão, temos

a liberdade de opinião e de discurso político, a proteção contra os discursos

abusivos e as necessidades informacionais das sociedades.

Dimensão econômica da interação. Surgiram mercados globais de informação.

Os interesses econômicos estão de sobreaviso no tocante à proteção da

propriedade do conteúdo. Há questões de Responsabilidade Social Empresarial1

e de auto-determinação das nações no desenvolvimento econômico.

DIMENSÕES E DISPOSIÇÕES DE DIREITOS HUMANOSQuais disposições de Direitos Humanos internacionais são relevantes

para essas quatro dimensões? Ou, em outras palavras, como deveria ser um

modelo normativo que estabelecesse padrões para as formas pelas quais as

sociedades devessem responder aos desenvolvimentos informacionais?

Cada uma das quatro dimensões é considerada nas próximas páginas,

com descrição detalhada das disposições relevantes existentes sobre elas nos

vários acordos internacionais. No final de cada seção, são listados os

instrumentos considerados relevantes.

1. Nota dos organizadores (N.O.) Corporate Social Responsibility (CSR), compreendida aqui não

como filantropia empresarial ou marketing relacionado a causas, mas sim como uma das “funçõesorganizacionais inerentes, no fluxo das relações e interações que se estabelecem entre sistemas empresariaisespecíficos e o sistema social mais amplo” (ver FISCHER, Rosa Maria. O desafio da colaboração:práticas de responsabilidade social entre empresas e terceiro setor. São Paulo: Editora Gente, 2002).

Trata de como a responsabilidade das empresas vai para muito além do lucro, visão

indispensável para o bem-estar da Sociedade.

Page 5: 103 151 Direitos a Comunicacao Direitos Humanos Hamelink

DIREITOS HUMANOS PARA A SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

107

Sobre tecnologia e Direitos Humanos

Compartilhando os benefícios do desenvolvimentoda tecnologia

O direito de acesso à tecnologia é disposto no artigo 27.1 da Declaração

Universal dos Direitos Humanos (DUDH), onde se afirma que “todos têm

o direito de ... partilhar do avanço científico e de seus benefícios”. Este

direito é inspirado pelo princípio moral básico da eqüidade e pela noção de

que ciência e tecnologia pertencem à herança comum da humanidade.

Até 1968 não havia debate sério na comunidade internacional sobre a

relação direta entre o desenvolvimento científico e tecnológico e a proteção

dos Direitos Humanos. A seguinte declaração foi adotada na Conferência

Internacional de Teerã, sobre Direitos Humanos, em 1968:

Embora as descobertas científicas recentes e os avanços tecnológicos

tenham aberto vastas perspectivas para o processo econômico, social e

cultural, esses desenvolvimentos podem, todavia, colocar em risco os direitos

e liberdades dos indivíduos e vão exigir contínua atenção (UN, 1968).

A Conferência recomendou, na Resolução XI, “que as organizações da

família da ONU devem assumir um estudo sobre os problemas relativos aos

Direitos Humanos advindos dos desenvolvimentos na ciência e tecnologia”.

A Assembléia Geral da ONU aprovou essa recomendação e pediu à Secre-

taria Geral (Resolução 2450, 19/12/1968) para focar este estudo

particularmente em:

• respeito à privacidade dos indivíduos e à integridade e soberania das

nações, à luz dos avanços das tecnologias, particularmente as de arma-

zenamento de dados;

• proteção da personalidade humana e sua integridade física e intelectual,

à luz dos avanços na biologia, medicina e bioquímica;

• usos de aparelhos eletrônicos que possam afetar os direitos das

pessoas e os limites que devem ser colocados a esses usos em uma sociedade

democrática e

• de uma forma mais geral, o equilíbrio que deve ser estabelecido entre

o progresso científico e tecnológico e o avanço intelectual, espiritual, cultural

e moral da humanidade.

Page 6: 103 151 Direitos a Comunicacao Direitos Humanos Hamelink

DIREITOS À COMUNICAÇÃO NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

108

Em 11 de dezembro de 1969, a Assembléia Geral da ONU adotou a

Declaração sobre o Progresso Social e o Desenvolvimento. Em seu artigo 13,

esta Declaração dispõe sobre:

• o compartilhamento eqüitativo dos avanços científicos e tecnológicos

entre os países desenvolvidos e os em desenvolvimento, e um crescimento

balanceado no uso da ciência e tecnologia, em benefício do desen-

volvimento social;

• o estabelecimento de um equilíbrio harmônico entre o progresso

científico, tecnológico e material e o avanço intelectual, espiritual, cultural e

moral da humanidade; e;

• a proteção e a melhoria do meio-ambiente.

Com base no estudo que a Assembléia Geral havia pedido em 1968, e

também em vários relatórios relacionados ao tema, a Comissão de Direitos

Humanos deu considerável atenção ao tema em sua 27ª sessão, em 1971,

tendo destacado, particularmente:

• a proteção dos Direitos Humanos nos campos econômico, social e

cultural, de acordo com a estrutura e os recursos dos estados e o nível

científico e tecnológico que eles alcançaram, bem como a proteção do direito

ao trabalho, nas condições de automação e mecanização da produção;

• o uso dos desenvolvimentos científicos e tecnológicos para ampliar o

respeito pelos Direitos Humanos e legitimar interesses de outras pessoas e

o respeito a padrões morais e de legislação internacional mais genericamente

reconhecidos; e,

• a prevenção de que as conquistas da ciência e tecnologia sejam usadas

para restringir direitos e liberdades democráticas fundamentais.

Nos anos de 1971 a 1976 uma série de relatórios foram produzidos,

lidando com os problemas de proteção à privacidade, uso de satélites de

observação, processos de automação, procedimentos de diagnose pré-natal,

introdução de químicos na produção de alimentos, deterioração do meio-

ambiente e o poder destrutivo dos modernos sistemas de armamentos.

Na Resolução 3026 (18/12/1972), a Assembléia Geral da ONU pediu à

Comissão de Direitos Humanos que analisasse a possibilidade de elaboração

de um instrumento legal internacional para tratar da questão do fortalecimento

dos Direitos Humanos à luz dos desenvolvimentos científicos e tecnológicos.

Em 1973, a Assembléia Geral (Resolução 3150) conclamou os estados a

ampliar a cooperação internacional para assegurar que os desenvolvimentos

Page 7: 103 151 Direitos a Comunicacao Direitos Humanos Hamelink

DIREITOS HUMANOS PARA A SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

109

científicos e tecnológicos fossem utilizados para fortalecer a paz, a segurança,

a realização do direito dos povos à auto-determinação, o respeito à soberania

nacional e o propósito do desenvolvimento econômico e social. Solicitou-se à

Secretaria Geral a elaboração de um relatório sobre esses assuntos. O relatório,

apresentado em 1975, tratou dos efeitos nocivos da automação e da meca-

nização sobre o direito ao trabalho, os efeitos nocivos dos desenvolvimentos

científicos e tecnológicos sobre o direito à alimentação adequada, e os

problemas de um tratamento eqüitativo em relação aos impactos dos desen-

volvimentos científicos e tecnológicos no direito à saúde. O relatório também

analisou a deterioração do meio-ambiente, o problema da explosão popula-

cional e o problema especial do impacto da radiação atômica na saúde pública.

Então, em 10/11/1975, a Assembléia Geral resolveu adotar a Declaração sobre

o Uso do Progresso Científico e Tecnológico no Interesse da Paz e para o

Benefício da Humanidade (Resolução 3384).

Os princípios-chave desta declaração são:

• cooperação internacional para assegurar que os resultados dos

desenvolvimentos científicos e tecnológicos sejam usados para fortalecer a

paz e a segurança internacional, para promover o desenvolvimento eco-

nômico e social e para realizar os Direitos Humanos e liberdades;

• medidas para assegurar que os desenvolvimentos científicos e

tecnológicos satisfaçam as necessidades materiais e espirituais de todas

as pessoas;

• um compromisso dos estados para impedir o uso dos desenvol-

vimentos científicos e tecnológicos para violar a soberania e a integridadeterritorial de outros estados, de interferir em seus assuntos internos, para

empreender guerras, para suprimir movimentos de liberação ou para exercer

políticas de discriminação racial;

• cooperação internacional para fortalecer e desenvolver a capacidade

científica e tecnológica dos países em desenvolvimento;

• medidas para estender os benefícios dos desenvolvimentos científicos

e tecnológicos para todas as camadas da população e para proteger as

camadas de menor renda dos possíveis efeitos nocivos;

• medidas para assegurar que o uso da ciência e tecnologia promova a

realização dos Direitos Humanos;

• medidas para prevenir o uso dos desenvolvimentos científicos e

tecnológicos em detrimento dos Direitos Humanos; e,

Page 8: 103 151 Direitos a Comunicacao Direitos Humanos Hamelink

DIREITOS À COMUNICAÇÃO NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

110

• ações para assegurar que as legislações nacionais sejam compatíveis

com a necessidade de garantir os Direitos Humanos num ambiente de

desenvolvimento científico e tecnológico.

Em setembro de 1975, especialistas reunidos em Genebra recomen-

daram o estabelecimento de um mecanismo internacional para abordar as

novas tecnologias do ponto de vista dos Direitos Humanos. Esta forma de

compreensão da tecnologia incluiria a avaliação dos seus possíveis efeitos

colaterais e os efeitos de longo prazo das inovações tecnológicas, pesando

suas vantagens e desvantagens. A Assembléia Geral não adotou essa

recomendação, tendo meramente pedido à Comissão de Direitos Humanos

que acompanhasse, com especial atenção, a implementação da Declaração.

Desde 1982, a Secretaria Geral relata regularmente sobre a implementação

das disposições da Declaração para a Assembléia Geral.

Nos últimos anos, a Assembléia Geral e a Comissão de Direitos

Humanos adotam uma série de resoluções que apóiam e ampliam os

princípios da Declaração. Entre elas está a resolução 1986/9, da Comissão

de Direitos Humanos (Uso do Desenvolvimento Científico e Tecnológico

para a Promoção e a Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades Funda-

mentais) que conclama os países a empenharem todos os esforços na

utilização dos desenvolvimentos científicos e tecnológicos para a promoção

e a proteção dos Direitos Humanos e liberdades fundamentais.

Ao longo dos anos, a Unesco tem estado particularmente preocupada

com as implicações humanas e culturais dos desenvolvimentos científicos e

tecnológicos. Em uma série de reuniões de especialistas, o organismo tratou

de problemas relacionados aos efeitos da ciência e tecnologia sobre as

culturas locais. Em 1982, promoveu um seminário em Trieste (sob os

auspícios do Instituto Internacional para Estudo dos Direitos Humanos) para

estudar as conseqüências para os Direitos Humanos dos desenvolvimentos

científicos e tecnológicos, particularmente nos campos da informática,

telemática e manipulação genética. Os princípios estabelecidos nos artigos 23

e 26 da DUDH e a Convenção Contra Discriminação na Educação (1960),

bem como as disposições das duas mais importantes convenções no âmbito

dos Direitos Humanos (a Convenção Internacional sobre os Direitos Civis

e Políticos e a Convenção Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais

e Culturais) e a Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discri-

minação Contra a Mulher (1979) são parte do preâmbulo que precede a

Convenção da Unesco sobre Educação Técnica e Vocacional, de 1989, com

Page 9: 103 151 Direitos a Comunicacao Direitos Humanos Hamelink

DIREITOS HUMANOS PARA A SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

111

vigência a partir de 1991. Esta convenção dispõe o direito de acesso

eqüitativo à educação técnica e presta especial atenção às necessidades de

grupos em situação de desvantagem.

Tecnologia e a proteção contra os seus efeitos nocivosNas últimas décadas, a Comissão de Direitos Humanos e a Assembléia

Geral da ONU têm atentado para o fato de que os avanços da tecnologia não

geram somente benefícios, mas também podem prejudicar as pessoas. Há

consciência dos potenciais efeitos negativos das novas tecnologias sobre a

integridade física e mental das pessoas (por meio de novas formas de testes

pessoais e corporais); sobre a privacidade de seus lares e a confidencialidade

de suas correspondências (a partir de novas formas de vigilância); sobre a

deterioração dos ambientes de trabalho (devido às técnicas de automação);

e sobre o meio-ambiente (como um resultado do crescimento do desperdício

elétrico e eletrônico).

Tecnologia e tomada de decisõesA idéia de Direitos Humanos precisa se ampliar para as instituições

sociais (os arranjos institucionais) que facilitariam a realização dos padrões

fundamentais. Os Direitos Humanos não podem ser assegurados sem o

envolvimento dos cidadãos no processo de tomada de decisão nas áreas nas

quais os padrões de Direitos Humanos ainda estão por ser alcançados. Isso

move o processo democrático para além da esfera política e amplia o

requisito de participação dos arranjos institucionais para outros domínios

sociais. O direito humano de participação democrática requer que as escolhas

tecnológicas também devam ser sujeitas a controles democráticos. Isto é

particularmente importante à luz do fato de que o processo político corrente

tende a delegar importantes áreas da vida social ao controle privado, ao invés

do controle público, melhor acompanhado por accountability2. Volumes cadavez maiores de atividade social estão saindo da esfera da responsabilidadepública, do controle democrático e da participação de cidadãos na tomada dedecisão. Contra isso, tanto a DUDH quanto a Convenção Internacional sobreos Direitos Civis e Políticos estabelecem o direito das pessoas de

2. Nota do tradutor (N.T.) O termo “accountability” foi mantido no original, podendo

remeter a um sentido de responsabilização, monitoramento, controle e transparência que

é transversal e multidisciplinar, especialmente na Governança do Estado.

