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  • ARTIGO DE REVISO / REVIEW ARTICLE / DISCUSIN CRTICA

    246 O MUNDO DA SADE So Paulo: 2007: abr/jun 31(2):246-255

    Espiritualidade e psicologia cuidados compartilhadosSpirituality and psychology shared care Espiritualidad y psicologa cuidados compartidos

    Maria Jlia Kovcs*

    RESUMO: Este texto aborda a profunda relao existente entre aspectos psquicos e a busca da espiritualidade. Estabelece-se aqui uma relao de parceria, de busca conjunta, procurando ressaltar tambm o que especco de cada rea.

    PALAVRAS-CHAVES: Espiritualidade. Psicologia. Cuidado.

    ABSTRACT: The present text examines the profound relations between human beings psychical aspects and the search for spirituality. A partnership is established here, of joint search, and we also try to emphasize the specicities of each area.

    KEYWORDS: Spirituality. Psychology. Care.

    RESUMEN: Este texto examina las relaciones profundas entre los aspectos psquicos de los seres humanos y la bsqueda de la espiritu-alidad. Una aparcera se establece aqu, una bsqueda comn, y tambin intentamos acentuar las especicidades de cada rea.

    PALABRAS LLAVE: Espiritualidad. Psicologa. Cuidado.

    Espiritualidade

    Espiritualidade ser vista neste artigo no como uma religio deter-minada ou dogma, mas sim como a busca pela compreenso do sentido da vida, da transcendncia. Procu-raremos, tambm, desenvolver como pode ser estabelecida a par-ceria entre os cuidados psicolgicos e os cuidados espirituais, entenden-do-os no s em suas especicida-des, mas tambm e principalmente como complementaridade.

    Pessini , Bertanchini (2006) se referem etimologia da palavra espiritualidade, que signica sopro de vida, encontrar o seu sentido. A espiritualidade, na sua busca pela transcendncia, vai para alm do que est nos dogmas das religies tradicionais.

    A espiritualidade , tambm, uma busca humana em direo a um sentido, com uma dimenso transcendente. Envolve a tentativa de compreenso de uma fora su-

    perior que pode estar ligada a uma gura divina ou fora superior. Traz um sentido de pertena maior do que o mbito individual. Os auto-res apontam que esta caminhada espiritual na busca pelo sentido da existncia pode partir de um dog-ma religioso ou de uma construo interior. esta dimenso interior de construo que enfatizaremos neste texto.

    Espiritualidade, como possibili-dade do ser humano viver um sen-tido de transcendncia, est ligada a uma compreenso do sentido da vida. Est relacionada com a reli-giosidade intrnseca, envolvendo a contemplao e reexo sobre as experincias da vida.

    Religies so sistemas de cren-as, com tradies acumuladas en-volvendo smbolos, rituais, cerim-nias e trazem explicaes sobre a vida e a morte. Segundo Amattuzzi (1999), a religio , tambm, um campo de experincias, indaga-es sobre a existncia, abrindo-se

    para novas possibilidades. Esta ex-perincia no s a vivncia das situaes, , principalmente, a sua elaborao na conscincia. um campo aberto para indagaes. O que se busca uma experincia de encontro com o mistrio, um encontro pessoal que pode se dar com as religies tradicionais ou com uma concepo pessoal de re-ligiosidade.

    Espiritualidade pode envolver, alm disso, um sistema de crenas, por vezes ligadas s religies tra-dicionais, mas antes de tudo, em nosso ponto de vista, tem um ele-mento fundamental de construo do prprio sujeito.

    A f faz parte das religies tradi-cionais e da busca pessoal pela reli-giosidade e pode passar por vrios estgios. A f est vinculada fora espiritual e busca em acreditar num sentido maior. Segundo Fo-wler (1992), a f tem relao com a vivncia existencial, tendo, por isto, uma tonalidade mais subjetiva. O

    * Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de So Paulo. Livre Docente pela Universidade de So Paulo. Docente e pesquisadora do Instituto de Psicologia, Departamento de Psicologia da Aprendizagem e Desenvolvimento da Personalidade, Universidade de So Paulo. E-mail: [email protected]

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    autor cita os seguintes estgios do desenvolvimento da f:

    1) F primitiva envolvendo as primeiras relaes de conana da criana com o meio;

    2) F intuitiva ligada ima-ginao, s histrias contadas, com a presena do simbolismo;

    3) F mstica literal que j envolve o pensamento lgico com as categorias de causalidade, tem-po-espao e a possibilidade de se colocar no lugar do outro;

    4) F sinttica convencional presente na fase da adolescncia, na busca da identidade e por uma solidariedade dentro do grupo de pertena;

    5) F individuativa e reexiva na fase adulta, faz parte de um sistema social, apresentando um senso de responsabilidade e um estilo de vida;

    6) F conjuntiva o tempo de existncia permite mltiplas inter-pretaes da realidade, incluindo o paradoxo, o smbolo, a histria, o mito e a metfora;

    7) F universalista traz o sen-tido de ser um s com o poder da sua existncia. o mais alto estgio da f.

