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    WALTER BENJAMIN

    BENJAMIN, Walter.

    Pequena histria da fotografia.

    In: Walter Benjamin: magia e tcnica,

    arte e poltica; ensaios sobre

    literatura e histria da cultura;

    obras escolhidas I.

    Traduo de Srgio Paulo Rouanet

    So Paulo: Brasiliense, 1986,

    pp. 91-107

    Nota: os algarismos romanos indicam a diviso do texto

    de acordo com a sequncia de sua publicao, no

    semanrio alemo,Die literarische Welt, em 18 e 25 de

    setembro e 2 de outubro de 1931.

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    Pequena histria

    da fotografia

    A nvoa que recobre os primrdios da fotografia me-nos espessa que a que obscurece as origens da imprensa; j se

    pressentia, no caso da fotografia, que a hora da sua invenochegara, e vrios pesquisadores, trabalhando independente-

    mente, visavam o mesmo objetivo: fixar as imagens da cameraobscura, que eram conhecidas pelo menos desde Leonardo.Quando depois de cerca de cinco anos de esforos Niepce eDaguerre alcanaram simultaneamente esse resultado, o Es-tado interveio, em vista das dificuldades encontradas pelosinventores para patentear sua descoberta, e, depois de inde-nizlos, colocou a inveno no domnio pblico. Com isso,foram criadas as condies para um desenvolvimento contnuoe acelerado, que por muito tempo excluiu qualquer investiga-o retrospectiva. o que explica por que as questes hist-ricas, ou filosficas, se se quiser, suscitadas pela ascenso edeclnio da fotografia, deixaram durante muitas dcadas deser consideradas. O fato de que tais questes comeam hoje atornarse conscientes se deve a uma razo precisa. A literaturarecente deuse conta da circunstncia importante de que oapogeu da fotografia a poca de Hill e Cameron, de Hugo eNadar ocorreu no primeiro decnio da nova descoberta.

    Ora, este o decnio que precede a sua industrializao. Issono significa que desde aquela poca charlates e aproveita-dores no se tivessem apoderado da nova tcnica, com finslucrativos; ao contrrio, eles o fizeram maciamente. Porm

    (I)

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    tais atividades estavam mais prximas das artes de feira, comque a fotografia at hoje tem afinidades, que da indstria.Esta conquistou o campo, de fato, com os cartes de visita,

    cujo primeiro produtor, sintomaticamente, tornouse milion-rio. No seria surpreendente se as publicaes que hoje pelaprimeira vez dirigem nosso olhar para aquele perodo prin-dustrial de apogeu tivesse uma relao subterrnea com acrise que hoje abala a indstria capitalista. Mas isso no nosajuda a transformar o fascnio exercido pelos lbuns de velhasfotografias, recentemente publicados,1 em compreenso realda essncia da arte fotogrfica. As tentativas de teorizao sorudimentares. Os inmeros debates realizados no sculo pas-sado sobre esse tema no fundo no conseguiram libertarse doesquema grotesco utilizado por um jornal chauvinista, Leipzi-

    ger Anzeiger, para combater a inveno diablica de almReno. Querer fixar efmeras imagens de espelho no so-mente uma impossibilidade, como a cincia alem o provouirrefutavelmente, mas um projeto sacrlego. O homem foi feito semelhana de Deus, e a imagem de Deus no pode ser fi-xada por nenhum mecanismo humano. No mximo o prprio

    artista divino, movido por uma inspirao celeste, poderiaatreverse a reproduzir esses traos ao mesmo tempo divinos ehumanos, num momento de suprema solenidade, obedecendos diretrizes superiores do seu gnio, e sem qualquer artifciomecnico. Aqui aparece, com todo o peso da sua nulidade,o conceito filisteu de arte, alheio a qualquer consideraotcnica e que pressente seu prprio fim no advento provoca-tivo da nova tcnica. E, no entanto, foi com esse conceito fetichista de arte, fundamentalmente antitcnico, que se debate-

    ram os tericos da fotografia durante quase cem anos, natu-ralmente sem chegar a qualquer resultado. Porque tentaramjustificar a fotografia diante do mesmo tribunal que ela haviaderrubado. Muito diferente o tom com que o fsico Aragodefendeu a descoberta de Daguerre no dia 3 de julho de 1839,na Cmara dos Deputados. A beleza desse discurso vem dofato de que ele cobre todos os aspectos da atividade humana.

    (1) Bossert, Helmuth Th. e Guttmann, Heinrich. Aus der Frhzeit der Photo-graphie, 184070. Um livro de imagens baseado em 200 originais. Frankfurt, 1930.Schwarz, Heinrich. David Octavius Hill. Der Meister der Photographie. 180 repro-dues. Leipzig, 1931.

