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    DA TICA EM LOUISLAVELLE

    Amrico Pereira

    2009

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    Covilh, 2009

    FICHA TCNICA

    Ttulo: Da tica em Louis LavelleAutor: Amrico PereiraColeco: Artigos LUS OSOFIADesign da Capa: Antnio Rodrigues TomComposio & Paginao: Jos M. Silva RosaUniversidade da Beira InteriorCovilh, 2009

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    Da tica em Louis Lavelle

    Amrico PereiraUniversidade Catlica Portuguesa

    Contedo

    Filosofia como Escalada 4Do Acto da Pessoa 8Da nica Alternativa Ontolgica: Acto ou Nada 12A Construo tica do Acto Humano 13tica, Ontologia e Antropologia 14

    Do Valor como Transcendental No-subjectivo 17O Bem como nico Verdadeiro Real 20O Amor como nico Acto Real 22Da Angstia como Tenso Infinita para uma Plenitude Infi-nitamente distante 25

    N.B. O texto tem por base a Conferncia homnima proferida no Institutode Filosofia da Prtica da Universidade da Beira Interior, no dia 18 de Maro de2009.

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    Filosofia como Escalada

    Inicia-se com as seguintes palavras a obra fundamental de Louis

    Lavelle, De lacte, datada de 1934: Le chemin qui conduit vers lamtaphysique est particulirement difficile. Et il y a peut dhommesqui acceptent de le gravir. Car il sagit dabolir tout ce qui paratsoutenir notre existence, les choses visibles, les images e tous lesobjets habituels de lintrt ou du dsir. Ce que nous cherchons atteindre, cest un principe intrieur auquel on a toujours donn lenom dacte, qui engendre tout ce que nous pouvons voir, toucherou sentir, quil ne sagit point de concevoir, mais de mettre en u-vre, et qui, par le succs ou par lchec de notre opration, explique la fois lexprience que nous avons sous les yeux et la destineque nous pouvons nous donner nous mme.1

    Na filosofia de Lavelle, do ponto de vista do acto prprio do serhumano, o tico coincide com o ontolgico. Grande conhecedor daaventura do pensamento humano, mormente da nossa tradio, La-velle no ignora a tradicional averso relativa identificao dotico prprio do ser humano com o ontolgico prprio do ser hu-mano. Mas Lavelle nunca foge s questes e convive, ao longode sua vasta obra, com as mais graves e profundas. O sentido docaminho ascencional feito por escalada bem indicativo do enten-dimento que tem do sentido e da dificuldade inerentes ao trabalhofilosfico, trabalho de que digno apenas quem tem a coragem de

    escalar as mais ngremes e possivelmente letais escarpas da monta-nha do questionamento fundamental acerca do que , incompatvel

    1 LAVELLE Louis, De lacte, Paris, Aubier, 1992, prefcio de Bruno Pin-chard, p. 9 (publicao original em 1934, reedies 1939 e 1946).

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    com facilidades, demisses ou compromissos com o inessencial,insubstancial, no-fundamental.

    No , pois, este filsofo2 um homem alinhado com modasou modais escolas de pensamento, todavia no as desconhecendo,bem como ao pensamento srio, possuindo, pelo contrrio, umavasta obra de apresentao crtica de trabalhos de cincia e cul-tura, mormente suas contemporneas, em reas que se espraiamdesde a ontologia e a tica, at fsica, fenomenologia, episte-

    mologia, aos estudos clssicos, para mencionarmos apenas algunsexemplos.3 Relaciona-se com elas como e com um esprito rigo-roso, mas livre, apenas norteado pelo mesmo sentido que vai desco-brindo e construindo ao longo de uma vida dedicada ao confrontointeligente com tais problemas fundamentais com que se depara oser humano enquanto entidade propriamente pensante e propria-mente crtica. O pensamento de Lavelle sempre um pensamentolivre e crtico.

    J na sua primeira grande obra, De ltre,4 datada de 1928, La-velle no hesita em afirmar: Lidentification de ltre et de lacte

    nous permettra de dfinir notre tre propre par la libert. Nouscrons notre personne spirituelle comme Dieu cre le monde. (p.47) Imediatamente, Lavelle situa a dignidade ontolgica e tica doser humano ao mesmo nvel do prprio Deus, pessoa em constru-o, e em construo dinmica, num movimento espiralado ascen-dente e em alargamenteo, no apenas dialctico, mas sempre numaininterrpta sucesso de encruzilhadas ticas e polticas, em que o

    2 Sobre a vida e a obra de Lavelle, remetemos para o estudo de Jean cole,Louis Lavelle et le renouveau de la mtaphysique de ltre au XXe sicle,Hildesheim-Zrich-New York, Georg Olms Verlag, 1997.

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    La philosophie franaise entre les deux guerres, Paris, Aubier, 1942, 278pp.; Panorama des doctrines philosophiques, Paris, Albin Michel, 1966, 232pp.; Science, Esthtique, Mtaphysique, Paris, Albin Michel, 1967, 264 pp.;Psychologie et spiritualit, Paris, Albin Michel, 1967, 268 pp.

    4 LAVELLE Louis, De ltre, Paris, Aubier, ditions Montaigne, 1928, ree-dio, 1947.

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    dilogo com o poder ser um dilogo com algo de infinito, infini-tamente rico de potencialidades.

