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A ATIVIDADE INFERENCIAL COMO ESTRATÉGIA DE LEITURA A
PARTIR DO ENSINO DA GRAMÁTICA1
THE INFERENTIAL ACTIVITY AS READING STRATEGY FROM THE
GRAMMAR TEACHNG
Keyla Gonçalves de Lima Lacerda
Universidade de Brasília
RESUMO: Esta pesquisa volta-se para a observação do processo ensino-aprendizagem de leitura,
abordando a atividade inferencial como estratégia de leitura a partir do ensino da gramática. Propõe-se
estudar as inferências como estratégias cognitivas por meio das quais o ouvinte ou leitor, partindo da
informação veiculada pelo texto e levando em conta o contexto (em sentido amplo), formula novas representações mentais e/ou estabelece uma ponte entre segmentos textuais, ou entre informação
explícita e informação não explicitada no texto. Este estudo visa também à reflexão de práticas
pedagógicas em relação ao ensino da gramática como suporte para o desenvolvimento de habilidades leitoras, além de analisar resultados dos alunos em itens de compreensão textual em avaliações
externas à escola. Esta pesquisa também apresenta característica etnográfica colaborativa, pois, a
pedido da coordenação da escola escolhida para pesquisa de campo, desenvolveu-se com os professores, direção e coordenação uma oficina sobre Níveis de Leitura de um Texto, em que se
procurou abordar os processos de construção de sentido, que passam pelos níveis mais superficiais do
texto até as camadas mais submersas, ou implícitas, com o objetivo de ampliar o conhecimento dos
professores sobre competência leitora e de despertar o interesse pela busca do aprimoramento da prática pedagógica, principalmente no que diz respeito às questões de ensino da língua. No ensino de
gramática dentro de uma perspectiva textual-interativa, os elementos, os recursos linguísticos
escolhidos na constituição do texto são entendidos como marcas, como pistas ou instruções que o usuário da língua utiliza para produzir um efeito de sentido no momento da produção ou da
compreensão textual. Assim, toda questão gramatical estudada passa a ter aplicabilidade textual, como
o que ocorre em todos os contextos sociais de uso da língua e nas orientações das avaliações em larga
escala, como o PISA e o SAEB. Se as notas apontam para um resultado não satisfatório, é preciso avaliar e analisar os fatores que têm levado os alunos a permanecerem década na escola e não
apresentarem um bom desempenho nessas avaliações que podem ser sinalizadores do que se ensina e
do que se aprende na escola. O resultado deste trabalho levou ao entendimento de que o baixo desempenho demonstrado pelos alunos nas provas de leitura das avaliações em larga escala é
influenciado por fatores socioeduacacionais e pelas concepções de texto, de gramática e de ensino
adotadas pelos professores. PALAVRAS-CHAVE: Inferência. Texto. Gramática.
ABSTRACT: This research turns to the observation of the teaching-learning process of reading ,
addressing the inferential activity as reading strategy from the grammar school. It is proposed to study the inferences as cognitive strategies through which the listener or reader , based on the information
conveyed by the text and taking into account the context ( in the broad sense ) , formulates new mental
representations and / or establishes a bridge between textual segments , or between explicit and information not made explicit in the text. This study also aims to reflection of educational practices in
relation to grammar teaching as support for the development of skills readers , and analyzing results of
1 Artigo baseado na pesquisa de Mestrado da autora, orientada pelo professor doutor Dioney Moreira Gomes da Universidade de Brasília – UnB.
