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130 anos da abolição 130 anos da abolição ESCRAVIDÃO [388] + ABOLIÇÃO [130] = DESUMANIZAÇÃO NEGRA [518] JUAREZ TADEU DE PAULA XAVIER A população afrodescendente (preta e parda) sobrevive no mesmo ambiente abrasivo de violências articuladas e intersec- cionais (étnico-racial, classe e gênero) que marcaram suas condições sociais no período de transição racial e demográfica, entre os anos de 1870 e 1930. Anos críticos para a população negra no país, quando a “eugenia e a pureza racial” tornaram- -se “política de estado”. O preconceito (formas de menor valia das tradições de ascendências africanas), a discri- minação racial (segregação conceitual, física e geográfica) e o racismo (fluxo ascendente da linha de mortalidade da população negra) consolidaram-se no imaginário social, e fun- daram os obstáculos materiais à mobilidade vertical (ascensão) e horizontal (direito de ir e vir) de negras e negros na sociedade. Os dispositivos de coerção (violência físi- ca) e persuasão (organização das narrativas de supremacia racial que sustentam o estado nacional) espelham, no cotidiano dessa po- pulação, os sinais dos sofrimentos corporais e psíquicos, de um país que mantém os dois pés fincados na “instituição da escravidão”; a última a ser abolida no Ocidente. Os 388 anos de trabalho escravo grafaram as relações econômicas, culturais, políticas e sociais que, mesmo depois de 130 anos de abolido, congelam a população descendente de africanos na base da pirâmide social, lócus e logos da clonagem ampliada das desigualda- des sociais, com profundas assimetrias entre “privilegiados” e “desprivilegiados destituídos de direitos”. Equação perversa cujo resultado é a de- sumanização da ascendência e descendência africanas. GENEALOGIA DA SUPREMACIA RACIAL As pesquisas, dados e indicadores sinalizam que a história da presença negra no país é pontuada pelo genocídio (destruição física), etnocídio (destruição cultural) e epistemicídio (destruição civilizatória), como projetaram os arquitetos do “racismo científico”, construtores do estado nacional. Esse objetivo estratégico foi expresso em artigo apresentado pelo médico João Batista de Lacerda (1846-1915)[2], da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, no Congresso Uni- versal de Raças, realizado em Londres entre os dias 26 e 29 de julho, quando o “pensador” expôs a meta de eliminar a presença física e cultural negra no espaço de cem anos[3]. Assim, o país estaria livre “da mancha ne- gra” em 2011. Naturalizou-se no Brasil a “desumanização” DOSSIÊ REÚNE ARTIGOS SOBRE O TEMA 130 anos da abolição da escravatura 6 7 UNESPCIÊNCIA | MAIO 2018 MAIO 2018 | UNESPCIÊNCIA

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130 anos da abolição130 anos da abolição

ESCRAVIDÃO [388] + ABOLIÇÃO [130] = DESUMANIZAÇÃO NEGRA [518]JUAREZ TADEU DE PAULA XAVIER

A população afrodescendente (preta e parda) sobrevive no mesmo ambiente

abrasivo de violências articuladas e intersec-cionais (étnico-racial, classe e gênero) que marcaram suas condições sociais no período de transição racial e demográfica, entre os anos de 1870 e 1930.

Anos críticos para a população negra no país, quando a “eugenia e a pureza racial” tornaram--se “política de estado”.

O preconceito (formas de menor valia das tradições de ascendências africanas), a discri-minação racial (segregação conceitual, física e geográfica) e o racismo (fluxo ascendente da linha de mortalidade da população negra) consolidaram-se no imaginário social, e fun-daram os obstáculos materiais à mobilidade vertical (ascensão) e horizontal (direito de ir e vir) de negras e negros na sociedade.

Os dispositivos de coerção (violência físi-ca) e persuasão (organização das narrativas de supremacia racial que sustentam o estado nacional) espelham, no cotidiano dessa po-pulação, os sinais dos sofrimentos corporais e psíquicos, de um país que mantém os dois pés fincados na “instituição da escravidão”; a última a ser abolida no Ocidente.

