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PUBLICADO PELO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS JURÍDICAS, UFPB - © PRIMA FACIE, 2011. A Análise Retórica, os Direitos Transindividuais e os Direitos Humanos Rhetorical Analysis, Transindividual Rights and Human Rights Narbal de Marsillac Docente do Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas e professor do Departamento de Filosofia, ambos na UFPB, Campus I, João Pessoa-PB, Brasil. E-mail: [email protected] Roberta C. Gonçalves 1 Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB, João Pessoa-PB, Brasil. E-mail: [email protected] 1. Crítica à Subjetividade Moderna Weber parece ter sido o primeiro a apontar o que chamou de processo de desencantamento do mundo, gerado pela crescente racionalização iluminista, e, com isso, da perda da espontaneidade das tradições (Cf. WEBER, 2003, p. 27; V. também HABERMAS, 2004, p. 04). A própria produção cultural, no afã de satisfazer as exigências frias do iluminismo moderno, viu-se refém dos ditames e cadeias de uma racionalidade restritamente concebida. Restrita porque, aliada às exigências de fundamentação independente de preferências ou crenças, a própria 1 Roberta Gonçalves também é mestre em Filosofia pela Universidad Complutense de Madrid UCM. RESUMO: A proposta é investigar, através da análise retórica, a contribuição que a crítica à consciência moderna levada a cabo por vários pensadores do século XIX e XX pode trazer para a autocompreensão dos direitos transindividuais. Claro está que o caráter metassubjetivo desses direitos não coaduna com a concepção tradicional do fenômeno jurídico por esta ainda estar demasiadamente comprometida com o paradigma sujeito-objeto típico da Idade Moderna. O que se verifica, nesta perspectiva, é que a consciência moderna consistiu num topos específico da modernidade, mas que hoje já enfrenta os “sintomas de esgotamento” da metafísica e da razão centrada na subjetividade. A constatação e defesa do caráter meramente tópico-retórico e não ontológico da referida premissa moderna só é possível pela análise retórica, entendida aqui não como simples estratégia interpretativa de um discurso, mas como orientação filosófica fundamental que compromete todas as assertivas humanas. Palavras-Chaves: Análise Retórica; Direito Transindividual; Filosofia da Consciência.

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  • PUBLICADO PELO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS JURDICAS, UFPB - PRIMA FACIE, 2011.

    A Anlise Retrica, os Direitos Transindividuais e os Direitos Humanos Rhetorical Analysis, Transindividual Rights and Human Rights

    Narbal de Marsillac Docente do Programa de Ps-Graduao em Cincias

    Jurdicas e professor do Departamento de Filosofia, ambos na UFPB, Campus I, Joo Pessoa-PB, Brasil.

    E-mail: [email protected]

    Roberta C. Gonalves1

    Mestre em Cincias Jurdicas pela UFPB, Joo Pessoa-PB, Brasil.

    E-mail: [email protected]

    1. Crtica Subjetividade Moderna

    Weber parece ter sido o primeiro a

    apontar o que chamou de processo de

    desencantamento do mundo, gerado pela crescente racionalizao iluminista, e,

    com isso, da perda da espontaneidade das tradies (Cf. WEBER, 2003, p. 27; V.

    tambm HABERMAS, 2004, p. 04). A prpria produo cultural, no af de

    satisfazer as exigncias frias do iluminismo moderno, viu-se refm dos ditames e

    cadeias de uma racionalidade restritamente concebida. Restrita porque, aliada s

    exigncias de fundamentao independente de preferncias ou crenas, a prpria

    1 Roberta Gonalves tambm mestre em Filosofia pela Universidad Complutense de Madrid UCM.

    RESUMO: A proposta investigar, atravs da anlise retrica, a contribuio que a crtica conscincia moderna levada a cabo por vrios pensadores do sculo XIX e XX pode trazer para a autocompreenso dos direitos transindividuais. Claro est que o carter metassubjetivo desses direitos no coaduna com a concepo tradicional do fenmeno jurdico por esta ainda estar demasiadamente comprometida com o paradigma sujeito-objeto tpico da Idade Moderna. O que se verifica, nesta perspectiva, que a conscincia moderna consistiu num topos especfico da modernidade, mas que hoje j enfrenta os sintomas de esgotamento da metafsica e

    da razo centrada na subjetividade. A constatao e defesa do carter meramente tpico-retrico e no ontolgico da referida premissa moderna s possvel pela anlise retrica, entendida aqui no como simples estratgia interpretativa de um discurso, mas como orientao filosfica fundamental que compromete todas as assertivas humanas.

    Palavras-Chaves: Anlise Retrica; Direito Transindividual; Filosofia da Conscincia.

