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Memria iguauana: silncio no perodo ditatorial (1964-75).
Allofs Daniel Batista*
Resumo
Os processos de seleo e consolidao da memria possuem diversos fatores, variveis
e particularidades. As questes da memria e seu enquadramento esto ligadas s
peculiaridades de cada grupo, regio ou temporalidade a ser abordada, ou ainda o
somatrio destes e outros fatores se imbricando num mesmo objeto. Ao realizar
entrevistas na cidade de Nova Iguau encontramos uma caracterstica marcante quantoao silncio que o regime ditatorial imprime nos entrevistados, enquanto que ao analisar
uns poucos dados da administrao municipal teremos o inverso implcito. Pretendemos
observar o fato de que em uma mesma espacialidade coexistem e interagem diversas
construes de memria para um mesmo fato, sofrendo influncia direta do papel social
desempenhado, assumido e/ou construdo por cada indivduo.
Palavras chave: Memria, Nova Iguau, Ditadura Civil Militar
Memory iguauana: silence in the dictatorial period (1964-75).
The memory selection and consolidation procedures have various factors, variables and
particularities. The memory issue and its environment are linked to the peculiarities of
each group, region or temporality to be addressed, or the sum of these and other factors
overlap on a same object. When conducting interviews in the city of Nova Iguau weve
found a striking feature, concerning the silence of the interviewed people about
dictatorship, while analyzing the data from the municipal administration the situation
was reverse. We intend to observe the fact that in the same spatialty co-exist and
interact several means of memory construction for the same fact, under direct influence
of social role, assumed and / or constructed by each individual.
* aluno do 6 perodo de graduao da UFRRJ/IM (Instituto Multidisciplinar Campus Nova Iguau).Est inserido no grupo de pesquisa do projeto Memrias da Baixada Fluminense: vida, trabalho edesenvolvimento urbano em testemunhos de ancios 1950-2000., Coordenador Professor Doutor lvaroP. Nascimento, onde bolsista de Bolsa de Iniciao Cientfica da FAPERJ. Tem especial interesse pelas
discusses acerca da Baixada Fluminense e do Municpio de Nova Iguau e os processos histricos emque a regio se insere no sculo XX. E-mail: [email protected] Cel.: 9361-7876.
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Keywords: Memory, Nova Iguau, Civil Military Dictatorship
Introduo
Ao iniciar as atividades do grupo de pesquisa Memrias da Baixada
Fluminense: vida, trabalho e desenvolvimento urbano em testemunho de ancios
1950/20001 surgiram questes comuns a pratica da Histria Oral. Partindo do relato de
histrias de vida pudemos colher depoimentos interessantes sob vrios aspectos, mas foi
um silncio muito comum que chamou ateno deste comunicador. Os relatos se
omitem, ou pouco falam, sobre o perodo ditatorial.
Situao estranha quando arrolamos a vida poltica na cidade de Nova Iguau no
perodo destacado. Ali existiu uma ao incisiva da ditadura na vida poltica, havendo
interveno sob a doutrina de segurana nacional.
Propomos abrir para discusso as formas de construo de memria individual e
coletiva, sua naturalizao e a opo pelo silncio em momentos traumticos ou
obscuros.
A Cidade pr e ps-ditadura: escolha da cronologia.
O perodo destacado se baseia no expressivo crescimento demogrfico da cidade
(BATISTA, 2009), a saber, 1955-1975. Nele pudemos observar o incremento
populacional que se deu nesta regio, saltando de uma populao pouco inferior a
250.000 habitantes e alcanando mais de um milho no final do perodo2
.
Em doze anos (1964-1975) pudemos identificar uma atividade poltica
efervescente no executivo municipal. Foram doze prefeitos (ver tabela 1), expondo uma
1 O Grupo de pesquisa Memrias da Baixada Fluminense: vida, trabalho e desenvolvimento urbano emtestemunho de ancios 1950/2000 coordenado pelo Professor Doutor lvaro Pereira do Nascimento(UFRRJ/IM) com apoio da Fundao de Amparo Carlos Chagas Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro FAPERJ.
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Discurso do Senador fluminense Nelson Carneiro. Anais do Senado, 1975 livro 01, folhas 174, 175, 176e 177.
