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Do Tema/Objeto ao problema, passo-a-passo (Suely Fragoso) Sejamos realistas: a maioria dos candidatos a uma vaga de mestrado ou doutorado não tem idéia do que os programas de pós-graduação esperam receber quando solicitam a apresentação de um 'projeto de pesquisa'. Eu mesma, ao tentar uma vaga para o mestrado, não sabia por onde começar a escrever o tal projeto – e olhe que eu dispunha da rara vantagem de ter 'alguma idéia' do que constituía uma pesquisa, já que fui privilegiada com duas experiências de iniciação científica durante diferentes cursos de graduação. Este texto pretende auxiliar eventuais candidatos ao mestrado ou doutorado a ultrapassar as barreiras iniciais e dar início à formulação de um projeto de pesquisa 'de verdade'. Comecemos pelos casos mais freqüentes, que corresponderiam a patamares aos quais vou dar os nomes provisórios de 'TC' e 'Tema ou Objeto'. TC Diante da necessidade de redigir um projeto de pesquisa para ingressar no Mestrado, uma saída que ocorre a quase todo mundo é retomar o próprio Trabalho de Conclusão da Graduação (TC) e enviá-lo como uma proposta nova. Para os candidatos a Doutorado, vale o mesmo raciocínio – apenas o que se redige tende a ser uma reproposição da Dissertação de Mestrado e não do Trabalho de Conclusão. Apesar de que não se poderia chamar de 'boa fé' propor uma pesquisa que já foi feita, alguns candidatos realmente não o fazem com má intenção: de fato acreditam que estão propondo avançar o conhecimento adquirido no TC (ou na Dissertação) e não apenas repetir a receita. Com honrosas exceções, no entanto, o resultado costuma ser um projeto de mera reedição da pesquisa já realizada e que, apesar das esperanças de seu autor, não aponta para maiores conquistas. Para o aluno, esse tipo de projeto pode parecer perfeito: está tudo lá, no lugar certinho, sem maiores dúvidas, sem contradições, começo, meio e fim. Fechadinho. Para os olhos de uma banca examinadora minimamente experiente (e ninguém chega a fazer parte da banca de seleção de um pós-graduação sem esse mínimo de experiência) esse mesmo caráter 'resolvido' indica que se trata de uma 'pseudo-proposta' e que, caso aceito, aquele candidato terá que construir um outro projeto de pesquisa porque aquele não o levará muito longe. Enfim, um projeto de Mestrado ou Doutorado pode muito bem ser inspirado em um TC ou Dissertação, mas não pode se limitar a repetir o que já foi feito. Ciente disso, o candidato que pretenda dar continuidade ao seu TC ou Dissertação estará em situação bastante similar ao 'meio do

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Do Tema/Objeto ao problema, passo-a-passo

(Suely Fragoso)

Sejamos realistas: a maioria dos candidatos a uma vaga de mestrado ou doutorado não tem

idéia do que os programas de pós-graduação esperam receber quando solicitam a apresentação de

um 'projeto de pesquisa'. Eu mesma, ao tentar uma vaga para o mestrado, não sabia por onde

começar a escrever o tal projeto – e olhe que eu dispunha da rara vantagem de ter 'alguma idéia' do

que constituía uma pesquisa, já que fui privilegiada com duas experiências de iniciação científica

durante diferentes cursos de graduação. Este texto pretende auxiliar eventuais candidatos ao

mestrado ou doutorado a ultrapassar as barreiras iniciais e dar início à formulação de um projeto de

pesquisa 'de verdade'. Comecemos pelos casos mais freqüentes, que corresponderiam a patamares

aos quais vou dar os nomes provisórios de 'TC' e 'Tema ou Objeto'.

TC

Diante da necessidade de redigir um projeto de pesquisa para ingressar no Mestrado, uma

saída que ocorre a quase todo mundo é retomar o próprio Trabalho de Conclusão da Graduação

(TC) e enviá-lo como uma proposta nova. Para os candidatos a Doutorado, vale o mesmo raciocínio

– apenas o que se redige tende a ser uma reproposição da Dissertação de Mestrado e não do