  • NARBAL DE MARSILLAC; ROBERTA C. GONALVES

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    noo de razo extrada do modelo das cincias da natureza que passam a

    reger os principais critrios de cientificidade. Para ser racional preciso ser

    cientfico e, por sua vez, para s-lo, preciso explicar, predizer e controlar como o

    faz a Astronomia, a Fsica ou a Qumica. Bem ao gosto cartesiano, toda tese sujeita

    dvida, ou seja, que no resiste ao mtodo da dvida hiperblica, deve ser

    descartada. Valendo-se o filsofo, o jurista ou o cientista, em geral, to-somente

    daquelas premissas que eram tidas por absolutamente inequvocas. Como se fosse

    possvel pensar de forma isenta, objetiva e avalorativa, sem quaisquer

    contingncias histrico-sociais.

    Sem perceber, os modernos e sua racionalidade restrita sustentavam suas

    teses em pressupostos to dogmticos como o Deus cristo dos escolsticos, ento

    execrado, ao menos enquanto fundamento. A sacralizao crescente da

    objetividade s pde ser intentada pelo concomitante aplainamento da

    subjetividade2, que, neste sentido, comparece como algo dado acriticamente,

    correspondendo, em certa medida, laicizao da alma ou esprito do discurso

    religioso.

    A doutrina dos elementos de Mach no pode resolver a tarefa que o positivismo se coloca (a saber: fundamentar a cincia, entendida de maneira objetivista, em base de uma ontologia do real-factual), no s pelo fato de proceder materialisticamente, mas porque seu materialismo elementar amputa a indagao cognitivo-terica acerca das condies subjetivas prprias objetividade de um conhecimento possvel. A nica reflexo permitida visa a auto-supresso da reflexo acerca do sujeito que conhece.

    (Idem, p. 105) Grifo nosso

    Desta forma, seja o sujeito das modernas gnosiologias, seja o agente moral

    do campo tico e jurdico, ou mesmo, o indivduo no estado de natureza que aceita

    os termos do contrato social e ingressa na sociedade civil; em todos se pressupe

    2 Cf. HABERMAS (1982, p. 105) in verbis: Ao aplainamento da subjetividade corresponde o

    nivelamento diferena entre essncia e apario. O que existe so fatos... Os fatos so, em ltima instncia, aquilo que est dado imediatamente, disponvel de uma forma inequvoca e, ao mesmo tempo, o que inabalvel e indiscutivelmente objetivo

  • A ANLISE RETRICA, OS DIREITOS TRANSINDIVIDUAIS E OS DIREITOS HUMANOS

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    dogmaticamente a existncia prvia dessa entidade dada sem qualquer justificativa

    ulterior. Em outras palavras, nada pode garantir a existncia do sujeito, em

    qualquer uma de suas aparies. No se pode pressup-la no campo do

    conhecimento porque no h absoluta certeza dos limites fronteirios entre o

    sujeito que conhece e o objeto cognoscvel, quando termina um e comea o outro.

    Neste sentido, como se poderia saber se o que se conhece efetivamente objetivo e

    imparcial? No campo tico, nada pode provar a suposta liberdade do agente, j

    que se pudssemos conhec-la, desvelar-se-iam as relaes de causa e efeito que a

    precedem enquanto fenmeno natural, impossibilitando sua compreenso como

    causalidade autodeterminada, como quis Kant. E, finalmente, no campo poltico,

    os indivduos, no estado de natureza, so pressuposies quase mticas que

    serviram, no renascimento e incio da modernidade, apenas como novos critrios

    de legitimao do poder estatal, substituindo as antigas teses sustentadas em

    argumentos medievais reconhecidamente religiosos a respeito do divino direito

    dos reis3.

    2. Os Direitos Transindividuais e o Sujeito Moderno

    comum, nas aulas de introduo ao Direito dos cursos jurdicos,

    professores ensinarem a seus alunos que o termo Direito comporta um aspecto

    objetivo e posto e outro subjetivo, uma facultas agendi, que consistiria, portanto, na

    capacidade que um dado sujeito teria de coagir outrem, um particular ou o prprio

    Estado, a fazer ou deixar de fazer algo. Assim, o Direito tradicional esteve sempre

    vinculado percepo prvia de que h um sujeito ou uma subjetividade que o

    detm. Direito subjetivo direito de um sujeito ou de algum. Como, ento, falar-

    se de direitos transindividuais, difusos, coletivos ou individuais homogneos? So

    direitos sem sujeitos especficos que os poderiam pleitear em juzo.

    3 V. Sobretudo a tese de Filmer e criticada por Locke no Primeiro Tratado do Governo Civil.

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    Neste sentido, aparentemente, tem-se a uma contradio se advogarmos em

    favor das teorias do Direito tradicionais. Para compreendermos um pouco melhor

    isso, precisamos retroceder e revisitar alguns tericos do passado.

    Muito embora determinem um grupo de sujeitos que compartilham certa

    caracterstica (interesse ou situao de fato) em comum, os direitos denominados

    transindividuais ou metaindividuais, gnero dos que os direitos difusos, coletivos

    e individuais homogneos so espcies, representam um tipo intermedirio de

    direitos, uma zona emergente entre os direitos individuais clssicos e os interesses

    coletivos tutelados pelo Estado.