    Vemos como os estgios da f apontados pelo autor se relacionam com os estgios do desenvolvimen-to do pensamento, da compreenso do mundo, da maturidade e da ca-pacidade de reetir sobre a prpria existncia. No se congura como algo pronto, ou ensinado por al-gum, e sim como um processo de construo pessoal. um elemento importante para abordar as dvidas em relao questo religiosa.

    Amattuzzi (1999) faz uma re-lao do desenvolvimento psico-lgico baseado nos estgios postu-lados por Erikson e nos estgios da f de Fowler. O primeiro estgio o da conana bsica relacionada com os primeiros cuidados, sendo que a f est ligada a este sentimen-to. Na criana do perodo pr-ope-

    racional, aparecem os smbolos e signicados implcitos, e a religio aquela seguida pelos pais, sendo muito importante que se converse sobre eles, deixando espao para imaginao, to fundamental nes-te perodo. As crianas mais velhas, que j dominam as operaes con-cretas do pensamento lgico, com-preendem os sentidos das histrias envolvendo contedo religioso. Adolescentes buscam grupos de referncia que, para alguns deles, esto vinculados a experincias re-ligiosas. Estes grupos podem aju-dar a caracterizar sua identidade e podem ser uma forma de pro-teo contra a angstia por tantas mudanas que se fazem presentes nesta fase da vida.

    Continuando com o ensaio pro-posto pelo autor, a preparao da nova gerao um elemento cons-tituinte da fase adulta, e a busca es-piritual pretende trazer uma contri-buio para a comunidade em que vivem. , tambm, um momento privilegiado para fazer uma anlise interior, ver questes pessoais, re-tomar o que signicativo na vida, podendo ser de fato um grande momento de liberao. o tempo da f reexiva, no qual os dogmas religiosos so questionados. Para alguns, o envelhecimento pode levar ao temor da morte e para se proteger dele, a busca religiosa pode ser pelo dogma rgido. me-dida que a idade avana, perdas de vrias ordens se tornam mais cons-tantes, e o desapego vai se efetuan-do. Para alguns, o momento de maior transcendncia e entrega, os compromissos e responsabilidade com os outros diminuem.

    Ancona Lopez (1999), citando Wuff, aponta as quatro atitudes b-sicas, que se relacionam s expres-ses de religiosidade das pessoas:

    1) Negao literal na qual se percebe uma dessacralizao de todos os contedos religiosos, o racionalismo absoluto. Pessoas

    nestas situaes podem se fechar s linguagens simblicas.

    2) Armao literal as ques-tes religiosas so tomadas de for-ma literal, situao muito presente nos fundamentalistas e ortodoxos. Nestes casos, os psicoterapeutas tm poucas possibilidades de de-senvolver o seu trabalho.

    3) Interpretao redutiva V a religiosidade como fenmeno social, como iluso e se busca pers-pectivas cientcas.

    4) Interpretao restauradora Busca a retomada de smbolos de signicado e de f. H uma bus-ca de transcendncia e de sentido. Corresponde ao estgio mais avan-ado da f, como postula Fowler. As pessoas com esta atitude examinam suas prprias crenas, permitindo que surjam novas perspectivas. Ri-tuais e questes religiosas so vistos nas suas diversas dimenses, bus-cando-se a iluminao e profundi-dade dos smbolos.

    O estado de transcendncia, ligado ao desenvolvimento da es-piritualidade, busca compreender os movimentos para alm da esfe-ra pessoal e so muito importan-tes nas situaes de crise da vida, como, por exemplo, ajudar a com-preender porque houve o adoeci-mento, ou ajuda a compreender o signicado para o sofrimento, para as perdas, separaes ou aproxima-o da morte.

    Alves (1984) aponta que h uma intensa busca religiosa quan-do ocorre um estado de anomia, em que as pessoas sentem que per-deram a sua identidade e os seus referenciais. A busca religiosa tem relao com a situao existencial do homem, na qual as questes de vida e morte tm um lugar pre-ponderante.

    Para Parkes (1999), assim como criamos deuses, podemos criar de-mnios como forma de projetar o que h de ruim dentro de ns. Uma das formas de domar os nossos te-

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    mores lidar com estas imagens, transformando-as, como forma de conseguir o controle sobre si-tuaes assustadoras. Na criana a forma de lidar com estas situaes est ligada s brincadeiras, no adul-to aos sonhos, imaginao ativa e fantasias.

    Frankl (1973) aponta para a importncia de se trabalhar com a busca pelo sentido da vida, numa poca em que o vazio existencial e a apatia esto to presentes. Se-gundo o autor, a apatia pode ser uma forma de lidar com o temor, protegendo-se a alma. Estimula a conscincia do ser, da sua respon-sabilidade e da expresso do que mais humano no ser. Esta busca mais profunda pode estar ancorada na espiritualidade. O autor postula que o ser humano est inserido na sua histria e responsvel pelo seu destino. Responsabilidade entendida como a possibilidade de responder, fazer escolhas, e, neste sentido, construir a sua existncia. Segundo o autor, nada acontece ao acaso, h um sentido para tudo, mesmo que num primeiro momen-to possa no estar to claro.

    A busca pelo sentido subjeti-va, prpria de cada um, por isto no h como buscar um sentido gen-rico. Arma Frankl: a questo no dar sentido, e sim encontr-lo, no pode ser inventado, deve ser descoberto. No h situaes sem sada, sempre h uma que ser a es-colhida; no dar respostas j uma resposta. Cabe ao terapeuta apon-tar que a situao no sem sada em si, embora possa ser percebida como tal.