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pupils in reading comprehension items in the school external evaluations . This research also has
collaborative ethnographic feature , because , at the request of the coordination of the chosen school
for field research , developed with teachers , directing and coordinating a workshop on reading levels of a text , which sought to examine the processes of construction of meaning , passing through the
superficial levels of the text to the most submerged layers , or implied, in order to increase the
knowledge of teachers on reading competence and awakening of interest in the quest for improvement
of pedagogical practice , mainly in respect to language learning issues. In grammar school within a textual- interactive perspective, the elements, language resources selected in the text of the
constitution are seen as marks, as clues or instructions that the language user uses to produce an effect
of sense at the time of production or text comprehension . So every grammatical question studied is replaced by textual applicability , as occurs in all social contexts of language use and the guidelines of
large-scale assessments such as PISA and the SAEB . If the notes point to an unsatisfactory result, you
need to assess and analyze the factors that have led students to remain in school decade and do not
present a good performance on these assessments that can be beacons of what is taught and what is learned in school . The result of this work led to the understanding that the poor performance shown
by students on tests of reading of large-scale assessments is influenced by factors socioeduacacionais
and the text concepts , grammar and teaching adopted by teachers. KEYWORDS: Inference. Text. Grammar.
1. Introdução
Esta pesquisa visa ao estudo da atividade inferencial como estratégia de leitura, tendo
o ensino da gramática como suporte para a compreensão textual. Esse estudo parte da análise
dos resultados dos alunos nas provas de leitura das avaliações em larga escala, sobretudo nos
itens em que se averiguam as habilidades de inferir informações implícitas.
Os significados em um texto são construídos pelo léxico e pelas escolhas sintáticas
que se definem dada uma situação discursiva. Compreender e interpretar um texto, conforme
Cunha (2008), é, portanto, perceber as inter-relações das dimensões semântica, sintática e
pragmática da linguagem que o constituem.
Os Parâmetros Curriculares de Língua Portuguesa (1998) destacam que, na atividade
de leitura, deve-se fazer presente o papel ativo do leitor como construtor de sentido. Para
tanto, esse leitor tem de se utilizar de estratégias de leitura, tais como seleção, antecipação,
inferência e verificação. Assim, os PCN recomendam a prática de análise e de reflexão sobre
a língua como fator primordial para a ampliação da capacidade de compreender e interpretar
textos.
A leitura é o processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo de compreensão e
interpretação do texto, a partir de seus objetivos, de seu conhecimento sobre o assunto,
sobre o autor, de tudo o que sabe sobre a linguagem etc. Não se trata de extrair informação,
decodificando letra por letra, palavra por palavra. Trata-se de uma atividade que implica
estratégias de seleção, antecipação, inferência e verificação, sem as quais não é possível
proficiência. (BRASIL, 1998, pp. 69-70.)
Entretanto, tem-se observado que o desempenho dos alunos em avaliações externas à
escola nos itens de compreensão textual ainda não é o desejado, conforme divulgação da
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OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico), os resultados do
PISA (Programa Internacional de Avaliação de Alunos) revelam que, em 2012, o Brasil ficou
na 55ª posição em leitura, entre os 65 países avaliados, alcançando 410 pontos (86 pontos
abaixo da média dos países da OCDE). Quase metade dos alunos brasileiros (49,2%) ficou no
nível 2, de uma escala que vai do nível 1 ao 6. No nível 2, os alunos apenas compreendem a
ideia geral de um texto sobre um tema familiar e fazem uma conexão simples entre as
informações lidas e o conhecimento cotidiano.
Quadro 1: Comparativo dos resultados do Brasil no PISA desde 2000.
Pisa 2000 Pisa 2003 Pisa 2006 Pisa 2009 Pisa 2012
Número de alunos
participantes 4.893 4.452 9.295 20.127 18.589
Leitura 396 403 393 412 410
Fonte: Inep
Os resultados das avaliações externas à escola podem ser uma ferramenta para
reflexão e busca de mudanças necessárias para auxiliar os alunos a superar possíveis
desempenhos insuficientes nos itens avaliados.
Nesse sentido, um ponto de partida para reflexão sobre a prática pedagógica seria a
questão: Por que os alunos não demonstraram habilidade de inferência nos itens de
compreensão textual das avaliações externas?
Essa questão pode levar a outras perguntas: a) Qual concepção tem o professor sobre
texto, língua e ensino de gramática? b) A gramática pode ser considerada suporte para o
desenvolvimento de habilidades de leitura do aluno? c) Como pode ser trabalhada a gramática
em sala de aula? d) O que preconizam os PCN sobre a leitura?