    Para Lavelle, do ponto de vista da pura actualidade de cadaacto, no h diferena entre o acto livre do homem e o acto livre deDeus: o acto, na sua nica oposio possvel ao absoluto do nada, sempre divino, no sentido de que cada acto cumpre o precisopapel, infinito em consequncias na sua mesma finitude pontual,de erguer absolutamente o ser contra a ameaa do nada. Assim

    sendo, todo o acto partilha do mesmo carcter divino de criaode algo que, por ser, por estar, por ter presena ontolgica, impedeo nada de ser. Cada acto um movimento absoluto que dinmica ecinematicamente, do ponto de vista ontolgico, ergue o ser, melhor,se ergue a si prprio, no e como o acto que , a este nvel com nadacomparvel e a nada redutvel. Como diria Fernando Pessoa: Eser possvel haver ser maior do que todos os Deuses.5

    Assim sendo, do ponto de vista da pura actualidade de qual-quer acto, no h qualquer diferena: todo o acto igualmenteacto, como acto, enquanto acto, do mais nfimo ao infinito acto

    universal. A diferenciao d-se no modo do ser, infinita diferen-5 PESSOA Fernando, Poesias de lvaro de Campos, Lisboa, tica, 1980,

    poema Ah, perante esta nica realidade que o mistrio, pp. 94-96, ltimoverso do poema.Interessante consonncia esta, acerca do verdadeiramente di-vino como o absoluto da possibilidade de ser; isso sem o que, absolutamente,nada, absolutamente nada. Como bvio, para alm deste ponto em que a in-tuio metafsica d este absoluto de possibilidade, nada mais se pode dizeracerca da actualidade prpria de Deus, sendo que a capacidade humana de in-tuio apofntica , por si mesma, muito limitada, sendo o cerne ontolgico deDeus apoftico, no apofntico. Tal, por outro lado, precisamente do lado deuma possvel teofania humanamente adequada, confere importncia extrema aesta mesma manifestao revelativa, epifnica, teofnica. Mas, ento, o pr-prio Deus que se d, na forma de um dom de que o ser humano capaz, formatranscendente de o absoluto do possvel se tornar humanamente inteligvel, semser a partir do ascencional esforo filosfico do homem. Sem esta Revelao,o ser humano nada mais poderia saber de Deus para alm de que isso queinfinitamente se ope ao nada.

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    ciao possvel e actual do acto, mas sempre na forma de acto.Deste modo, o ser prprio do ser humano coincide no com algoque lhe seja apenas dado, mas sobretudo com isso que a sua ac-o, seu acto prprio: s sou, eu prprio, o acto que de mim fao; omais no-eu, -me transcendente, ontologicamente transcendentee define o mbito da transcendncia, sempre poltica. A tica sempre imanente e define activa e actualmente o mbito prprio doacto de cada ser humano, assim verdadeiramente pessoa, porque

    ontologicamente incomunicvel, com todas as bvias consequn-cias ontolgicas, ticas e polticas decorrentes.

    H, pois, uma diviso que se impe entre o que prprio daimanncia de isto que sou, que o acto que sou, e isso que metranscende, que no faz parte do acto que sou, seno quando, dealgum modo, o imanentizo: embora em necessria relao, o m-bito prprio meu o mbito do tico, o mais pertence ao mbitodo poltico, isto , ao mbito das relaes possveis ou actuais comisso que me transcende enquanto acto que propriamente sou. E nestes dois mbitos, e apenas nestes dois mbitos, que decorre tudo

    isso que a minha presena como acto, no seio de um acto que metranscende, mas de que tenho notcia apenas porque essa mesmatranscenso ressoa em minha mesma imanncia. Este campo, maisdo que um campo de existncia possvel ou realizada , o campoda presena ontolgica, presena que se d na forma do ser, isto ,do sentido que para mim prprio crio, na relao da minha ima-nncia tica com a transcendncia poltica, transcendncia que eti-camente imanentizo ou eticamente crio. Toda a possibilidade erealidade humana se d nesta relao dialctica entre o que possovir a ser e me transcende e o que sou e me propriamente ima-

    nente. esta dialctica que me ergue ontologicamente e que ergueontologicamente o que comigo, numa dialctica do eterno pre-sente, ttulo unificador para a magna e inacabada obra de Lavelle,em cinco tomos, acerca do acto prprio da presena, absolutamenteentendida.

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    A tica, em Lavelle, no , assim, uma mera disciplina, maisou menos cientfica, que estude a aco do ser humano, antes omesmo ser humano enquanto se cria a si prprio, como Deus criao restante do ser.

    Do Acto da Pessoa

    Para Lavelle, h, ontologicamente, na pessoa, dois nveis ontol-gicos fundamentais: o primeiro, dado e apenas dado, diz respeito sua mesma possibilidade, corresponde ao acto da sua criao,que um acto de possibilidade ou de possibilitao, na forma daabertura ontolgica a todo um infinito virtual de possibilidades pro-priamente a realizar, a partir de um nada de si mesma, acto que emnada depende da pessoa, dessa mesma pessoa. Criada por Deus,neste acto e apenas neste acto de criao, a pessoa um actopoltico totalmente heteropoitico e heternomo, quer dizer, o seuacto, na forma de seu absoluto de possibilidade no depende dasua imanncia tica, antes de algo externo, transcendente, se bemque imanentizado na forma da indelvel presena do acto criadorna criatura. , alis, este acto que funda a relao entre imannciae transcendncia e serve de paradigma a toda a relao possvel,sempre criadora.

    O segundo nvel, embora decorra, como possibilidade de de-senvolvimento de uma possibilidade ontolgica, do primeiro, cor-responde ao acto prprio de auto-criao do ser da pessoa pela

    prpria, mesma pessoa, um nvel totalmente autopoitico e au-

    tnomo. Assim, h uma total e absoluta autonomia da pessoa, apartir do primeiro momento no-autnomo de sua fundao: postoeste, tudo o que pessoal na pessoa dela prpria depende. A pes-soa , assim, absolutamente livre ou, na nica alternativa possvel,no pessoa alguma, apenas mais uma coisa entre coisas outras.