Os 388 anos de trabalho escravo grafaram as relações econômicas, culturais, políticas e sociais que, mesmo depois de 130 anos de abolido, congelam a população descendente de africanos na base da pirâmide social, lócus e logos da clonagem ampliada das desigualda-des sociais, com profundas assimetrias entre “privilegiados” e “desprivilegiados destituídos de direitos”.

Equação perversa cujo resultado é a de-sumanização da ascendência e descendência africanas.

GENEALOGIA DA SUPREMACIA RACIALAs pesquisas, dados e indicadores sinalizam que a história da presença negra no país é pontuada pelo genocídio (destruição física), etnocídio (destruição cultural) e epistemicídio (destruição civilizatória), como projetaram os arquitetos do “racismo científico”, construtores do estado nacional.

Esse objetivo estratégico foi expresso em artigo apresentado pelo médico João Batista de Lacerda (1846-1915)[2], da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, no Congresso Uni-versal de Raças, realizado em Londres entre os dias 26 e 29 de julho, quando o “pensador” expôs a meta de eliminar a presença física e cultural negra no espaço de cem anos[3].

Assim, o país estaria livre “da mancha ne-gra” em 2011.

Naturalizou-se no Brasil a “desumanização”

DOSSIÊ REÚNE ARTIGOS SOBRE O TEMA

130 anos da abolição da escravatura

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dos descendentes de africanos, em todos os níveis e dimensões sociais.

Estabeleceu-se o lugar dos afrodescenden-tes na sociedade: na periferia das periferias reais e imaginárias.

O Ocidente compreendeu há pouco tempo a natureza humana do negro, segundo Cornel West[4] (Princeton). Para ele, no período de construção das bases da civilização ocidental na Europa, as civilizações africanas, a despeito das suas contribuições para a sinfonia multi-cultural da humanidade, estavam subjugadas pela exploração europeia.

A formação das categorias que singularizam o legado ocidental (estado, ciência, legislação, economia, sociedade, religião e cultura) cris-talizaram na genealogia do racismo moderno as marcas da supremacia de raça, gênero e classe, cujos pilares são os conceitos de bele-za, cultura e conhecimento.

No Brasil, essas ideias delinearam a má-quina de repressão do estado que (autonomi-zada em relação aos governos) provocou mais de 50 mil homicídios em 2017, na maioria

(ódio aos negros), base da concentração dos capitais econômico, cultural, político e social, em uma franja estreita de homens brancos, com formação universitária, urbanos, rentis-tas e “protofascistas”, segundo Jessé Souza, alicerçado nos dados do Instituto de Pesqui-sa Econômica Aplicada (Ipea), vinculado ao ministério do Planejamento[7].

As universidades públicas são (por resguar-darem a indissociabilidade ensino, extensão e pesquisa) as que formam, em maior número, os agentes que ocuparão os melhores postos nos dois entes fundamentais da sociedade moderna, o estado e o mercado, e neles retro-alimentarão conceitos que convertem “privi-légios” em direitos, diz Jessé Souza.

O “racismo científico” do século XIX está no DNA da genealogia do racismo brasileiro.

MOVIMENTO NEGRO MODERNONos últimos 40 anos, a jovem e militante in-telectualidade negra desconstrói a narrativa da supremacia racial.

Desde 1978, com a fundação do Movimen-to Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNUCDR[8]), que inaugura o movi-mento negro moderno, mudando o vetor pa-ra a crítica da “branquitude[9]”, a luta pelos direitos “civis” assegurou a criminalização do racismo, criou indicadores que demoliram o “mito da democracia racial”, denunciou a desigualdade abissal entre negros e brancos, pelejou contra o genocídio da juventude negra e o etnocídio da violência contra as comuni-dades tradicionais de terreiro, e conquistou políticas públicas de governo que minimiza-ram as violências cotidianas que destroçam as comunidades negras[10].

Jovem intelectualidade negra (universitária e social) que compreende a inexistência “da neutralidade axiológica na produção científi-ca acadêmica”.