    O sentido da vida se d, tam-bm, pela percepo da finitude, pela morte. Muitas pessoas pensam de maneira errnea que a morte o que provoca a falta de sentido, mas justamente nos sabermos nitos, que permite que vejamos o sentido da nossa existncia.

    Frankl (op. cit.) aponta que mesmo em situaes to restritas, como campos de concentrao e poderamos pensar em vrias ou-tras na atualidade, sempre h esco-lhas. H uma inuncia grande do entorno da pessoa, mas nunca uma determinao. Sempre que uma resposta dada, esta se congura como escolha. Veremos como esta situao tambm verdadeira para pacientes gravemente enfermos, num momento em que as escolhas parecem to restritas. Uma delas a possibilidade de comunicao da forma como gostariam que fossem os ltimos momentos da vida e a busca pela transcendncia, ou pela continuidade do ser aps a morte.

    Breitbart (2003) aponta que o sentido da vida uma orientao para a existncia, uma busca espi-ritual na compreenso das causas para os fenmenos vividos, consi-derando um lcus interior, ou seja, no jogando a culpa sempre nos outros. Faz parte deste processo es-piritual uma constante reavaliao das experincias vividas e dos atos cometidos. transformar a ima-gem de um graveto que levado pela correnteza, para um graveto que se conduz na correnteza.

    O sofrimento pode ser a possi-bilidade de buscar sentido, rever situaes, chacoalhar a apatia. Ob-servamos que atualmente h uma tendncia de logo eliminar o sofri-mento, como uma anestesia, impe-dindo um processo to importante implicado na expresso e elabora-o da tristeza, na compreenso do que pode ter levado situao em questo.

    Safra (1999), retomando algu-mas das idias de Winicott, se refere s experincias de encantamento, de jbilo que podem nos remeter ao sagrado. Nem sempre esto li-gadas s religies tradicionais, po-dendo surgir muito antes de se ter uma religio denida. Segundo o autor, estas experincias podero

    posteriormente ser vinculadas a uma religio particular, ou ligadas ao esprito religioso, no sentido do religare, em conexo com a transcendncia.

    Alves (1984) afirma que reli-gio imaginao, a possibilidade de ver as coisas de uma forma di-ferente com forte contedo emo-cional e muito difcil de ser ver-balizada. As imagens religiosas so construdas e se relacionam com a vida e com a morte. Nem sempre esto totalmente denidas, j que se revelam e se ocultam. Assim como Winnicott, o autor associa a experincia religiosa com a esttica da arte, apontando a diculdade de traduzi-la em palavras. O que tor-na um objeto fascinante ou sagrado no a sua caracterstica intrnseca, e sim como visto pela pessoa. Para entrar neste esprito, temos que suspender a nossa forma habitual de fazer as coisas, colocar entre pa-rnteses o princpio da realidade.

    Alves aponta que, para Win-nicott, a questo religiosa indica um sentido de continuidade muito importante para as pessoas, prin-cipalmente quando passam por si-tuaes traumticas em que a sua identidade est ameaada. Vivn-cias de alegria, jbilo e encanta-mento podem ser experienciadas como sagradas e fazem parte do self do indivduo. Podem estar presen-tes em vrios momentos da vida e podem ter a sua manifestao antes de qualquer participao em rituais religiosos tradicionais. uma ex-perincia com fortes tonalidades subjetivas.

    Amattuzzi (1999) aponta que acontecimentos cotidianos den-tro deste foco so vistos com uma outra luz, trazendo a experincia do sagrado. Safra (1999) afirma que alguns objetos podem ter esta mesma possibilidade de transcen-dncia: uma pedra, o pr-do-sol ou ores podem despertar o sentido do sagrado.

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    Dentro do mbito da espiri-tualidade, temos que considerar, tambm, a questo da liberdade, como postula Anjos (2003). Liber-dade tem uma forte relao com conscincia e autonomia, a possi-bilidade de buscar os caminhos da vida, ter as rdeas na mo. Estamos nos referindo liberdade com res-ponsabilidade, como responder a uma dada situao envolvendo um processo de escolha. A liberda-de como responsabilidade abre as inmeras possibilidades de cons-truo de seu prprio mundo. O autor aponta que a liberdade pode ter Deus como guia, num processo de co-construo com o ser huma-no, no como determinao, mas como escolha, possibilitando um processo de aprendizagem a cada escolha feita.

    Observa-se no sculo XX uma necessidade de expulsar Deus, como se o homem pudesse se bastar sozinho. No nal do passado sculo e no incio deste, observamos um retorno da espiritualidade e o de-senvolvimento de novas religies. Na rea de Psicologia, se observa uma ampliao dos estudos sobre religio e espiritualidade.

    Giovanetti (1999) aponta para a necessidade de abordar temas espi-rituais em psicoterapia. A questo do sagrado est ligada nitude da vida, aos mistrios, ao que into-cvel, ao transcendente. O sagrado pode estar relacionado ao fascnio, ao que muito grande, para alm do homem. Estas questes envol-vem uma forte concentrao de energia, congurando experincias msticas. Jung se refere religio como experincia interior, desta-cando a numinosidade, uma ex-perincia forte e poderosa que traz grandes mudanas na conscincia, como aponta Sampaio (1999).