Trabalho de Conclusão. Apesar de que não se poderia chamar de 'boa fé' propor uma pesquisa que

já foi feita, alguns candidatos realmente não o fazem com má intenção: de fato acreditam que estão

propondo avançar o conhecimento adquirido no TC (ou na Dissertação) e não apenas repetir a

receita. Com honrosas exceções, no entanto, o resultado costuma ser um projeto de mera reedição

da pesquisa já realizada e que, apesar das esperanças de seu autor, não aponta para maiores

conquistas. Para o aluno, esse tipo de projeto pode parecer perfeito: está tudo lá, no lugar certinho,

sem maiores dúvidas, sem contradições, começo, meio e fim. Fechadinho. Para os olhos de uma

banca examinadora minimamente experiente (e ninguém chega a fazer parte da banca de seleção de

um pós-graduação sem esse mínimo de experiência) esse mesmo caráter 'resolvido' indica que se

trata de uma 'pseudo-proposta' e que, caso aceito, aquele candidato terá que construir um outro

projeto de pesquisa porque aquele não o levará muito longe.

Enfim, um projeto de Mestrado ou Doutorado pode muito bem ser inspirado em um TC ou

Dissertação, mas não pode se limitar a repetir o que já foi feito. Ciente disso, o candidato que

pretenda dar continuidade ao seu TC ou Dissertação estará em situação bastante similar ao 'meio do

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caminho' do outro patamar mencionado no início deste texto, o do 'Tema ou Objeto'. Mas voltemos

um pouco para o início de modo a discutir essa outra situação desde seus prováveis pontos de

partida.

Tema e/ou Objeto

Bastante lúcido é o candidato que compreende a solicitação de um projeto de pesquisa como

uma declaração de 'intenção de vínculo'. Trata-se, de fato, de fazer opções que deverão permanecer

para além da mera aceitação como aluno do Programa de Pós-Graduação: apesar de que a maioria

dos Mestrados e Doutorados aceita a possibilidade de que o aluno mude de projeto durante o curso,

este tipo de alteração que vem sempre acompanhado de muitos desdobramentos e conseqüências e

significa, no mínimo, perigosos atrasos de cronograma.

O primeiro movimento em direção a um projeto de pesquisa com boas chances de sobrevivência

consiste, portanto, em refletir sobre a seguinte pergunta:

1. O que é o que é ... que lhe interessa o suficiente para que você ache boa a idéia de

passar os próximos dois anos (ou quatro, no caso do Doutorado) pensando a respeito?

Não é exagero: um projeto de pesquisa começa pela escolha de dedicar seus próximos dois

(ou quatro) anos a uma curiosidade, uma dúvida, uma paixão. Você vai ler sobre ela, vai pensar

sobre ela, vai sonhar com ela. Vai brigar com os colegas e professores por causa dela e vai chorar

quando todas as hipóteses iniciais forem para o espaço e vai, se a pesquisa é mesmo a sua praia,

achar o máximo reconstruir as hipóteses e começar tudo de novo, quantas vezes for preciso, só para

saber mais, para ir mais longe, para conhecer melhor. Pensando sobre o que é que você gosta tanto

assim, chega-se (comumente) a um entre dois tipos de resposta: um Tema ou um Objeto. Para

decidir qual será, entre as milhares de possibilidades, o tema/objeto da sua futura pesquisa, só há

um jeito: olhar para dentro de você mesmo até revelar a natureza dos seus interesses. Do que você

gosta? Sobre qual tema acadêmico já se pegou pensando sem que fosse obrigado a fazê-lo? Do que

tratavam as aulas da graduação ou mestrado das quais você se lembra com mais prazer? A busca do

Tema/Objeto é individual, mas vale buscar ajuda nos amigos, nos livros, nos ex-professores. Vale

também buscar inspiração nas ementas das Áreas de Concentração, Linhas de Pesquisa e

Disciplinas do Programa de Pós-Graduação – o que já ajuda a encontrar a necessária consonância

entre o que você gostaria de fazer e o que é possível fazer num determinado Curso.

Uma vez encontrado o 'assunto', muitas vezes ainda bastante genérico, sobre o qual parece que

valerá a pena debruçar-se nas futuras noites em claro como aluno de pós-graduação (que ninguém

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me acuse de ter feito parecer que era fácil!), os candidatos que 'começaram do zero' e os que haviam

resolvido continuar o percurso do TC ou Dissertação encontram-se no mesmo ponto do percurso.

Como prosseguir?