Assim, esta pesquisa tem por objetivo apontar processos inferenciais como
mecanismos para o desenvolvimento de habilidades de leitura a partir do ensino da gramática.
Além de observar se as estratégias de leitura adotadas pelo professor preparam os alunos para
as avaliações externas; identificar a atividade inferencial como estratégia de construção de
sentidos de textos em uma perspectiva enunciativa; apontar o trabalho com a gramática
tradicional como possível suporte para o desenvolvimento de habilidades de leitura do aluno;
e propor estratégias de reconhecimento e uso da língua portuguesa natural do aluno na escola,
sobretudo no tocante à leitura e à construção de estratégias inferenciais.
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O caminho para o alcance desses objetivos passa pelo estudo das concepções de
leitura, de gramática e de ensino, porque essas concepções se relacionam diretamente com as
práticas pedagógicas e com as metodologias de ensino de língua empregadas nas escolas. Por
ser a compreensão textual um processo complexo que envolve muito mais do que a
decodificação da escrita, faz-se necessário refletir se o trabalho de leitura em sala de aula leva
o aluno à compreensão e ao conhecimento dos mecanismos usados no processo de
significação que se adaptam a situações concretas. Como fator colaborador, o ensino da
gramática, nesse sentido, deve ir bem além da descrição da sintaxe e da morfologia, levando o
aluno a entender as escolhas linguísticas como constituintes da significação.
2. Fundamentação Teórica
Segundo Koch (2007), a visão da linguagem como ação intersubjetiva deriva de dois
grandes polos: de um lado, a Teoria da Enunciação; de outro lado, a Teoria dos Atos de Fala2.
Nessa concepção, a linguagem humana é atividade que possibilita aos membros de uma
sociedade a prática dos mais diversos tipos de atos, que irão produzir no interlocutor
determinado efeito, mesmo que diferente do que o locutor havia pretendido, uma vez que o
outro locutor é dotado de subjetividade e pode compreender diferentemente as intenções do
outro sujeito.
A Teoria da Enunciação, que teve como precursor M. Bakhtin, tem por postulado
básico a consideração simultânea do enunciado e da enunciação. A enunciação é o evento
único e jamais repetido de produção do enunciado, que é a manifestação concreta de uma
frase. Em situações de interlocução, a enunciação – que envolve as condições de produção do
enunciado como tempo, lugar, papéis representados pelos interlocutores, imagens recíprocas,
relações sociais, objetivos visados na interlocução do enunciado – deixa marcas no enunciado
que mostram o modo ou a que título o que se diz é dito. Por isso, as condições de produção
são constitutivas do sentido do enunciado.
Nessa abordagem da linguagem como forma de ação ou de lugar de interação, a
compreensão e interpretação de um texto pelo interlocutor também constitui uma atividade,
2 Segundo Koch (2007), a Teoria dos Atos de Fala teve como pioneiro o filósofo inglês John Austin, seguido por
Searle, Strawson e outros. Eles postularam que a língua é uma forma de ação dotada de intencionalidade, em que todo dizer é um fazer. Dedicaram-se ao estudo dos tipos de ações que podem ser realizadas por meio da linguagem.
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visto que o ouvinte/leitor não é um receptor passivo, pois, para a construção do sentido, ele
precisa atuar sobre o material linguístico e extralinguístico de que dispõe. Logo,
(...) o sentido é construído na interlocução, no interior da qual os interlocutores se
constituem e são constituídos. Assim sendo, a mera decodificação dos sinais
emitidos pelo locutor não é de modo algum suficiente: cabe ao ouvinte/leitor
estabelecer, entre os elementos do texto e todo o contexto, relações dos mais diversos tipos, para ser capaz de compreendê-los em seu conjunto e interpretá-los de
forma adequada à situação. (KOCH, 2007, p. 25)
Para esse fim, uma atividade relevante é a produção de inferências, posto que os textos
não apresentam de forma explícita toda a informação necessária à sua compreensão, até por
uma questão de economia, pois a extensão de qualquer texto seria imensa se neles tivesse de
estar explícita toda a informação necessária à sua compreensão.