    Destas experincias to podero-sas, decorre a importncia da pre-sena dos rituais, que permitem atividades coletivas e podem trazer

    um sentimento de pertena. Os ar-qutipos so experincias coletivas da psique e trazem vrias imagens do sagrado, e que na medida em que so manifestos em aes, so-nhos trazem um enriquecimento para o trabalho psicoterpico. As-sim tambm a imagem arque-tpica de deus, um deus interior, construdo com especificidades das experincias de cada pessoa. A maneira como a religio expres-sa traz elementos da psique, uma representao pessoal e tambm coletiva.

    Ao ser perguntado se acredita-va em Deus, Jung respondeu que no acreditava em Deus, ele sa-bia, referindo-se sua experincia subjetiva, e a partir desta props a existncia de um arqutipo rela-cionado com a divindade. Arma que ocorre um empobrecimento da psique, se as grandes questes religiosas fossem eliminadas, ou consideradas como irrelevantes.

    Koenig (2001), citando o psic-logo social Gordon Alport, em uma srie de estudos pioneiros datando de 1950, faz uma clara distino en-tre pessoas que vivem uma religio-sidade extrnseca e as que tm uma religiosidade intrnseca. Ele dene como extrnseca a religiosidade de uma pessoa que usa a religio para alcanar algo no espiritual, como encontrar amigos, alcanar status social, prestgio ou poder. A religiosidade intrnseca pode ser ilustrada naquelas pessoas que tm uma profunda e forte f interior como principal fora motivadora de sua vida, afetando suas decises e comportamentos dirios, sendo caracterizada por um ntimo rela-cionamento pessoal com Deus.

    Sofrimento no m da vida

    Nos dias atuais, apesar do gran-de desenvolvimento tecnolgico, muitas vezes o processo de morrer vem acompanhado de muito sofri-

    mento. Pacientes no estgio nal da vida podem ter medo da dependn-cia, da dor, da degenerao, da in-certeza, da solido e do isolamento, da separao das pessoas queridas e de serem abandonados pelos pro-ssionais que deles cuidam. Vivem os processos de luto da perda de si e das pessoas prximas (Kvacs, 1999). Alguns pacientes manifes-tam temor em relao a algumas questes espirituais, entre as quais: no ser perdoado por Deus, no sa-ber o que vai acontecer depois da morte e no ter encontrado sentido na sua vida.

    H situaes que envolvem muito sofrimento, entre as quais, o adoecimento e a proximidade da morte, provocando mudanas sig-nicativas na vida, que podem se manifestar inclusive nas questes espirituais. Como aponta Saunders (1993), o que realmente torna o so-frimento intolervel quando este no cuidado.

    Segundo Genaro (2003), nos momentos de grande dor e sofri-mento que pode haver uma busca maior pela transcendncia, do que extrapola a vida terrena, o cotidiano e a materialidade. Este contato com a transcendncia pode ajudar no enfrentamento destas situaes. O autor aponta para pesquisas que in-dicam um ndice de correlao en-tre sade mental e busca espiritual, principalmente quando se percebe um processo intrnseco, a partir das prprias experincias vividas.

    Breitbart (2003), citando Frankl, afirma que o sofrimento pode ser um trampolim para a res-signicao da vida. Em nossa ex-perincia pessoal, vimos como al-guns pacientes que tiveram cncer e sentiram a ameaa s suas vidas puderam fazer grandes reviravol-tas, passando a priorizar o que era mais signicativo, mesmo quando restava pouco tempo de vida. Ob-servamos que quanto maior o grau de paz e compreenso do que

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    est ocorrendo, melhor a tolern-cia dor, capacidade de enfrenta-mento, resultando numa melhor qualidade de vida.

    Enfatizamos que o caminho deve ser trilhado pela pessoa com suas prprias descobertas. No pode ser induzido, forado, mas pode sim ser estimulado.

    Espiritualidade e cuidados paliativos

    A Organizao Mundial da Sade (1990/2002) dene Cuida-dos Paliativos como: Cuidados ati-vos totais de pacientes cuja doena no responde mais ao tratamento curativo. Controle da dor e de outros sintomas e problemas de ordem psicolgica, social e espiritual so prioritrios. O objetivo dos cuidados paliativos proporcionar a melhor qualidade de vida para os pa-cientes e familiares.

    A denio de Cuidados Palia-tivos da OMS evidencia uma preo-cupao com o cuidado das neces-sidades espirituais dos pacientes e seus familiares. Oferecer cuidados paliativos de qualidade significa implementar aes inovadoras que evitem o sofrimento moral, espiri-tual, a desmoralizao e a perda de sentido, o sentir de que tudo aca-bou, experincias muito freqentes no nal da vida, como nos relatam pacientes nesta condio.

    Segundo Pessini (2006), a Asso-ciao Mdica Mundial revisou re-centemente a Declarao dos Direitos do Paciente, elaborada no Chile, em 2005. Entre os direitos defendidos, apresenta-se o direito assistncia religiosa, armando que o paciente tem direito de receber ou recusar o conforto espiritual e moral, in-cluindo a ajuda de um ministro de sua opo religiosa.