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    O panorama por ele esboado suficientemente amplo paratornar irrelevante a justificao da fotografia em face da pin-tura, que o prprio Arago no deixa de tentar, e para indicar,em seus grandes traos, o verdadeiro alcance da inveno.Quando os inventores de um novo instrumento, diz Arago,o aplicam observao da natureza, o que eles esperavam dadescoberta sempre uma pequena frao das descobertas su-cessivas, em cuja origem est o intrumento. Em grandes li-nhas, o discurso abrange o domnio das novas tcnicas, daastrofsica filologia: ao lado da idia de fotografar as estrelas, aparece a idia de fotografar um corpus de hierglifos

    egpcios.Os clichs de Daguerre eram placas de prata, iodadas eexpostas na camera obscura; elas precisavam ser manipuladasem vrios sentidos, at que se pudesse reconhecer, sob uma luzfavorvel, uma imagem cinzaplida. Eram peas nicas; emmdia, o preo de uma placa, em 1839, era de 25 francosouro. No raro, eram guardadas em estojos, como jias. Masvrios pintores as transformaram em recursos tcnicos. Assimcomo Utrillo, setenta anos depois, produziu suas vistas fasci-

    nantes de casas nos arredores de Paris no a partir da natu-reza, mas por meio de cartespostais, David Octavius Hill,retratista famoso, comps seu afresco sobre o primeiro snodogeral da igreja escocesa, em 1843, a partir de uma srie defotografias. Ele prprio tirava as fotos. E foram esses modes-tos meios auxilares, destinados ao uso do prprio artista, quetransmitiram seu nome histria, ao passo que ele desapare-ceu como pintor. Mas alguns estudos so mais teis para in-troduzir a nova tcnica que esses retratos: imagens humanas

    annimas, e no retratos. A pintura j conhecia h muito ros-tos desse tipo. Se os quadros permaneciam no patrimnio dafamlia, havia ainda uma certa curiosidade pelo retratado.Porm depois de duas ou trs geraes esse interesse desapa-recia: os quadros valiam apenas como testemunho do talentoartstico do seu autor. Mas na fotografia surge algo de es-tranho e de novo: na vendedora de peixes de New Haven,olhando o cho com um recato to displicente e to sedutor,

    preservase algo que no se reduz ao gnio artstico do fot-grafo Hill, algo que no pode ser silenciado, que reclama cominsistncia o nome daquela que viveu ali, que tambm na foto real, e que no quer extinguirse na arte.

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    E eu pergunto como o adorno desses cabelosE desseolhar rodeia os seres de antigamenteComo essa boca aqui beijada em torno da qual o desejoSe enrola, loucamente, como fumaa sem fogo...

    Ou ento descobrimos a imagem de Dauthendey, o fotgrafo,pai do poeta, no tempo de seu noivado com aquela mulher queele um dia encontrou com os pulsos cortados, em seu quartode Moscou, pouco depois do nascimento do seu sexto filho.

    Nessa foto, ele pode ser visto a seu lado e parece segurla;mas o olhar dela no o v, est fixado em algo de distante e

    catastrfico. Depois de mergulharmos suficientemente fundoem imagens assim, percebemos que tambm aqui os extremosse tocam: a tcnica mais exata pode dar s suas criaes umvalor mgico que um quadro nunca mais ter para ns. Ape-sar de toda a percia do fotgrafo e de tudo o que existe deplanejado em seu comportamento, o observador sente a neces-sidade irresistvel de procurar nessa imagem a pequena cen-telha do acaso, do aqui e agora, com a qual a realidade cha-muscou a imagem, de procurar o lugar imperceptvel em que

    o futuro se aninha ainda hoje em minutos nicos, h muitoextintos, e com tanta eloqncia que podemos descobrilo,olhando para trs. A natureza que fala cmara no amesma que fala ao olhar; outra, especialmente porque subs-titui a um espao trabalhado conscientemente pelo homem,um espao que ele percorre inconscientemente. Percebemos,em geral, o movimento de um homem que caminha, aindaque em grandes traos, mas nada percebemos de sua atitudena exata frao de segundo em que ele d um passo. A foto-

    grafia nos mostra essa atitude, atravs dos seus recursos auxi-liares: cmara lenta, ampliao. S a fotografia revela esseinconsciente tico, como s a psicanlise revela o inconsciente

    pulsional. Caractersticas estruturais, tecidos celulares, comos quais operam a tcnica e a medicina, tudo isso tem maisafinidades originais com a cmara que a paisagem impreg-nada de estados afetivos, ou o retrato que exprime a alma doseu modelo. Mas ao mesmo tempo a fotografia revela nessematerial os aspectos fisionmicos, mundos de imagens habi-tando as coisas mais minsculas, suficientemente ocultas esignificativas para encontrarem um refgio nos sonhos diur-nos, e que agora, tornandose grandes e formulveis, mostram

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    que a diferena entre a tcnica e a magia uma varivel total-mente histrica. assim que, em suas surpreendentes foto-grafias de plantas, Blossfeldt2 mostrou no eqisseto as formas

    mais antigas das colunas, no feto arborescente a mitra episco-pal, nos brotos de castanheiras e acerceas, aumentadas dezvezes, mastros totmicos, no cardo um edifcio gtico. Porisso, os modelos de Hill no estavam longe da verdade quandodiziam que o fenmeno da fotografia lhes parecia' umagrande e misteriosa experincia, mesmo que se tratasse ape-nas da impresso de estarem diante de um aparelho que po-dia rapidamente gerar uma imagem do mundo visvel, comum aspecto to vivo e to verdico como a prpria natureza.