As inferências constituem estratégias cognitivas por meio das quais o ouvinte ou
leitor, partindo da informação veiculada pelo texto e levando em conta o contexto (em sentido
amplo), constrói novas representações mentais e/ou estabelece uma ponte entre segmentos
textuais, ou entre informação explicitada e informação não explicitada no texto.
Na produção de sentido, o ouvinte/leitor recupera os elementos implícitos a partir dos
elementos que o texto contém e estabelece relações com aquilo que o texto implicita. Assim,
ele produz inferências preenchendo as lacunas deixadas no texto, tendo de recorrer ao seu
conhecimento de mundo e aos conhecimentos comuns (partilhados) entre ele e seu
interlocutor. Na construção desses conhecimentos, como bem aponta Freire (2003), o
conhecimento de mundo precede o conhecimento escolar ou, como refere o autor, a leitura do
mundo precede a leitura da palavra. O educador, então, precisa ir lendo a leitura do mundo
que seus alunos fazem de seu contexto imediato e do contexto maior de que o seu é parte,
considerando com isso o saber feito das experiências em uma dialética entre a leitura do
mundo e a leitura da palavra.
Para o processamento textual, três grandes sistemas de conhecimento são utilizados:
conhecimento linguístico, conhecimento de mundo, conhecimento interacional. O
conhecimento linguístico abrange o conhecimento gramatical e lexical e é com base nesses
conhecimentos que se pode compreender, por exemplo, i) a seleção lexical adequada ao tema,
ii) a organização do material linguístico na superfície do texto e iii) o uso dos operadores
coesivos. O conhecimento de mundo refere-se a conhecimentos gerais sobre o mundo e sobre
as experiências pessoais, que permitem a produção de sentidos. O terceiro grupo, o do
conhecimento interacional, abrange outros conhecimentos: com o conhecimento ilocucional é
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possível reconhecer os propósitos do produtor textual; o conhecimento comunicacional
permite que seja dada a quantidade de informação necessária em uma situação comunicativa e
que seja feita a seleção da variante linguística adequada a cada situação de interação e à
adequação do gênero textual à situação comunicativa. Ainda no grupo do conhecimento
interacional, há outro tipo de conhecimento, o metacomunicativo, por meio do qual o locutor
pode assegurar a compreensão do texto e a aceitação pelo interlocutor, utilizando-se, por
exemplo, da identificação de textos adequados aos diversos eventos da vida social.
Koch (2007) postula que a leitura de um texto exige muito mais que o simples
conhecimento linguístico compartilhado pelos interlocutores: o leitor é, necessariamente,
levado a mobilizar uma série de estratégias tanto de ordem linguística como de ordem
cognitivo-discursiva, com o fim de levantar hipóteses, validar ou não as hipóteses formuladas,
preencher as lacunas que o texto apresenta, enfim, participar, de forma ativa, da construção do
sentido. Nesse processo, autor e leitor devem ser vistos como „estrategistas‟ na interação pela
linguagem.
O leitor competente é capaz de perceber as pistas que o locutor deixa no texto ao
fazer o balanceamento do que é explicitado e do que é recuperável pelas inferências, uma vez
que o locutor deixa lacunas para serem preenchidas pelo seu interlocutor. Essas relações entre
os explícitos e os subentendidos podem ser estabelecidas pelos conhecimentos partilhados
entre os sujeitos da interação.
Conforme Marcuschi (2008), o leitor, em seu trabalho para produzir sentido, deve
levar em conta: o vocabulário e a situação de uso, os recursos sintáticos, os blocos textuais e a
associação a fatos históricos, políticos, sociais, culturais, o gênero textual, o propósito
comunicacional e a situação comunicativa. Por isso, é necessário que o professor leve em
consideração o ensino dos conhecimentos gramaticais, que dizem respeito ao uso adequado
das estruturas linguísticas, porém apenas transmitir esses conteúdos para o aluno não fará com
que este, sozinho, faça desses conhecimentos linguísticos ferramentas para a compreensão e
interpretação textual. Por meio de perguntas mediadoras, o professor pode desenvolver no
aluno um olhar para as lacunas deixadas pelo autor e para as marcas linguísticas que revelam
os implícitos do texto, contribuindo para o desenvolvimento de habilidades leitoras, num
exercício interativo de construção de sentidos.