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    Um dos pontos mais intressantes do pensamento de Lavelle re-side precisamente neste entendimento do acto que pe a possibili-dade da pessoa no como um acto de condicionamento tirnico daspossibilidades a realizar, mas como o acto nico, prprio de cada

    possvel pessoa, que permite que essa pessoa possa vir a ser issopara que essa possibilidade ontolgica abre, na plenitude ontol-gica potencial positiva possvel. Assim, e apesar de todas as ex-perincias de sofrimento que Lavelle teve em sua activssima vida,

    no encontramos na sua filosofia um qualquer impotente lamentoauto-complacente relativo ao modo da possibilidade incoativa pr-pria. Pelo contrrio, Lavelle percebe que cada um destes actos depossibilidade dados precisamente isso que permite a minha pos-svel diferena, como diferena inicial dada, que me compete as-sumir e aprofundar no sentido da construo auto-potica, verda-deiramente criadora de uma diferencialidade prpria, autnoma eirredutvel, que faz de mim no apenas uma qualquer iterao deetiologia causalista e heternoma, mas uma identidade narrativa,auto-narrativa e auto-poitica, em que no sou o mero observa-

    dor de foras que em mim se cruzam e a mim condicionam, maso mesmo narrador poitico verdadeiro actor, agente, portanto de meu acto, acto inenarrvel seja por quem for diferente de mim,mesmo por Deus: nada, absolutamente nada pode substituir istoque sou enquanto acto narrativo de mim mesmo. Aqui, sou absolu-tamente livre, sob pena de no ser de todo. Deste ponto de vista, oua absoluta liberdade ou a aniquilao. Se Deus escolher na minhavez, nesse acto, aniquila-me como pessoa. Na filosofia de Lavelle,inserto que estou, desde o acto de minha criao, no seio de umacto infinito, crio-me em Deus, mas Deus j no me pode criar por

    mim: o que tinha a dar-me deu-me em toda a dimenso de infinitapossibilidade no acto em que me criou. Nesse acto, acompanha-me, mas no se me substitui.

    Assim, o acto da pessoa essencial e substantivamente algode radicalmente autnomo em termos ontolgicos, no que ao ser-

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    vio de minha mesma possibilidade diz respeito. Mas este acto,enquanto acto de criao de mim prprio, algo de fundacional-mente tico, pois tudo o que de mim posso fazer, a partir do tal dadoincoativo em que no estive propriamente presente no que seriaum nscio anacronismo ontolgico, digamos assim nasce nestee deste foro que define a minha interioridade prpria e que coin-cide com o mesmo lugar do sentido que vou sendo, sentido que seconfunde com a totalidade da mesma presena de tudo num acto

    de inteligncia, sem o qual nada referencivel, nada realmente ,pois nada ou pode ser para alm do sentido presente, deste abso-luto semntico que me ergue ontologicamente e, comigo, o restantedo ser.

    Assim, o acto de cada pessoa coincide com um acto de ser deuma inteligncia em que tudo surge como universal ser na formado sentido, logos kairotikos, sem o qual nada, absolutamente nada,como diria Pessoa. Sendo estruturalmente um platnico, nesteponto fundamental da fundao ontolgica da pessoa num actode inteligncia, Lavelle dialoga permanentemente com Agostinho,

    nessa angustiante e definitiva intuio acerca da nica realidadedo presente, presente absoluto em que tudo vem notcia, notciaverdadeiramente ontolgica, notcia que no um conhecimentomnimo, antes a porta de acesso ao todo do acto, de que o presentehumano mais no do que uma restrita imagem mvel.

    Escandalosamente, a tica ontolgica de Lavelle no diz res-peito tradicional faculdade vontade, ou sequer relao entre avontade e a inteligncia, faculdades como que hipostasiadas, masa um acto holstico de isso que o acto de ser prprio de cada serhumano, da pessoa, entendida como um acto de sentido ou de inte-

    ligncia, vista como isso que, perante a possibilidade da realizaode um possvel acto, escolhe essa possibilidade, eliminando todasas infinitas outras possveis, criando, assim, para si mesma e nasua mesma forma prpria, o absolutamente novo real de seu acto,

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    sendo, deste modo, verdadeiramente pessoa, pois verdadeiramenteautnoma e verdadeiramente livre.

    Estamos muito longe das morais burguesas e mercantis em queuma pobre vontade escolhe por dades: a pessoa, para Lavelle, emcada acto de escolha, isto , sempre, funciona como se fosse umdeus ou mesmo Deus, elegendo absolutamente um possvel de entreinfinitos eventuais possveis. Nesta escolha e por esta escolha, cadapessoa, para alm de criar um absoluto de inaudita novidade para

    si prpria, cria tambm, um absoluto de inaudita novidade para orestante do acto que acompanha o seu acto, ou, se se quiser utilizaruma linguagem mais comum, para o universo, sentido mais latopossvel. Pode assim, Lavelle dizer que o ser humano criadocriador. A pessoa no uma mera entidade produtora, construindosempre coisas velhamente novas, a partir de materiais velhos:no, cada acto seu, por ser sempre inaudito, de um ponto de vistaabsoluto, pe algo de novo e o novo, pelo absoluto da diferenaontolgica que aporta ao real, sempre criado, seja em que nvelfor.

    Compreende-se, deste modo, a importncia da presena onto-lgica do ser humano: a sua capacidade de criao tem um poderespantoso de introduo de absoluto de novidade no todo do serde que o mesmo ser humano capaz e no todo do ser em geral.Ora, toda esta capacidade nasce em sua mesma interioridade tica,podendo transcender-se para a sua exterioridade, transcenso quedefine o domnio prprio do poltico. O acto de cada pessoa nodefine apenas o que essa pessoa eticamente seria um acto pura-mente ensimesmado e incomunicvel a qualquer nvel , mas de-fine tambm, sempre que esse acto transcende a mesma pura inte-

    rioridade tica, o universo poltico, universo da transcenso activada pura tica pessoal.Muito diferente esta posio de uma tica concebida de modo

    restrito como cincia ou como universo dos actos certinhos se-gundo um qualquer paradigma imposto politicamente. O mbito

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    da tica, para Lavelle, o mbito da constituio e construo on-tolgica de cada pessoa e do universo da interpessoalidade, isto ,da poltica, em sentido inter-humano, e da diferena prpria de queo ser humano capaz na relao poltica tambm com o restante doque o transcende e que no humanamente redutvel, seja a cha-mada natureza seja, por exemplo, o prprio Deus. Como um co-rolrio bvio possvel, podemos ver j que a religio uma formapoltica, com todas as consequncias imaginveis. Resumindo, a

    tica o domnio fundamental prprio da ontologia humana. No uma disciplina ou um qualquer sub-conjunto do acto prprio doser humano, o mesmo acto do Homem em humano acto.