Page 10: 103 151 Direitos a Comunicacao Direitos Humanos Hamelink

DIREITOS À COMUNICAÇÃO NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

112

participarem na condução de assuntos públicos, seja diretamente, seja por

meio de representantes livremente escolhidos. Isto aponta para a necessidade

de desenvolvimento de formas de governança democrática, que garantam os

direitos e liberdades dispostos por esses instrumentos.

Os instrumentos relevantes• a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH);

• a Convenção Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos;

• a Declaração sobre o Progresso Social e o Desenvolvimento (Assem-

bléia Geral da ONU, 11/12/1969);

• a Declaração sobre o Uso do Progresso Científico e Tecnológico no

Interesse da Paz e para o Benefício da Humanidade (Resolução 3384, da

Assembléia Geral da ONU de 1975);

• a Convenção da Unesco sobre Educação Técnica e Vocacional, de 1989.

SOBRE CULTURA E DIREITOS HUMANOSDurante as discussões que precederam a adoção da carta constituinte3

da ONU, em 1945, muitos países latinoamericanos propuseram a inclusão de

direitos culturais, o que não foi aceito naquele momento, mas, em 1948, uma

referência aos direitos culturais foi incluída nos artigos 22 e 27 da DUDH.

O artigo 22 dispõe que todos são elegíveis à realização dos direitos econô-

micos, sociais e culturais indispensáveis para sua dignidade e o livre

desenvolvimento de sua personalidade. O artigo 27 dispõe que “todos têm

o direito a participar livremente da vida cultural da comunidade”.

Em 1966, a Assembléia Geral da ONU adotou a Convenção Interna-

cional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, e os direitos culturais

foram estabelecidos nos artigos 1 e 15. O artigo 1 dispõe que “todos os

povos têm direito à auto-determinação. Por meio desse direito, eles de-

terminam livremente o seu status político e buscam livremente o seu

desenvolvimento econômico, social e cultural”. E o artigo 15 diz que os

países signatários da Convenção reconhecem o direito de todos:

• a participar da vida cultural;

3. (NT.). “Charter” foi traduzido como carta constituinte. Normalmente, se refere a um

documento que expressa as finalidades e os princípios de uma organização. No caso das

Nações Unidas, o seu documento fundador chama-se, em português, meramente “Carta

das Nações Unidas”, conforme site da ONU em português – www.onu.org.

Page 11: 103 151 Direitos a Comunicacao Direitos Humanos Hamelink

DIREITOS HUMANOS PARA A SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

113

• a desfrutar os benefícios do progresso científico e suas aplicações;

• a se beneficiar da proteção dos interesses morais e materiais re-

sultantes de qualquer produção científica, literária ou artística das quais

eles são autores.

A Unesco se tornou a agência da ONU especializada na proteção desses

dispositivos. Nas últimas décadas, produziu muitos instrumentos relevantes

que tratam dos direitos culturais.

Em 1995, a Unesco recebeu o relatório da Comissão Mundial sobre

Cultura e Desenvolvimento, intitulado “Nossa diversidade criativa” (Ourcreative diversity), o qual propôs uma agenda de ação sobre os direitos culturais.

Em 2/11/2001, a 31ª Conferência Geral da Unesco adotou a Declaração

Universal de Diversidade Cultural. Como declarou o Diretor-Geral da Unesco

à época, Koichiro Matsuura,

“Esta é a primeira vez que a comunidade internacional comprometeu a

si mesma com um instrumento de definição de parâmetros tão abran-

gente, elevando a diversidade cultural ao grau de ‘herança comum da

humanidade’, como necessária para a raça humana assim como a

biodiversidade no campo natural, e fez de sua proteção um imperativo

ético, inseparável do respeito pela dignidade humana”.

O florescimento da diversidade criativa requer uma completa imple-

mentação dos direitos culturais. Todas as pessoas têm, portanto, direito de

livre expressão, de criar e disseminar seu trabalho, na língua de sua escolha,

particularmente na sua língua nativa; todas as pessoas são elegíveis a uma

educação de qualidade, que respeite plenamente a sua identidade cultural; e

todas as pessoas têm o direito de participar na vida cultural de sua escolha,

condizente com suas próprias práticas culturais.

A Declaração afirma, no artigo 7º, que todas as culturas devem ter a

capacidade de expressar a si mesmas e fazer a si mesmas conhecidas, e devem

ter acesso aos meios de expressão e disseminação. O artigo 8º trata dos bens

e serviços culturais e demanda especial atenção

“para a diversidade da oferta de trabalho criativo, ao devido reco-

nhecimento dos direitos dos autores e artistas e à especificidade dos

bens e serviços culturais, os quais... não devem ser tratados como meras

commodities ou bens de consumo”.

Page 12: 103 151 Direitos a Comunicacao Direitos Humanos Hamelink

DIREITOS À COMUNICAÇÃO NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

114

A Declaração é acrescida de um plano de ação para sua implementação.

Ela propõe, entre outros objetivos:

• preservar a herança lingüística da humanidade;

• promover a alfabetização digital e o gerenciamento das novas tecno-

logias de informação e comunicação;

• promover o acesso às novas tecnologias de informação e comunicação

nos países em desenvolvimento e nos países em transição;

• apoiar a presença de diversos conteúdos na mídia e enfatizar o papel

das instituições públicas de transmissão;

• aumentar a mobilidade de artistas criativos;

• ajudar a capacitar as indústrias culturais dos países em desen-

volvimento;

• envolver a Sociedade Civil na elaboração de políticas sociais que

tenham como objetivo a preservação da diversidade cultural.

Dentro do regime de Direitos Humanos internacionais, foram identifi-

cados os direitos culturais essenciais mencionados a seguir (Hamelink, 1994).

O direito à culturaMuitos fatores explicam a emergência dos direitos culturais no pós-II

Guerra Mundial. Houve o surgimento de nações pós-coloniais, que buscavam

definir sua identidade, à luz tanto dos padrões coloniais impostos como de

seus próprios valores tradicionais. A questão da identidade cultural se tornou

muito importante no processo de descolonização. Os países recém-indepen-

dentes viam a afirmação de sua identidade cultural como um instrumento de

batalha contra a dominação estrangeira. Em sua batalha primordial contra o

colonialismo, a identidade cultural tem desempenhado um papel significativo

na motivação e legitimação do movimento de descolonização.

A proliferação dos meios de comunicação de massa criou a possibilidade

de uma interação cultural sem precedentes, bem como os riscos de unifor-

midade cultural. A difusão de uma sociedade consumidora, largamente

promovida pelos meios de comunicação de massa, levantou preocupações

sérias sobre a emergência de uma nova “cultura global” homogênea.

A adoção do direito à cultura como parte do sistema de Direitos

Humanos, com sua ênfase inclusiva, direitos para “todos”, implica a saída de

uma concepção elitista do setor para uma visão da cultura como “herança

comum”. Atualmente, a Declaração da Unesco sobre Raça e Racismo, de

1978 (Conferência Geral da Unesco, Resolução 3/1.1/2) fundamentou o

Page 13: 103 151 Direitos a Comunicacao Direitos Humanos Hamelink

DIREITOS HUMANOS PARA A SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

115

direito à cultura na noção dessa como “herança comum da humanidade”,

implicando que todas as pessoas devem “respeitar o direito de todos os

grupos à sua própria identidade cultural e o desenvolvimento de uma vida

cultural distintiva dentro do contexto nacional e internacional” (artigo 5).

Em 1968, uma conferência de especialistas da Unesco considerou a

questão dos direitos culturais como Direitos Humanos. A conferência concluiu:

“Os direitos à cultura incluem a possibilidade de cada homem obter os

meios de desenvolvimento de sua personalidade, através de sua parti-

cipação direta na criação de valores humanos e de se tornar, dessa

forma, responsável por sua situação, seja em escala local ou global”

(Unesco 1968:107).

A Conferência Intergovernamental sobre Aspectos Institucionais,

Administrativos e Financeiros das Políticas Culturais (reunida pela Unesco em

1970) decidiu que o direito de participar na vida cultural obriga os governos

ao dever de fornecer os meios efetivos para essa participação.

Uma série de conferências regionais sobre políticas culturais (em 1972,

1973 e 1975) forneceram importantes elementos para a formulação de uma

recomendação da Unesco sobre a Participação Ampla das Pessoas na VidaCultural e sua Contribuição a Ela, aprovada pela 19ª sessão da Conferência Geral

da Unesco, em 26/11/1976. A recomendação almejava “garantir como

Direitos Humanos aqueles direitos relativos ao acesso e à participação na vida

cultural” e propôs que os países-membros “disponibilizem salvaguardas

efetivas para o livre acesso à cultura nacional e global por todos os membros

da sociedade”, “prestem especial atenção à elegibilidade plena das mulheres

ao acesso à cultura e participação efetiva na vida cultural” e “garantam o

reconhecimento da igualdade das culturas, incluindo a cultura de minorias

nacionais e minorias estrangeiras”.

Com relação aos meios de comunicação de massa, a recomendação

afirma que eles “não devem ameaçar a autenticidade das culturas ou

empobrecer a sua qualidade; eles não devem agir como instrumentos de

domínio cultural, mas servir ao mútuo entendimento e à paz”.

A recomendação preocupa-se particularmente com a concentração do

controle sobre os meios de produção e distribuição de cultura e sugere que

os governos “devem certificar-se que o critério de lucro não exerça uma

influência decisiva nas atividades culturais”. Houve uma oposição ocidental

muito forte a vários elementos da recomendação, como à menção, de uma

Page 14: 103 151 Direitos a Comunicacao Direitos Humanos Hamelink

DIREITOS À COMUNICAÇÃO NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

116

forma negativa, da cultura comercial de massa, e o uso da expressão “ampla”

no título da recomendação. Nas reuniões preparatórias e durante a Con-

ferência Geral da Unesco, muitas delegações ocidentais expressaram a sua

preocupação de que, caso implementada, a recomendação restringiria o Livre

Fluxo de Informação e a independência dos meios de comunicação de massa.

O opositor mais forte foi os Estados Unidos.

“Os Estados Unidos defenderam a crença de que o acesso e a par-

ticipação na vida cultural não eram temas sujeitos à regulação interna-

cional, participaram muito pouco do processo de elaboração e rascunho

do documento, não enviaram delegação à reunião intergovernamental,

pediram que a Conferência Geral não aprovasse o texto proposto e,

após a sua adoção, anunciaram que não tinham intenção de transmitir

a recomendação para as autoridades e instituições relevantes nos EUA”

(Wells, 1987: 165).

A recomendação usou uma noção ampla de cultura como parte integral

da vida social e um dos principais fatores no progresso da humanidade. A

cultura “não é meramente uma acumulação de trabalhos e conhecimento que

a elite produz, coleta e conserva... mas é... a demanda por um modo de vida

e a necessidade de comunicar”.A principal linha de pensamento da recomendação foi reforçada pela

Conferência Mundial sobre Políticas Culturais, realizada em 1982 na Cidadedo México. A Declaração sobre Políticas Culturais adotada pela Conferênciareafirmou a conclamação aos Estados para que tomassem medidas adequadaspara implementar o direito à participação cultural. Em suas várias reco-mendações, os participantes da Conferência reivindicaram que a democraciacultural devia se basear numa participação mais ampla possível, por parte dosindivíduos e da sociedade, na criação de bens culturais, na tomada de decisãorelativa à vida cultural e na disseminação e desfrute da cultura. Muitosestudos sobre a implementação da recomendação na participação na vidacultural nos últimos anos têm mostrado que pouco tem sido feito, eminúmeros países, e que essas questões permanecem relevantes.

Em resumo, pode ser estabelecido que o reconhecimento do direito

humano à cultura implica a participação na vida cultural, a proteção da identidade

cultural, a necessidade de conservar, desenvolver e difundir cultura, a proteção

aos direitos de Propriedade Intelectual e o reconhecimento da diversidade

lingüística. Cada um desses temas é tratado nos parágrafos seguintes.

Page 15: 103 151 Direitos a Comunicacao Direitos Humanos Hamelink

DIREITOS HUMANOS PARA A SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

117

O direito a participar plenamente na vida culturalA participação na vida cultural tem levantado questões difíceis sobre

a definição de comunidades, a posição de sub-culturas, a proteção aosdireitos de participação das minorias, a provisão de recursos físicos deacesso, os elos entre acesso cultural e condições socioeconômicas.Subjacente a algumas dessas dificuldades está a tensão entre a interpretaçãoda cultura como bem público ou como propriedade privada. Essasinterpretações podem ser mutuamente excludentes quando o trabalhohistórico de arte desaparece nos labirintos de coleções privadas. O direitoa participar livremente da vida cultural de uma comunidade reconhece quea qualidade de sociedade democrática não é definida somente porinstituições políticas, mas também pela possibilidade das pessoas moldaremsua identidade cultural, perceberem o potencial da vida cultural local epraticarem tradições culturais.

Direitos de participação também abrangem o direito das pessoas de“participarem livremente na vida cultural da comunidade, desfrutarem dasartes e partilharem do avanço científico e seus benefícios” (artigo 27 daDUDH). A reivindicação de participação requer a criação de condiçõessociais e econômicas que permitam que as pessoas “não apenas desfrutemdos benefícios da cultura, mas também tenham uma participação ativa na vidacultural geral e no processo de desenvolvimento cultural”.