    Diziase da cmara de Hill que ela mantinha uma discreta re-serva. Mas seus modelos no so menos reservados; eles tmuma certa timidez diante do aparelho, e a regra de um fot-grafo posterior ao perodo de apogeu, no olhem jamais acmara, poderia ter sido deduzida desses modelos. Com issono se quer aludir quele olhar pretensamente dirigido para o

    prprio observador, que caracteriza, de modo to importunopara o cliente, certas fotos de animais, bebs e homens, squais podemos opor a frase com que o velho Dauthendey se

    refere ao daguerretipo: as pessoas no ousavam a princpioolhar por muito tempo as primeiras imagens por ele produzi-das. A nitidez dessas fisionomias assustava, e tinhase a im-

    presso de que os pequenos rostos humanos que apareciam naimagem eram capazes de vernos, to surpreendente era paratodos a nitidez inslita dos primeiros daguerretipos.

    As primeiras pessoas reproduzidas entravam nas fotossem que nada se soubesse sobre sua vida passada, sem ne-nhum texto escrito que as identificasse. Os jornais ainda eramartigos de luxo, raramente comprados, e lidos no caf, a foto-grafia ainda no se tinha tornado seu instrumento, e pouqus-simos homens viam seu nome impresso. O rosto humano erarodeado por um silncio em que o olhar repousava. Em suma,todas as possibilidades da arte do retrato se fundam no fato deque no se estabelecera ainda um contato entre a atualidade ea fotografia. Muitas imagens de Hill foram produzidas no ce

    (2) Blossfeldt, Karl. Urformen der Kunst. Photographische Pflanzenbilder.Organizado e prefaciado por Karl Nierendorf. 120 reprodues. Berlim, 8/ (1928).

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    Devese notar, de resto, para compreendermos a forte in-fluncia exercida pelo daguerretipo na poca de sua desco-

    berta, que nessa mesma ocasio a pintura ao ar livre estavacomeando a abrir perspectivas inteiramente novas aos pin-tores mais progressistas. Consciente de que desse ponto devista a pintura tinha abdicado em favor da fotografia, Aragodiz explicitamente em sua retrospectiva histrica sobre as pri-meiras experincias de Giovanni Battista Porta: no que serefere aos efeitos provocados pela transferncia imperfeita denossa atmosfera, impropriamente caracterizados como pers-

    pectiva area nem sequer os pintores mais experientes tm

    qualquer esperana de que a camera obscura (Arago quer re-ferirse cpia das imagens que nela aparecem) possa ajudlos a reproduzir exatamente esses efeitos. No momento emque Daguerre conseguiu fixar as imagens da camera obscura,os tcnicos substituram, nesse ponto, os pintores. Mas a ver-dadeira vtima da fotografia no foi a pintura de paisagem, esim o retrato em miniatura. A evoluo foi to rpida que porvolta de 1840 a maioria dos pintores de miniaturas se trans-formaram em fotgrafos, a princpio de forma espordica e

    pouco depois exclusivamente. A experincia adquirida em seuofcio original foilhes muito til, embora o alto nvel do seutrabalho fotogrfico se deva mais sua formao artesanalque sua formao artstica. Essa gerao de transio sdesapareceu gradualmente. Uma bno bblica parece terfavorecido esses primeiros fotgrafos: os Nadar, os Stelzner,os Pierson, os Bayard, chegaram todos aos noventa ou cemanos. Mas finalmente os homens de negcios se instalaram

    profissionalmente como fotgrafos, e quando, mais tarde, o

    hbito do retoque, graas ao qual o mau pintor se vingou dafotografia, acabou por generalizarse, o gosto experimentouuma brusca decadncia. Foi nessa poca que comearam asurgir os lbuns fotogrficos. Eles podiam ser encontrados noslugares mais glaciais da casa, em consoles ou guridons, nasala de visitas grandes volumes encadernados em couro,com horrveis fechos de metal, e as pginas com margens dou-radas, com a espessura de um dedo, nas quais apareciam fi-guras grotescamente vestidas ou cobertas de rendas: o tio Ale-

    xandre e a tia Rika, Gertrudes quando pequena, papai noprimeiro semestre da Faculdade e, para cmulo da vergonha,ns mesmos, com uma fantasia alpina, cantando tirolesa,

    (ll)