Além do Tema/Objeto

Se, depois de muito pensar, você ultrapassou a fase um e agora sabe sobre o que quer fazer

sua pesquisa de Mestrado ou Doutorado, é hora de dar o segundo passo. Este é um pouco mais fácil

(talvez seja realista dizer que é menos difícil): tente escrever em poucas palavras e com clareza

qual foi o Tema ou Objeto de pesquisa que você escolheu. Alguns exemplos típicos podem ajudar a

compreender o que eu quero dizer com 'um assunto ainda genérico' e 'poucas palavras, com clareza':

Os sites de leilão na Internet

As revistas brasileiras para mulheres

O programa de rádio que a empregada da prima da minha mãe ouve pela manhã

As fotografias da primeira página dos jornais de grande circulação

Diante de uma descrição sucinta e imprecisa, como as transcritas acima, é possível

realmente começar o trabalho: o terceiro passo é 'afinar' esse interesse amplo para que seja possível

problematizá-lo e construir um verdadeiro projeto de pesquisa. (Não se iluda: não será possível

formular perguntas inteligentes sobre o seu tema/objeto sem que você localize melhor o seu

interesse). É hora de se perguntar, então:

2. O que é que torna esse tema/objeto particularmente interessante para você?

Um bom truque para encontrar uma resposta para a questão acima é pensar no que o tema ou

objeto escolhido tem de diferente (e de igual) em relação a outros, semelhantes a ele. Por exemplo,

se o seu Objeto é o programa de rádio que a empregada da prima da sua mãe ouve pela manhã,

pergunte a você mesmo porque esse programa e não aquele que você mesmo ouve no caminho para

casa todos os dias, ou porque um programa de rádio e não de TV, etc. Por que os sites de leilão na

Internet e não os anúncios classificados?

Boas respostas à pergunta número dois já devem tomar algumas linhas – eis aí as primeiras

palavras do seu projeto de pesquisa! (Certo, não serão necessariamente as palavras que o seu leitor

verá primeiro, mas as primeiras que você está escrevendo e que já podem ser consideradas parte do

projeto). Diante de uma redação que lhe satisfaça, é hora de passar à quarta fase:

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3. O que você já sabe sobre esse Tema ou Objeto?

Tome cuidado para não enveredar por caminhos que levem para longe do foco de interesse

que você localizou anteriormente. Mantendo sempre no horizonte a resposta que você redigiu para a

pergunta dois, experimente escrever em itens as coisas que que lhe parecem mais importantes sobre

o seu tema ou objeto (por exemplo: as capas das revistas femininas são retratos de mulheres jovens,

as primeiras páginas dos grandes jornais são coloridas). Definidos os itens, estenda-se um

pouquinho sobre cada um deles: vale notar que, por incrível que pareça, para escrever com alguma

consistência sobre o que já sabe você vai ter que consultar algumas fontes e referências. O conjunto

das descrições e explicações de cada um dos itens assinalados deve equivaler, ao final do processo,

a uma razoável introdução ao seu tema ou objeto.

A quinta fase é crucial e um tanto difícil – embora pareça muito simples. A pergunta-chave

é:

4. O que você NÃO sabe – e gostaria de saber – sobre esse tema ou objeto?

A dificuldade (comum) para dar conta desta demanda deriva da crença generalizada de que

o trabalho de pesquisa significa demonstrar (na melhor das hipóteses, cientificamente) as coisas nas

quais a gente acredita. Nada disso – para escrever um projeto 'de peso' é preciso superar a

expectativa de fazer uma 'profissão de fé' reafirmando o que você acredita ser verdadeiro. Uma

pesquisa de sucesso não culmina necessariamente em c.q.d. (como queríamos demonstrar), mas em

conhecimento novo: trata-se de descobrir o que não é sabido, não de demonstrar aquilo em que se

acredita.

Para os menos prevenidos, a idéia de registrar num projeto de pesquisa que não sabe uma

determinada coisa é pura insanidade: como é que vão me aceitar para o Mestrado (ou Doutorado) se

já de cara eu dou tamanha bandeira sobre o que não sei? No entanto, ser capaz de reconhecer o que

não sabe é um indicador fundamental do fato de que um candidato tem o chamado 'espírito

científico' – e portanto estará disposto a descobrir o que o objeto ou tema venha a revelar (sem

nunca a forçar a barra para provar o que lhe convém).

Resista à tentação de esquecer a pergunta quatro e ficar só com aquilo que você sabe e

redija, em poucas palavras e com clareza, o que você ignora sobre seu tema ou objeto. Feito isso,

você está pronto para passar para a próxima etapa, a problematização. Um texto específico sobre o

problema de pesquisa, redigido pelo Prof. José Luis Braga, está disponível neste mesmo WebSite.