Por essa razão, a formulação estratégica de políticas públicas para a educação teve e tem três objetivos precisos: diluir o preconceito nutrido no sistema educacional[11], superar a segregação na produção de conhecimento

jovens negros e pobres, segundo os números do Mapa da Violência[5], e a máquina de per-suasão, que teceu suas redes nos laboratórios experimentais das faculdades de medicina e direito, institutos científicos, museus e meios de comunicação, criados no século 19.

Lilia Moritz Schwarcz documenta em suas pesquisas o impacto que esses conceitos tive-ram na sociedade brasileira e no pensamento dos “operadores” do estado nacional. O “ra-cismo científico” foi a métrica que modelou uma das sociedades mais desiguais entre as grandes nações do Ocidente[6].

IDEIAS E PRÁTICAS QUE SE ESTENDEM PELO SÉCULO 21.O ensino superior foi uma das “oficinas” onde se modelaram as políticas segregacionistas e racistas. Ele riscou as ideias motrizes da for-mação conceitual do “patrimonialismo” (pri-vatização do estado) e do populismo (aversão às reivindicações populares), infraestrutura sobre a qual se erguem as noções de “racismo social” (ódio aos pobres) e do racismo “racial”

nas universidades[12] e “disputar” o acesso ao capital cultural.

O capital cultural (pela sua capacidade ine-rente) é o mais poroso entre as formas de or-ganização dos capitais e, no plano intelectual, o que possibilita a crítica aos demais “capitais” e à concentração de renda, cultura e poder, que faz do racismo no país o “crime perfeito”, segundo Kabengele Munanga[13].

A extensiva rede de fraudes contra a efe-tivação das cotas raciais nas universidades públicas se explica pela lógica da disputa do acesso ao capital cultural, e pela preservação das “cotas exclusivas” para jovens brancos da classe média, como tem sido historicamente no ensino superior no país.

Vive-se, nas universidades públicas brasi-leiras, uma das raras experiências no mundo de cotas raciais para “maiorias” sociais, e não para minorias, como na Europa e nos Estados Unidos da América (EUA).

Pretos e pardos representam mais de 50% da população brasileira, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)[14].

A universidade é um dos espaços sociais em que vige o “contrato racial”, apontado por Charles W. Mills (Cornell). Segundo o pes-quisador, na base do “contrato social” vigora, nas sociedades caracterizadas pela violência racial, o contrato que naturaliza a invisibili-dade negra nas esferas dos poderes político, cultural, econômico e social[15].

A presença negra na universidade desafia e desnaturaliza a segregação e implica rupturas no espaço acadêmico.

Ela é o primeiro estágio para a formação da ambiência de respeito à diversidade no ensino superior, condição sine qua non para a ruptura epistêmica na ciência, inovação e criatividade.

Nos estágios posteriores, os objetivos são a

A PRESENÇA NEGRA NA UNIVERSIDADE DESAFIA EDESNATURALIZA A SEGREGAÇÃO E IMPLICA RUPTURASNO ESPAÇO ACADÊMICO.

Juarez Tadeu de Paula Xavier é docente do Departamento de Comunicação Social da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação em Bauru [DCSO/FAAC] no curso de Jornalismo e no Programa de Pós-graduação em Mídia e Tecnologia; presidente da Comissão Permanente de Verificação das Autodeclarações para Pretos e Pardos; coordenador do programa “Educando pela Diversidade”.

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permanência acadêmica (moradia, alimenta-ção e condições subjetivas para assegurar uma educação de qualidade) e alterações nas for-mas de organização e criação do conhecimento na universidade (ensino baseado na realidade factual da sociedade, extensão que promova a interação dinâmica e relacional entre os co-nhecimentos universitários e “pluriversitários”, e pesquisa focada nos problemas estruturais que afetam os segmentos sociais, em especial os em condições de vulnerabilidade).

Políticas de diversidade cultural e humana recomendadas pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO)[16] e pelos Objetivos de Desen-volvimento Sustentável (ODS), da Organização das Nações Unidas (ONU).

A efetivação das políticas de reserva de vagas para a educação básica, e para pretos, pardos e indígenas trará importantes mudanças para a universidade e para a sociedade brasileiras.