    Da nica Alternativa Ontolgica:Acto ou Nada

    A intuio matriz do pensamento de Lavelle, sem a compreensoda qual nada se compreende neste filsofo, diz respeito contradi-toriedade entre o acto e o nada. Ler Lavelle, faz-nos sorrir acercade certas tentativas de resoluo da suposta oposio entre Parm-nides e Heraclito, atravs da composio ilgica entre o ser e onada na forma do devir, forma supremamente mgica de ergo-nizar isso que nunca pode ter acto algum e cujo ser se limita estranha presena de uma intuio acerca da impossibilidade dequalquer intuio. E do nada, mais nada. Lavelle toma a srioa contraditoriedade entre acto e nada, tirando as necessrias con-

    sequncias decorrentes, obviamente desprezando qualquer possibi-lidade de mgica composio.Independentemente de qualquer forma, modo, etc., h qualquer

    coisa. Este haver qualquer coisa um absoluto: mesmo que sediga, por exemplo, que tal iluso, ento nada mais se faz do que

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    Da tica em Louis Lavelle 13

    renomear o que h, chamando-lhe iluso, poder-se-ia chamar-lhe outra coisa qualquer, irrelevante. H um acto de inteligncia.Este acto, impossvel com o nada, elimina no s o nada como a suapossibilidade, pois esta indiscernvel da sua mesma... ... E, agora,exactamente porque de tal no h experincia, faltam mesmo aspalavras.

    Este acto de sentido do absoluto da presena, acto a que Lavellechama acto de conscincia metafsica, funda toda a possibilidade

    da humana ontologia e funda-a literalmente como onto-logia, isto, o ser humano um acto de inteligncia: fora deste acto faa-sea experincia nada h, nada h que seja referencivel em termoshumanos. Ora, a humana referncia, em termos absolutos, a nicade que somos capazes, a nica que existe, no para ns, mas nanossa mesma forma: exactamente o que somos.

    A pessoa est, pois, sempre do lado alternativo do acto. Semo acto da pessoa, do ponto de vista do nico sentido de que so-mos, fomos e sempre seremos capazes, sem este acto, nada. Todoo sentido, toda a possibilidade do sentido passa pelo acto de ser

    humano. Percebe-se, ento, a importncia extrema, absoluta quea pessoa tem. Cada pessoa no apenas uma entidade individual-tica ou comunitria-poltica, todo o mundo real e possvel que oacto de inteligncia que ergue. Se eliminarmos todas as pessoas,todo o sentido conhecvel desaparece. Todo. No esqueamos quetodas as puras especulaes acerca de outras formas ditas no hu-manas de inteligncia nada mais so do que formas de projecoda mesma inteligncia humana sobre outras entidades, sejam elas oratinho de laboratrio, os extraterrestres, os anjinhos ou mesmoDeus.

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    14 Amrico Pereira

    A Construo tica do ActoHumano

    O acto de ser humano constri-se, cria-se autopoieticamente atra-vs da mesma aco do homem, indiscernvel de seu prprio actoenquanto pessoa. verdadeiramente humano isso que prprio do

    ser humano enquanto fruto de seu labor tico de auto-construo,o mais est em relao com ele como o seu futuro cadver estar,uma vez desaparecida esta mesma actualidade tica. precisa-mente por isto que um cadver de ser humano no um sujeitotico e no propriamente humano, no sentido que se tem vindoa expor. tambm por isto que um cadver no confundvelcom um corpo: este um com o acto tico da pessoa, o cadver ,na certssima expresso popular, um resto mortal, resto porqueprecisamente morto.

    A pessoa, o acto tico e poltico do ser humano , pois, exacta-

    mente isso que falta ao cadver. Ora, isso recebe tradicionalmenteo nome de vida. Assim sendo, para Lavelle, a vida o acto deinteligncia que, infinitamente diferenciado, ergue isso que se dis-tingue do no vivo como acto de sentido, acto de sentido que nose limita ao prprio do ser humano, mas se derrama em toda a en-tidade capaz de leitura inteligente do acto universal em que se en-contra imersa. Lavelle tambm um leibniziano, encaminhando-se a sua no concluda teoria do valor para uma nova viso do actode inteligncia como o acto no apenas ontolgico por excelncia,mas como o acto ontopoitico por excelncia, em tendncia parauma renovada monadologia participativa, em que cada ser dotadode vida e de inteligncia se ergue segundo suas mesmas possibi-lidades e segundo tambm as possibilidades contextuais infinitasque o acompanham, numa omni-integrao sinfonial de preciso-sssimos absolutos de possibilidade ontolgica em infinita entre-autoconstruo activa.

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    Da tica em Louis Lavelle 15

    tica, Ontologia e Antropologia

    Se partssemos do incio absoluto, no autnomo, do ser humano, ottulo desta parte teria de ser ontologia, tica e antropologia, maspelo que j ficou exposto, o que interessa isso que o prprio doser humano enquanto ser humano, irredutvel a qualquer etiologiaque no o seu mesmo acto de presena como acto de realidadesemntica. Assim sendo, h uma necessria preeminncia da ticanaquilo que se pode chamar a antropologia presente no pensamentode Lavelle: o ser humano eticamente. A ontologia prpria do serhumano, da pessoa, na forma tica. O estudo da pessoa coincidecom o estudo de seu acto.