    Koenig (2001) aponta que pa-cientes com cncer avanado, que tinham crenas espirituais, mos-traram-se mais satisfeitos com suas vidas, eram mais felizes e sentiam

    menos dor, comparados queles sem crenas espirituais. Uma pes-quisa feita pela American Pain Society mostrou que a orao era o segun-do mtodo mais usado no manejo da dor, depois de medicaes orais, e era o mtodo no-ligado a dro-gas mais comum, no manejo deste sintoma.

    A espiritualidade est associada a menor depresso, menor risco de complicaes somticas, de suicdio e a menor uso de servios hospita-lares, inclusive a menor tendncia de fumar.

    Quanto ao papel das crenas re-ligiosas na terminalidade, este au-tor aponta que estas podem ajudar os pacientes a buscarem o sentido ligado ao sofrimento inerente doena, o que pode facilitar a acei-tao desta situao.

    A assistncia espiritual faz parte integral dos cuidados ministrados a pacientes que esto em programas de cuidados paliativos. o acompa-nhamento do que o paciente tem a dizer, suas dvidas, o que pensa ou acredita. Jamais se trata de impingir dogmas ou um determinado credo religioso. O profissional religioso que participa da equipe de cuidados paliativos chamado de atendente espiritual e no tem associado o seu credo religioso. Trata-se do apoio espiritual na hora da morte, que pode ser efetuado por qualquer atendente espiritual, que tenha es-pecializao na rea paliativa.

    Breitbart (2003) aponta que 80% dos pacientes na fase nal da vida querem conversar com o seu mdico sobre temas ligados di-menso espiritual. Esta necessidade est profundamente relacionada dignidade no processo de morrer, a busca da existncia plena e no apenas da sobrevivncia.

    Saunders (1993), pioneira no desenvolvimento dos cuidados paliativos na Inglaterra que atual-mente se encontram em pleno de-senvolvimento em todo mundo,

    arma que o sofrimento s intole-rvel quando no acolhido e cui-dado. Mas muito importante lem-brar que o conforto espiritual acaba no sendo recebido na ntegra se a pessoa estiver em sofrimento fsico. Programas de cuidados paliativos tm que ter uma equipe multidis-ciplinar justamente para poder cui-dar de todas essas esferas, cuidando da dor total, como ela postula.

    A questo do sentido se torna premente diante da questo do adoecimento e da proximidade da morte. Alguns doentes se vem frustrados e derrotados, enquanto outros encontram uma razo para o seu sofrimento e uma possibili-dade para rever toda a sua vida. Como explicar estes dois caminhos to diferentes? Sem dvida, acre-ditar numa dimenso espiritual, na transcendncia pode ser muito importante neste momento. Mas esta crena ou f nunca deve ser forada, trata-se de um movimento natural, que vem de dentro.

    Cuidados no m da vida

    Cuidados paliativos, entendidos como cuidados a pacientes grave-mente enfermos, buscando a qua-lidade de vida nas vrias esferas do existir retomaram a importncia dos cuidados na rea espiritual, in-tegrada como elemento essencial nos vrios mbitos de tratamento. Muito mais importante do que o prolongamento da vida busca-se o controle de sintomas e o bem-estar em vrias esferas do existir, dimi-nuindo ao mximo o sofrimento em todas estas esferas.

    Parkes (1999), especialista na rea de luto e consultor do St. Christophers Hospice em Londres, arma que o contato com a idia de morte e nitude um espao privi-legiado para lidar com a questo do sentido da vida e com a tentativa de compreender o que ocorre aps a morte. Pacientes com doenas em

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    estgio avanado tm que lidar com esta questo e com o sofrimento, tendo que elaborar as perdas rela-cionadas com a doena e a proxi-midade da morte. muito impor-tante compreender e acolher estas pessoas na situao em que fazem a transio para a morte, lidando com o medo do desconhecido, com o sentimento de aniquilao e alie-nao, com a perda da identidade e diminuio da conscincia.

    Breitbart (2003) cita um estudo envolvendo uma busca de melhora de qualidade de vida de pacientes gravemente enfermos envolvendo os seguintes itens: a) qualidade ge-ral de vida; b) bem-estar em todas as esferas da vida: fsicas, psicosso-ciais e espirituais; c) percepo pelo paciente da qualidade dos cuidados recebidos; d) cuidados famlia. O autor destaca que atualmente os cuidados espirituais tm muita importncia no cuidado total a pa-cientes gravemente enfermos.

    Entre as necessidades dos pa-cientes em fim de vida, Breitbart (2003) destaca os seguintes pontos: 1. Ser considerado como pessoa, par-

    ticipando de todas as decises quanto ao tratamento. Muitos pacientes temem perder seu nome e identidade, serem consi-derados como mais um doente, ou somente como diagnstico de uma doena, dependentes de outros, sentindo-se totalmente inteis.

    2. Reviso da vida. Muitos doentes tm necessidade de falar sobre sua vida, voltar ao passado e rea-vali-lo diante de novos valores, buscando um sentido para o seu sofrimento. O agravamento da doena clama por uma urgn-cia, exposta diretamente, sem rodeio, buscando respostas para profundas crises existenciais.