A Recomendação da Unesco sobre Participação Ampla das Pessoas naVida Cultural e Sua Contribuição a Ela, que articula esse requisito, também

dispõe que “a participação na vida cultural pressupõe o envolvimento de

diferentes parceiros sociais no processo de tomada de decisão relacionado

à política cultural”. Essa participação vai além da participação do público

na produção midiática ou na gestão midiática nas áreas de tomada de

decisão pública. A Consulta de Especialistas da Unesco, realizada em

Bucareste, Romênia, em 1982 (Unesco 1982) enfatizou que é essencial “que

os indivíduos e grupos sejam capazes de participar, em todos os níveis

pertinentes, em todas as fases da comunicação, monitorando e revendo as

políticas de comunicação”. Este padrão necessita, então, que as práticas

políticas disponham sobre a participação das pessoas na tomada de decisão

pública sobre a produção da cultura. Pessoas têm o direito de participar das

decisões públicas sobre a preservação, proteção e desenvolvimento da

cultura. Isto significa que deveria haver amplo espaço para participação

pública na formulação e implementação de políticas culturais públicas.

Page 16: 103 151 Direitos a Comunicacao Direitos Humanos Hamelink

DIREITOS À COMUNICAÇÃO NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

118

O direito à proteção da identidade culturalA proteção da identidade cultural se tornou um assunto especialmente

sensível durante os debates, nos anos setenta, sobre imperialismo cultural. Em

1973, chefes de estado no Encontro de Países Não-Alinhados, em Algiers,

afirmaram em sua declaração que “é um fato estabelecido que a atividade do

imperialismo não é limitada aos domínios econômico e político, mas abrange

também as áreas culturais e sociais, impondo dessa forma uma dominação

ideológica estrangeira sobre as pessoas do mundo em desenvolvimento”.

A dominação cultural e a ameaça à identidade cultural também foram

tratadas pela Comissão Mac-Bride, que foi designada pela Unesco. A

Comissão enxergou que a identidade cultural estava

“ameaçada por uma superpoderosa influência sobre a assimilação de

algumas culturas nacionais, embora essas nações possam muito bem

serem herdeiras de uma cultura muito mais antiga e rica. Considerando

que diversidade é a qualidade mais preciosa da cultura, o mundo inteiro

fica mais pobre (Comissão Internacional para o Estudo de Problemas

de Comunicação, 1980:31).

Em suas recomendações, a Comissão ofereceu poucas contribuições

para uma aproximação multilateral ao assunto da dominação cultural.

Sua principal recomendação foi no sentido de estabelecer políticasnacionais que deveriam nutrir a identidade cultural. Tais políticastambém deveriam conter diretrizes para salvaguardar o desenvolvimentocultural nacional, e, ao mesmo tempo, promover o conhecimento deoutras culturas” (Comissão Internacional para o Estudo de Problemasde Comunicação, 1980:259).

Nenhuma recomendação foi proposta no tocante às possíveis medidas da

comunidade mundial, em nível coletivo. A Comissão propôs o fortalecimento

da identidade cultural e a promoção de condições para a preservação da

identidade cultural, mas deixou a implementação para o nível nacional.

Dez anos depois, a Comissão Sul (South Commission) também tratou do

assunto da identidade cultural. De acordo com seu relatório, a preocupação

com a identidade cultural

“não implica a rejeição de influências externas. Ao contrário, ela deve

ser parte de esforços para fortalecer a capacidade para tomada de

decisão autônoma, misturando elementos indígenas e universais a

serviço de uma política centrada nas pessoas” (Comissão Sul, 1990:132).

Page 17: 103 151 Direitos a Comunicacao Direitos Humanos Hamelink

DIREITOS HUMANOS PARA A SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

119

A Comissão conclamou os governos a adotarem Acordos de Desen-

volvimento Cultural, que articulassem os direitos básicos dos indivíduos no

campo cultural. Políticas culturais deveriam destacar o direito à cultura, a

diversidade cultural, bem como o papel do estado na preservação e no

enriquecimento da herança cultural da sociedade (Comissão Sul, 1990:133).

A noção de identidade cultural permanece um tópico para muita

discussão. Entre os assuntos não resolvidos, está a questão de como uma

sociedade pode proteger a identidade cultural de suas partes constituintes,

mantendo, ao mesmo tempo, sua coesão social.

O direito à proteção da propriedade e da herançacultural nacional e internacional

Este direito cultural é particularmente pertinente em tempos de conflito

armado. Também tem implicações importantes para o reconhecimento da

Propriedade Intelectual de povos indígenas.

Em 14/12/73, a Assembléia Geral da ONU adotou uma resolução

(Resolução 3148, XXVIII), sobre a preservação e o desenvolvimento

adicional dos valores culturais. A resolução considera o valor e a dignidade

de cada cultura, bem como a habilidade para preservar e desenvolver seu

caráter distintivo, como um direito básico de todos os países e povos. Sob

a luz dos possíveis riscos aos caracteres distintivos das culturas, a preser-

vação, o enriquecimento e o desenvolvimento adicional das culturas nacionais

deve ser apoiado. É importante notar que a resolução reconhece que “a

preservação, renovação e criação contínua de valores culturais não deveria ser

um conceito estático, mas sim dinâmico”. A resolução recomendou ao

diretor-geral da Unesco a promoção de pesquisas para analisar “o papel dos

meios de comunicação de massas na preservação e desenvolvimento adicional

de valores culturais”.

A resolução também conclamou os governos a promoverem “o envol-

vimento da população na elaboração e implementação de medidas que assegurem

a preservação e o desenvolvimento futuro de valores culturais e morais”.

Sobre a proteção da propriedade cultural, os governos adotaram duas

convenções da Unesco: a Convenção de Hague para a Proteção de Pro-

priedade Cultural no Caso de Conflito Armado (1954), e a Convenção sobre

os Meios de Proibir e Prevenir a Importação, Exportação e Transferência

Ilícitas de Propriedade Cultural (1970).

Page 18: 103 151 Direitos a Comunicacao Direitos Humanos Hamelink

DIREITOS À COMUNICAÇÃO NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

120

Um instrumento específico sobre a proteção da herança cultural mundial

foi adotado pela 17ª sessão da Conferência Geral da Unesco, em 1972: a

Convenção para a Proteção da Herança Cultural e Natural do Mundo. O

texto observou que a herança cultural do mundo está ameaçada, o que é um

fator de empobrecimento para a humanidade. Então, são necessárias

providências efetivas para proteger coletivamente a herança cultural de valor

universal. Na convenção, a proteção internacional da herança cultural mundial

é entendida como

“o estabelecimento de um sistema de cooperação e ajuda internacional,

projetado para apoiar os estados-membros da Convenção em seus

esforços para conservar e identificar aquela herança”.

Em 18/12/73, a Assembléia Geral da ONU adotou uma resolução

sobre a Restituição de Obras de Arte a Países Vítimas de Expropriação

(Resolução 3187, XXVIII). A resolução vê a imediata restituição de obras de

arte como um fortalecimento da cooperação internacional e como uma

reparação justa aos danos feitos. Para implementar esta resolução, a Unesco

estabeleceu o Comitê Intergovernamental para Promover o Retorno da

Propriedade Cultural aos seus Países de Origem ou sua Restituição nos casos

de Apropriação Ilícita. Ao longo dos anos 80, a Assembléia Geral da ONU

destacou o assunto, recomendando o trabalho da Unesco neste campo e

convocando os países associados a ratificar a convenção pertinente. Em 1986

a Assembléia Geral proclamou o período 1988-1997 como a Década Mundial

para Desenvolvimento Cultural. Foram formulados os seguintes objetivos

durante a década: o reconhecimento da dimensão cultural do desen-

volvimento, o enriquecimento das identidades culturais, a participação ampla

na vida cultural e a promoção de cooperação cultural internacional (Assem-

bléia Geral da ONU, Resolução 41/187, 8/12/86).

Outras abordagens da comunidade internacional à proteção da pro-

priedade cultural incluem a proteção da cultura tradicional e do folclore. Em

1989, a Conferência Geral da Unesco adotou uma recomendação que

acentuou a necessidade de se reconhecer o papel de folclore e os perigos que

ele enfrenta. O folclore foi definido como a totalidade das criações baseadas

na tradição de uma comunidade cultural. A recomendação reivindica medidas

para a conservação, preservação, disseminação e proteção do folclore.

Page 19: 103 151 Direitos a Comunicacao Direitos Humanos Hamelink

DIREITOS HUMANOS PARA A SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

121

A Minuta de Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas, da

ONU (1994), refere-se explicitamente à propriedade cultural dos povos

indígenas. O artigo 12 dispõe que:

“Os povos indígenas têm o direito para praticar e revitalizar as suas

tradições culturais e seus costumes. Isto inclui o direito de manter, proteger

e desenvolver as manifestações de suas culturas no passado, no presente

e no futuro, tais como locais arqueológicos e históricos, artefatos,

cerimônias, tecnologias e artes visuais e performáticas e literatura, bem

como o direito à restituição da propriedade cultural, intelectual, religiosa e

espiritual que foi levada sem o seu livre e bem-informado consentimento

ou em violação às suas leis, tradições e costumes”.

O direito a usar o idioma nativo em privado e públicoEste direito cultural reconhece que os direitos lingüísticos são uma parte

crítica dos Direitos Humanos. O idioma que falamos e a nossa língua

materna, em particular, são uma parte crucial de quem nós somos como

indivíduos. Para um grupo minoritário, a perda do idioma ameaça a existência

do grupo, porque eventualmente ocorrerá uma assimilação ao grupo do

idioma que se fala.

O artigo de mais amplo alcance que articula as leis de Direitos Humanos

com os direitos lingüísticos é o artigo 27 da Convenção Internacional sobre

Direitos Civis e Políticos (1966), que estabelece:

“Naqueles estados nos quais as minorias étnicas, religiosas ou lin-

güísticas existem, as pessoas que pertencem a essas minorias não devem

ter negado o seu direito a, em conjunto com outros membros do seu

grupo, desfrutarem de sua própria cultura, professarem e praticarem sua

própria religião, ou de usarem seu próprio idioma”.

Inicialmente, este artigo foi interpretado como se referindo aos

indivíduos e não a grupos. Isto não ajudou as comunidades de imigrantes,

que não foram vistas como minorias. Porém, isto mudou a partir de uma

nova interpretação do artigo, feita em um comentário geral ao artigo 27,

adotado pelo Comitê de Direitos Humanos da ONU, em 6 de abril de 1994.

O Comitê entendeu que o artigo oferecia proteção a todos os indivíduos no

território de uma nação, ou que estejam sob sua jurisdição, inclusive os

imigrantes e refugiados.

Page 20: 103 151 Direitos a Comunicacao Direitos Humanos Hamelink

DIREITOS À COMUNICAÇÃO NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

122

A Minuta da Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas

formula explicitamente os direitos lingüísticos e demanda que os países

aloquem recursos para tratar desse assunto. Mas o destino da Minuta ainda é

incerto, a mais recente versão foi completada em julho de 1994 e remetida à

Sub-Comissão da ONU para Prevenção da Discriminação e Proteção das

Minorias, que, por sua vez, submeteu o assunto à Comissão de Direitos

Humanos da ONU, para discussão em fevereiro de 1995. Os trabalhos na

Minuta ainda continuam e grandes alterações ainda são esperadas. Porém, há

alguma suspeita de que os povos indígenas não venham a ter, eles mesmos,

muita influência nesses dispositivos. Com relação ao reconhecimento dos seus

direitos lingüísticos, a minuta de Declaração dispõe, também no artigo 17, que

as pessoas indígenas têm “o direito eqüitativo a todas as formas de mídia não

indígena”. Adicionalmente, diz que “os estados devem tomar medidas efetivas

para assegurar que as mídias públicas reflitam apropriadamente a diversidade

cultural indígena”.

A Conferência Mundial sobre Direitos Lingüísticos foi realizada em

Barcelona, em junho de 1996, organizada pelo Clube PEN Internacional e

pelo Centro para a Legislação Lingüística, fundado pela União Européia,

baseado na Catalunha. Uma Minuta da Declaração Universal de DireitosLingüísticos foi aprovada e a Unesco empreendeu um esforço de promoçãoe submissão da declaração ao endosso dos governos nacionais, bem comopara refinar o texto em colaboração com as associações pertinentes. O textoé um documento abrangente, que traz um esclarecimento conceitual sobre osdireitos lingüísticos na administração pública, na educação, na mídia, nacultura e na esfera socioeconômica.

O fato de que o documento acentua os direitos do que chama “comu-

nidades” lingüísticas (correspondendo, grosso modo, a minorias territoriais)

à sua língua materna e à proficiência na sua língua oficial, é de pouca ajudapara minorias não territoriais e minorias de imigrantes.

A Declaração de Unesco sobre Diversidade Cultural tem algumasreferências a direitos lingüísticos, mas não destaca o assunto do idioma. Emseu artigo 5, dispõe que “todas as pessoas têm, desta forma, o direito deexpressarem a si mesmos e de criarem e disseminarem o seu trabalho nalíngua de sua escolha, e particularmente na sua língua natal”.

O item 5 do plano de ação propõe “que se proteja a herança lingüísticada humanidade e que se apóie a expressão, criação e disseminação no maiornúmero possível de línguas” e o item 6 estabelece o dever de se “encorajar

Page 21: 103 151 Direitos a Comunicacao Direitos Humanos Hamelink

DIREITOS HUMANOS PARA A SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

123

a diversidade lingüística, ao mesmo tempo que respeitar a língua materna, emtodos os níveis da educação, onde quer que for possível, e disseminar oaprendizado de muitas línguas para os jovens”. O item 10 recomenda “apromoção da diversidade lingüística no ciberespaço”.