    Quer isto dizer que o estudo da pessoa impossvel, pois no possvel penetrar em seu mesmo acto prprio a fim de a estudar.Tal aventura consistiria numa substituio do acto da pessoa a estu-dar pelo acto do estudante. Tal manifestamente impossvel e, seo no fosse, arruinaria a experincia, dado que eliminaria o objecto

    a estudar. , ento, impossvel uma antropologia em Lavelle? Sefosse apenas em Lavelle, pensador e acadmico, no viria grandemal ao mundo, mas a questo, que no pensamento de Lavelle surgede modo muito claro, muito mais profunda e no se limita a qual-quer feito ou defeito da filosofia de Lavelle. que, e segundo omesmo Lavelle, do ponto de vista da intimidade tica, onde preci-samente se cria o acto prprio de cada ontologia pessoal humana,no possvel qualquer comunicao directa, qualquer observaodirecta, qualquer inquisitiva inquisio. H uma total solido on-tolgica tema muito caro ao nosso Autor : o meu acto, isso que

    me ergue como isso que sou em acto no directamente acedvelseja por quem for ou de que modo for, isto no plano humano, que o que aqui nos interessa.

    , assim, impossvel um estudo directo do acto prprio de cadaser humano. Repetimos, isto no questo lavelliana, algo de

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    estrutural ao acto prprio da pessoa e constitui a reserva ontolgiaprpria que defende a tambm prpria diferena que diferencia on-tologicamente cada entidade humana. , tambm, o que a defendede todo o acto tirnico, sempre interessado no controlo directo daontologia prpria de cada pessoa.

    Parta-se deste paradigmtico exemplo de perversidade para seperceber como e em que nvel possvel uma antropologia, noapenas em e segundo Lavelle, mas em termos absolutos. Todos sa-

    bemos que a tirania uma triste realidade bem real, mas que nose pode exercer directamente sobre o acto tico da pessoa, ape-nas atravs da forma indirecta poltica. Apenas politicamente aspessoas podem comunicar, mediante formas comuns de protocola-ridade de linguagem, linguagem nascida em seu mesmo foro tico,mas comungada nesse outro forum que precisamente aquele emque possvel comparar protocolos de experincias ticas. nestae desta comparao poltica que pode nascer e, de facto, nasce a an-tropologia. O estudo do acto prprio do ser humano d-se apenasna forma poltica da comparao de protocolos comunicacionais

    de experincia, de outra forma absolutamente incomunicveis.Assim, a antropologia em Lavelle uma forma poltica de co-

    municao de semelhanas e diferenas entre entidades eticamentehumanas, sendo fundamental no como disciplina cientfica ou es-colar, mas como o mesmo fundamento comunicacional entre o di-ferente tico capaz de uma possvel comunicao. Esta semprepoltica e constitui isso que o mundo poltico da interpessoali-dade, no como mgica interpenetrao invasiva das diferentes que deixariam de o ser esferas ticas, mas como lugar da trocade protocolos de linguagem acerca de experincias ticas. por

    isto que muitas vezes no possvel, de todo, comunicar a expe-rincia tica havida: ou no h protocolo capaz ou, havendo, noh experincia outra terceira capaz de significar eticamente, isto ,interiormente isso que o protocolo pe politicamente disposio

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    de quem o possa inteligir, inteligncia impossvel sem uma experi-ncia semelhante.

    Assim, a antropologia em Lavelle confunde-se com uma teoriapoltica, no no sentido comum modal do termo, mas no sentidode uma teoria geral da inteligibilidade possvel da relao inter-

    pessoal no invasiva. O que a vulgar antropologia faz como teoriaacerca do ser humano feito em Lavelle pela teoria tica, teoriaque recobre a teoria ontolgica do prprio da pessoa enquanto acto

    livre prprio auto-poitico, reservando um espao de ateno parao eterno mistrio do dom que antecede esta possibilidade. Antro-pologicamente, pois, o ser humano comea como um dado de queno capaz, passa pela sua mesma capacidade de autopoiese e ter-mina na capacidade de transcendncia para o mbito do poltico.A pessoa s completa nestas e com estas trs dimenses: semo dom inicial no poderia, de todo, ser; com este dom, mas sema capacidade tica de o desenvolver, seria uma mera virtualidade(mas o dom o mesmo acto desta capacidade tica); sem a capaci-dade poltica, seria indiscernvel de um anjo autista (e o dom inicial

    encerra tambm a capacidade de transcendncia). precisamentepor encerrar em si toda esta potencialidade que o acto do dom soberanamente importante: este dom o absoluto da possibilidadehumana de ser e de ser na relao. A primeira grande relao arelao com o dado do dom, a relao que funda a possibilidadede toda e qualquer outra relao. Ora, todo o acto que daqui recebea sua possibilidade um acto de relao. Antropologicamente, oacto de ser humano um acto de relao: com o dom de que parte,com a possibilidade de ser erguer a si prprio, com a possibilidadede erguer o mundo que o transcende; mas tambm uma relao

    em acto de actualizao de tudo isto. a relao em seu mesmoacto que criadora. Compreende-se, assim, a razo pela qual onada um nada de relao e o acto puro uma relao infinita con-sigo prprio.

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    Do Valor como TranscendentalNo-subjectivo

    A teoria do valor tem uma importncia fundamental na filosofia deLavelle, tendo este dedicado um magistral tratado de cerca de mile trezentas pginas sua reflexo, tratado que, alis, por sua morte,

    no chegou a concluir. No entanto, Lavelle tem horror ao comumentendimento do termo valor, entendimento sempre subjectivistae dependente de uma avaliao relativizadora, mesmo quando sefala, num tal contexto de forma contraditria, de valores absolu-tos. Para Lavelle, o valor algo de muito diferente: trata-se de umtranscendental e de um transcendental transcendente, isto , no re-dutvel a qualquer forma de imanentizao estrita, logo, trata-se dealgo no subjectivo, antes objectivo, alis, absolutamente objec-tivo.