    3. Busca do sentido. O agravamen-to da doena favorece uma nova hierarquia de valores.

    Pode ocorrer a busca de algo que mais forte e maior que a doena. A proximidade da morte coloca a pessoa diante do essencial, da necessidade de encontrar um sentido para a prpria existncia. O proble-ma da finitude pode se impor ao sofrimento promovendo um ensaio de compreenso sobre a prpria vida. O grande desao perceber-se como ser limitado e acabado e, ao mesmo tempo, encontrar foras para viver com intensidade os dias que restam.

    Frankl (op. cit.) viveu como pri-sioneiro num campo de concentra-o na Alemanha arma, tambm pautado na sua experincia vivida, que todos podem encontrar um sentido em sua vida, tambm em situaes de sofrimento intenso. O sentido de ter feito algo signica-tivo durante sua vida. Este senti-mento pode expressar-se de vrias maneiras, uma delas pela f, espiri-tualidade, arte, entre outras. 4. A necessidade de se livrar da culpa.

    A crena religiosa seguida pelo paciente pode inuenciar seu modo de ver o sofrimento. Se a sua viso religiosa envolve a punio por atos cometidos, ele poder ver a doena como expiao da culpa pelas coisas que fez ou no fez na sua vida pregressa. Esta signicao da doena pode interferir no tra-tamento. Poder falar desta per-cepo, ter algum com quem confessar sua culpa e ser per-doado pode ser muito confor-tante. Algum que certamente no deve entrar na condio de um juiz. J basta o grande sofri-mento que uma doena grave traz. A maneira como vivemos pode inuenciar as condies de nossa morte.

    5. Necessidade de se reconciliar. To-dos ns podemos levar conosco questes no resolvidas, m-

    goas, ressentimento, assuntos inacabados, como arma K-bler-Ross (1975). A doena , muitas vezes, o momento em que estes sentimentos brotam de forma intensa. O paciente no m de vida, frgil e sem foras, precisar de muita energia para buscar estas de pessoas a quem feriu ou por quem foi ferido, pedir perdo ou falar de seus sentimentos, buscando assim uma reconciliao. Permitir que o paciente possa retomar o contato com estas pessoas, pos-sa lidar com estes assuntos ina-cabados, dizer o que quer que acontea depois da morte e di-zer adeus, fundamental. Mui-tos destes pacientes revelaram que suas maiores preocupaes eram: no serem perdoados por Deus, no conseguirem se des-pedir de pessoas com quem tm pendncias vitais e morrerem afastados de Deus ou de uma fora espiritual.

    6. De descobrir algo alm de sua pr-pria existncia. Esta necessida-de pode se manifestar de duas formas: 1. abertura transcen-dncia (o relacionamento com Deus, com a arte, com a nature-za); 2. necessidade de reencon-trar o sentido de solidariedade. Alguns pacientes com grande dificuldade ainda conseguem levantar de seus leitos para ofe-recer ajuda algum que est no leito ao seu lado ou em pio-res condies; sentem-se teis e solidrios, cuidando do sofri-mento humano.

    7. Necessidade de ser amado, apesar de seu aspecto. Poucas pessoas, profissionais e familiares, tm disposio para ficar com pa-cientes at o fim da vida. Seu aspecto cadavrico, palidez, respirao ruidosa, alterao de humor, franqueza nas questes sobre a morte, tudo isso faz com

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    que poucos, e somente os muito ntimos, disponham-se a estar presentes at o nal do proces-so. So freqentes as queixas das pessoas morte de um for-te sentimento de isolamento e solido. Estas pessoas tm gran-de necessidade de sentirem-se amados, no descartados, e que este amor seja expresso de ma-neira carinhosa, podendo-se utilizar toques e palavras de con-forto e esperana, conrmando a signicncia de sua vida, lem-brando-os de suas realizaes e as marcas deixadas na vida das pessoas prximas. muito do-lorosa a sensao de que a nossa morte no significar nada na vida daqueles que amamos.

    8. Necessidade de uma nova relao com o tempo. Para muitos pacien-tes, o tempo vivido o tempo do passado. Como o futuro pa-rece muito curto, h a neces-sidade de elaborar uma nova hierarquia de valores. Cada dia poder trazer algumas ques-tes para serem elaboradas e os projetos a longo prazo parecem impossveis; ser preciso pen-sar em projetos a curto prazo. Este futuro, de tempo limitado, pode ser vivido como frustrao e angstia, mas tambm pode ser uma abertura para a trans-cendncia. uma viso direta e clara que no se tempo todo o tempo disponvel.

    9. Necessidade de continuidade. Te-mos a necessidade de deixar marcas de nossa existncia para pessoas significativas ou para a humanidade, envolven-do valores como: fraternidade, justia, respeito. Esta continui-dade pode estar presente nos descendentes, numa empresa, numa obra, mensagem ou pala-vra. o fruto de uma vida toda que se avalia num momento de reviso que a proximidade da morte provoca.