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    agitando o chapu contra neves pintadas, ou como um ele-gante marinheiro, de p, pernas entrecruzadas em posio dedescanso, como convinha, recostado num pilar polido. Osacessrios desses retratos, com seus pedestais, balaustradas emesas ovais evocam o tempo em que, devido longa duraoda pose, os modelos precisavam ter pontos de apoio para fi-carem imveis. No incio, os fotgrafos se contentavam comdispositivos para fixar a cabea ou o joelho. Depois vieramoutros acessrios, como nos quadros clebres, e, portanto, ti-nham que ser artsticos. Antes de mais nada, a coluna e acortina. J a partir dos anos 60 pessoas mais competentes serevoltavam contra essas tolices. Assim escrevia uma publica-o inglesa do ramo: Nos quadros pintados a coluna temainda um simulacro de probabilidade, mas o modo como ela aplicada na fotografia absurdo, porque ela se ergue em geralsobre um tapete. Ora, todos esto de acordo em que no sobre um tapete que se constroem colunas de mrmore ou de

    pedra. Foi nessa poca que apareceram aqueles atelis comseus cortinados e palmeiras, tapearias e cavaletes, mesclaambgua de execuo e representao, cmara de torturas esala do trono, que nos evocada, de modo to comovente, porum retrato infantil de Kafka. O menino de cerca de seis anos representado numa espcie de paisagem de jardim de inverno,vestido com uma roupa de criana, muito apertada, quasehumilhante, sobrecarregada com rendas. No fundo, erguemse palmeiras imveis. E, como para tornar esse acolchoadoambiente tropical ainda mais abafado e sufocante, o modelosegura na mo esquerda um chapu extraordinariamentegrande, com largas abas, do tipo usado pelos espanhis. O

    menino teria desaparecido nesse quadro se seus olhos incomensuravelmente tristes no dominassem essa paisagem feitasob medida para eles. Em sua tristeza, esse retrato contrasta com as primeirasfotografias, em que os homens ainda no lanavam no mundo,como o jovem Kafka, um olhar desolado e perdido. Haviauma aura em torno deles, um meio que atravessado por seuolhar lhes dava uma sensao de plenitude e segurana. Maisuma vez existe para isso um equivalente tcnico: o continuum

    absoluto da luz mais clara sombra mais escura. Tambmaqui se confirma a lei da antecipao, na velha tcnica, denovas conquistas: os antigos retratistas, antes do seu declnio,

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    haviam produzido uma florescncia nica do mezzotinto.Esse procedimento uma tcnica de reproduo que somentemais tarde se associou da fotografia. Como no mezzotinto,nas fotos de um Hill a luz se esfora, laboriosamente, parasair da sombra. Orlik fala da conduo luminosa sinttica,

    provocada pelo longo perodo de exposio, que d a essesprimeiros clichs toda a sua grandeza. Entre os contempor-neos da inveno, j Delaroche se referia impresso geralnunca antes alcanada, preciosa, no perturbando em nadaa serenidade das massas. O mesmo pode se dizer do condi-cionamento tcnico do fenmeno aurtico. Em particular, emmuitas imagens de grupo os personagens conservam aindauma forma alada de estarem juntos, tal como ela aparecetransitoriamente na chapa, antes de desaparecer no clichoriginal. esse crculo de vapor que s vezes circunscreve, demodo belo e significativo, o oval hoje antiquado da foto. Porisso, salientar nesses incunbulos da fotografia sua perfeiotcnica ou seu bom gosto um erro de interpretao.Essas imagens nasceram num espao em que cada cliente viano fotgrafo, antes de tudo, um tcnico da nova escola, e em

    que cada fotgrafo via no cliente o membro de uma classeascendente, dotado de uma aura que se refugiava at nas do-bras da sobrecasaca ou da gravata lavallire. Pois aquela aurano o simples produto de uma cmara primitiva. Nos pri-meiros tempos da fotografia, a convergncia entre o objeto e atcnica era to completa quanto foi sua dissociao, no pe-rodo de declnio. Pouco depois, com efeito, a tica, maisavanada, passou a dispor de instrumentos que eliminavaminteiramente as partes escuras, registrando os objetos como

    espelhos. Os fotgrafos posteriores a 1880 viam como sua ta-refa criar a iluso da aura atravs de todos os artifcios do re-toque, especialmente pelo chamado offset; essa mesma auraque fora expulsa da imagem graas eliminao da sombra

    por meio de objetivas de maior intensidade luminosa, damesma forma que ela fora expulsa da realidade, gras de-generescncia da burguesia imperialista. Desse modo, entrouna moda um tom crepuscular, interrompido por reflexos arti-ficiais, principalmente na poca do Jugendstil; apesar dessa

    penumbra, distinguiase com clareza crescente uma pose cujarigidez traa a impotncia daquela gerao em face do pro-gresso tcnico.