Elas promoverão a aproximação com a so-ciedade, contribuindo para a superação da crise que importuna a universidade pública brasileira (com a possibilidade de intercâmbio de conhecimentos com outros espaços que produzem pesquisas e inovação tecnológica, a legitimação junto à sociedade que sustenta o ensino público e a institucionalização de uma cultura de enfretamento e desarticulação das violências que empeçonham o ambiente acadêmico), e com a formação de um pensa-mento crítico para a superação da segregação social e racial que caracterizam as condições de vida e morte da população negra, nesses 130 anos de uma abolição formal, distante ainda da igualdade real.

A população negra percorrerá ainda um longo caminho para humanizar as suas con-dições de vida na sociedade brasileira.

A extensão dessa caminhada dependerá do papel que a universidade pública desempenha-rá para a superação da segregação, no âmbito intelectual, assim como desempenhou, no passado, para a articulação da narrativa justi-ficadora do preconceito, discriminação racial, racismo e desumanização negra no Brasil.

LUGAR DE NEGRORAFAEL ALMEIDA FERREIRA ABRÃO

P assaram-se 130 anos desde o fim da escravidão no Brasil, o último país do

continente a abolir o regime escravocrata, e a população negra permanece excluída na so-ciedade, sofrendo com a discriminação e se-gregação não somente em situações cotidianas desrespeitosas como também no mundo do trabalho. Assim, dados de institutos de pes-quisa comumente evidenciam que os negros continuam a ocupar posições subalternas e mal remuneradas no mercado de trabalho, o que está diretamente ligado às dificuldades dessa parcela da população para ocupar car-gos de chefia, obter salários equivalentes aos de trabalhadores brancos e ter acesso à edu-cação, especialmente ao ensino superior. Essa desigualdade torna a população negra mais vulnerável às mazelas da pobreza e extrema pobreza, camadas onde prevalecem o desres-peito aos direitos sociais, incluindo à proteção previdenciária e aos direitos trabalhistas.

Segundo dados do Departamento Intersindi-

cal de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) divulgados em novembro de 2017, a população negra mantém historicamente uma maior representação entre desempregados em alguns dos principais mercados de trabalho metropolitanos. Em pesquisas realizadas nas regiões metropolitanas de Fortaleza, Porto Ale-gre, Salvador, São Paulo e no Distrito Federal, os dados demonstram que, com a crise política e econômica iniciada em 2015, houve maior aumento da taxa de desemprego entre negros em comparação com o restante da população. É importante destacar que as trabalhadoras negras são o grupo mais atingido pela discri-minação no trabalho, registrando maiores ta-xas de desemprego e desnivelamento salarial, não somente quando comparadas à população branca como também em comparação aos tra-balhadores negros, o que evidencia uma sobre-posição de discriminação racial e de gênero.

Os dados do DIEESE demonstram que, em quase todas as regiões, os negros têm im-portância reduzida nos empregos da indústria (de maior qualificação técnica e remuneração), enquanto tem uma maior participação no se-

Rafael Almeida Ferreira Abrão é mestrando do Programa de Pós- -graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC) da Universidade Estadual Paulista (Unesp) - Câmpus de Marília (contato: [email protected]).

REFERÊNCIAS

[2] Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/%0D/ea/v8n20/v8n20a17.pdf>. Acesso: 25/3/2018, às 9h57.

[3] Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906) - Faculdade de Medicina da Bahia - desenvolvia, na passagem do século 19 para o século 20, pesquisas em que relacionava a questão racial negra à criminalidade, nas áreas de medicina legal, psiquiatria, antropologia e sanitária.

[4] Disponível em <https://luizcandido.files.wordpress.com/2015/09/genealogia-do-racismo-moderno-cornel-west.pdf>. Acesso em 23/03/2018, às 23h01.

[5] Disponível em <https://www.mapadaviolencia.org.br/>. Acesso: 20/03/2018, às 19h16.

[6] Disponível em <http://revistapesquisa.fapesp.br/2007/04/01/quase-pretos-quase-brancos/> Acesso: 25/03/2018.