    Pessini (2006) se refere possi-bilidade de elaborar um diagns-tico espiritual, desenvolvendo a habilidade da escuta. importante ter ouvidos capazes de comunicar compreenso, amor e solidarie-dade. Ouvir no somente o que dito, mas principalmente o que no dito e nem precisa ser verbaliza-do. Ouvir criar um clima em que as pessoas livremente podem par-tilhar o sentido de seus dias: seus medos, esperanas, dores, desapon-tamentos e alegrias. Arma que importante ouvir com o ouvido do outro, procurando responder s necessidades do paciente e no do terapeuta. fundamental respei-tar os valores pessoais e espirituais da pessoa. Muito fcil assaltar a pessoa espiritualmente, impondo nossos valores. Propor sim, impor nunca, arma o autor.

    preciso que se perceba como o paciente entende, interpreta e vive a sua experincia de estar doente, como tocado pela nitude e como relaciona isto com sua f em Deus ou em outra gura de crena. Neste contexto, aparecem muitas vises em relao doena, tais como: castigo ou punio, teste, destino, fatalidade, expresso de m, possi-bilidade de transformao da vida, entre outras expresses.

    Tambm podem surgir de-sapontamentos, sentimentos de abandono ou revolta em relao a Deus para aqueles que so reli-giosos. Outros podem aprofundar a sua f. necessria a tolerncia, pacincia, sensibilidade do cuidador espiritual. preciso poder acolher sentimentos controversos, sem ter a necessidade de modic-los ime-diatamente e principalmente no repreender ou censurar. Neste lu-gar, o atendente espiritual no deve oferecer sermes ou penitncias.

    importante trabalhar essas experincias, no reforando a idia de que a doena surge para castigar as pessoas. Pode ser mui-

    to difcil entender e aceitar o so-frimento, quando se est no meio do processo. Segundo o autor, po-demos sim conrmar a f quando est presente, despert-la quando est dormente e refor-la se es-tiver frgil e deseja crescer. Neste momento, faz muito sentido a pro-posta de um ritual de f que tenha signicado para a pessoa. neste contexto em que muitos no vem nenhum sentido ou ento somente desgraa que numa perspectiva de espiritualidade, a vida pode ser iluminada pela graa divina.

    O papel do capelo na equipe multidisciplinar de cuidados paliativos

    Aitken (2006) aponta que mis-sas e cultos so parte do servio de capelania, devendo se levar em conta a liberdade de cultos que h no nosso pas. Se a pessoa no pode ir celebrao religiosa em sua co-munidade, esta vir at ela, sendo realizada dentro do ambiente hos-pitalar, obedecidas suas limitaes.

    O atendente visto como fon-te de suporte espiritual para o pa-ciente, sua famlia e tambm para o prossional da sade, mas nunca dever se esquecer de que aprende muito com seus pacientes, prin-cipalmente daqueles que esto prximos morte, como tambm afirma Kbler-Ross em vrias de suas obras.

    O trabalho deve sempre se ini-ciar com a escuta do paciente, com toda a ateno sua linguagem verbal e no-verbal. A partir desta escuta poder identicar a crena deste paciente, como esta afeta sua vida, como v a enfermidade e como se relaciona com seu Deus. A partir disso, ento, saber como abord-lo da melhor maneira possvel.

    Mesmo para o paciente no re-ligioso, poder usar outros sentidos da espiritualidade, como a arte e a msica, para lhe dar suporte du-

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    rante a doena, ajudando-o a en-contrar um sentido para sua vida, neste momento to especial.

    O capelo responsvel dever organizar a capelania hospitalar, envolvendo atendentes de vrios credos, contando com visitadores voluntrios, que atuaro em siste-ma de rodzio, mantendo o servi-o por 24 horas, extensivo a todo o hospital. Religiosos externos de quaisquer credos podero oferecer atendimento aos membros de suas comunidades que estejam hospi-talizados ou em domiclio. Para tal, devero ser orientados quanto ro-tina hospitalar e os limites na visi-tao e nos rituais propostos. Isto fundamental, pois assim se garante o cuidado espiritual especializado ao paciente, ao mesmo tempo em que se protege o hospital de atitu-des extremadas.

    Cuidados psicolgicos e espirituais-Integrao

    H pontos de interseco e com-plementaridade entre aspectos psi-colgicos e espirituais na existncia das pessoas, como armamos an-teriormente.

    Segundo Ancona Lopez (1999), fundamental que o psicotera-peuta, ao trabalhar os contedos trazidos pelo paciente, leve em conta a sua experincia religiosa e espiritual, deixando que expresse os seus valores e expectativas. H uma estreita relao entre religio-sidade e sade mental, por isto fundamental buscar o que pessoal e signicativo na vida de cada um e seu sentido de pertena a uma dada comunidade religiosa. Os psiclo-gos deveriam conhecer e buscar re-ferenciais para abordar a questo espiritual no processo teraputico. No se pode ignorar a questo re-ligiosa, preciso ter abertura para compreender as metforas e sm-bolos apresentados pelos clientes.

    Breitbart (2003) relata a sua ex-perincia de incluso de contedos espirituais em trabalho psicoterpico em grupo com pacientes oncolgi-cos, que ele denomina de Psicotera-pia de Grupo Centrada no Sentido. Este procedimento desenvolvido no Departamento de Psiquiatria e Cincias do Comportamento do Me-morial Sloan Kettering Cancer Center, em Nova York. Neste grupo foram abordados temas relativos ao sofri-mento causado pela doena, ques-tionamentos existenciais e aies espirituais no m da vida.