    O valor no se limita a acompanhar o surgimento do ser, comoalgo de super-aposto fenomnica ou mesmo ontologicamente, oucomo algo do tipo de uma reverberao mgica, tipo radiaoesttico-racional ou esttico-lgica, dado numa intuio diferenci-ada da mesma intuio que d o ser enquanto tal. Neste modo depensar o valor, o ser tem valor. E ser e valor so entidades di-ferentes, ficando sem se saber como que se articulam lgica eontologicamente, sem recurso a formas de magia, to do gosto deformas incompletas de racionalidade, autocomplacentes na falta deradicalidade e de exaustibilidade de seu objecto.

    O ser tambm no o valor, no que seria uma sinonmia per-feitamente intil. O valor o absoluto da possibilidade do acto

    presente em cada possibilidade de acto e dado por meio de umaintuio, precisamente intelectual... no presentssimo acto do

    presente da presena ontolgica que sou que posso intuir todo umuniverso de possibilidades, cuja nica realidade metafsica, poisno existem estas mesmas possibilidades segundo o modo da pre-

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    sentificao espcio-temporal. de entre esta virtual infinitude depossibilidades de actualidade e de acto que tenho de escolher. Aescolha dirige-se no a coisas que j a estejam, mas ao absolutode possibilidade de poder vir a estar a na forma possvel que asua. E isto que o valor, esta objectiva possibilidade metafsicade ser. Tal dado intuitivamente sem recurso a qualquer forma desensibilidade, pois o sensvel precisamente o que no pode serporque j . a escolha do absoluto de poder ser de algo que ime-

    diatamente o faz ser, faz com que actualize isto em vez daquilo,aquilo que virtualmente infinito. E isto s verdadeira e real-mente isto porque foi, e porque o que eu escolhi, sendo que o queno escolhi o restante infinito universo de possveis absolutos,que acabei de remeter para a imediata impossibilidade: estas pos-sibilidades nunca tero realidade alguma para alm da que tiveramenquanto possibilidade, cessaram com a escolha que as preteriu.

    O valor , portanto, um transcendental ontolgico transcen-dente porque metafsico. A escolha do valor o processo de ima-nentizao da possibilidade na forma tica da realizao da esco-

    lha, escolha cujo fruto pode ficar restrito pura imanncia tica outranscend-la no sentido da agora poltica. Sendo assim, o valorno ditado por uma escolha, o que permite a escolha, pondodiante da inteligncia isso que a virtualidade infinita do absolutopossvel de todos os actos possveis. Cada escolha ergue um valorem acto e remete, relativamente quela escolha, todos os infini-tos possveis outros, para a irrealidade. Cada novo possvel actovai necessitar de uma nova infinitude possvel de valores, e assiminfinitamente. Percebe-se, pois, a necessidade de um infinito infi-nitamente infinito como valor, no sentido exposto, para que o acto

    da pessoa possa ser. Compreende-se tambm melhor qual o signi-ficado criacional de cada acto da mesma pessoa. Cada no eleio um possvel absoluto real que fica para sempre impossibilitadoem sua mesma absoluta diferena. Pese-se, agora, a importnciada responsabilidade ontolgica da pessoa. Pese-se e ganhe-se a an-

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    gstia que percorre toda a obra de Lavelle, mesmo nos momentosde maior alegria, alegria que se vive sempre como vitria pontual eprecria contra esta estrutural angstia, marca transcendental ticada grandeza ontolgica-ontopoitica do acto da pessoa.

    O Bem como nico VerdadeiroReal

    Afirmmos j que Lavelle um platnico, mas a consonncia como mestre da Academia revela-se maior precisamente no sentido doabsoluto ontolgico presente em cada ente, absoluto que o ergue,no sobretudo na relatividade horizontal perante ou outros entes oumesmo na relatividade vertical da criao, mas na infinita no re-latividade ao nada, que cada ente impede. A intuio do absolutodo bem no diz respeito fundamentalmente a uma qualquer pie-

    dosa intuio da generosidade de um qualquer criador, ainda muitorelativista, mas impiedosa intuio da radicalidade da diferenaentre o acto, qualquer, e o nada. O que bom porque no nada,literalmente. O bem o absoluto de acto que impede o nada. E denada importa, como j vimos, o estatuto ontolgico particulardeisso que se ope ao nada.

    O bem, termo ontolgico clssico para o absoluto de realidadepor oposio ao nada, marca, pois, isso que est em vez do nada.Por isto, ser ser bom, mesmo que ser doa, mesmo que se sofrasendo, experincia em que Lavelle era, alis, terico perito: lem-

    bremos, por exemplo, o seu tratado Le mal et la souffrance, bemcomo a sua experincia de vida, mormente o tempo passado comoprisioneiro de guerra, que dele fez, nestes assuntos, prtico e prag-mtico perito.

    Este bem no confundvel com o transcendental ontolgico

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    clssico, acompanhante universal do ser: quando afirmmos ser ser bom, tal no deve ser entendido no sentido de que h umaprioridade qualquer, ontolgica mesmo, do ser relativamente aobem; pelo contrrio, para Lavelle, como para Plato, o ser que transcendental do bem e no o contrrio. O que porque bom,isto , porque isso que se ope absolutamente ao nada.

    O prprio valor, como exposto acima, no confundvel comeste bem, o que, no bem, manifestvel inteligncia. Mas o

    bem no esgotvel na manifestao inteligncia ou seria umamera pelicularidade, insubstantiva para alm dessa mesma pelicu-laridade manifestada. Mas o bem tambm no algo que estejaatrs ou para l da manifestao. Assim como o presente doacto no tem traseiras, sendo, no que , tudo num mesmo acto uni-trio, tambm o bem no se esconde sob uma pelcula fenomnica,ele o absoluto do acto que tudo ergue, mesmo a pelcula mani-festa.