Em uma perspectiva enunciativa, o sentido de um texto não está nele, mas se constrói
a partir dele, como afirma Koch (2008), no curso de uma interação. A autora ilustra essa
afirmação com a metáfora do iceberg, uma vez que este deixa à mostra apenas uma pequena
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porção de sua superfície, ficando submersa uma enorme área. Nessa área submersa residem
significados implícitos, cuja extração do sentido requer o uso de conhecimentos prévios e de
estratégias cognitivas e interacionais em um processo ativo de construção de sentido: lacunas
são preenchidas, hipóteses são levantadas e testadas. Assim, “ler é um ato de produção e
apropriação de sentido que nunca é definitivo e completo, não é um ato de simples extração
de conteúdos ou identificação de sentidos” (MARCUSCHI, 2008, p. 228).
Nesse processo, a partir das marcas linguísticas que o texto apresenta, estabelece-se
relação com o que está submerso, lendo-se o que ficou nas entrelinhas. Inferir, então, é uma
estratégia de leitura utilizada pelo leitor ativo, que constrói o sentido do texto à medida que o
vai lendo, numa constante interação entre autor, texto e leitor, ativando conhecimentos
linguísticos, enciclopédicos, interacionais e de mundo, que exige do leitor muito mais que um
papel passivo de decodificador.
Por isso, as práticas de leitura em sala de aula devem possibilitar ao aluno a
percepção de que as informações implícitas podem ser recuperadas pelas marcas linguísticas,
levando-se em conta que a gramática faz parte da interação, sendo importante o seu estudo
para a compreensão textual. Porém, o estudo da gramática não deve ser traduzido como fazer
exercícios de repetição ou de memorização de nomenclaturas, mas como mecanismo da
língua para uso nas situações de interação.
De acordo com Cançado (2008), as implicações ou as inferências estão em gradação,
indo da noção mais restrita, que é a de acarretamento, à noção mais abrangente, de
implicatura conversacional. Para a autora, as inferências estão ligadas ao conteúdo semântico
ou ao discurso/uso, estando o acarretamento e as pressuposições semânticas ligados ao
primeiro tipo e as implicaturas ao último. Assim,
(...) se pensarmos em um contínuo para as implicações, a pressuposição estará localizada no
meio, como uma relação semântico-pragmática, diferentemente dos acarretamentos, em que
são inferidas expressões baseando-se exclusivamente no sentido literal de outras, ou seja,
uma relação estritamente semântica, diferentemente das implicaturas conversacionais, que
são noções estritamente pragmáticas. (CANÇADO, 2008, p. 32)
O texto traz em sua composição recursos linguísticos que são marcas do processo de
enunciação ou dos elementos da exterioridade. No processo de compreensão, essas marcas ou
pistas devem ser utilizadas para a construção de sentido do texto. Assim, como aponta
Travaglia (2009), quando se estudam os aspectos gramaticais de uma língua, estudam-se os
recursos de que a língua dispõe para que o usuário constitua seus textos e produza os sentidos
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pretendidos e, quando se estudam os aspectos textuais da língua, estuda-se como esses
recursos funcionam, não se separando gramática e texto.
A língua dispõe de recursos linguísticos que servem à intencionalidade do usuário no
momento de uma interação. O leitor ativo se orienta pelas escolhas linguísticas do autor, que
são pistas de sua intencionalidade, atentando-se aos elementos gráficos do texto em que
palavras como até, ainda, já, apenas e tantas outras são pistas significativas para apoiar os
cálculos interpretativos. Em uma abordagem tradicional de ensino de gramática, o estudo
desses recursos resume-se, comumente, em memorização de nomenclaturas, na identificação e
classificação de unidades e estruturas linguísticas, sem abordar o aspecto de sentido que eles
contêm.