    Nesta esteira de raciocnio, os direitos transindividuais ultrapassam os

    limites tradicionais do direito e deveres individuais. Referem-se a objetos, em

    geral, indivisveis. Significa dizer que so, ao mesmo tempo, de todos e de

    ningum. H, assim, uma pluralidade de titulares indeterminados conectados

    entre si por contextos especficos. Seu alcance, assim, amplo, mas incerto e

    impreciso. So exemplos mais comuns: direitos do consumidor e meio ambiente.

    Inspirado na doutrina jurdica italiana dos anos 70, com expoentes como

    Cappelletti4, o sistema brasileiro procurou incorporar em seu corpo legal

    mecanismos que tutelassem os interesses coletivos emergentes da sociedade de

    consumo altamente industrializada, levando, ainda, em considerao, as restries

    que o modelo civilista adotado no pas impunha efetividade de uma proteo

    descentrada do sujeito.

    Sobre o abandono de uma viso puramente jurdica (positiva) do Direito,

    Dinamarco (2009, p. 58) lembra que, Tradicionalmente e at tempos bem recentes,

    acreditava-se que o sistema processual tivesse uma finalidade puramente jurdica,

    sendo ele, em resumo, um instrumento a servio do direito material.; contudo,

    nenhuma de suas teorias cuidava de examinar o sistema processual pelo ngulo

    externo e metajurdico, nem de investigar os substratos sociais, polticos e culturais

    que legitimam sua prpria existncia e o exerccio da jurisdio pelo Estado (idem,

    4 Notadamente em CAPPELLETTI (1988), passim.

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    ibid). Tal preocupao, hoje, culminou no advento do novo modelo de

    constitucionalizao do direito civil brasileiro e , em ltima anlise, sintoma da

    renegociao do que podemos chamar de paradigma sujeito-propriedade em vigor

    nas bases protetivas da tutela jurisdicional.

    Assim, os direitos transidividuais vm, primeiramente, mitigar a

    interpretao cerrada e o formalismo expresso do art. 6, do Cdigo de Processo

    Civil, o qual determina que ningum poder pleitear, em nome prprio, direito

    alheio, salvo quando autorizado por lei. Tal quebra responde, de uma vez,

    necessidade de legitimao da prtica jurdica ou da tutela jurisdicional a partir de

    um norte metassubjetivo, como j aduzido, bem como ao enfraquecimento da viso

    moderna de Direito como sinnimo de tcnica, de cunho meramente dedutivo e,

    portanto, utpico.

    A inspirao brasileira na legislao italiana comportou um carter mais

    procedimental dos institutos de defesa dos interesses transidividuais, os quais

    advieram, antes ainda, do estudo comparado da doutrina norteamericana do

    Commom Law, mais precisamente no que conhecem como class actions, os tipos de

    aes coletivas que visam proteo de direitos concernentes a grupos de pessoas,

    e.g., consumidores de certo produto ou servio, as quais, individualmente, no

    teriam condies de postular ou sequer teriam conhecimento de tais direitos.

    No mbito de nosso sistema jurdico, tal anlise comparada surtiu claros

    efeitos com a reviso de 1977 da lei constitucional que versa sobre a Ao Popular,

    lei 4.717/65), a qual protege o bem pblico, dando-lhe ainda o vis de proteo

    aos bens de valor econmico, artstico, esttico, histrico ou turstico. Mais tarde,

    em 1985, a Ao Civil Pblica (lei 7347/85) passou a cominar responsabilidade

    sobre danos causados a essa classe metaindividual de direitos.

    Como aponta PELLEGRINI (2011), a legislao brasileira atingiu maior

    abrangncia no escopo da proteo dos direitos transindividuais com a criao do

    Cdigo de Defesa do Consumidor (Lei 8078/90) e a consequente criao dos

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    direitos individuais homogneos, aqueles direitos de grupo, categoria ou classe de

    pessoas determinadas ou determinveis, originrios da mesma circunstncia de

    fato e que compartilhem prejuzos divisveis (MAZZILLI, 2006, p. 53); esta classe

    de direitos contm uma peculiaridade em sua rede de critrios, qual seja, a de que

    os efeitos de uma deciso contrria ao grupo possa surtir efeitos no plo ativo do

    litgio. Isto significa que a legislao ptria afere o critrio res judicata ao grupo que

    pleiteia ante a Justia apenas em termos de benefcios, no de danos.

    Neste diapaso, possvel notar um claro avano no sistema jurdico

    brasileiro, o primeiro da Amrica Latina a incorporar a previso de direitos

    transidividuais, o que ocorreu de forma bastante inteligente, no sentido de que a

    adequao das premissas tipicamente de common law para o nosso civil law foi

    implementada atravs do alto poder de discricionariedade exercido pela figura do

    juiz, no Brasil, o qual passou, ainda, a ser demandado de forma mais sensvel e no

    puramente tcnica quando da apreciao de uma situao jurdica de fato,

    aproximando-se, com isso, da reviso do carter inequvoco dos pontos de partida

    do discurso jurdico, apontado anteriormente.