Os instrumentos relevantes• A Declaração Universal de Direitos Humanos (1948);• A Convenção Internacional sobre Direitos Sociais, Econômicos e

Culturais (1966);• A Convenção Internacional sobre Direitos Civis e Po-líticos (1966);• A Convenção de Hague, da Unesco, sobre a Proteção da Propriedade

Cultural no caso de Conflito Armado (1954);• A Convenção da Unesco sobre os Meios de Proibir e Prevenir a

Importação, Exportação e Transferência Ilícitas de Propriedade de Pro-priedade Cultural (1970);

• A Convenção da Unesco para a Proteção da Herança Cultural eNatural do Mundo (1972);

• A Recomendação da Unesco sobre a Participação Ampla das Pessoasna Vida Cultural e sua Contribuição para Ela (1976);

• A Minuta da Declaração da ONU sobre Direitos dos Povos Indígenas(1994);

• A Declaração da Unesco sobre os Princípios de Cooperação CulturalInternacional (1966);

• A Declaração Universal da Unesco sobre Diversidade Cultural (2001).

SOBRE POLÍTICA, SOCIEDADE E DIREITOS HUMANOS

Liberdade de expressãoNo tocante às interações entre os desenvolvimentos informacionais e os

sistemas políticos das sociedades, os dispositivos-chave de Direitos Humanosse referem à liberdade de expressão. Esses dispositivos são encontrados naDUDH (artigo 19) e na Convenção Internacional em Direitos Civis ePolíticos (artigo 19). O direito à liberdade de expressão das crianças étambém disposto na Convenção sobre os Direitos das Crianças (artigo 13).A disposição essencial continua sendo a formulação do artigo 19 da DUDH,onde se afirma que “todos tem o direito à liberdade de opinião e deexpressão; este direito inclui a liberdade de manter opiniões sem interferênciae de buscar, receber e dar informações e idéias através de qualquer mídia eindependentemente de fronteiras”.

Page 22: 103 151 Direitos a Comunicacao Direitos Humanos Hamelink

DIREITOS À COMUNICAÇÃO NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

124

De modo a proteger as sociedades contra os possíveis abusos do

direito à liberdade de discursos, as leis internacionais de Direitos Humanos

também têm disposto uma série de limitações a essa liberdade. Entre essas

está a proibição do incitamento ao genocídio. O artigo 3 da Convenção

sobre Prevenção e Punição do Crime de Genocídio de 1948 declara que

entre os atos passíveis de punição está o “incitamento direto e público ao

crime de genocídio”. O artigo 4 define que “as pessoas que cometem

genocídio ou qualquer um dos outros atos estabelecidos no artigo 3 devem

ser punidas, sejam eles legisladores, constitucionalmente responsáveis,

oficiais públicos ou indivíduos”.

Também há dispositivos sobre a proibição à discriminação. No artigo

2 da DUDH está escrito que

“todos são elegíveis a todos os direitos e liberdades descriminados nessa

declaração, sem distinção de qualquer tipo, tais como de raça, cor, sexo,

língua, religião, opinião política ou outra, origem nacional ou social,

propriedade, nascimento ou outra condição”.

Além disso, de acordo com a declaração, não deve ser feita qualquer

distinção com base na condição política, jurisdicional ou internacional do país

ou território ao qual a pessoa pertença, seja ele independente, colônia, ou sem

auto-governo ou sobre qualquer tipo de limitação de sua soberania. O

princípio essencial é a eqüidade. Tratamento diferencial às pessoas com base

nas características específicas das pessoas ou grupos está em flagrante

conflito com a noção básica de dignidade humana. O artigo 2º tem como

intenção prover uma proteção geral contra a discriminação.

O padrão de igualdade entrou no direito internacional pela primeira vez

com a criação da ONU. A Convenção da Liga das Nações (1919), por

exemplo, não continha tal proteção. O preâmbulo da carta de criação da

ONU pede por “direitos iguais para homens e mulheres e para nações

grandes e pequenas”. Durante o trabalho na minuta da carta de criação da

ONU, um dos pontos da discussão foi a discriminação, entre outras. Uma

das controvérsias era: devem ser incluídas a opinião política ou noções como

condição, propriedade e nascimento, uma vez que eram alvo de opiniões

contraditórias? A frase “sem distinções de qualquer natureza, tais como ...”

implica que a enumeração não deve ser lida como exaustiva.

Page 23: 103 151 Direitos a Comunicacao Direitos Humanos Hamelink

DIREITOS HUMANOS PARA A SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

125

A DUDH e a Convenção Internacional sobre Direitos Civis e Po-

líticos usam o termo “distinção”, e a Convenção Internacional sobre

Direitos Econômicos, Sociais e Culturais usa “discriminação”. Contudo, a

Convenção Internacional sobre Direitos Civis e Políticos usa o termo

discriminação no artigo 4.1.

Um dos mais importantes tratados para codificação dos padrões de

não-discriminação é a Convenção Internacional sobre a Eliminação de

Todas as Formas de Discriminação Racial (1965). A mais contestada (e,

para a mídia, a mais pertinente) disposição dessa convenção encontra-se no

artigo 4, que diz respeito à disseminação de idéias baseadas na

superioridade racial.

A convenção sobre discriminação racial foi ratificada pela ampla maioria

dos países associadas à ONU. O artigo 4 dessa convenção e o artigo 20.2 da

Convenção Internacional sobre Direitos Civis e Políticos incorporaram à

legislação doméstica a proibição da disseminação de idéias baseadas na

superioridade racial e o “incitamento ao ódio racial ou à defesa de ódio

religioso, racial ou nacional, que constitui o incitamento à discriminação,

hostilidade ou violência devem ser proibidos por lei”.

Outros importantes dispositivos contra a discriminação são

encontrados na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de

Discriminação contra a Mulher (1979). O artigo 5 dessa convenção

demanda a “eliminação de representações estereotipadas dos papéis dos

homens e mulheres e preconceitos baseados na idéia da inferioridade ou

superioridade de qualquer um dos sexos”. No artigo 10, sobre educação, há

uma forte argumentação pela eliminação de qualquer conteúdo

estereotipado sobre os papéis dos homens e das mulheres em qualquer dos

níveis e em qualquer forma de educação.

A limitação da liberdade de expressão está também implícita pelos

padrões de Direitos Humanos sobre a proteção da privacidade das pessoas

contra interferências indevidas. A DUDH dispõe, em seu artigo 12:

“Ninguém deve ser submetido à interferência arbitrária na sua priva-

cidade familiar, de sua casa ou de sua correspondência, nem a ataques

à sua honra e reputação. Todos têm o direito à proteção legal contra tais

interferências ou ataques”.

Page 24: 103 151 Direitos a Comunicacao Direitos Humanos Hamelink

DIREITOS À COMUNICAÇÃO NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

126

A liberdade de ter opiniõesNo artigo 19 da DUDH, a liberdade de manter opiniões sem interferência

é devidamente reconhecida. Quando esse dispositivo foi transformado em lei,

após sua incorporação à Convenção Internacional sobre Direitos Civis e Políticos

(artigo 19), um desenvolvimento interessante teve lugar. Na Convenção, a

liberdade de opinião e a liberdade de expressão são separadas. A Convenção

dispõe pelo direito absoluto de liberdade de opinião, mas permite certas restrições

no direito de expressão, como as necessárias ao respeito dos direitos e reputações

de terceiros e à proteção da segurança nacional ou da ordem pública (ordrepublique), ou da saúde pública ou da moral (parágrafo 3º do artigo 19). A

Convenção também limita a liberdade de expressão pelos dispositivos do artigo

20, que demandam que qualquer propaganda da guerra deve ser proibida por lei

e que qualquer defesa de ódio nacional, racial ou religioso que constitua

incintamento à discriminação, hostilidade ou violência também deve ser proibida

por lei. A Convenção enfatiza o caráter especial do direito à liberdade de manter

opiniões, fazendo deste um direito privado (relacionado à proteção da priva-

cidade) que não pode ser sujeito a qualquer interferência.

Sobre a exposição pública de prisioneiros de guerraAs leis humanitárias internacionais (as quais podem ser descritas como

Direitos Humanos para tempos de conflito armado) proíbem a exposição de

prisioneiros de guerra à curiosidade pública (Terceira Convenção de Genebra

relativa ao Tratamento de Prisioneiros de Guerra, de 12 de agosto de 1949).Os noticiários violam esse dispositivo de Direitos Humanos quando

publicam fotos de prisioneiros de guerra capturados, expondo-os à curio-sidade pública. Em vários conflitos armados recentes esse padrão foi violadopela maioria dos noticiários globais. Exemplos muito bem conhecidos dessasviolações são as fotos dos suspeitos de pertencerem à Al Qaeda, na Baía deGuantânamo e no Afeganistão, a estação de TV Al Jazeera mostrandosoldados britânicos capturados, bem como os fragmentos de vídeo deprisioneiros iraquianos sendo capturados, que foram transmitidos ao redor

do mundo pela mídia ocidental.

Fornecendo informaçõesAs leis de Direitos Humanos internacionais também apontam para a

responsabilidade social de disseminar certos tipos de informações. Os

preâmbulos da DUDH e as duas convenções internacionais sobre Direitos

Humanos (Convenção Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e

Page 25: 103 151 Direitos a Comunicacao Direitos Humanos Hamelink

DIREITOS HUMANOS PARA A SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

127

Convenção Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais)

propõem uma responsabilidade geral que contribua para o ensino dos

Direitos Humanos. A DUDH declara que “todos os indivíduos e todos os

órgãos da sociedade, mantendo esta Declaração sempre em mente, devem

lutar por ensinar e educar tanto a promover o respeito a esses direitos e às

liberdades”. Os preâmbulos das duas convenções declaram que

“Perceber que o indivíduo, tendo deveres com relação aos outros

indivíduos e para com a comunidade que ele pertence, está sob uma

responsabilidade de se esforçar para promover e defender a observância

dos direitos reconhecidos na presente Convenção”.

A referência a “todos” e a “cada órgão da sociedade” e à respon-

sabilidade individual, parece implicar, logicamente, que todos os fornecedores

de informação estão entre esses indivíduos e espera-se que contribuam para

a promoção e a proteção dos Direitos Humanos.

A Convenção sobre os Direitos das Crianças também encoraja a

provisão de um tipo especial de informação. No artigo 17, esta Convenção

dispõe que:

“Os países-membro reconheçam a importante função desempenhada

pelos meios de comunicação de massa e devam assegurar que as

crianças tenham acesso à informação e materiais de uma diversidade de

fontes nacionais e internacionais, especialmente àquelas voltadas para a

promoção de seu bem-estar social, espiritual e moral, bem como sua

saúde física e mental”.

Para essa finalidade, os países-membro devem:

• Encorajar os meios de comunicação de massa a disseminar infor-

mações e materiais que beneficiem social e culturalmente as crianças e que

estejam em consonância com o espírito do artigo 29;

• Encorajar a cooperação internacional na produção, intercâmbio e

disseminação de tais informações e materiais, de uma diversidade de fontes

culturais, nacionais e internacionais;

• Encorajar a produção e disseminação de livros infantis;

• Encorajar os meios de comunicação de massa a prestarem especial

atenção às necessidades lingüísticas de crianças que pertençam à grupos

minoritários ou que sejam de origem indígena.

Page 26: 103 151 Direitos a Comunicacao Direitos Humanos Hamelink

DIREITOS À COMUNICAÇÃO NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

128

Os instrumentos relevantes• A Declaração Universal de Direitos Humanos (1948);

• A Terceira Convenção de Genebra relativa ao Tratamento de Prisio-neiros de Guerra (1949);

• A Convenção Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966);

• A Convenção sobre a Prevenção e o Castigo do Crime de Geno-

cídio (1948);

• A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discri-

minação contra Mulheres (1979);

• A Convenção nos Direitos da Criança (1989).

SOBRE A ECONOMIA E OS DIREITOS HUMANOS

O direito à auto-determinação e o direito ao desenvolvimentoCom relação aos desenvolvimentos informacionais e o desenvolvimento

das indústrias locais para a produção e disseminação de informação, é

importante observar que o artigo 1º da Convenção Internacional sobre os

Direitos Econômicos, Sociais e Culturais dispõe sobre o direito à auto-

determinação. Isso implica que todas as sociedades são livres para determinar

e perseguir o seu desenvolvimento econômico. Esse padrão foi poste-

riormente fortalecido pela Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento,

adotada pela Assembléia Geral da ONU, por meio da resolução 41/128, de

4 de dezembro de 1986.

No seu artigo 2º, a declaração dispõe que

“Os países têm o direito e o dever de formular políticas nacionais dedesenvolvimento apropriadas, que mirem na melhoria constante dobem-estar da população inteira e de todos os indivíduos, na base da suaativa, livre e significativa participação no desenvolvimento e na justadistribuição dos benefícios dele resultantes”.

Esse padrão tem implicações óbvias para a formulação de políticas

relacionadas aos desenvolvimentos informacionais.

O direito à proteção dos interesses morais e materiaisdas obras culturais

Esse padrão de Direitos Humanos veio desempenhar um papel cres-

centemente importante na economia internacional. As regras internacionais

Page 27: 103 151 Direitos a Comunicacao Direitos Humanos Hamelink

DIREITOS HUMANOS PARA A SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

129

para a proteção da Propriedade Intelectual são originárias do século XIX.

Desde o princípio, essa proteção tem sido inspirada por três razões. A

primeira era a noção que aqueles que investiram na produção de uma

Propriedade Intelectual deveriam ter garantido sua remuneração financeira.