O professor precisa ensinar as regras de gramática aos alunos, mas, conforme
Antunes (2010, p. 89), “O valor de qualquer regra gramatical deriva da sua aplicabilidade, da
sua funcionalidade na construção dos atos sociais da comunicação verbal, aqui e agora.” A
relevância desses conhecimentos está na competência de se identificar a que eles remetem na
construção dos possíveis sentidos do texto. Por meio de perguntas mediadoras, o professor
pode levar o aluno a identificar, por exemplo, operadores argumentativos, que introduzem no
enunciado conteúdos pressupostos. Ao invés de simplesmente exigir que o aluno memorize a
classificação dos advérbios, o professor pode trabalhar nas pistas deixadas pela escolha de
marcadores como, já, ainda, agora..., a identificação de conteúdos pressupostos:
Paulo mora no Rio. (Nenhum conteúdo pressuposto)
Paulo agora mora no Rio. (Pressuposto de que Paulo não morava antes no Rio)
Antes de se preocupar em fazer com que o aluno consiga identificar e classificar os
termos da oração, sem a aplicação dessas regras ao sentido do texto, pode-se refletir sobre a
que conteúdos implícitos é possível chegar com a escolha de uso de um sujeito indeterminado
ou de um sujeito explícito, como nos exemplos:
“Mamãe, quebraram o vaso!”
“Mamãe, eu quebrei o vaso!”
Desse modo, toda questão gramatical estudada passa a ter aplicabilidade textual,
como o que se propõe nas matrizes de avaliação das provas em larga escala, nas quais os
alunos têm demonstrado baixos resultados nos itens em que são averiguadas as habilidades
inferenciais. Se nesses itens, em que é necessário ativar conhecimentos prévios, perceber o
contexto, identificar as pistas deixadas pelo autor para se chegar aos níveis mais profundos do
texto e ler as entrelinhas, os alunos não demonstram o desempenho esperado para a série em
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que se encontram, talvez, o motivo esteja no fato de se adotar um ensino prescritivo de
gramática em que as regras são repassadas de forma descontextualizada sem nenhuma
vinculação à construção de sentido, separando-se no ensino de língua gramática, leitura e
produção de texto.
É importante levar em consideração o uso dos conhecimentos linguísticos, que dizem
respeito ao uso adequado das estruturas linguísticas (em termos de ordem dos elementos,
seleção lexical, etc.), bem como dos recursos coesivos que facilitam a construção da coerência
semântica, como pronomes, sintagmas nominais referenciais definidos e indefinidos,
conectores, etc. Porém, apenas transmitir esses conteúdos descontextualizada e roboticamente
para o aluno não fará com que este, sozinho, faça desses conhecimentos linguísticos
ferramentas para a compreensão e interpretação textual.
3. Procedimentos Metodológicos
Diante da inquietação em responder à questão “Por que os alunos não demonstram
habilidade de inferência nos itens de compreensão textual das avaliações externas à escola?”,
decidiu-se fazer uma investigação qualitativa e colaborativa, em uma perspectiva
paradigmática interpretativista, que tem como pressuposto básico a necessidade de
compreensão do sentido da ação social no contexto do mundo e da vida dos participantes,
conforme Gialdino (1993, apud SILVA, 1998).
De acordo com Flick (2009), uma das características da pesquisa qualitativa é o fato
de os pesquisadores estarem interessados em ter acesso a experiências, interações e
documentos em seu contexto natural. Nesse tipo de pesquisa, há abstenção de se estabelecer
hipóteses no início para testá-las depois. Os conceitos ou as hipóteses são desenvolvidos e
refinados no processo da pesquisa.
Esta pesquisa também apresenta característica etnográfica colaborativa, pois, a
pedido da coordenação da escola escolhida para pesquisa de campo, desenvolveu-se com os
professores, direção e coordenação uma oficina sobre Níveis de Leitura de um Texto. Na
oficina, procurou-se abordar os processos de construção de sentido, que passam pelos níveis
mais superficiais do texto até as camadas mais submersas, ou implícitas, com o objetivo de
ampliar o conhecimento dos professores sobre competência leitora e de despertar o interesse
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pela busca do aprimoramento da prática pedagógica, principalmente no que diz respeito às
questões de ensino da língua.