    Por tratar eminentemente de direitos que interessam a todos, ligados

    cultura, aos bens sociais, ao desenvolvimento sustentvel, etc., costume vincular

    o advento de tais direitos teoria geracional dos Direitos Humanos5,

    configurando-se como direitos ligados aos direitos de terceira gerao. Tal leitura,

    entretanto, est abstrada de toda luta de reviso que tem sido feita no campo

    epistemolgico, tico e poltico contra as filosofias do sujeito ou filosofias da

    conscincia. Esta ausncia de reflexo sobre o tema enseja uma compreenso pouco

    5 Veja-se que, conjuntamente com tais aspectos de mbito coletivo, a recepo pelo sistema jurdico brasileiro de tutela de direitos transindividuais ramificou-se, com o tempo, a questes que podem ser consideradas eminentemente de Direitos Humanos, como o caso da proteo aos bens morais, i.e., a honra, a dignidade humana, o trabalho digno. Paulatinamente, os direitos transidividuais passaram a ser uma nova via, mais eficaz ou ao menos mais acessvel, de persecuo de violao aos Direitos Humanos, como o caso das aes de assdio moral propostas de maneira coletiva, quando o desrespeito se d, por exemplo, no ambiente de trabalho e atinge a coletividade dos funcionrios; O que se tem, ao fim e ao cabo, o compartilhamento do prprio ncleo epistemolgico dos direitos transindividuais com a interpretao metasubjetiva do conceito de cidadania.

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    profunda da razo de ser desses mesmos direitos e de seu lugar na histria das

    ideias.

    Na teoria geracional dos Direitos Humanos, Bobbio (1992, p.51) reconhece o

    seu carter histrico, afastando a compreenso que se tinha de que esses direitos

    seriam uma verso contempornea dos antigos direitos naturais. Para o pensador

    italiano, na primeira gerao, procura-se proteger os direitos de liberdade, como os

    civis e polticos, diante de um Estado que se quer no-interventor. Na segunda,

    procura-se proteger os direitos de igualdade e solidariedade a partir dos quais se

    cr na necessidade premente da interveno do Estado na vida social para

    justamente preservar a justia das relaes entre os cidados. Finalmente, a terceira

    gerao diz respeito queles direitos que, como dissemos, no pertence a ningum

    especificamente na medida em que pertencem a todos.

    O carter metassubjetivo destes novos direitos justificado por vrios

    processos histricos relevantes e recentes como: a experincia mundial de duas

    guerras globais e a necessidade de se ter um esforo mtuo e de cooperao

    planetria para se evitar uma terceira grande guerra; as novas tecnologias da

    informao que reduziram drasticamente o tempo de veiculao da informao em

    geral, fazendo com que o desmatamento da Amaznia brasileira ou a caa s

    baleias no Japo suscitem em todos o repdio generalizado; os processos de

    descolonizao e ocupao do solo em diversas partes do globo, os novos

    aglomerados humanos, a fome e a misria vergonhosa, ao mesmo tempo em que se

    tem notcia do luxo e desperdcio de uns poucos abastados e indiferentes para com

    o sofrimento alheio; o movimento consumerista americano da dcada de 70 e a

    reviso das relaes entre produo e consumo; o advento dos Estados ps-

    nacionais e a configurao do que Habermas chama de patriotismo constitucional,

    na medida em que o que une todos em torno de um projeto comum deixa de ser

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    fronteiras geogrficas especficas e passa a ser valores constitucionais

    compartilhados6:

    Para Habermas, as populaes, mais do que os prprios governos, precisam superar o estado de conscincia decorrente do processo histrico que levou formao do Estado Nacional, e ampli-la. Esse processo de aprendizagem poder impor no marco das fronteiras nacionais as exigncias de tolerncia de um ethos cidado pluralista tornando improvvel qualquer mobilizao das massas por motivos religiosos, tnicos ou nacionalistas. neste sentido, afirma Habermas, que a introduo da cidadania europeia pode ser entendida tambm como a continuao de um processo que, a princpio, teve seu lugar dentro do prprio Estado Nacional: um patriotismo constitucional...j foi sendo preparado dentro dessas fronteiras. (SOUZA, 2011, P. 272)

    A perda de fronteiras, reais, imaginrias ou mesmo psicolgicas, ou, ainda,

    o seu realinhamento aumenta a tomada de conscincia segundo a qual o que se

    quer no s o aumento da qualidade de vida individual, mas esta mesma

    melhoria deve estar cada vez mais percebida como conectada vida dos outros

    habitantes do planeta. Conscientiza-se cada vez mais que no basta desenvolver

    grandemente uma regio do planeta, degradando outra. Da a noo que se impe

    de forma categrica e que se dissemina nos tempos atuais a respeito da

    necessidade de se ter um desenvolvimento sustentvel para todos, preservando

    concomitantemente o ecossistema e a justia nas relaes de consumo. Ou seja, o

    sujeito de direito no mais individual, mas grupal, ampliando, por conseguinte, a

    noo de tutela coletiva.