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ao direta do regime nesta rea perifrica do Estado do Rio de Janeiro. Neste contexto
temos a Doutrina de Segurana Nacional, com o Ato Complementar n 53 de
08/05/1969, especfico para a interveno realizada na Cmara Municipal e no
executivo, que podem ocultar interesses e preocupaes secundrios do regime em
relao Nova Iguau e mesmo regio da Baixada Fluminense.
Tabela 1: Prefeitos de Nova Iguau 1955/1975
Prefeito Mandato Acesso ao cargo3
Ary Schiavo 31/01/1955 - 30/01/1959 Eleito
Sebastio Arruda Negreiros 31/01/1959 - 30/01/1963 Eleito
Aluzio Pinto de Barros 31/01/1963 - 26/08/1964 Eleito
Joo Luiz do Nascimento 27/08/1964 - 14/09/1966 Vice Prefeito
Jos de Lima 15/09/1966 - 16/10/1966 Presidente da Cmara
Joaquim de Freitas 17/10/1966 - 30/01/1967 Interventor
Ary Schiavo 31/01/1967 - 09/07/1967 Eleito
Antnio J. Machado 10/07/1967 - 14/08/1967 Vice Prefeito
Jos Nain Fares 15/08/1967 - 13/11/1967 Presidente da Cmara
Antnio J. Machado 14/11/1967 - 16/101968 Vice Prefeito
Nagi Almawy 17/10/1968 - 24/02/1969 Presidente da Cmara
Joo Ruy de Queiroz Pinheiro 25/02/1969 - 31/01/1971 Interventor
Bolivard Gomes de Assumpo 31/01/1971 - 30/01/1973 Eleito
Joaquim de Freitas 31/01/1973 - 20/10/1975 Eleito
Joo Batista B. Lubanco 21/10/1975 Vice Prefeito
Tabela 1: Fonte Arquivo da Cmara Municipal de Nova Iguau
3 Na coluna Acesso ao cargo buscamos indicar o cargo poltico anterior posse do executivo, se exerciafuno legislativa, foi um Vice alado ao cargo de Prefeito ou se havia sido eleito por voto direto.
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A Tabela I deixa clara a distino entre os perodos de 1955 a 1964 e da at
1975. Sendo notria a movimentao poltica em datas chave no decurso do regime.
Diante de todos estes indcios, seria natural esperar a marca deste perodo na
memria da cidade, que buscamos registrar colhendo relatos de trajetrias de vida. Foi
ao entrar em contato com a populao que tivemos uma experincia de silncio em
nossas entrevistas no tocante ao regime, onde tivemos explanaes superficiais,
esvaziadas de envolvimento emocional ou de qualquer indicao de participao ativaou posicionamento ideolgico, exceo do senhor Marcelino Salvador, que
abordaremos mais detidamente.
Ento, encontrando esta dinmica poltica e demogrfica, fizemos tal recorte
para cruzar com informaes e omisses dos relatos colhidos nas entrevistas.
As entrevistas e o pblico.
Para realizar as entrevistas formulamos um questionrio abrangente no sentido
de captar o mximo de informaes da trajetria de cada indivduo. Entre as questes
venho destacar uma em especifico, com intuito de levantar algumas respostas sobre a
temtica poltica da cidade: Lembra de alguma eleio marcante na cidade? O que
houve?. preciso observar que a pergunta uma frmula no rgida, que se adapta de
entrevistado para entrevistado. apenas um indicativo para que, dentro de um momento
oportuno, o entrevistador d entrada para questes sobre a percepo poltica daquele
indivduo.
A dinmica de entrevistas seguiu carter aleatrio. Por isso no estamos tratando
de grupos com uma identidade de classe especificamente elaborada ou outras formas
associativas nos interessava, simplesmente, que fossem moradores e eleitores na
cidade no perodo investigado. dentro deste universo, pinadas algumas histrias de
vida, que pudemos empreender uma pequena anlise.
Donas de casa, senhores aposentados de diversos campos de atuaoprofissional, ex-militares, estes so nossos entrevistados. E dentro deste corpo
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heterogneo pouco foi percebido de memria militante, de um registro histrico voltado
para a rua. Mostraram um vis mais familiar, sobretudo as mulheres, ou mais voltado
aos ambientes profissionais, sobretudo os homens.
Estudo de caso: uma voz na multido.