    Assim, o bem, em Lavelle, no fundamentalmente algo quese faa, quando se procede segundo qualquer tabela de boas aces

    possveis, por exemplo, mas o mesmo absoluto actual que tudo er-gue. Ora, parte deste absoluto possvel e realizvel passa, aqui sim,pela possibilidade activa do acto de ser humano, pelo que o bemtico diz respeito ao absoluto de acto que cada acto humano intro-duz na criao. Note-se que todo o acto humano, porque introduzsempre uma qualquer positividade ontolgica, introduz sempre umqualquer bem, pelo que no h actos totalmente no-bons: para tal,seria preciso que um qualquer ser humano anulasse infinitamenteo acto universal, isto , aniquilasse tudo, o que talvez seja pedirdemasiado ao ser humano.

    Ento, e a famosa questo do mal? Onde pra o mal na filo-sofia de Lavelle? Possivelmente, em toda a parte em que haja umqualquer ser humano. Para no descurarmos os chamados malescuja origem no propriamente tica, diremos que Lavelle no ig-norava o erradamente chamado mal fsico e seus decorrentes; mas

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    o mal propriamente dito decorre da aco do homem e deve sertratado como momento possvel e real da humana dimenso tica epoltica.

    O Amor como nico Acto Real

    Lavelle termina a sua obra fundamental, De lacte, com uma teoriado amor. Em belssimas palavras, j plenas de um sentido que ape-nas se obtm na actualizao do programtico caminho que se faztrepando, subvertida a comum lgica, ilgica para quem j atin-giu o tal ponto culminante de onde a perspectiva j unificada, decontradio entre liberdade e necessidade. Para quem ama, isto ,para quem assume como acto seu o sentido da presena do bem, emsua radical ontolgica positividade, todo o sentido coincide com omesmo acto j uno de inteligncia e de querer do mesmo bem detudo, absolutamente de tudo. Neste acto, nico momento espiritualpossvel e real, citamos, la libert, ne subissant plus aucune con-trainte du dehors, devient elle-mme sa propre ncessit. (Delacte, p. 534)

    Todas as razes e motivos possveis coincidem com o mesmoacto que me ergue: sou a pura unidade do acto que concomitan-temente contempla e ama isso que, verdadeiramente, j no ob-jecto fora de mim, mas sentido em mim, ou eu mesmo na forma dosentido de isso que, agora, na forma do sentido, faz parte de meumesmo acto. Ao ser assim, este acto de amorosa contemplao no s um acto livre, pois totalmente gratuito, mas sobre-

    tudo um acto criador, pois o querer o bem prprio de algo, semmais, na tal gratuidade, permite que esse algo seja, co-cria a suapossibilidade. A grandeza deste poder verdadeiramente ontolgicopercebe-se, talvez melhor, por contraposio: se no amar a pos-sibilidade de algo, no permitirei esse algo, pelo que mato a sua

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    possibilidade e, com ela, a sua mesma realidade, que, assim, j nopode ser.

    Mas, para poder amar a possibilidade de algo, tenho de po-der ter dessa mesma possibilidade uma inteligncia o mais perfeitapossvel. Ao inteligir o que a possibilidade de algo , passo a amarisso que o seu absoluto ontolgico na forma da possibilidade, oseu valor, permitindo, assim, a sua realizao, no que nela dependede mim.

    por esta razo que o acto de amor o nico acto verdadeira-mente real, pois ele o nico que permite a actualizao do poss-vel na forma semntica da presena. Tocamos, aqui, o ponto fun-damental da possibilidade de comunicao entre os actos, pois, se acomunicao poltica potocolar fundamental para a constituiode uma comunidade ontolgica, tica e poltica, ela , ainda, umaforma de comunicao apenas de tipo contemplativo e meramentede forum; no tem presa ontolgica no seio do outro acto. Mas,e no estamos a desmentir o que se disse anteriormente, o amor a nica forma real de comunicao, pois tem verdadeira presa

    interior ontolgica no acto terceiro: o querer o bem possvel dealgo que me transcende pode significar a sua possvel realizao;o meu no querer pode significar a pura e simples aniquilao dapossibilidade de sua realizao.

    Assim, o amor comunica ontologicamente a possibilidade daactualidade. Mais nada o pode fazer. Quem ama no se limitaa contemplar o chamado objecto de amor, ajuda a cri-lo, pormeio do que acrescenta de possibilidade s suas possibilidades.Compreende-se, assim, de uma forma muito mais nobre, a pos-svel relao entre o ser humano e o mundo, no como uma qual-

    quer forma de senhorio ou de dominao, mas de acto de amor ede amor na forma do sentido, isto , relao tipicamente espiri-tual e, portanto, tambm gratuita: Il ny a pas dautre justificationdu monde que celle-ci, cest que je puisse toujours dcouvrir enlui de nouveaux objets vouloir, comprendre et aimer. Lacte

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    daimer, cest la perfection mme de lacte de vouloir e de lactede comprendre. (De lacte, p. 535)

    No se quer o mundo para o possuir ou para o contemplar desdefora, quere-se o mundo para se amar o mundo, isto , para lhe per-mitir atingir o seu mximo ontolgico possvel. Este mesmo actode amor unifica no apenas esse que ama em acto, mas o prprioamado. O amor funciona como um transcendental unificador m-ximo, no como o Deus-Ideia do topo da pirmide transcendental

    kantiana, mas como o acto total criador de sentido e das coisas pos-sveis apenas na forma do sentido, no como mgica relao entreum cogito autista e sabe-se l o qu de transcendente (a coisa em si,qualquer seja), mas como isso que contraria absolutamente o nadae que a presena, termo com que Lavelle assinala esta incontor-nvel realidade semntica que, mais do que nos habitar, como ospensamentos habitam um cogito de outro modo vazio, nos consti-tuem como unidade prpria e inalienvel de sentido: a alienaodeste sentido unitrio corresponde aniquilao da pessoa, seja deque forma for, sendo a morte fsica apenas uma variante possvel.