    Se se pode dizer que o processo de individualizao da responsabilidade

    representou uma evoluo ao longo da histria das diferentes concepes jurdicas,

    como justificar que, em tempos recentes, o processo inverso tenha se configurado

    naquele carter metassubjetivo do que se convencionou chamar de direitos

    transindividuais? Ou seja, se a responsabilidade individual representou um

    6 V. HABERMAS (2008).

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    progresso, como o processo justamente inverso, de transindividualizao do

    direito pode representar uma evoluo? Como quis Perelman, em sua obra magna:

    Um dos progressos do Direito consistiu em substituir a responsabilidade coletiva pela responsabilidade individual, o que permitiu no lanar no passivo do grupo os atos que a legislao condena e autua, mas apenas uma tcnica jurdica, que um moralista ou um socilogo podem repudiar. (PERELMAN, 2002, p. 371)

    muito comum, por exemplo, em relatos bblicos do antigo testamento,

    responsabilizar todo um povo pela ao de seus governantes. Assim, os egpcios,

    os filisteus, os cananeus, etc., inocentes ou no, foram muitas vezes qualificados

    como malfeitores, independentemente de considerao e da devida apurao a

    respeito das responsabilidades singulares7. Da mesma forma, diz-se ainda hoje dos

    afrodescendentes, dos asiticos, dos islmicos, dos imigrantes, dos homossexuais,

    das prostitutas, dos usurios de crack ou qualquer droga ilcita, etc. Como se o

    indivduo, em sua singularidade inalienvel, ficasse dissolvido completa e

    homogeneamente na agremiao a que faz parte e, com isso, encarnasse em si

    mesmo a prpria representao, para o bem ou para o mal, de sua associao,

    atraindo para si igual e individualmente, ora o elogio ora a censura. Este tipo de

    responsabilizao coletiva ingnua parece estar na base de todo preconceito contra

    grupos minoritrios. Outro exemplo a forma como judeus e palestinos se

    responsabilizam mutuamente pelos sofrimentos e frustaes ao longo da disputa

    por aquelas terras onde correm o leite e o mel. Ou a forma como terroristas

    culpam os americanos (todos) e como estes culpam os muulmanos e dificultam,

    muitas vezes, o acesso destes aos direitos civis mais bsicos.

    Os direitos transindividuais se configuram justamente no movimento

    oposto e parecem consistir num dos desdobramentos, no mbito jurdico, daquilo

    7 V. Alguns exemplos: Ex 14, 19ss ou Dt 7,1ss.

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    que Habermas chamou de sintomas de esgotamento (HABERMAS, op. cit. p.

    414) a partir dos quais so paulatinamente abandonados os paradigmas da

    metafsica da subjetividade que caracterizou a poca moderna e que est no bojo

    das diferentes teorias do direito tradicionais. A metassubjetividade parece, assim,

    atender, em certo sentido, ao que Streck, nas reflexes atuais sobre o Direito

    brasileiro, aponta. Diz ele: A tese heideggeriana da morte do sujeito no teve

    qualquer repercusso no domnio da filosofia do direito... O que continua a

    dominar a filosofia do sujeito-proprietrio... Ou ainda, num momento mais

    preciso da mesma obra:

    Para o enfrentamento dos conflitos interindividuais, o direito e a dogmtica jurdica (que o instrumentaliza) no conseguem atender as especificidades das demandas originadas de uma sociedade complexa e conflituosa. O paradigma (modelo/modo de produo do direito) liberal-individualista-normativista est esgotado. O crescimento dos direitos transindividuais e a crescente complexidade social (re)clamam novas posturas dos operadores jurdicos...Isto porque as prticas hermenutico-interpretativas vigorantes/hegemnicas no campo da operacionalidade incluindo a doutrina e jurisprudncia ainda esto presas dicotomia sujeito-objeto. (STRECK, 1999, p. 15)

    3. A Anlise Retrica e os Direitos Transindividuais

    Entende-se por anlise retrica aqui aquilo que Perelman e outros autores,

    igualmente preocupados com a perspectiva tpico-retrica dos discursos,

    costumam fazer na leitura de diferentes textos de reas variadas, cincia, literatura

    e filosofia. Em geral, so evocadas passagens nas quais se procura vislumbrar o uso

    de determinada estratgia retrica. Assim, tcnicas argumentativas so desveladas

    e, com elas, os ardis prprios daquilo que Nietzsche chamou de poder-discorrer8

    dos rectores e, eventualmente, evocando sua fraqueza na sua nudez.