Segundo Bortoni-Ricardo (2008), a pesquisa etnográfica colaborativa tem por
objetivo não somente fazer uma descrição, como também promover mudanças no ambiente
pesquisado. Desse modo, o pesquisador e o(s) colaborador (es) não têm um papel passivo,
mas são coparticipantes ativos ao construírem e ao transformarem conhecimento em prática.
Tem-se a sala de aula como contexto da investigação, além da utilização das
seguintes estratégias para gerar os dados: investigação documental, observação participante e
entrevista semiestruturada.
Para a investigação documental, foram selecionados relatórios com a finalidade de
análise dos itens de compreensão textual das provas de Língua Portuguesa, dos resultados dos
estudantes e das habilidades leitoras requeridas na resolução desses itens; dos fatores
escolares e familiares associados ao desempenho escolar, com base nas respostas obtidas com
a aplicação de questionários à comunidade escolar. Também foram analisados a Proposta
Pedagógica da escola, as Matrizes de Referência para as avaliações e o Regimento Escolar das
Instituições Educacionais da Rede Pública de Ensino do Distrito Federal.
Os resultados a partir da observação participante foram construídos em uma escola
classe da rede pública de ensino do Distrito Federal. A escolha da escola foi motivada após
informação dada pela coordenadora pedagógica que, somente depois da divulgação dos
resultados do SIADE, sentiu-se a necessidade de trabalhar o texto no nível das inferências,
assunto, até então, desconhecido dos professores e da equipe pedagógica.
4. Resultado Final
Avaliações como as do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA),
do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB), do Sistema de Avaliação do
Desempenho das Instituições Educacionais do Sistema de Ensino do Distrito Federal
(SIADE) revelam o baixo desempenho dos alunos nas provas de leitura, em que demonstram
serem somente capazes de encontrar informações explícitas nos textos.
O desempenho dos alunos nas provas externas é organizado em escalas de
proficiência para cada componente curricular. Os dados analisados mostram que o
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desempenho dos estudantes foi maior quando a habilidade averiguada era a de localizar
informações explícitas em um texto.
Nos exemplos de itens retirados das provas aplicadas ao 7.º ano do Ensino
Fundamental (SIADE-2009), 83% dos alunos marcaram a alternativa correta, quando a
habilidade averiguada era a de localizar informações explícitas em um texto, porém apenas
29% acertaram, quando a habilidade era a de inferir o efeito de sentido produzido em um
texto literário, decorrente da exploração de recursos gráficos, ortográficos e/ou
morfossintáticos.
O desempenho dos alunos nas avaliações recebe influência não apenas de fatores
pedagógicos, mas também de fatores socioeconômicos e culturais do contexto em que esses
alunos estão inseridos. A melhor qualidade do ensino não depende exclusivamente de
investimentos materiais nas escolas, como reforma das instalações físicas, aquisição de
equipamentos, de recursos pedagógicos. É preciso olhar para os dados, pois eles revelam que
é urgente a necessidade de se investir na formação educacional dos pais dos alunos e na
formação continuada dos professores.
A formação dos professores é um dos fatores que se associam diretamente às práticas
pedagógicas. Como foi declarado pela coordenadora na entrevista, mesmo com a formação
superior, muitos conhecimentos não foram adquiridos. Ela declara “é a formação profissional
que nos impede de desenvolver melhor o nosso trabalho”. É fundamental que o professor
continue investindo em sua formação continuada e atue como um constante pesquisador e
construtor de conhecimentos.