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    No entanto o decisivo na fotografia continua sendo a re-lao entre o fotgrafo e sua tcnica. Camille Recht caracte-riza essa relao com uma bela imagem. O violinista precisa

    primeiro produzir o som, procurlo, achlo com a rapidezdo relmpago, ao passo que o pianista bate nas teclas, e o somexplode. O instrumento est disposio do pintor, como dofotgrafo. O desenho e o colorido do pintor correspondem sonoridade do violinista; como o pianista, o fotgrafo precisalidar com um mecanismo sujeito a leis limitativas, que no

    pesam to rigorosamente sobre o violinista. Nenhum Pade-rewski alcanar jamais a glria de um Paganini, nem exer-cer, como ele, o mesmo fascnio mgico. Mas existe umBusoni da fotografia, para conservar a mesma metfora: At-get. Ambos eram virtuoses e ao mesmo tempo precursores.Tm um modo incomparvel de abrirse s coisas, com o m-ximo de preciso. Mesmo em seus traos existe uma seme-lhana. Atget foi um ator que retirou a mscara, descontentecom sua profisso, e tentou, igualmente, desmascarar a reali-dade. Viveu em Paris, pobre e desconhecido, desfaziase desuas fotografias doandoas a amadores to excntricos comoele, e morreu h pouco tempo, deixando uma obra de mais dequatro mil imagens. Berenice Abbot, de Nova Iorque, reco-lheu essas fotos, das quais Camille Recht publicou uma sele-o, num volume de extraordinria beleza.3 Os publicistascontemporneos nada sabiam sobre aquele homem que pas-sava a maior parte do tempo percorrendo os atelis, com suasfotos, vendendoas por alguns cntimos, muitas vezes ao mes-mo preo que aqueles cartespostais que em torno de 1900representavam belas paisagens urbanas envoltas numa noiteazulada, com uma lua retocada. Ele atingiu o plo da su-

    prema maestria, mas na amarga modstia de um grande ar-tista, que sempre viveu na sombra, deixou de plantar ali o seu

    pavilho. Por isso, muitos julgam ter descoberto aquele plo,que Atget j alcanara antes deles. Com efeito: as fotos pari-sienses de Atget so as precursoras da fotografia surrealista, avanguarda do nico destacamento verdadeiramente expres-sivo que o surrealismo conseguiu pr em marcha. Foi o pri-meiro a desinfetar a atmosfera sufocante difundida pela foto-

    (3) Atget, Eugne.Lichtbilder.Prefcio de Camille Recht. Paris e Leipzig,1930.

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    grafia convencional, especializada em retratos, durante apoca da decadncia. Ele saneia essa atmosfera, purificaa:comea a libertar o objeto da sua aura, nisso consistindo o

    mrito mais incontestvel da moderna escola fotogrfica.Quando as publicaes de vanguarda, Bifur ou Varit, mos-tram unicamente detalhes, sob ttulos como Westminster,

    Lille, Anturpia ou Breslau, representando, ora um fragmentode balaustrada, ora a copa desfolhada de uma rvore cujosgalhos se entrecruzam de mltiplas maneiras sobre um postede gs, ora um muro ou um candelabro com uma bia desalvao na qual figura o nome da cidade, elas se limitam alevar ao extremo motivos descobertos por Atget. Ele buscavaas coisas perdidas e transviadas, e, por isso, tais imagens sevoltam contra a ressonncia extica, majestosa, romntica,dos nomes de cidades; elas sugam a aura da realidade comouma bomba suga a gua de um navio que afunda. Em suma, oque a aura? uma figura singular, composta de elementosespaciais e temporais: a apario nica de uma coisa distante,por mais prxima que ela esteja. Observar, em repouso, numatarde de vero, uma cadeia de montanhas no horizonte, ouum galho, que projeta sua sombra sobre ns, at que o ins-tante ou a hora participem de sua manifestao, significa res-pirar a aura dessa montanha, desse galho. Mas fazer as coisasse aproximarem de ns, ou antes, das massas, uma tendn-cia to apaixonada do homem contemporneo quanto a supe-rao do carter nico das coisas, em cada situao, atravsda sua reproduo. Cada dia fica mais irresistvel a necessi-dade de possuir o objeto de to perto quanto possvel, na ima-gem, ou melhor, na sua reproduo. E cada dia fica mais n-

    tida a diferena entre a reproduo, como ela nos oferecidapelos jornais ilustrados e pelas atualidades cinematogrficas,e a imagem. Nesta, a unicidade e a durabilidade se associamto intimamente como, na reproduo, a transitoriedade e areprodutibilidade. Retirar o objeto do seu invlucro, destruirsua aura, a caracterstica de uma forma de percepo cujacapacidade de captar o semelhante no mundo to agudaque, graas reproduo, ela consegue captlo at no fen-meno nico. Quase sempre Atget passou ao largo das gran-

    des vistas e dos lugares caractersticos, mas no negligenciouuma grande fila de frmas de sapateiro, nem os ptios deParis, onde da manh noite se enfileiram carrinhos de mo,