Como vimos heterogneo o grupo de entrevistados, sendo irrestrita a seleo
de depoimentos. No entanto para delinear uma interpretao necessrio filtrar e
selecionar. Especificamente para identificar uma viso da populao iguauana a
respeito do perodo ditatorial analisamos 20 entrevistas, trajetrias de vida dissonantes,
mas que so exemplos de trajetrias comuns da cidade.
Vidas que no se cruzam, que no possuem vnculos em comum seno a regio
que habitam e posio social relativamente semelhante. Em comum, no poderemos
omitir, o fator da migrao. De origens diferentes so um exemplo de como a
populao iguauana multicomposta, reflexo de diversas regies nacionais, formandoum verdadeiro mosaico do Brasil em escala reduzida. Dos entrevistados at o momento
tem predominado a presena de migrantes do interior fluminense e do sul mineiro.
Observamos forte participao de negros descendentes de escravos do Vale do Paraba,
outra questo importante a ser abordada de maneira isolada e pormenorizada.
Atravs de um de nossos entrevistados teremos um discurso revelador de aes
civis e militares em Nova Iguau. Nosso interlocutor o senhor Salvador Marcelino 4,
setenta e nove anos, nascido no Norte Fluminense, Itaperuna. Ainda hoje ligado aentidades polticas e sociais na cidade ele nos traz um relato cheio de detalhes e
carregado de uma viso de mundo construda dentro dos movimentos sociais como os
promovidos pelas CEBs (Comunidades Eclesiais de Base).
Em Nova Iguau desde 1959, passou a trabalhar na cidade a partir de 1962. Foi
na Farmcia So Jorge, que se situava no centro da cidade, onde segundo seu relato teve
incio na vida sindical quando ingressou no Sindicato dos Comercirios de Nova Iguau
4 Entrevista realizada em 14/01/2009, 01h5016.
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e Regio. A Farmcia pertencia ao senhor Ismael Ramos que era militante do PCB e o
seu ingresso no sindicato de comercirios se deu em meio luta pela implantao da
Semana Inglesa para os trabalhadores da categoria, sobretudo para os funcionrios da
rede de comrcio de gneros alimentcios Imprio do Salgado, que possua onze
galpes nesta poca e explorava seus funcionrios todos os dias da semana.
J vemos a uma aproximao, primeiro com uma militncia poltica, o patro
ligado ao PCB; segundo uma de classe, no sindicato. Da uma ao poltica no foge aoseu relato e isto um marco em sua vida, um ponto de ruptura na memria de Seu
Salvador. Era o 1 de abril de 1964, e na farmcia onde trabalhava, quando ouviu no
rdio a deposio do presidente Joo Goulart: (...) fomos tomar um caf e... 10 horas
tocou um reprter extraordinrio... a queda do governo Goulart.. No mesmo dia, aps
o final do expediente, Salvador Marcelino em sua casa ouvia no rdio um programa que
foi interrompido no ar segundo seu relato: (...) quebrou a Mayrink Veiga... Desliga
essa porra! p, p, p... filho disso, filho daquilo... e a rdio saiu do ar. Eu nem fuimais no sindicato!. A Mayrink Veiga era uma rdio que tinha Leonel Brizola entre
seus scios-proprietrios, que sendo cunhado de Jango e um dos interlocutores mais
radicais da esquerda neste perodo, foi perseguido e, entre outras coisas, teve a rdio
fechada pelo regime. Nosso entrevistado segue explicando que dali por diante o
sindicato foi fechado e dentre outros fatos seu presidente desapareceu, vindo a
reaparecer anos depois, na dcada de 1970. Teria ido para Cuba segundo seu Salvador
Marcelino.
Vimos que no momento do golpe de abril uma ruptura se iniciou: Eu nem fui
mais no sindicato!, esta fala emblemtica para marcar como o temor por quaisquer
represlias era latente. Afinal, ele possua famlia. Em todo depoimento, seu Salvador
Marcelino afirma no ter se filiado a partido nenhum at algum tempo aps a fundao
do Partido dos Trabalhadores (PT), no precisando a data de filiao, mas que inferimos
pelo relato que tenha sido em meados dos anos 1980.