    8 NIETZSCHE (1995, p. 79), in verbis: O desenvolvimento de toda prosa moderna depende

    indiretamente do orador grego... no poder-discorrer que se concentra progressivamente a cultura helnica

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    Neste sentido, quando se fala em anlise retrica, tem-se por fito o

    diagnstico argumentativo-estilstico de uma tese ou de um discurso. Basicamente,

    consiste em se perguntar quais as premissas, os argumentos e as figuras utilizadas

    na composio da fora persuasiva daquilo que se diz. Assim, a anlise retrica

    parte da pressuposio de que toda fala ou escrita retrica no sentido de que, em

    algum momento, argumenta ou raciocina a partir de pontos de partida no

    inequvocos. Revisit-los criticar ou analisar o que quer que se apresente de

    razovel diante de ns.

    Enquanto vigorou, na modernidade, a crena de que o saber relevante o

    objetivo porque incontroverso e, neste sentido, mais prximo daquele produzido

    pela lgica e pela matemtica (saber fruto de silogismos apodticos, na linguagem

    Aristotlica), houve um desprezo pela arte retrica, que ficou relegada sua

    funo estilstica. Retrica era considerada a cosmtica do discurso. O que

    Perelman defende, j na segunda metade do sculo XX, que, com isso, grande

    parte do saber legtimo ficou tambm relegada a uma posio de inferioridade em

    relao ao saber das cincias da natureza.

    Paradoxalmente, o racionalismo matemtico, emparelhado com a rejeio de toda opinio e, portanto, de toda troca de opinies, de todo recurso dialtica e retrica, levou, na prtica, ao imobilismo e ao conformismo em direito, em moral, em poltica e em religio. O ensino das cincias inspira-se at hoje na formulao cartesiana. Nos domnios que escapam controvrsia, no hbito fazer-se referncia s opinies deste ou daquele cientista. As teses ensinadas so consideradas como verdadeiras ou admitidas como hiptese, mas em nada se sente a necessidade de as justificar. (PERELMAN, 1993)

    Mesmo tericos defensores do estatuto cientfico das cincias humanas ou

    do esprito adotaram como critrio de cientificidade tambm aquele imposto pelas

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    cincias naturais, como Dilthey ou mesmo Weber9. O Direito, no mpeto de sagrar-

    se tambm cincia, submeteu-se a estes mesmos critrios limitados e relegou para o

    esquecimento sua gnese comprometida com a retrica do discurso (v.

    PERELMAN, 1998, p. 8). Foi to somente depois de Nuremberg e, com este, da

    falncia do positivismo jurdico, ao menos nos moldes clssicos, que ocorreu o que

    ficou conhecido como Rhetorical Turn (SILLS, 1992), ou virada retrica, que vai

    reabilitar a retrica como teoria da argumentao, como havia antes defendido o

    prprio Aristteles (1959).

    Desta forma, no est mais em jogo o que racional, restritamente falando,

    mas o que razovel10; no se est em procura da verdade, mas do verossmil. Os

    discursos no precisam ter a obrigao de ser matemticos porque, no mbito das

    relaes humanas com as quais o Direito relaciona-se, disciplina e age, no h nada

    de geomtrico ou apodtico.

    Segundo Aristteles (2005, p. 347), h dois tipos de raciocnio, o apodtico e

    o dialtico. O primeiro se d quando as premissas so necessrias e inequvocas,

    como no conhecimento lgico e geomtrico. No segundo, as premissas so as de

    auditrios especficos, so os topoi ou opinies generalizadas a partir das quais o

    orador deve se basear para obter a adeso deste determinado grupo.

    O silogismo dialtico aquele no qual se raciocina a partir de opinies de aceitao geral...Opinies de aceitao geral, por outro lado, so aquelas que se baseiam no que pensam todos, a maioria ou os sbios, isto , a totalidade dos sbios, ou a maioria deles, ou os mais renomados e ilustres entre eles. (IDEM, p. 348)

    9 Cf. GADAMER (1997, p. 323), in verbis: Reconhecemos agora que (Dilthey) no o conseguiu sem

    negligenciar a prpria historicidade essencial das cincias do esprito. Isto se torna claro no conceito de objetividade que ele mantm para elas. Enquanto cincia, deve caminhar a par com a objetividade vlida para as cincias da natureza. por isso que Dilthey gosta de empregar a palavra resultados e de demonstrar pela descrio da metodologia das cincias do esprito sua

    igualdade de direitos com as cincias da natureza 10 V. o interessante artigo de PERELMAN (1997).