Com o estabelecimento dos primeiros tratados internacionais sobre proteção

da Propriedade Intelectual (a Convenção de Paris para a Proteção da

Propriedade Industrial, de 1883; e a Convenção de Berna para a Proteção das

Obras Artísticas e Literárias, de 1886), um benefício monetário para o criador

era percebido como incentivo necessário para o investimento na inovação e

à criatividade. Durante a revisão da Convenção de Berna, em 1928, a segunda

razão, a noção dos direitos morais, foi adicionada ao direito aos benefícios

econômicos. A introdução do valor moral dos trabalhos reconheceu que eles

representam a personalidade intelectual do autor. Os direitos morais

protegem o trabalho criativo contra a modificação sem o consentimento do

autor, protegem a reivindicação de autoria e o direito do autor sobre a

publicação ou não de um trabalho. Anteriormente, no desenvolvimento dos

direitos à Propriedade Intelectual, também era reconhecido que havia um

interesse público na proteção da Propriedade Intelectual. Como princípio

comum e como terceira razão, reconhecia-se que os direitos à Propriedade

Intelectual promoviam a inovação e o progresso nos campos artístico,

tecnológico e científico, e, desta forma, atendiam ao interesse público. O

artigo 1º da Constituição dos Estados Unidos, por exemplo, articula essa idéia

da seguinte forma: “promover o progresso da ciência e das artes úteis,

assegurando, por um tempo limitado, direitos exclusivos aos autores e

inventores com relação aos seus respectivos escritos e descobertas”. A

proteção aos direitos da Propriedade Intelectual são, de fato, um delicado

equilíbrio entre interesses econômicos privados, propriedade individual e

interesse público.

Com a crescente importância econômica da Propriedade Intelectual, o

sistema global de governança nesse domínio se deslocou das dimensões

morais e do interesse público, enfatizando, atualmente, os interesses

econômicos dos donos da Propriedade Intelectual. Atualmente, tais pro-

prietários não são mais, na maioria dos casos, os autores individuais ou

compositores que criaram produtos culturais, mas corporações transnacionais

que produzem bens culturais. Os autores individuais, compositores e artistas

estão embaixo na lista dos dados comerciais e, como resultado, há uma

tendência em relação a arranjos de proteção aos direitos de Propriedade

Page 28: 103 151 Direitos a Comunicacao Direitos Humanos Hamelink

DIREITOS À COMUNICAÇÃO NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

130

Intelectual que favoreçam o investimento institucional em detrimento dos

produtores individuais.

A tendência recente de incluir os direitos à Propriedade Intelectual nas

negociações globais de comércio demonstra os interesses comerciais dos

principais beneficiários atuais. Os problemas de copyright têm se tornado

questões comerciais e a proteção ao autor tem cedido lugar aos interesses dos

comerciantes e investidores. Essa ênfase na propriedade corporativa implica

em ameaça ao uso comum da Propriedade Intelectual e traz transtornos ao

equilíbrio entre as reivindicações de propriedade individual por parte dos

produtores e as reivindicações dos benefícios públicos, pelos usuários. O

equilíbrio entre os interesses dos produtores e usuários sempre tem estado

sob ameaça no desenvolvimento dos direitos à Propriedade Intelectual e seu

sistema de governança, mas parece que os arranjos surgidos recentemente

não beneficiam nem os criadores individuais nem o público de forma ampla.

Os principais beneficiários dos arranjos têm sido os conglomerados de mídia,

cujo principal negócio é o conteúdo. Muitas das fusões vistas recentemente

nesse setor foram, de fato, motivadas pelo desejo de obter controle sobre os

direitos de conteúdos, como, por exemplo, investimento em filmotecas ou

em coleções de músicas.

Os desenvolvimentos recentes nas tecnologias digitais, que abrem

possibilidades sem precedentes para o acesso livre e fácil, para a utilização do

conhecimento, também têm tornado a produção, reprodução e distribuição

profissional de conteúdo vulnerável à pirataria em grande escala. Isso tem

feito com que os proprietários de conteúdo fiquem muito preocupados

quanto aos seus direitos à propriedade e interessados na criação de um

regime legal reforçado para a sua proteção.

Contudo, a proteção à Propriedade Intelectual não está isenta de riscos, pois

também restringe o acesso ao conhecimento, uma vez que define o

conhecimento como propriedade privada e tende a facilitar práticas monopolistas.

A concessão de um controle monopolista sobre uma invenção pode restringir a

sua utilização social e reduzir os benefícios públicos potenciais. O princípio de

controle exclusivo sobre a exploração das obras que alguém criou pode

constituir-se num direito efetivo ao controle monopolista, que restringe o livre

fluxo de idéias e de conhecimento. Nas batalhas atuais travadas pelas corporações

contra a pirataria, parece que os protagonistas principais estão, em geral, mais

preocupados com a proteção dos investimentos do que com a integridade moral

das obras criativas ou com a qualidade da vida cultural no mundo.

Page 29: 103 151 Direitos a Comunicacao Direitos Humanos Hamelink

DIREITOS HUMANOS PARA A SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

131

No regime de direitos à Propriedade Intelectual que está emergindo,

algumas poucas megaempresas tornam-se as controladoras globais da

herança cultural da humanidade. Ao mesmo tempo, dificilmente os

pequenos produtores individuais ou comunitários de literatura, artes ou

música se beneficiam de proteção legal internacional. A maior parte do

dinheiro coletado vai para uma pequena porcentagem de pessoas criativas

(cerca de 90% do dinheiro vai para 10% das pessoas criativas) e a maioria

dos artistas que produzem Propriedade Intelectual recebem uma porção

menor dos fundos coletados (cerca de 90% dividem 10% de recursos). A

maior parte do dinheiro vai para artistas-estrelas e autores de best-sellers.

A indústria da mídia não faz dinheiro criando diversidade cultural tanto

quanto ganha com os artistas blockbusters. Caso haja mais variedade no

mercado musical, por exemplo, os títulos pequenos e independentes iriam

competir com os líderes de mercado transnacionais. Embora isso se encaixe

no pensamento tradicional sobre mercados livres, a indústria, na realidade,

prefere a consolidação do que a competição!

Tem se tornado cada vez mais claro que o movimento para proteger

produtos de mídia contra reprodução não-autorizada leva a um crescente

nível de restrições à reprodução para propósitos privados. Os direitos à

Propriedade Intelectual são reconhecidos pela DUDH (artigo 27), que

coloca a proteção à Propriedade Intelectual no contexto de outros

Direitos Humanos, como a liberdade de expressão e o direito ao acesso

à informação e ao conhecimento. Esse contexto de Direitos Humanos

deve moldar o ambiente político para todas as partes envolvidas:

produtores, distribuidores, artistas e consumidores. Isso implica que a

proteção aos direitos à Propriedade Intelectual não pode ser separada do

contexto do direito à plena participação na vida cultural, estendido a

todos; o direito ao acesso em condições razoáveis, para todos; o

reconhecimento aos direitos morais dos produtores culturais; os direitos

dos artistas criativos; a diversidade da produção cultural e a proteção do

domínio público.

Um acordo internacional baseado nos Direitos Humanos sobre a

proteção aos direitos de Propriedade Intelectual deveria reconhecer as

necessidades de todas as pessoas, a noção de direitos comuns e o com-

partilhamento dos benefícios (o Acordo da Organização Mundial de

Comércio sobre os Direitos à Propriedade Intelectual Comerciáveis, de 1993,

reconhece em seu preâmbulo, os direitos à Propriedade Intelectual apenas

Page 30: 103 151 Direitos a Comunicacao Direitos Humanos Hamelink

DIREITOS À COMUNICAÇÃO NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

132

como direitos privados). O seu propósito básico seria social mais do que

comercial, e os direitos à Propriedade Intelectual deveriam ser vistos como

direitos de liberdade mais do que como direitos de restrição e propriedade.

A concepção inicial dos direitos à Propriedade Intelectual como Direitos

Humanos concebia a restrição ao uso de tal propriedade apenas tempo-

rariamente. Essa monopolização era vista como socialmente aceitável desde

que o produto eventualmente voltasse ao domínio público. Os esforços atuais

para estender a duração da proteção (tal como nos Estados Unidos, onde

recentemente a proteção foi estendida de 50 para 70 anos após a morte do

autor) aponta para a direção de uma restrição praticamente ilimitada.

Direitos Humanos e responsabilidades corporativasMuitas das operações das corporações transnacionais ao redor do globo

têm dimensões relacionadas aos Direitos Humanos. As atividades comerciais

de um número crescente de corporações transnacionais afetam questões

como o aquecimento global, o trabalho infantil, os alimentos geneticamente

modificados e os mercados financeiros.

Segundo as políticas de liberalização e desregulamentação amplamente

disseminadas e aceitas, o alcance e a liberdade das corporações transnacionais

têm se expandido consideravelmente sem o desenvolvimento paralelo de suas

responsabilidades sociais. As corporações transnacionais, contudo, enfrentam

desafios públicos à sua conduta moral, e para alguns atores corporativos isso

têm significado que eles precisam começar a refletir sobre padrões de boa

Governança Corporativa e Responsabilidade Social.

Algumas empresas têm proposto que o atendimento voluntário aos

padrões de Direitos Humanos (por meio de códigos de conduta e auto-

regulação) é bom para os negócios e faz com que as empresas pareçam

melhores aos olhos dos consumidores, além de evitar processos legais,

melhorar a gestão do risco e aumentar a produtividade dos trabalhadores. Em

um pronunciamento à ONU, a organização não-governamental Human RightsWatch propôs o desenvolvimento de algumas diretrizes sobre o assunto como

primeiro passo ao processo de desenvolvimento de padrões de Direitos

Humanos para corporações. Ela acredita “que há a necessidade de padrões

vinculantes que previnam que as corporações tenham um impacto negativo

no desfrute dos Direitos Humanos. Tais padrões não devem somente se

limitar às corporações transnacionais, mas sim serem aplicados a qualquer

corporação: local, nacional ou transnacional”. O Relatório da ONU sobre

Page 31: 103 151 Direitos a Comunicacao Direitos Humanos Hamelink

DIREITOS HUMANOS PARA A SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

133

Desenvolvimento Humano, de 1999, também argumenta que as corporações

transnacionais são muito importantes para que sua conduta seja deixada a

padrões auto-determinados e de adesão voluntária.

A questão dos Direitos Humanos com relação aos atores privados se

tornou mais importante agora que os serviços públicos são geralmente

desempenhados por atores privados. Uma vez que as instituições outrora de

propriedade estatal, como os serviços postais, são privatizadas, a obrigação, por

exemplo, de garantir que o Direito Humano à privacidade não seja violado não

pode mudar. A proteção aos Direitos Humanos implica que os Estados devam

impedir que agentes privados violem os Direitos Humanos de seus cidadãos.

As Diretrizes sobre Violações de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

(1997), elaborada durante reunião de especialistas em Maastricht, afirma que:

“a obrigação de proteger inclui a responsabilidade dos estados deassegurar que as entidades privadas ou indivíduos, inclusive corporaçõestransnacionais sobre as quais exerçam jurisdição, não privem as pessoasde seus direitos econômicos, sociais e culturais” (ICJ et al., 1997:9).

Os Direitos Humanos internacionais realmente dispõem que os Estados

têm obrigação de assegurar que os negócios privados respeitem os Direitos

Humanos. Isto é parte da responsabilidade indireta dos Estados. Também há,

contudo, obrigações diretas para a conduta das empresas comerciais. Há

obrigação para todas as partes (como estabelecido no preâmbulo da DUDH)

de promover os Direitos Humanos. Isto significa dar publicidade e dis-

seminar os princípios e padrões dos Direitos Humanos, para explicá-los, para

ajudar outros a entendê-los e a usar qualquer influência que alguém tenha

para protegê-los. A Convenção Internacional sobre Direitos Econômicos,

Sociais e Culturais foi muito explícita sobre a inclusão de atores privados na

proteção de Direitos Humanos. O comitê, entre outras coisas, apontou a

necessidade do direito à privacidade ser protegido de violações cometidas por

entidades privadas. Assumiu também a posição de que os direitos pelos quais

é responsável em disseminar realmente se aplicam a partes privadas.

Semelhantemente, a Declaração Tripatirte da Organização Mundial do

Trabalho sobre Princípios Concernentes às Empresas Multinacionais e à

Política Social (1977) refere, no artigo 8, à necessidade de respeito os Direitos

Humanos por todas as partes envolvidas (governo, empregadores e

sindicatos) e menciona direitos como a liberdade de expressão.

Page 32: 103 151 Direitos a Comunicacao Direitos Humanos Hamelink

DIREITOS À COMUNICAÇÃO NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

134

A Subcomissão para a Promoção e Proteção de Direitos Humanos (um

órgão da Comissão de Direitos Humanos da ONU) tem um grupo de

trabalho sobre corporações transnacionais e Direitos Humanos. Em 1999, o

grupo de trabalho começou a trabalhar em um código de conduta em

corporações no tocante aos Direitos Humanos, que foram aprovados para

desenvolvimento adicional em 2000. O grupo de trabalho quer, even-

tualmente, fazer do código um instrumento vinculante. A administração dos

EUA se opôs a isto e propôs a dissolução do grupo.

Privacidade e segurançaObviamente, para o comércio internacional, a segurança das transações

on-line se tornou assunto crucial. A pergunta que surge disto é se podem ser

aplicados dispositivos de Direitos Humanos à proteção da privacidade e à

confidencialidade das comunicações. A complicação aqui é que a indústria

tende a usar um padrão duplo. Por um lado, há forte preferência por proteção

das comunicações seguras, como condição prévia essencial para o crescimento

do comércio eletrônico, e por outro lado está aumentando o interesse das

corporações em coletar e negociar dados pessoais dos consumidores.