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    nem as mesas com os pratos sujos ainda no retirados, comoexistem aos milhares, na mesma hora, nem. no bordel darua... n? 5, algarismo que aparece, em grande formato, emquatro diferentes locais da fachada. Mas curiosamente quasetodas essas imagens so vazias. Vazia a Porte dArcueil nasfortificaes, vazias as escadas faustosas, vazios os ptios, va-zios os terraos dos cafs, vazia, como convm, a Place duTertre. Esses lugares no so solitrios, e sim privados de todaatmosfera; nessas imagens, a cidade foi esvaziada, como umacasa que ainda no encontrou moradores. Nessas obras, a fo-tografia surrealista prepara uma saudvel alienao do ho-mem com relao a seu mundo ambiente. Ela liberta para oolhar politicamente educado o espao em que toda intimidadecede lugar iluminao dos pormenores.

    bvio que esse novo olhar est ausente precisamentenaquele gnero que via de regra era mais cultivado pelos fot-grafos: o retrato representativo e bem remunerado. Por outrolado, renunciar ao homem para o fotgrafo a mais irrealiz-vel de todas as exigncias. Quem no sabia disso, aprendeucom os melhores filmes russos que mesmo o ambiente e a pai-

    sagem s se revelam ao fotgrafo que sabe captlos em suamanifestao annima, num rosto humano. Mas essa possibi-lidade em grande medida condicionada pela atitude da pes-soa representada. A gerao que no pretendia chegar pos-teridade pelas fotografias e que em vez disso se refugiava emseu mundo cotidiano, como Schopenhauer se refugia na pro-fundidade da poltrona, na fotografia de 1850, em Frankfurt(e que por isso mesmo transportou consigo, na foto, essemundo cotidiano) essa gerao no legou suas virtudes a

    seus sucessores. Pela primeira vez em dcadas o cinema russoofereceu uma oportunidade de aparecer diante da cmara apessoas que no tinham nenhum interesse em fazerse foto-grafar. Subitamente, o rosto humano apareceu na chapa comuma significao nova e incomensurvel. Mas no se tratavamais de retratos. Do que se tratava ento? O mrito eminentede um fotgrafo alemo haver respondido a essa pergunta.August Sander4reuniu uma srie de rostos que em nada ficam

    (4) Sander, August.Antlitz der Zeit.Sessenta fotografias de alemes do s-culo XX. Prefcio de Alfred Dblin. Munique, 1929.

    (III)

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    a dever poderosa galeria fisionmica de um Eisenstein ou deum Pudovkin, e realizou esse trabalho numa perspectiva cien-tfica. Sua obra organizada em sete grupos, que correspon-dem atual ordem social, e dever ser publicada em 45 pran-chas, com doze fotos cada uma. At agora foi publicada umaseleo de 60 reprodues, que oferecem uma inesgotvel ma-tria para a observao. Sander parte do campons, do ho-mem ligado terra, conduz o observador por todas as cama-das e profisses, desde os representantes da mais alta civili-zao at os idiotas. Nessa tarefa imensa, o autor no secomportou como cientista, no se deixou assessorar por teri-

    cos racistas ou por socilogos, mas partiu, simplesmente, daobservao imediata, como diz o editor. Essa observaofoi por certo isenta de preconceitos, e mesmo audaciosa, masao mesmo tempo terna, no sentido de Goethe: Existe umaterna empiria que se identifica intimamente com o objeto ecom isso transformase em teoria. , pois, inteiramente na-tural que um observador como Dblin tenha destacado sobre-tudo os elementos cientficos dessa obra, comentando: Assimcomo existe uma anatomia comparada, que permite pela pri-

    meira vez obter uma concepo geral da natureza e da histriado rgo, esse artista praticou a fotografia comparada, alcan-ando assim um ponto de vista cientfico situado alm da fo-tografia de pormenores. Seria uma pena se as condies eco-nmicas impedissem a publicao completa desse corpus ex-traordinrio. Mas podemos oferecer editora, alm desse en-corajamento de princpio, outro, mais concreto. Trabalhoscomo o de Sander podem alcanar da noite para o dia umaatualidade insuspeitada. Sob o efeito dos deslocamentos de

    poder, como os que esto hoje iminentes, aperfeioar e tornarmais exato o processo de captar traos fisionmicos pode con-verterse numa necessidade vital. Quer sejamos de direita oude esquerda, temos que nos habituar a ser vistos, venhamos deonde viermos. Por outro lado, teremos tambm que olhar osoutros. A obra de Sander mais que um livro de imagens, um atlas, no qual podemos exercitarnos.