    A tica de Lavelle termina ou comea verdadeiramente, comose queira, com uma teoria do amor, em que j no h discernibi-lidade possvel entre a pessoa que ama e o mesmo amor com queama, em que a pessoa o mesmo acto de amor que , que a er-gue como um bem querer de tudo e de todos. Temos, aqui, de umaforma muito bela, a indicao racional da forma precisa de comoatingir a agostiniana cidade de Deus, isto , no um paraso esca-tolgico num qualquer alm, mas o mesmo reino do amor univer-sal, possvel se todos os seres humanos se transformassem nestesactos de amor, de inteligncia e vontade unas de universal bem.

    No se trata de uma utopia, mas de uma racionalssima possibili-dade, apenas desmentida historicamente, mas indesmentvel teori-camente, seno por hobbesianos autocomplacentes lobos.

    Lavelle no falava de uma forma meramente especulativa, ti-nha experincia tica e poltica neste e deste sentido: por exemplo,

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    enquanto prisioneiro de guerra, na Grande Guerra de 1914 - 1918,organizou formas de actividade enobrecedora de seus camaradasde cativeiro, incluindo uma espcie de universidade entre aramefarpado. Tal actividade releva precisamente do sentido do amorpelo que e sobretudo pelo que pode de melhor ser, a tal razode ser do mundo como fonte de vontade e de inteligncia amorosa,ontologicamente amorosa. De tal modo entende Lavelle ser ele-vado este acto amoroso, que o v no apenas como forma criadora

    no sentido j exposto, mas chega a dizer que uma forma de o pr-prio Deus se amar a si prprio no e pelo amor da prpria pessoa:cest lamour pur qui saime aussi en nous. (De lacte, p. 536)

    Da Angstia como Tenso Infinitapara uma Plenitude Infinitamente

    distante

    Querer resumir adjectivamente a substncia seja do que for sem-pre sinal de superficialidade, pelo que sempre nos recusamos a di-zer coisas como, por exemplo, a filosofia de Lavelle optimistaou quaisquer outras do mesmo estilo. O facto de todo o pensamentode Lavelle se ordenar em torno do sentido da absoluta positividadeontolgica do que no faz dele um optimista, antes algum quechegou a tal evidncia ontolgica por meio da reflexo acerca dafragilidade desta mesma positividade ontolgica, sempre, no que

    ao ser finito diz respeito, na iminncia de uma possvel aniquila-o, numa semntica ontolgica em que nada permanece seno omesmo acto da presena da mesma transincia.

    A par com o sentido da absoluta positividade do que , h, nafilosofia de Lavelle, a indelvel presena da angstia: angstia in-

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    supervel perante a possibilidade da aniquilao de um acto queno infinito em acto, embora o saiba ancorado nesseoutro infi-nito em acto, mas com o qual no coincide; angstia insupervel etranscendental ao acto semntico da pessoa que, mesmo sabendo-se ancorada em tal acto infinito, sabe tambm que nunca poderatingir uma perfeio de que capaz, mas apenas em infinita apro-ximao. Angstia pascaliana, mas tambm angstia crstica, dequem sabe que tem de beber o clice da experincia da finitude.

    Mas precisamente a angstia de quem no pode possuir asegurana metafsica de que se falava no incio, de quem sabeque bem e mal humanos e humanamente possveis passam por seumesmo acto, sem desculpas, sem redeno ontolgica em caso deperverso da ontolgica vocao para o valor como absoluto posi-tivo do acto possvel. Angstia de quem sabe, como o Job bblico,que, qualquer que seja o seu acto, j tem, nas palavras do prprioCristo, a sua recompensa: o que fao de meu acto acompanha, naimanncia ontolgica prpria do que sou, transcendentalmente, omeu acto, constituindo o meu cu ou o meu inferno prprios. A

    hipstase fundamental do bem que actualizei sou eu prprio e omesmo se diga da hipstase do bem que no realizei e poderia terrealizado, mais conhecido por mal.

    H, assim, uma outra forma de angstia, de que normalmentetodos fugimos, que a da necessria identificao do que fiz como que sou propriamente, sendo que o mais no meu, no sou eu.Assim se pode perceber a importncia fundamental da relao en-tre ontologia e tica e tica e ontologia, no havendo, na pessoa

    finitamente pronta, diferena alguma possvel entre os dois m-bitos, seno o seu mesmo, mas imprprio cadver, isto , toda a

    passividade, a que no podemos chamar propriamente sua.Num mundo em que a pior desumanizao passa pelo aparen-temente persistente e ramificado paradigma da degradao onto-lgica do ser humano em formas redutoras inferiores, paradigmaque atingiu a sua mxima expresso na paroxstica perverso onto-

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    lgica nazi, paradigma seguido em muitos mbitos polticos ho-diernos, mesmo em certas ditas cincias, o sentido da indefec-tvel nobreza ontolgica do ser humano, nobreza conferida nopor qualquer estatuto fabricado, mas por seu mesmo acto, em suamesma bondade, pode ser um contributo fundamental para reen-contrar contemporaneamente formas de exaltao do propriamentehumano na pessoa, irredutvel a qualquer interesse tirnico ou oli-grquico, restituindo ao propriamente humano a dignidade ontol-

    gica que nunca deveria ter perdido. Mas preciso que, num qual-quer destes campos de concentrao, mais ou menos confortveis,em que nos habitumos a viver, haja algum que promova a liber-tao do ser humano.

    Sempre foi esse o papel da filosofia. Que se cumpra, pois.

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