Tecnologias de criptografia são as ferramentas óbvias para

assegurarem comunicações eletrônicas seguras. Esta tecnologia tem

vantagens claras para a privacidade dos usuários, mas também facilita a

comunicação secreta entre membros de organizações criminosas. A maioria

dos países reivindica o direito de ter acesso aos fluxos de informação nos

casos em que eles possam arriscar a segurança nacional, ou no caso de

processos judiciais que requerem isto. Como resultado, eles tendem a

defender posições ambivalentes quanto à criptografia. A tendência

dominante nos países da Organização para a Cooperação e o

Desenvolvimento Econômico (OCDE) é em favor da liberalização da

criptografia e da aceitação geral de técnicas de codificação. Um assunto

ainda a ser solucionado é se os códigos utilizados no processo de

criptografia devem ser depositados com terceiros, de forma que os

governos possam acessá-los quando precisem, para segurança ou para

propósitos legais. Em março de 1997, a OCDE recomendou uma

regulamentação que demonstrava essa ambigüidade de forma muito clara.

As Diretrizes da OCDE para a Política de Criptografia formavam um

conjunto de princípios não vinculantes sobre o uso das tecnologias de

criptografia. Os princípios regulatórios essenciais são a confiança e a

Page 33: 103 151 Direitos a Comunicacao Direitos Humanos Hamelink

DIREITOS HUMANOS PARA A SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

135

escolha dos métodos de criptografia, o desenvolvimento de princípios de

criptografia orientados para o mercado, a necessidade de padronização nos

métodos de criptografia, a proteção da privacidade e dos dados pessoais,

o acesso coberto por dispositivos legais, a imputabilidade e a cooperação

internacional.

As regras enfatizam que as políticas nacionais sobre criptografia

devem respeitar os direitos fundamentais dos indivíduos à privacidade, à

confidencialidade da comunicação e à proteção dos dados pessoais.

Contudo, o princípio do acesso, conforme definido nas decisões legais,

permanece muito vago e pode ser interpretado de formas distintas, que

não fornecem proteção muito clara à privacidade. A OCDE e outros

fóruns, tais como as câmaras de comércio, estão inclinados a adotar um

sistema no qual as chaves de criptografia sejam depositadas com

organizações independentes. Uma questão que se levanta sobre essa

possibilidade é o que isso significaria no caso dos cidadãos que respeitam

a lei passem a obedecê-la, enquanto os criminosos desenvolvem seus

próprios sistemas de criptografia. Na União Européia, a maioria dos

governos tende a permitir aos usuários de meios eletrônicos de

transmissão que utilizem formas de criptografia, porém solicitando o

acesso nos casos em que for muito necessário.

Uma recomendação do Conselho da Europa relativa aos problemas

das leis sobre procedimentos criminosos com a tecnologia da informação

destaca a necessidade de minimizar os efeitos negativos da restrição da

criptografia para o processo criminal, ao mesmo tempo em que se permita

o uso legítimo das tecnologias. Em 8 de outubro de 1997, a Comissão

Européia emitiu uma recomendação, chamada Rumo a um Modelo

Europeu para Assinaturas Digitais e para Criptografia. A Comissão

enfatizou o significado de uma proteção forte da confidencialidade das

comunicações eletrônicas, pois estava preocupada com o fato de que a

restrição às tecnologias de criptografia pudesse afetar negativamente a

proteção à privacidade. Na verdade, a Comissão sentiu que as restrições

poderiam tornar os cidadãos comuns mais vulneráveis aos criminosos,

uma vez que esses últimos não se sentiriam constrangidos em utilizar

essas tecnologias.

A preferência individual em ser deixado sozinho e sem ser inco-

modado (direito à privacidade) conflita com o desejo de instituições

públicas e privadas de reunir informações sobre os indivíduos. O desen-

Page 34: 103 151 Direitos a Comunicacao Direitos Humanos Hamelink

DIREITOS À COMUNICAÇÃO NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

136

volvimento de tecnologias de informação e comunicação digitais aumentou

a tensão desse conflito, bem como o seu senso de urgência. A proteção aos

dados pessoais sempre foi um desafio difícil, mas com o desenvolvimento

de tecnologias, como a Internet, o esforço tem se tornado muito

desencorajador. Informações sobre como as pessoas utilizam a Internet são

coletadas de várias formas (tais como os chamados cookies), e cada ato no

ciberespaço contém um perigo real de invasão de privacidade. Usar um

correio eletrônico, por exemplo, implica, inevitavelmente, uma perda

considerável do controle sobre sua privacidade pessoal, a menos que os

usuários sejam treinados para o uso de técnicas de criptografia, enquanto

essas não sejam proibidas por lei.

Quando nos envolvemos em transações no ciberespaço, nós deixamos

um rastro digital por meio de cartões de crédito, de bônus e de visita. E

com o crescimento das transações online, a coleção de dados pessoais vai

aumentar. Eles não somente são atrativos para as empresas, para saber as

preferências de seus clientes, como são vendáveis a terceiros, gerando lucro.

Adquirir dados sobre o perfil biogenético de uma pessoa, bem como dados

de consumo, pode ser muito valioso para uma empresa de seguros, entre

outras. A combinação de informações sobre pressão alta e compra de

bebidas alcoólicas, por exemplo, ajuda a seguradora a definir o nível de

risco e também o preço que o cliente deverá pagar por sua apólice.

Dados pessoais estão armazenados em lugares conhecidos como

armazéns de dados (data warehouses). Com a ajuda de sistemas de

informação cada vez mais inteligentes, todos esses dados podem ser

analisados, detalhados e perfis pessoais podem ser compostos por meio

da combinação de dados de várias fontes. Isso permite que sejam

respondidas, em profundidade e com razoável acerto, perguntas sobre o

comportamento de certas categorias de clientes, o que implica, por um

lado, que eles podem ser melhor servidos pela venda de bens e serviços

customizados. Mas isso também aponta que a sua privacidade vai ser

progressivamente minada. Coletar, analisar e interpretar dados pessoais se

tornou uma indústria (data mining).

Propriedade corporativaAs leis de Direitos Humanos internacionais não contêm nenhum

dispositivo diretamente relacionado à questão da propriedade de infor-

mação e das organizações de comunicação. Não há padrões que regulem a

Page 35: 103 151 Direitos a Comunicacao Direitos Humanos Hamelink

DIREITOS HUMANOS PARA A SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

137

possibilidade de monopolização ou oligopolização, tanto da produção

quanto da distribuição de bens/serviços informacionais e comunicacionais.

Contudo, há uma série de dispositivos sobre a diversidade do conteúdo

cultural e das fontes de informação, a função social da informação, o

compartilhamento eqüitativo da informação e do conhecimento, e a

especificidade dos bens e serviços culturais, como algo mais do que

meramente bens de consumo. É difícil enxergar como esses dispositivos

podem ser combinados com a questão de um controle monopolista ou

oligopolista dos mercados de informação e comunicação. As implicações

dos dispositivos atuais sobre Direitos Humanos parecem apontar para a

necessidade de variedade de produtores e distribuidores de bens e serviços

de informação e comunicação que sejam independentes, e para uma mistura

equilibrada de propriedade privada, atores corporativos comerciais, atores

públicos e instituições sem fins lucrativos.

Os instrumentos relevantes• A Declaração Universal de Direitos Humanos (1948);

• A Convenção Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e

Culturais (1966);

• A Declaração da Organização Internacional do Trabalho sobre Prin-

cípios Relativos a Empreendimentos Multinacionais e Política Social (1977);

• A Declaração da ONU sobre o Direito ao Desenvolvimento (1986).

SOCIEDADES E DESENVOLVIMENTOSINFORMACIONAIS: RESUMO

Os dispositivos de Direitos Humanos relevantes para as interações entre

as sociedades e os desenvolvimentos informacionais podem ser resumidos na

tabela seguinte:

Page 36: 103 151 Direitos a Comunicacao Direitos Humanos Hamelink

DIREITOS À COMUNICAÇÃO NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

138

TABELA 1: DISPOSITIVOS DE DIREITOS HUMANOS

Dim ensões Dispositivos de Direitos Hum anos Tecnologia

Acesso à educação técnica Uso da tecnologia para prom over os Direitos Hum anos Com partilham ento eqüitativo dos benefícios da tecnologia Proteção contra os efeitos nocivos Participação na concepção de políticas públicas Atenção para as necessidades de grupos em situações de

desvantagem

Cultura

Auto-determinação do desenvolvim ento cultural Diversidade do trabalho criativo e conteúdos de m ídia Participação na vida cultural Reconhecimento de práticas culturais Com partilham ento dos benefícios do desenvolvim ento

científico Uso da língua materna Proteção da herança cultural Envolvim ento nas políticas culturais

Política

Liberdade de expressão Liberdade de opinião Proteção contra o incitam ento ao ódio e à discriminação Proteção à privacidade Proteção aos prisioneiros de guerra Presunção da inocência Responsabilidade de fornecer inform ações sobre questões

de interesse público Elim inação de conteúdos estereotipados

Econom ia

Auto-determinação do desenvolvim ento econôm ico Direito ao desenvolvim ento Proteção à Propriedade Intelectual Responsabilidade social em presarial Privacidade/segurança Propriedade corporativa

Page 37: 103 151 Direitos a Comunicacao Direitos Humanos Hamelink

DIREITOS HUMANOS PARA A SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

139

IMPLEMENTAÇÃOA mais importante questão para a significância e a validade do regime

de Direitos Humanos é o fortalecimento dos padrões que eles propõem.

FortalecimentoHá evidências abundantes de que esses padrões são quase inces-

santemente violados ao redor do mundo, por atores com variadas posições

políticas e ideológicas. Ao se analisar os relatórios anuais da Anistia

Internacional, por exemplo, parece que não há nenhum país onde os Direitos

Humanos não sejam violados. Para filósofos da moral, isso não é, na verdade,

surpreendente. Está relacionado ao clássico hiato entre o conhecimento moral

possuído por seres humanos e sua intenção de agir moralmente.Os mecanismos que a comunidade internacional desenvolveu para lidar

com o “hiato moral” são amplamente inadequados. Os atuais procedimentossão baseados principalmente no Protocolo Opcional (OP) à ConvençãoInternacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966) e a Resolução 1503,adotada pelo Conselho Econômico e Social da ONU, em 1970. O protocoloautoriza ao Comitê de Direitos Humanos da ONU a receber e considerarcomunicações de indivíduos dos países signatários do OP (atualmente 75países) que aleguem serem vítimas de violações dos Direitos Humanos ou dequalquer um dos direitos estabelecidos na Convenção. Essas reclamações sãopublicadas como parte de um relatório sobre Direitos Humanos nos países.O OP dispõe sobre as comunicações, análise e relatório, mas não sobresanções. O Conselho Econômico e Social da ONU, em sua resolução 1503,reconhece a possibilidade de reclamações individuais sobre violações dosDireitos Humanos. Ela autoriza à Comissão de Direitos Humanos da ONUa examinar “comunicações, junto com as respostas dos governos, se houver,as quais aparentem revelar padrões consistentes de graves violações dosDireitos Humanos”. O procedimento estabelecido pela resolução 1503 élento, confidencial e não dá aos indivíduos o direito de recurso.

Adicionalmente ao papel da Comissão sobre Direitos Humanos daONU e do Comitê de Direitos Humanos de monitorar o cumprimento daConvenção Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, outros mecanismosinstitucionais para a implementação da mesma são o Comitê para a Eli-minação da Discriminação Racial, o Comitê para os Direitos Econômicos,Sociais e Políticos, o Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra aMulher, o Comitê contra a Tortura, o Comitê sobre os Direitos das Crianças.Embora o trabalho de todos esses organismos seja importante, a sua

Page 38: 103 151 Direitos a Comunicacao Direitos Humanos Hamelink

DIREITOS À COMUNICAÇÃO NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

140

autoridade para fortalecer os padrões dos Direitos Humanos é muitolimitada. Seus membros são representantes dos países. Descobertas daComissão têm um certo significado, mas não são vinculantes.

O Comitê de Direitos Humanos da Convenção Internacional sobre

Direitos Civis e Políticos consiste de 18 especialistas que supervisionam a

implementação da Convenção. O trabalho do Comitê cobre apenas os

Estados que assinaram a Convenção (atualmente 129 países) e fornece

monitoramento internacional com base nos relatórios feitos pelos países. O

monitoramento do Comitê não resulta em qualquer sanção, mas pode gerar

alguma publicidade negativa com relação ao desempenho de determinado país

no campo dos Direitos Humanos.

O Comitê sobre a Eliminação da Discriminação Racial foi estabelecido

para a implementação da convenção sobre discriminação racial. Ele pode

receber reclamações de estados, mas apenas 14 estados autorizaram o Comitê

a receber reclamações de indivíduos.

O órgão de implementação da Convenção sobre a Eliminação da

Discriminação contra a Mulher é o Comitê sobre a Eliminação da Dis-

criminação contra a Mulher, que é autorizado a receber comunicações de

indivíduos. O Comitê sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais não

tem direito de receber reclamações de indivíduos ou grupos. Em seu relatório

à Conferência Mundial sobre Direitos Humanos da ONU, de 1993, o Comitê

pediu por um procedimento formal para reclamações:

“Uma vez que a maioria dos dispositivos da Convenção (e mais nota-velmente aqueles relativos à educação, saúde, alimentação e nutrição, ehabitação) não são alvo de qualquer escrutínio detalhado em nívelinternacional, é mais improvável que eles venham a ser objeto de exameno nível nacional” (ONU, 1993a: parágrafo 24).

Em 1997, a 53ª sessão da Comissão sobre Direitos Humanos da ONU

discutiu uma minuta de protocolo para um procedimento de reclamações e, em

uma resolução, afirmou o interesse dos seus membros na minuta. Este foi o

primeiro passo no longo processo que culminou no Protocolo Opcional.