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O envolvimento com atividades, que em ltima anlise podem ser identificadas
como de risco, junto a organizaes sociais de cunho poltico, somente se dar em
meados dos anos 1970, quando seu Salvador tem contato com padres e outros sujeitos
ligados a Igreja Catlica e toma parte de grupos como a Pastoral Operria. Foi em abril
de 1974, a convite do Padre Aristides de Queiroz para participar de um curso bblico,
que seu Salvador vem se engajar na comunidade prxima a sua casa. Como
desdobramento deste engajamento passou a ter mais contato com o mesmo padre e a
freqentar reunies:
(...) ele me convidou um dia para uma reunio de trabalhadores
l na igreja de So Paulo Apstolo, l no Monte Lbano. (...) a
chegou l, eu nem me lembro qual foi o assunto. Eu sei que o
pessoal andou levantando l uns questionamento, falando, eu
num falei nada, eu s citei da importncia daquele encontro que
achei ele muito importante... mas eu falei: Olha, se a gentecontinuar aqui, a represso vai acabar com a gente! (grifos
meus)
enftica esta fala! Cerca de dez anos depois de ter sentido o medo do golpe por
participar de um sindicato que foi fechado no momento da instaurao do regime ele
ainda se resigna (resigna?) dos militares. Mesmo dentro de um organismo da igreja,
talvez por isto! Estas so outras questes que ainda teremos de aprofundar, em outra
oportunidade. Mas no podemos perder de vista o movimento que ele faz ao enquadrarsua memria.
Cruzando as falas: ecos do silncio.
Dentre as vinte entrevistas realizadas at o momento o senhor Salvador
Marcelino o nico que expressa esta relao de memria do perodo de ditadura de
forma vais vvida. No entanto com o aspecto do temor que sua memria nos traz o
incio do regime, sentimento experimentado ao tatear o reingresso em movimentossociais, j passados dez anos do incio do golpe civil-militar. O perodo eclipsado entre
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a instaurao do regime e a sua retomada de ao fica adstrito ao esquecimento, talvez
por vergonha de sua inatividade ou quem sabe por no pensar ter sido um perodo
vlido de ser posto entre as suas memrias num registro a ser arquivado.
De toda forma dentro deste hiato que verificamos as aes mais rgidas do
regime, como dos grupos que buscaram resistir a ele. Os reflexos so amplamente
discutidos em uma vasta bibliografia sobre o perodo, que seria infrutfera a aluso neste
breve espao. Basta para ns conhecer que entre os reflexos na cidade tivemos o AtoComplementar j citado ao incio deste debate.
Michael Pollak ao nos dar o conceito de enquadramento, chama ateno para
estes silncios (POLLAK, 1989, p.9). De maneira indireta ou de forma mais articulada
como o senhor Salvador percebemos um silncio. O que nos importa saber que uma
sociedade silenciada sob um regime de medo e incertezas teve diversos processos
interrompidos.
Onde caberiam reivindicaes por melhores condies de trabalho, saneamento,
justia social, inclusive atravs de emancipaes de distritos j mobilizados em prol de
sua desvinculao territorial, num ambiente de medo e incertezas? provvel que para
os militares o controle sobre um municpio de to grande proporo fosse facilitado com
um poder central, fato que pudemos verificar com o fechamento da Cmara e
investidura de poder em um interventor. Basta pensarmos que no perodo ditatorial no
verificaremos emancipaes, apesar de haverem relatos de movimentos pr
emancipatrios em Mesquita pelo menos desde 1957, para ficarmos apenas neste
exemplo. Lembramos ainda que alm de Nova Iguau, o Municpio de Duque de Caxias
tambm figurou entre os que se tornaram rea de Segurana Nacional. Ambos com
dimenses fsicas e demogrficas aproximadas, perfazendo uma populao somada de
quase dois milhes de habitantes.
Consideraes finais.
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H um conflito aberto em torno da memria da Cidade de Nova Iguau. Se por
um lado teremos diversos trabalhos registrando a ao de grupos sociais na fase mais
branda do regime, sobretudo com a ao de Dom Adriano Hyplito j na promoo do
que viria ser a Federao das Associaes de Moradores de Nova Iguau - MAB, de
outro identificamos um grande vazio para o perodo de 1964 at 1975.
Coincidentemente o perodo que compreende a fase mais dura do regime.
Falta avanar em diversos sentidos, mas pressupomos que a interpretaomonogrfica de cidades inseridas na Regio Metropolitana Fluminense, como no caso
de Nova Iguau, possa esclarecer dvidas sobre desenvolvimento urbanstico e
cidadania dentro de recortes to conturbados como o apresentado aqui.
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