    O trabalho de grupo favorece a troca de experincias, o sentido de pertena, de que no se est sozinho nesta situao, tendo a possibilidade de ajudar e ser ajudado e perceber que se tem um propsito comum. Segundo o autor, o grupo favorece a busca de sentido e uma destoxi-cao da morte, podendo-se falar abertamente sobre o tema. Possibi-lita-se a abertura do caminho para a transcendncia, para alm dos aspectos materiais da vida, num processo de construo individual e do grupo como um todo.

    Este trabalho s poder ser re-alizado se o paciente tiver os seus sintomas controlados, principal-mente a dor. Dentre os temas que foram processados pelos pacientes, o autor relata os seguintes: reviso de vida, exame das situaes liga-das culpa, remorso, perdo e re-conciliao, encontrar um sentido maior para o sofrimento.

    O inspirador deste trabalho Vitor Frankl, que, em seu livro Psicoterapia e sentido da vida, traz os alicerces para esta terapia. Frankl rearma a relevncia de se incluir a dimenso da transcendn-cia no trabalho psicoterpico. a possibilidade de ir para alm de si, de ter uma compreenso maior da sua relao no mundo. Mas o au-tor ressalta que o cuidar da alma na psicoterapia no a substituio da religio na vida das pessoas.

    Frankl (1973) discute a impor-tncia de se abordar a questo da busca pelo sentido no trabalho psi-coterpico. Esta busca est presente em toda a vida at a morte e envolve a liberdade de vontade para encon-trar este sentido, levando em consi-derao a criatividade, as experin-cias e a atitude em relao vida. H trs grandes problemas existnciais: o sofrimento, a morte e a culpa. Para este autor, a nossa responsabilidade viver a vida plenamente.

    O sentido encontrado nas ati-vidades que fazem parte da vida; as situaes existenciais podem no mudar, a forma de encar-las sim. Qualquer fase da vida permite que se olhe para as situaes de vida, de trabalho, das relaes pessoais, e novos signicados podem surgir. O processo psicoterpico pode ser-vir como estmulo para estas novas percepes.

    Jung foi um dos autores na rea da psicologia e da psicoterapia que concedeu religio e espirituali-dade um lugar especial resgatando a questo da alma na psicoterapia, como aponta Giovanetti (1999). Refere-se funo transcendente, podendo ser entendida como uma ampliao da conscincia. Podemos ver nisso uma parceria entre a psico-logia e a espiritualidade como com-plementaridade. Este autor aponta para a necessidade do terapeuta es-tar sensvel experincia religiosa constituinte daquele sob seus cui-dados e sempre estar atento s ma-nifestaes do sagrado nos relatos, sonhos e associaes apresentadas.

    Kbler-Ross, em suas obras, tambm discute a importncia do desenvolvimento espiritual e, como psiquiatra, iniciou os seus trabalhos no acompanhamento de pessoas morte, integrando aspectos psico-lgicos e espirituais. Em seu livro Roda da Vida (1998) relata que foi guiada por espritos ou entidades, tendo como misso armar que a morte basicamente um processo

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    de transio, dessa forma buscan-do uma diminuio do sofrimento nesta hora. So dois momentos na trajetria desta autora que trouxe signicativas contribuies para o atendimento a pessoas gravemente enfermas ou em processo de luto. Em nossa opinio, a segunda parte da sua obra, se no compreendida e contextualizada, poder trazer uma idia falsa de que as pessoas no de-vem expressar os seus sentimentos quando diante da morte, logo pas-sando para uma elevao espiritual, num processo de sublimao muito rpido. Devemos cuidar para que o processo de sofrimento seja elabora-do e no abortado (Kovcs, 2003).

    Gimenes (2003) aponta para uma parceria entre a psicologia e

    a espiritualidade que se congura num auxlio para a passagem, aju-dando as pessoas no seu processo de morte, facilitando a transposio das etapas psicolgicas e espirituais. Trabalha-se o medo do desconhe-cido, pacificando os sentimentos de terror, ajudando a contemplar pendncias de diversas ordens. O objetivo levar tranqilidade, calma e o encontro com Deus. A autora apresenta as vrias etapas deste processo, afirmando que muito importante que os cuida-dores os reconheam para acom-panhar, ajudar e no atropelar. As etapas apontadas so: a) agonia quando a pessoa entra

    em contato com as dores fsicas, emocionais, sociais e espirituais;

    b) auto-julgamento quando h uma reviso das aes, atitu-des e sentimentos em relao vida;

    c) entrega passar para outro esta-do de conscincia.

    Psicoterapia e assistncia espi-ritual comungam muitos pontos, sendo um dos principais elemen-tos, uma escuta atenta e cuidadosa. A psicoterapia tem como objetivo principal que a pessoa compreenda as suas questes, esclarecendo a de-manda, facilitando as suas escolhas dos caminhos a seguir; a prioridade so as questes e no as respostas. A orientao espiritual, a partir da escuta das questes principais, orienta o caminho a seguir.

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    Recebido em 30 de janeiro de 2007Verso atualizada em 13 de fevereiro de 2007

    Aprovado em 02 de maro de 2007

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