Para a Convenção sobre os Direitos da Criança, as instituições e

procedimentos para um fortalecimento sério dos direitos são amplamente não

efetivos. Em 1991 os países signatários da Convenção elegeram pela primeira

vez um órgão de monitoramento para a Convenção: o Comitê sobre os

Page 39: 103 151 Direitos a Comunicacao Direitos Humanos Hamelink

DIREITOS HUMANOS PARA A SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

141

Direitos da Criança. Composto por 10 especialistas, este comitê reúne-se três

vezes por ano para examinar os relatórios de implementação que são

submetidos pelos países-membros que aceitaram o dever (artigo 44 da

Convenção) de relatarem regularmente os passos tomados para implementar

a Convenção. Contudo, um importante trabalho do Comitê, o de reforçar os

padrões da Convenção, é severamente limitado. Além do mais, a Convenção

não permite que sejam recebidas reclamações individuais de crianças ou de

seus representantes sobre eventuais violações.

Os obstáculosAdicionalmente à fraqueza dos mecanismos formais de fortalecimento

(as condições “internas”), as seguintes condições “externas” impedem a

implementação efetiva dos dispositivos de Direitos Humanos:

• A ampla falta de conhecimento ao redor do mundo sobre a existência

dos Direitos Humanos. Há muitos esforços no campo da educação para os

Direitos Humanos, mas, no momento, o comprometimento com recursos

para esses esforços é claramente insuficiente;

• A atual suspensão, em nível mundial, de Direitos Humanos fundamentais,

em função da guerra ao terrorismo ou da proteção à segurança nacional;

• A ausência de vontade política de comprometer recursos adequados

para a realização dos Direitos Humanos;

• O alargamento do “hiato digital” (digital divide) entre e intra-

sociedades e a recusa comum dos elaboradores das políticas públicas de

enxergar o hiato digital e sua solução como parte da vontade política de

resolver o problema do alargamento;

• O existente, e em expansão, regime para a proteção dos direitos à

Propriedade Intelectual, que impede o acesso eqüitativo à informação e ao

conhecimento;

• A tendência a sujeitar bens e serviços culturais às regras do regime da

Organização Mundial do Comércio e a recusa de isentar a cultura das

políticas internacionais de comércio, que ameaçam a diversidade cultural;

• A apropriação de muito do conhecimento técnico mundial por

corporações privadas e a recusa dos detentores da tecnologia em concordar

com padrões internacionais para transferência de tecnologia;

• O controle corporativo monopolista ou oligopolista sobre a produção

e distribuição dos bens e serviços informacionais e comunicacionais;

Page 40: 103 151 Direitos a Comunicacao Direitos Humanos Hamelink

DIREITOS À COMUNICAÇÃO NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

142

• A proliferação, em nível mundial, de um jornalismo orientado para o

mercado, com subinformação – quando não desinformação – do público ao

redor do mundo no tocante à questões de interesse público;

• As perspectivas limitadas dos Direitos Humanos como sendo princi-

palmente, ou mesmo tão somente, direitos individuais. Isto ignora o fato que

as pessoas comunicam-se e se envolvem em práticas culturais, como

membros de comunidades, e impede o desenvolvimento de fontes indígenas

de informação e de conhecimento.

O DIREITO HUMANO À COMUNICAÇÃONão importa qual a forma de desenvolvimento que será seguida pelas

Sociedades da Infomação, nós provavelmente veremos diferentes padrões

para o trânsito da informação entre as pessoas. Seguindo uma proposta de

Bordewijk e Vann Kaam (1982), quatro padrões podem ser distinguidos:

• A disseminação de mensagens (Bordewijk e Van Kaam chamam isso

de “alocução”);

• A consulta à informação (como em bibliotecas ou na Web);

• O registro de dados (para fins públicos ou privados);

• O intercâmbio de informação entre pessoas (a modalidade da

conversação).

Levantamento sobre os Direitos Humanos existentes pertinentes aos

desenvolvimentos informacionais mostra que eles cobrem principalmente a

disseminação, a consulta e o registro de informações:

• Os Direitos Humanos para a disseminação tratam das questões da

liberdade do discurso e suas limitações.

• Os Direitos Humanos relativos à consulta tratam das questões do

acesso e da confidencialidade.

• Os Direitos Humanos relativos ao registro tratam das questões da

privacidade e da segurança.

A tabela seguinte dá um panorama.

Padrões Dispositivos de Direitos HumanosDisseminação Liberdade de ExpressãoConsulta Acesso à informaçãoRegistro Proteção da privacidade

Page 41: 103 151 Direitos a Comunicacao Direitos Humanos Hamelink

DIREITOS HUMANOS PARA A SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

143

Embora os três primeiros padrões estejam cobertos, há grande omissão

nos Direitos Humanos internacionais com relação a dispositivos sobre o

quarto padrão – a conversação, ou a comunicação no sentido específico do

termo. Praticamente todos os dispositivos de Direitos Humanos referem-se à

comunicação como “transferência de mensagens”. Isto reflete uma inter-

pretação da comunicação que se tornou bastante comum desde que Shannon

e Weaver (1949) introduziram a teoria matemática da comunicação. O seu

modelo descreve a comunicação de forma linear, como um processo de mão

única. Isto é, contudo, uma concepção muito limitada e por vezes enganosa de

comunicação, por ignorar o fato de que, na essência, “comunicar” refere-se a

um processo de compartilhar, tornar comum ou criar uma comunidade.

Comunicação é utilizada para a disseminação de mensagens (tal como no

caso dos meios de comunicação de massa), para a consulta às fontes de

informação (como pesquisas em bibliotecas ou buscas na World Wide Web),

para o registro de informações (como acontece nos bancos de dados) e para

as conversas das quais as pessoas participam.

As leis existentes de Direitos Humanos, asseguradas pelo artigo 19 da

DUDH e artigo 19 da Convenção Internacional sobre Direitos Civis e

Políticos, cobrem o direito fundamental à liberdade de opinião e de ex-

pressão. Isto é, indubitavelmente, uma base essencial para o processo de

diálogo entre as pessoas, mas não se constitui como tráfego de mão dupla.

É a liberdade de expressão do mendigo que fala em uma esquina, e a quem

ninguém tem que ouvir, e que pode não estar se comunicando com ninguém.

O artigo também se refere à liberdade de ter opiniões: isto se refere às

opiniões dentro da cabeça das pessoas, que podem servir para a comunicação

consigo mesmo, mas não necessariamente traz uma obrigatoriedade de

comunicação com outros. Menciona o direito de buscar informações e idéias:

dispõe para o processo de consultar e reunir notícias, por exemplo, o que é

diferente de comunicar. Também há o direito a receber informação e idéias,

o que é também, em princípio, um processo de mão única: o fato de que eu

possa receber quaisquer informações ou idéias que eu queira não implica que

eu esteja envolvido em um processo comunicacional. Finalmente, há o direito

a disseminar informações ou idéias: isso se refere à disseminação/alocução

que vai além da liberdade de expressão, mas da mesma forma não implica em

diálogo ou intercâmbio. Em suma, os dispositivos dos artigos tratam apenas

de um processo de mão-única de transporte, recepção, consulta e alocução,

mas não do processo de mão-dupla, que é a conversação.

Page 42: 103 151 Direitos a Comunicacao Direitos Humanos Hamelink

DIREITOS À COMUNICAÇÃO NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

144

Questão crucial para este capítulo é como esta omissão pode ser

remediada. Em 1969, Jean d’Arcy introduziu o Direito à Comunicação, ao

escrever “vai chegar o tempo em que a Declaração Universal dos Direitos

Humanos vai ter que abranger um direito mais extensivo do que o direito

humano à informação. (...) Este é o direito do homem a comunicar”. (D’Arcy

1969:14). A comunicação precisa ser entendida como um processo interativo.

As regras adotadas foram criticadas por focarem muito no conteúdo do

processo. “É a informação, por si mesma, que é protegida” (Fisher 1983:8).

“As declarações anteriores sobre a liberdade de comunicação ... implicavam

que a liberdade de informação era um direito de mão única de um nível mais

elevado para um nível mais baixo” (Fisher 1983:9). Há uma crescente

necessidade de participação: “mais e mais pessoas podem ler, escrever e usar

equipamentos de transmissão em massa, e não podem mais continuar a ter

acesso negado à participação nos processos de mídia por ausência de

comunicação ou habilidades manuais” (Fisher 1983:9).

O direito de comunicar é percebido por seus protagonistas como mais

fundamental do que o direito à informação, como atualmente disposto pelas

leis internacionais. A essência do direito seria baseada na observação deque a comunicação é um processo social fundamental, uma neces-

sidade humana básica e o fundamento de todas as organizações

sociais. A idéia foi introduzida no âmbito da Unesco desde 1974. A 18ª

sessão da Conferência Geral da Unesco, em sua resolução 4.121, afirmou que

“todos os indivíduos devem ter acesso igual às oportunidades de participação

ativa nos meios de comunicação e de se beneficiar de tais meios, enquanto

preservam o direito à proteção contra seus abusos”.

A resolução autorizou então o diretor geral a “estudar caminhos e

meios pelos quais uma participação ativa no processo de comunicação

possa se tornar possível e analise o direito de comunicar”. Em maio de

1978, o primeiro seminário de especialistas da Unesco sobre o direito de

comunicar teve lugar em Estocolmo (em cooperação com a Comissão

Nacional da Suécia, da Unesco). Os participantes identificaram diferentes

componentes do conceito do direito a comunicar. Esses incluem o direito

à participar, a acessar os recursos de comunicação e o direito de

informação. A reunião concordou que grupos devem ter os direitos de

acessar e participar do processo de comunicação. Também foi destacado

que deve ser dada especial atenção com relação ao Direito à Comunicação

de várias minorias – nacionais, étnicas, religiosas e lingüísticas” (Fisher

Page 43: 103 151 Direitos a Comunicacao Direitos Humanos Hamelink

DIREITOS HUMANOS PARA A SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

145

1982:43). Em resumo, a reunião de Estocolmo concluiu que: “O conceito

do direito de comunicar coloca problemas ‘grandes e complexos’, que

requerem um panorama maior do que o fornecido por qualquer backgroundcultural, qualquer disciplina profissional ou qualquer órgão particular de

experiência profissional. E embora alguns dos aspectos do conceito sejam

desconfortáveis para alguns dos participantes e observadores, esses mesmos

participantes e observadores também achavam, de uma forma geral, o

conceito como esperançoso e encorajador” (Fisher 1982:45).

Ainda que a reunião de Estocolmo tenha fornecido ampla análise do

direito a comunicar nos níveis individual e comunitário, um segundo

seminário de especialistas, focado na dimensão internacional do direito a

comunicar, foi realizado durante a Reunião de Especialistas sobre o Direito

a Comunicar, em Manila. Essa reunião foi organizada em parceria com a

Comissão Nacional da Unesco nas Filipinas e teve lugar de 15 a 19 de

outubro de 1979. Os participantes propuseram que o direito a comunicar seja

tanto um direito individual quanto social. Como um Direito Humano

fundamental, ele deveria ser incorporado à DUDH. Ele tem validade nacional

e internacional, abrange deveres e responsabilidades para indivíduos, grupos

e nações e requer a alocação de recursos apropriados.

Em seu relatório final, a Comissão MacBride, designada pela UNESCO,

concluiu que o reconhecimento desse novo direito “promete fazer avançar

a democratização da comunicação” (Comissão Internacional para o Estudo

dos Problemas da Comunicação, 1980:173). A Comissão declarou que

“as necessidades de comunicação em uma sociedade democrática devem

ser atendidas pela extensão dos direitos específicos, tais como o direito

a ser informado, o direito a informar, o direto à privacidade, o direito

a participar na comunicação pública – todos elementos de um novo

conceito, o direito de comunicar. No desenvolvimento do que cha-

mamos de uma nova era de direitos sociais, nós sugerimos que todas as

implicações do direito de comunicar sejam explorados mais profun-

damente” (Comissão Internacional para o Estudo dos Problemas da

Comunicação, 1980:265).

A Comissão também observou que a “liberdade do discurso, da

imprensa e de reunião são vitais para a realização dos Direitos Humanos. A

extensão dessas liberdades de comunicação para um direito individual e

Page 44: 103 151 Direitos a Comunicacao Direitos Humanos Hamelink

DIREITOS À COMUNICAÇÃO NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

146

coletivo mais abrangente, o direito de comunicar, é um princípio evolutivo

do processo de democratização” (Comissão Internacional para o Estudo dos

Problemas da Comunicação, 1980:265). De acordo com a Comissão, “o

conceito de ‘direito de comunicar’ ainda tem que receber sua forma final e

seu conteúdo pleno ... ainda está no estágio de ser pensado através de todas

as suas implicações e ser gradualmente enriquecido” (Comissão Internacional

para o Estudo dos Problemas da Comunicação, 1980:173).

A Conferência Geral da Unesco de 1980, em Belgrado, em sua resolução

4/19,14, definiu direito de comunicar como sendo o “respeito ao direito do

público, de grupos étnicos e sociais e de indivíduos de ter acesso à fontes de

informação e de participar ativamente no processo de comunicação”.

A Conferência Geral da Unesco de 1983, em Paris, adotou a resolução

3.2 sobre o direito de comunicar: “retomando que o objetivo não é substituir

a noção de direito de comunicar por quaisquer outros direitos que já são

reconhecidos pela comunidade internacional, mas aumentar o seu escopo

com relação a indivíduos e os grupos que eles formam, particularmente em

vista das novas possibilidades de comunicação ativa e diálogo entre culturas

que são abertas pelos avanços nas mídias”.