    Nenhuma obra de arte contemplada to atentamenteem nosso tempo como a imagem fotogrfica de ns mesmos,

    de nossos parentes prximos, de nossos seres amados, escre-veu Lichtwark, em 1907, removendo assim a investigao daesfera das distines estticas e transpondoa para a das fun-

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    es sociais. S assim essa investigao poder progredir. caracterstico que o debate tenha se concentrado na esttica

    da fotografia como arte, ao passo que poucos se interessa-ram, por exemplo, pelo fato bem mais evidente da arte comofotografia. No entanto a importncia da reproduo fotogr-fica de obras de arte para a funo artstica muito maior quea construo mais ou menos artstica de uma fotografia, quetransforma a vivncia em objeto a ser apropriado pela c-mera. No fundo, o amador que volta para casa com inmerasfotografias no mais srio que o caador, regressando docampo com massas de animais abatidos que s tm valor para

    o comerciante. Na verdade, no est longe o dia em que ha-ver mais folhas ilustradas que lojas vendendo caas ou aves.Mas as nfases mudam completamente se abandonamos a fo-tografia como arte e nos concentramos na arte como fotogra-fia. Cada um de ns pode observar que uma imagem, umaescultura e principalmente um edifcio so mais facilmentevisveis na fotografia que na realidade. A tentao grande deatribuir a responsabilidade por esse fenmeno decadnciado gosto artstico ou ao fracasso dos nossos contemporneos.

    Porm somos forados a reconhecer que a concepo das gran-des obras se modificou simultaneamente com o aperfeioa-mento das tcnicas de reproduo. No podemos agora vlascomo criaes individuais; elas se transformaram em criaescoletivas to possantes que precisamos diminulas para quenos apoderemos delas. Em ltima instncia, os mtodos dereproduo mecnica constituem uma tcnica de miniaturizao e ajudam o homem a assegurar sobre as obras um graude domnio sem o qual elas no mais poderiam ser utilizadas.

    Se alguma coisa caracteriza a relao moderna entre aarte e a fotografia, a tenso ainda no resolvida que surgiuentre ambas quando as obras de arte comearam a ser foto-grafadas. Muitos fotgrafos que determinam os contornosatuais dessa tcnica partiram da pintura. Eles a abandonaramna tentativa de colocar seus meios de expresso numa relaoviva e inequvoca com a vida contempornea. Quanto maiorsua sensibilidade aos sinais dos tempos, mais problemtico setornou para eles seu ponto de partida. Pois mais uma vez,

    como h oitenta anos, a fotografia est substituindo a pintura.As possibilidades criadoras, a servio do novo, diz Moholy

    Nagy, so na maior parte dos casos descobertas, lentamente,

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    atravs de velhas formas, velhos instrumentos e velhas esferasde atividade, que no fundo j foram liquidados com o apare-cimento do novo, mas sob a presso do novo emergente expe-rimentam uma florao eufrica. Assim a pintura futurista(esttica) forneceu sua problemtica, solidamente definida, simultaneidade dos movimentos, estruturao do elementotemporal, problemtica que mais tarde destruiria essa mesma

    pintura; e isso numa poca em que o cinema j era conhecido,embora ainda no compreendido em seu alcance... Do mesmomodo, podemos considerar, com alguma prudncia, algunsdos pintores que hoje trabalham com meios descritivos e rea-listas (neoclassicistas e veristas) como precursores de umanova forma de representao visual, que em breve utilizarapenas meios tcnicos de natureza mecnica. E, segundoTristan Tzara, em 1922: Quando tudo o que se chamava artese paralisou, o fotgrafo acendeu sua lmpada de mil velas egradualmente o papel sensvel luz absorveu o negrume dealguns objetos de consumo. Ele tinha descoberto o poder deum relampejar terno e imaculado, mais importante que todasas constelaes oferecidas para o prazer dos nossos olhos. Osfotgrafos que passaram das artes plsticas fotografia, nopor razes oportunsticas, no acidentalmente, no por como-dismo, constituem hoje a vanguarda dos especialistas contem-

    porneos, porque de algum modo esto imunizados por esseitinerrio contra o maior perigo da fotografia contempornea,a comercializao. A fotografia como arte, diz Sasha Stone, um terreno muito perigoso.

    Se a fotografia se libera de certos contextos, obrigatriospara um Sander, uma Germaine Krull, um Blossfeldt, se ela

    se emancipa de todo interesse fisionmico, poltico e cient-fico, ela considerada criadora. A tarefa da objetiva ser aviso simultnea; o panfletrio fotogrfico aparece. O es-

    prito, dominando a mecnica, reinterpreta seus resultadosmais exatos como smbolos da vida. Quanto mais se propagaa crise da atual ordem social, quanto mais os momentos indi-viduais dessa ordem se contrapem entre si, rigidamente,numa oposio morta, tanto mais a criatividade no fun-do, por sua prpria essncia, mera variante, cujo pai o esp-

    rito de contradio e cuja me a imitao se afirma comofetiche, cujos traos s devem a vida alternncia das modas.Na fotografia, ser criador uma forma de ceder moda. Sua