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    O que se v aqui que o papel da subjetividade no processo de sacralizao

    da objetividade, que tambm se far presente nas diferentes teorias objetivistas e

    positivistas do Direito, serviu como uma opinio generalizada ou, como quis

    Aristteles, um topos, tido por inquestionado por diferentes sbios modernos, de

    Descartes a Husserl j no incio do sculo XX. Essa subjetividade no

    problematizada, simplesmente tomada como dada desde sempre, reifica-se

    amalgamada aos outros tantos fatos11: A concepo cientfica de mundo s

    conhece fatos e relaes interfactuais; a conscincia cognoscente deve, enquanto

    tal, ser igualmente subsumida sob estes critrios. (HABERMAS, 1982, p. 104)

    Partindo desta perspectiva, os direitos transindividuais parecem procurar

    suprir o vazio entre uma dogmtica jurdica falha e falida e uma nova realidade

    social que se impe como legitimadora de si mesma e do prprio direito e que no

    relega mais esta funo ao Estado ou qualquer outro poder sem seu prvio

    consentimento. Esse processo de apropriao ou reapropriao da fora legtima e

    a impossibilidade de sua alienao representa a falncia de um conjunto de topoi

    ora obsoletos, alterando o discurso oficial do direito ou, como quis Warat,

    rompendo com o senso-comum dos juristas. (WARAT, 1995)

    Assim, alm do carter meramente tpico da subjetividade moderna, a

    prpria entronizao da lei encerra um tipo de argumento conhecido como de

    essncia (REBOUL, 1992, p. 192) e utilizado quando se quer sustentar o privilgio

    que se deve dar quilo que supostamente perdura para alm das contingncias.

    Neste sentido, a lei, no paradigma anterior, lei essencial que justamente pelo seu

    carter abstrato sobrepaira inclume bem acima do fato que almeja subsumir e

    regrar. Ao contrrio, no processo ainda recente de democratizao, essa concepo

    essencialista e positivista da legalidade no tem mais legitimidade:

    11 HABERMAS (Op. Cit. 1982, p.104), in verbis: Para no ser obrigado a conceber os fatos como

    grandezas acopladas a um Eu, Mach reifica o Eu cognoscente a um fato no meio de outros fatos.

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    Em uma sociedade democrtica, impossvel manter a viso positivista do direito, segundo a qual este seria apenas a expresso arbitrria da vontade do soberano. Pois o direito, para funcionar eficazmente, deve ser aceito e no s imposto por coao (PERELMAN. 2000, p. 241)

    Ou ainda, num outro momento,

    Os fatos que sucederam na Alemanha, depois de 1933, demonstraram que impossvel identificar o direito com a lei, pois h princpios que, mesmo no sendo objeto de uma legislao expressa, impem-se a todos aqueles para quem o direito expresso no s da vontade do legislador, mas dos valores que este tem por misso promover, dentre os quais figura em primeiro plano a justia. (IDEM, p. 95)

    Sem perceber, ao se sacralizar a lei, sacraliza-se o poder que a institui,

    muitas vezes alheio s mudanas sociais. Da se ter, no mbito da jurisdio

    constitucional, um sobrecarregamento dos Tribunais superiores com questes que

    poderiam ser objeto de leis mais atualizadas e sintonizadas com as novas

    valoraes da sociedade. A inrcia do Legislativo parece traduzir a crena ingnua

    de que os novos condicionamentos histrico-sociais no so to relevantes a ponto

    de se precisar alterar as normas vigentes.

    Alm do argumento de essncia, comum na doutrina aplicar-se o

    argumento pragmtico (ad consequentiam) a partir do qual se procura sustentar a

    validade de uma tese, no caso em tela do direito estritamente individual, pelas

    suas consequncias ou finalidades (IDEM, p. 11-23), no caso, proteger e garantir a

    propriedade individual. Desta forma, em nome da segurana, paz social e

    manuteno de um status quo onde o que tem continua tendo e o que no tem

    perdura sem ter, muita injustia j foi perpetrada. Como quis tambm Streck: Para

    qu e para quem o Direito tem servido?(IDEM, p. 56) O Direito no inocente

    muito menos est desculpado dos gigantescos fossos que tm sido produzidos

    entre os muito ricos e os muito pobres deste pas. A pergunta a quem o Direito

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    serve? desautoriza a concepo de Direito individual tradicional e exige a

    efetivao de propsitos mais inclusivos e solidrios que esto pressupostos e

    consistem na prpria razo de ser dos direitos transindividuais.

    As figuras, em geral, usadas e reusadas quase automaticamente por todos

    consistem numa srie de tropos como metforas e catacreses que, justamente pelo

    uso constante, escamoteia a contingncia de sua configurao, em certo sentido,

    determinando como se v e se compreende o mundo.