A 23ª Conferência Geral da Unesco, em 1985, em Sofia, solicitou ao

diretor-geral que desenvolvesse atividades para a realização do direito de

comunicar. No início dos anos 1990, o direito de comunicar havia pratica-

mente desaparecido da agenda da Unesco. Não era mais um conceito crucial

no Plano de Médio-Prazo para 1990-95. O direito de comunicar foi men-

cionado, mas não convertido em ações operacionais.

Em 1992, Pekka Tarjanne, secretária-geral da União Internacional de

Telecomunicações (UIT) levantou a questão do direito de comunicar e

afirmou “eu sugeri aos meus colegas que a Declaração Universal dos Direitos

Humanos deve ser emendada para reconhecer o direito de comunicar como

um direito humano fundamental” (Tarjanne 1992:45). Durante os prepa-

rativos para o Encontro Mundial da ONU sobre a Sociedade da Informação

(WSIS), que foi realizado em 2003, em Genebra e será continuado em 2005,

na Tunísia, a discussão sobre o direito de comunicar se revitalizou. Isto

ocorreu devido, particularmente, às atividades da campanha dos Direitos àComunicação na Sociedade da Informação (CRIS), durante as reuniões preparatórias

do Comitê (em julho de 2002 e fevereiro de 2003). É especialmente

significativo que a Secretaria Geral da ONU, em sua mensagem pública no

Page 45: 103 151 Direitos a Comunicacao Direitos Humanos Hamelink

DIREITOS HUMANOS PARA A SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

147

Dia Mundial das Telecomunicações (17 de maio de 2003), tenha lembrado à

comunidade internacional que “milhões de pessoas nos países mais pobres

ainda são excluídas do direito de comunicar, cada vez mais visto como um

direito humano fundamental”.4 Em sua evolução, o direito de comunicar não

ficou isento de críticas. Desmond Fisher escreveu, ainda em 1982:

“O direito de comunicar abraça um espectro muito mais amplo de

liberdades de comunicação do que as formulações anteriores, as quais

falharam em conseguir apoio geral por causa da incerteza sobre suas

conseqüências práticas. Inevitavelmente, a nova formulação vai

encontrar uma oposição ainda maior” (Fisher 1982:34).

Ao longo do debate, foi continuamente levantada a objeção de que “a

comunicação é uma parte tão integral da condição humana que é

filosoficamente desnecessário e talvez equivocado descrevê-la como um

direito humano” (Fisher 1982:41). Outra objeção apontava para o possível

uso do conceito por parte de grupos poderosos na sociedade: “O conceito

tem que ser interpretado e isso vai ser feito pelos grupos no poder, não pelos

mais fracos ou oprimidos. Limites vão ser fixados dentro dos quais o direito

de comunicar pode ser exercido. Esses limites vão ser definidos politicamente

e vão favorecer as atuais relações de poder no mundo. O direito de comunicar

não é um conceito que leva para uma mudança; é uma tentativa de dar a

grupos que trabalham em prol de uma liberação um sentimento de que são

levados a sério, enquanto, na prática, o direito de comunicar vai ser usado para

preservar a atual ordem do mundo e, talvez, para consolidá-la ainda mais”

(Hedebro 1982:68).

A oposição ao direito de comunicar veio de diferentes pontos de vista

ideológicos. “O conceito do direito de comunicar é alvo de desconfiança das

nações ‘ocidentais’ que o vêem como parte dos propósitos relativos à Nova

Ordem Informacional e Comunicacional mundial, sobre os quais eles têm

muitas suspeitas... Em alguns países socialistas e do Terceiro Mundo, a

oposição ao direito origina-se no fato de que ele possa ser usado para justificar

a continuidade do presente desequilíbrio massivo no fluxo de informações e

4. (N.T.) Mensagem do Secretário-Geral da ONU por ocasião do Dia Mundial das

Telecomunicações, www.itu.int/newsroom/wtd/2003/unsg_message.html, acessado em

23/10/2003.

Page 46: 103 151 Direitos a Comunicacao Direitos Humanos Hamelink

DIREITOS À COMUNICAÇÃO NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

148

para importação irrestrita de tecnologia e informação ocidental e, conse-

qüentemente, valores ocidentais” (Fisher 1982:34).

O governo dos Estados Unidos se opôs ao direito de comunicar nos

debates iniciais e denunciou o conceito como artimanha comunista. Em sua

rejeição, o principal argumento foi a ligação entre o direito de comunicar e

a noção dos direitos das pessoas. Embora a referência às pessoas e aos

direitos das pessoas seja muito comum na história política dos Estados

Unidos, no contexto da Unesco isso foi visto como defesa dos direitos dos

países e uma ameaça aos direitos individuais.

Uma questão importante para a discussão do direito humano de comunicar

é saber se a expansão do regime de Direitos Humanos como um novo direito vai

ameaçar os dispositivos já existentes. A lei internacional é um processo vivo e o

catálogo dos Direitos Humanos tem crescido consideravelmente ao longo dos

últimos anos para incluir novos direitos e liberdades, sem ameaçar os padrões

básicos formulados pela DUDH. E, na verdade, não deveria haver razão para

problemas com a adição do direito de comunicar, uma vez que tudo o mais

permanecerá do mesmo jeito. A última coisa que alguém tentaria fazer é abrir a

discussão sobre os artigos da DUDH e revê-los. Esse seria um caminho muito

perigoso hoje, porque a comunidade internacional certamente não adotaria um

documento tão amplo quanto a DUDH de 1948.

Outro importante ponto levantado na discussão presente sobre o direito

de comunicar é se esse novo direito leva ou não a um abuso por parte de

governos. Todos os dispositivos das leis internacionais podem ser des-

respeitadas por parte de governos. Mesmo a Carta da ONU pode ser

interpretada por um país membro de formas deturpadas. Adotar um padrão

internacional sobre comunicação é mais um problema para governos anti-democráticos do que o direito à liberdade de expressão. Permitir que aspessoas falem livremente nas esquinas ameaça menos um governo do quepermitir que as pessoas se comuniquem livremente umas com as outras. O

direito à liberdade de comunicação vai ao âmago do processo democrático,

e é muito mais radical do que o direito à liberdade de expressão! A tentativa

de ter um direito de comunicar adotado pela comunidade internacional

deverá, desta forma, ter uma grande resistência.

Para os protagonistas do direito de comunicar há várias possibilidades

de ação. Primeiro, há uma trajetória na lei internacional formal, onde o finaldesejado é a incorporação do direito de comunicar nas leis de Direitos

Humanos internacionais. Essa rota implica a preparação de uma formulação

Page 47: 103 151 Direitos a Comunicacao Direitos Humanos Hamelink

DIREITOS HUMANOS PARA A SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

149

(na forma de uma resolução ou declaração) que seria dotada por uma

Conferência Intergovernamental, como a Cúpula Mundial da Sociedade da

Informação (WSIS), ou pela Conferência Geral de uma das agências da

ONU, como a Unesco. Eventualmente, essa abordagem pode levar a uma

Conferência Especial da ONU a fazer uma Minuta de Convenção.

Segundo, há um caminho pelo qual os representantes dos movimentos da

Sociedade Civil adotam uma declaração do direito de comunicar como um

documento inspirador, ferramenta educacional ou como guia para a ação social.

Eles não buscam o consentimento de outros setores, como o governo ou

empresas, um exemplo dessa abordagem é a Carta de Comunicação das Pessoas.

Terceiro, há a opção de expandir a comunidade de países que adotam,

tal direito, usando o exemplo da Declaração de Hague sobre o Futuro da

Política de Migração e Refugiados. Esta declaração surgiu de uma reunião

patrocinada pela Sociedade para o Desenvolvimento Internacional (novembro

de 2002) e os signatários eram indivíduos da Sociedade Civil, governo e

empresários. Tal declaração funcionou como um lembrete para a comunidade

internacional dos padrões relevantes e sugere ações futuras.

CONCLUSÃONo final de 2003 e novamente em 2005, a Cúpula Mundial da Sociedade da

Informação (WSIS), reunida pela ONU trata de algumas das questões mais

importantes no campo da informação e da comunicação. O encontro é inspirado

por uma necessidade de encontrar uma visão comum sobre os desenvolvimentos

informacionais que atualmente afetam a maioria das sociedades e que são

convenientemente reunidos sob o título de “Sociedade da Informação”.

A conquista mais significativa da comunidade internacional, desde a II

Guerra Mundial, foi a articulação e a codificação de um amplo espectro de

Direitos Humanos fundamentais. Pareceria, então, lógico que um modelo

normativo de padrões de Direitos Humanos deveria moldar essa visão

comum. De fato, nas últimas décadas a comunidade internacional tem

adotado e muitas vezes confirmado leis vinculantes e uma variedade

impressionante de padrões relativos à informação e à comunicação. Este

capítulo fez um panorama desses dispositivos e apontou para o problema

maior: a ausência de implementação.

Seguindo essa análise, a WSIS pode lembrar à comunidade internacional de

tudo o que já foi conquistado e destacar a importância de seriamente identificar

e remover os maiores obstáculos à necessidade urgente de implementação dos

Page 48: 103 151 Direitos a Comunicacao Direitos Humanos Hamelink

DIREITOS À COMUNICAÇÃO NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

150

dispositivos existentes. A Cúpula também pode apontar que a omissão essencial

nos “Direitos Humanos para a Sociedade da Informação” é a ausência de

dispositivos de Direitos Humanos concernentes ao modo de conversação da

comunicação ou a comunicação como um processo interativo. Como o

Secretário-Geral da ONU, Kofi Annan, declarou em sua mensagem no Dia

Mundial das Telecomunicações (17 de maio de 2003), o objetivo básico da

Cúpula é ajudar todas as pessoas do mundo a se comunicar.

“Se, de fato as pessoas do mundo, podem ser ajudadas a participar nasconversações públicas e privadas que afetam suas vidas, a comunidadeinternacional vai ter que assegurar condições sob as quais esse processopossa ter lugar. A comunicação conversacional entre indivíduos e grupos,seja em público ou em particular, deve ser protegida contra interferênciaindevida de terceiros. Precisa de confidencialidade, espaço e tempo, erequer o aprendizado da ‘arte da conversação’. Também pede recursospara conversações multilingüísticas, e para a inclusão das pessoas emsituação de desvantagem. Tudo isso requer o compromisso de umacomunidade de multistakeholders – governos, organizaçõesintergovernamentais, Sociedade Civil e empresas. Uma declaração daWSIS sobre o ‘direito de comunicar’ pode transmitir ao mundo um fortesinal para a mobilização em prol desse compromisso”.5

Referências Bibliográficas

Bordewijk, J.L. and B. Van Kaam 1982. Allocutie. Bosch and Keunig, Baarn.

Council of Europe. 1995. Recommendation (R(95)13), Concerning Problems of Criminal

Procedure Law Connected with Information Technology. Strasbourg.

D’Arcy, J. 1969. “Direct broadcasting satellites and the right to communicate.” EBU Review.

No. 118, pp. 14–18.

European Commission (EC). 1997. Towards a European Framework for Digital Signatures

and Encryption. EC, Brussels.

Fisher, D. 1982. The Right to Communicate: A Status Report. UNESCO Reports and

Papers on Mass Communication, No. 94. UNESCO, Paris.

5. (N.T.) Mensagem do Secretário-Geral da ONU por ocasião do Dia Mundial das

Telecomunicações, www.itu.int/newsroom/wtd/2003/unsg_message.html, acessado em

23/10/2003.

Page 49: 103 151 Direitos a Comunicacao Direitos Humanos Hamelink

DIREITOS HUMANOS PARA A SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

151

Fisher, D. and L.S. Harms (eds.) 1983. The Right to Communicate: A New Human

Rights. Boole Press, Dublin.

Hamelink, C.J. 1994. The Politics of World Communication. Sage, London.

Hedebro, G. 1982. Communication and Social Change in Developing Nations. Iowa

State University Press, Ames.

International Commission for the Study of Communication Problems. 1980. Many

Voices, One World. Report of the International Commission for the Study of

Communication Problems (chaired by Sean MacBride). UNESCO, Paris.

International Commission of Jurists (ICJ), Urban Morgan Institute on Human Rights and

Maastricht University. 1997. The Maastricht Guidelines on Violations of Economic,

Social and Cultural Rights. Maastricht University, Maastricht.

Organisation for Economic Co-operation and Development (OECD). 1997. Guidelines

for Cryptography Policy. Paris.

South Commission. 1990. The Challenge to the South. Oxford University Press,

Oxford.

Tarjanne, P. 1992. “Telecom: Bridge to the 21st century.” Transnational Data and

Communications Report, Vol. 15, No. 4, pp. 42–45.

United Nations. 1968. Proclamation of Teheran: Final Act of the International

Conference on Human Rights. (Teheran, 22 April–13 May). (UN Doc. A/CONF. 32/

41 at 3). www1.umn.edu/humanrts/instree/l2ptichr.htm, accessed on 23 October 2003.

United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (UNESCO). 1982.

Right to Communicate: Legal Aspects. UNESCO, Paris.

———. 1968. Meeting of Experts on Cultural Rights as Human Rights. Final report

(Paris, 8–13 July). UNESCO, Paris.

Cees J. Hamelink é professor de Comunicação Internacional na Universiteit van Amsterdandesde 1984. Desde 2001 é docente também na área de Mídia, Religião e Cultura na VrijeUniversiteit em Amsterdan. Tem seu Ph.D. junto à Universidade de Amsterdan, onde estudou

Teologia e Psicologia. É editor-chefe do periódico científico Gazette The International Journalfor Communication Studies. Tem mais de 16 livros escritos na área de mídias, ICT e Direitos

Humanos.