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    divisa : "o mundo belo. Nela se desmascara a atitude deuma fotografia capaz de realizar infinitas montagens comuma luta de conservas, mas incapaz de compreender um nicodos contextos humanos em que ela aparece. Essa fotografiaest mais a servio do valor de venda de suas criaes, pormais onricas que sejam, que a servio do conhecimento. Mas,se a verdadeira face dessa criatividade fotogrfica o re-clame ou a associao, sua contrapartida legtima o desmas-caramento ou a construo. Com efeito, diz Brecht, a situaose complica pelo fato de que menos que nunca a simples re-

    produo da realidade consegue dizer algo sobre a realidade.Uma fotografia das fbricas Krupp ou da AEG no diz quasenada sobre essas instituies. A verdadeira realidade transfor-mouse na realidade funcional. As relaes humanas, reificadas numa fbrica, por exemplo , no mais se mani-festam. preciso, pois, construir alguma coisa, algo de artifi-cial, de fabricado. O mrito dos surrealistas o de ter prepa-rado o caminho para essa construo fotogrfica. O cinemarusso representa uma nova etapa nesse confronto entre a foto-grafia criadora e a construtiva. No demais dizer que asgrandes realizaes dos seus diretores somente seriam poss-veis num pas em que a fotografia no visa a excitao e asugesto, mas a experimentao e o aprendizado. Nesse sen-tido, e apenas nele, podese dar ainda hoje uma significaos palavras imponentes com as quais o tosco pintor de idias,Antoine Wiertz, saudou, em 1855, o advento da fotografia:H alguns anos nasceu, para a glria do nosso sculo, umamquina que diariamente assombra nossos pensamentos e as-susta nossos olhos. Em cem anos, essa mquina ser o pincel,a palheta, as cores, a destreza, a experincia, a pacincia,a agilidade, a preciso, o colorido, o verniz, o modelo, a per-feio, o extrato da pintura.... No se creia que o daguerretipo ser a morte da arte... Quando o daguerretipo, essa crian-a gigantesca, tiver alcanado sua maturidade, quando todasua arte e toda sua fora se tiverem desenvolvido, o gnio osegurar pela nuca, subitamente, clamando: Aqui! Tu me

    pertences agora! Trabalharemos juntos Em contraste, compalavras sbrias e pessimistas que Baudelaire anuncia a nova

    tcnica aos seus leitores, quatro anos depois, no Salo de1859. Como as anteriores, essas palavras s podem ser lidashoje com um leve deslocamento de nfase. Mas, embora re-

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    presentem a anttese das primeiras, conservaram seu signifi-cado como uma veemente rejeio de todas as usurpaes dafotografia artstica. Nesses dias deplorveis, uma nova in-dstria surgiu, que muito contribuiu para confirmar a toliceem sua f... de que a arte e no pode deixar de ser a repro-duo exata da natureza... Um deus vingador realizou os de-sejos dessa multido. Daguerre foi seu Messias... Se for per-mitido fotografia substituir a arte em algumas de suas fun-es, em breve ela a suplantar e corromper completamente,graas aliana natural que encontrar na tolice da multido. preciso, pois, que ela cumpra o seu verdadeiro dever, que o de servir as cincias e as artes.

    Mas o que nem Wiertz nem Baudelaire compreenderam,no seu tempo, so as injunes implcitas na autenticidade dafotografia. Nem sempre ser possvel contornlas com umareportagem, cujos clichs somente produzem o efeito de pro-vocar no espectador associaes lingsticas. A cmara se tor-na cada vez menor, cada vez mais apta a fixar imagens ef-meras e secretas, cujo efeito de choque paralisa o mecanismoassociativo do espectador. Aqui deve intervir a legenda, intro-duzida pela fotografia para favorecer a literalizao de todasas relaes da vida e sem a qual qualquer construo fotogr-fica corre o risco de permanecer vaga e aproximativa. No

    por acaso que as fotos de Atget foram comparadas ao local deum crime. Mas existe em nossas cidades um s recanto queno seja o local de um crime? No cada passante um crimi-noso? No deve o fotgrafo, sucessor dos ugures e arspices,descobrir a culpa em suas imagens e denunciar o culpado? Jse disse que o analfabeto do futuro no ser quem no sabe

    escrever, e sim quem no sabe fotografar". Mas um fotgrafoque no sabe ler suas prprias imagens no pior que umanalfabeto? No se tornar a legenda a parte mais essencialda fotografia? Tais so as questes pelas quais a distncia denoventa anos, que separa os homens de hoje do daguerretipo, se descarrega de suas tenses histricas. luz dessascentelhas que as primeiras fotografias, to belas e inabord-veis, se destacam da escurido que envolve os dias em queviveram nossos avs.

    1931

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    Mulher de pescador de New Haven,Foto de David Octavius Hill.

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    Ilustraes

    indicadasno texto

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    Fotgrafo Karl Dauthendey, o pai do poeta, e sua noiva.Foto de Karl Dauthendey.

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    Sementes ampliadas quatro vezes.Foto de Karl Blossfeldt.

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    Cemitrio Greyfriar, em Edinburgh.Foto de David Octavius Hill,

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    Cemitrio Greyfriar, em Edinburgh.Foto de David Octavius Hill.

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    Baudelaire, 1860. Foto de Nadar.

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    Montmartre,data desconhecida. Foto de Eugne Atget.