A entrevistada relatou que, por não dominarem esses conceitos, como o de
inferência, muitos professores deixam de trabalhá-los com seus alunos, o que pode ter reflexo
nos baixos resultados das provas de leitura das avaliações em larga escala. A falta de domínio
desses assuntos foi confirmada durante a oficina ministrada pela pesquisadora sobre os Níveis
de Leitura de um Texto. Nesse evento, algumas professoras afirmaram que não trabalhavam
em sala de aula o texto em suas camadas mais profundas, e não utilizavam perguntas
mediadoras para levarem os alunos a perceberem as pistas deixadas no texto para lerem as
entrelinhas e fazerem inferências. Uma das professoras presentes declarou que a oficina a fez
refletir sobre a necessidade de mudança em sua prática pedagógica.
Durante a entrevista semiestruturada, a coordenadora pedagógica retrata que o ensino
de língua na escola pesquisada é feito dissociando-se gramática, leitura e produção de texto,
como se fossem três disciplinas distintas:
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Coordenadora: é... alguns professores dividem ainda... dividem a gramática de português...
a:::: a produção de texto de português... então parece que é uma coisa separada - gramática parece ser uma disciplina a produção de texto parece ser outra e a leitura parece ser outra -
a leitura ainda é (muito mal)... né... os professores não trabalham(...) pra mim não é só os
professores... nós não encontramos ainda uma maneira... assim... que nos leve a um melhor
desenvolvimento da leitu/ da habilidade de leitura das crianças... (das nossas) crianças... nós
estamos tentando... né?
O que se observa nos pressupostos das avaliações em larga escala é que a base de
construção dos itens são os textos, e as matrizes de referência para a elaboração dos itens
contemplam habilidades e competências de compreensão textual de diferentes gêneros, sem a
ênfase em mera identificação e classificação de elementos gramaticais. Porém, ainda é
comum que muitos professores trabalhem a gramática com ênfase na memorização de
nomenclaturas e de regras, dissociando os recursos linguísticos da língua da construção de
sentido do texto.
Essa forma de trabalho, separando gramática, leitura e produção de texto, com
ênfase na transmissão de regras gramaticais, demonstra as concepções de língua, gramática e
texto que têm o professor, o que direciona sua prática pedagógica e suas escolhas
metodológicas.
Koch (2007) postula que, em uma concepção de língua como representação de
pensamento, o texto é visto como um produto do pensamento do autor, e a leitura é uma
atividade de captação das intenções do produtor, sem a interação autor-texto-leitor. Em uma
concepção de língua como código ou como estrutura, a leitura é uma atividade de
reconhecimento do sentido das palavras e estruturas do texto, a leitura exige do leitor o foco
na linearidade do texto, “uma vez que tudo está dito no dito”. Na abordagem interacional, a
concepção de língua é interacional e dialógica. O sentido de um texto é construído na
interação, e a leitura é uma atividade de sujeitos ativos em que se consideram não só os
elementos linguísticos presentes na superfície textual como também os conhecimentos e as
experiências do leitor, o que abre espaço para a construção de informações implícitas.
5. Considerações Finais
Muito embora os PCN recomendem que o professor possibilite ao aluno o
desenvolvimento de estratégias de leitura como, antecipação, seleção, verificação, inferência,
o que se observa é que os alunos somente decodificam informações explícitas, pois não
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consideram os elementos linguísticos presentes na superfície textual como pistas para a
construção de informações implícitas.
O estudo dessas pistas textuais, representadas pelos elementos linguísticos escolhidos
na construção do texto, é uma ferramenta para se trabalhar a gramática como suporte para a
compreensão textual. Perceber que o uso das regras gramaticais faz parte da interação e que
esta só se materializa por textos, é entender que gramática, leitura e produção de texto não
podem ser dissociadas ao se ensinar língua.
Ir além da transmissão e memorização das regularidades ou das regras da gramática,
atentando para a funcionalidade e aplicabilidade dessas regras no domínio do texto para
colaborar para a produção e interpretação de textos, pode ser um caminho para que os alunos
passem a dominar habilidades e competências de leitura que os classifique como leitores
ativos, com pleno desenvolvimento de sua competência sociocomunicativa.
6. Referências Bibliográficas
ANTUNES, I. Aula de português: encontro & interação. São Paulo: Parábola Editorial,
2010.
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