    O linguista que subscreve a minha definio da metfora ficar, no obstante, tentado a estabelecer distines que lhe parecem importantes de seu ponto de vista pessoal. Preferir chamar catacrese, em vez de metfora, o uso metafrico de um termo que permite designar aquilo para o que a lngua no possui termo prprio; qualificar de expresses de sentido metafrico aquelas que, de tanto serem utilizadas, j no so percebidas como figuras, mas consideradas formas habituais de expressar-se...Observe-se que tais distines interessam o retrico na medida em que, como catacreses e expresses de sentido metafrico so admitidas espontaneamente e sem esforo, bastar dar-lhe, por uma tcnica apropriada, seu efeito analgico pleno para que elas acabem por estruturar-nos o pensamento e por atuar sobre a nossa sensibilidade de uma forma particularmente eficaz. (PERELMAN, 1999, pp. 336-337)

    Assim, dizer indivduo, sujeito ou conscincia deve reportar o analista para

    as metforas adormecidas ou mortas12 na constituio destes termos. O primeiro

    termo designa originalmente o que no passvel de diviso, o que representa uma

    coisa nica, sem partes. O segundo termo, sujeito, teve sua formao vinculada ao

    verbo jactare do latim, lanar em portugus. Subjectum seria como aquilo que est

    lanado sob, contrapondo-se ao objeto ou objectum, o que est lanado frente,

    diante dos olhos. E finalmente, o terceiro termo e talvez o mais complexo,

    conscincia, que tem sua origem vinculada, por sua vez, ao verbo latino scire,

    conhecer ou saber. Conscincia algo como co-saber ou saber-se de si, conhecer-se

    12 Enquanto Perelman chama as metforas que se literalizaram na linguagem usada de adormecidas, Richard Rorty as chama de mortas (Cf. RORTY, 1991).

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    a si mesmo, etc. Nos trs casos parece ocorrer aquilo que Perelman denuncia como

    catacrese ou metfora usada numa lngua ordinria para designar aquilo que no

    tem outra palavra na mesma lngua. comum usar como exemplo de catacrese

    brao-da-cadeira, p-de-mesa ou asa-de-avio. No h outras palavras especficas

    para estes objetos. Usa-se de uma analogia com aquilo que se tem em outras reas.

    A pergunta que fica : indivduo, sujeito e conscincia foram considerados

    anlogos a qu? Do termo indivduo entendido como indivizvel, Freud

    certamente discordaria. Mas no precisa ser partidrio da psicanlise para ser

    testemunha da complexidade do processo psquico e neuronal. De tal forma que a

    ltima coisa que o indivduo pode ser considerado simples, sem divises. Do

    termo sujeito tem-se outro desdobramento que talvez clarifique um pouco mais:

    sujeitado. O termo sujeito carreia em si um teor subordinante j diludo pelo uso,

    como se viu. O sujeito est sujeitado ao objeto e a ele deve ser fiel. Assim, o termo,

    silenciosa e solertemente, hierarquiza sem precisar justificar. Aceita-se,

    simplesmente. O terceiro termo, conscincia, talvez guarde sua maior fora

    persuasiva no pretenso auto-referenciamento de si, na medida em que

    supostamente se sabe a si mesmo.

    4. Consideraes finais

    Do que se viu, mais do que a teoria geracional dos Direitos Humanos, a

    anlise tpico-retrica que pode propiciar uma autocompreenso dos direitos

    transindividuais. A considerao da subjetividade moderna como um mero topos

    nos ajuda a revisitar esta premissa e, com isto, as prprias teorias do Direito

    formuladas comprometidas com ela, a partir da qual, todo direito , ao mesmo

    tempo, subjetivo e objetivo, impossibilitando a gnese de direitos metassubjetivos.

    Pelo contrrio, ao se abandonar o paradigma da filosofia do sujeito ou da

    conscincia a partir do que se convencionou chamar de morte do sujeito, tais

    direitos tornam-se no s plausveis, mas imperiosos. Outra contribuio que uma

    anlise retrica pode dar a explicitao dos tipos de estratgias argumentativas

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    das teorias tradicionais que no incorporaram em seu seio a possibilidade sequer

    do carter metassubjetivo de alguns direitos. A simples clarificao a respeito das

    premissas, dos argumentos e das figuras nsitas na constituio do que se

    convencionou chamar sujeito, indivduo ou conscincia diminui ou deve diminuir

    a sua fora persuasiva, tornando possvel mais facilmente a implementao e

    consolidao dos direitos transindividuais como Direitos Humanos no-subjetivos.

    Rhetorical Analysis, Transindividual Rights and Human Rights ABSTRACT The proposal is to investigate, in the rhetorical analysis perspective, the contribution that the critique to the modern consciousness, carried out by many thinkers of the Nineteenth and Twentieth century, can bring to the understanding of transindividual rights. It is clear that the metasubjective sense of these rights is inconsistent in the traditional conception of the legal phenomenon, since is still largely committed to the typical subject-object paradigm of the Modern Age. What can be seen from this perspective is that the modern consciousness was built from a specific topos of modernity, which now faces the "symptoms of exhaustion" of metaphysics and reason-centered subjectivity. The discovery and defense of the merely topical-rhetorical and not ontological sense of this modern premise is possible only by modern rhetorical analysis, here understood not simply as an interpretive strategy of discourse, but as a fundamental philosophical orientation that affects all human assertions. Keywords: Rhetorical Analysis; Transindividual Rights; Philosophy of Consciousness.

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    Nota do Editor:

    Submetido em: 01 jul. 2011. Artigo convidado aprovado em: 01 jan. 2012.

    http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/primafacie/index