[7] Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/09/1920559-escravidao-e-nao-corrupcao-define-sociedade-brasileira-diz-jesse-souza.shtml>. Acesso: 25/03/2018, às 10h24.

[8] Atual Movimento Negro Unificado (MNU).

[9] Disponível em <https://www.geledes.org.br/definicoes-sobre-branquitude/>. Acesso: 24/03/2018, às 22h05.

[10] Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12288.htm>. Acesso: 23/03/2018, às 18h37.

[11] Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm>. Acesso: 20/03/2018, às 19h09.

[12] Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm>. Acesso: 20/03/2018, às 19h15.

[13] Disponível em <https://www.revistaforum.com.br/nosso-racismo-e-um-crime-perfeito/>. Acesso: 20/03/2018, às 19h27.

[14] Disponível em <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/18282-pnad-c-moradores.html>. Acesso: 25/03/2018, às 12h42.

[15] Disponível em <http://www.cornellpress.cornell.edu/book/?GCOI=80140100376800>. Acesso: 20/03/2018, às 19h42.

[16] Disponível em <http://unesdoc.unesco.org/images/0012/001271/127160por.pdf>. Acesso: 20/03/2018, às 19h51.

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tor de serviços. Nota-se a maior proporção de homens negros na construção e de mulheres negras nos serviços domésticos, inserções, em geral, mais precárias e de menores rendimen-tos. O setor privado tem maior participação relativa na estrutura ocupacional dos negros, enquanto o assalariamento no setor público tem maior peso na dos não negros.

Além das desigualdades relacionadas ao de-semprego, há ainda o desnivelamento salarial dos negros em relação à mesma posição ocupada por um trabalhador não negro. O rendimento dos assalariados não negros demonstrou ser superior ao dos trabalhadores negros em todas as regiões pesquisadas. Segundo dados divul-gados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), re-alizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os negros continuam a ser sub-remunerados pelo seu trabalho. Para efeitos de demonstração, o rendimento mé-dio real de um trabalhador branco no terceiro trimestre de 2017 foi de R$ 2 665, enquanto foi registrado rendimento inferior nos grupos que se declararam como pretos e pardos, que receberam em média R$ 1 502 e R$ 1 492, respectivamente.

Além da discriminação ocupacional e sala-rial presentes no mercado de trabalho temos, por fim, a discriminação do negro pela ima-gem, na qual as oportunidades de trabalho são suprimidas em decorrência do preconceito contra características relacionadas à popula-ção negra, como pele escura e cabelo crespo. Além disso, há também as situações em que o trabalhador sofre opressão relacionada a sua aparência após a contratação, tendo que con-viver com a discriminação dentro do ambiente de trabalho. Há, além disso, a persistência do estranhamento e incredulidade quando uma pessoa negra ocupa cargos de maior posição hierárquica ou maior qualificação.

Por fim, é importante notar como o racis-mo é um componente estrutural do mercado de trabalho brasileiro, no qual a cor influen-cia diretamente o lugar do negro. Além dis-so, não podemos ignorar que a mentalidade

– Dos que trabalham na construção civil, contratados por empreiteiras que têm foco no lucro e os tratam mal, colocando-os em con-dições insalubres de trabalho e de moradia e ainda remunerando-os mal;

– Das crianças que trabalham na exploração do sisal, que quebram pedras, que trabalham na confecção artesanal de calçados, roupas, que se prostituem sexualmente;

– Das pessoas que procuram se sustentar em novos campos de exploração mineral à procu-ra do ouro, que contamina rios com chumbo, mercúrio e outros metais pesados.

– Das pessoas que se prostituem em troca de uma pedra de crack.

PRECISAMOS ABOLIR A ESCRAVIDÃO MENTAL:– Dos que acreditam que o Bolsonaro é o sal-vador da pátria brasileira;

– Dos que criminalizam os movimentos sociais que lutam por educação, teto, terras, saúde, visibilidade e dignidade;

– Dos que sonegam impostos, emprestam do governo federal e ainda enriquecem às custas

escravocrata persiste no imaginário social do brasileiro, colocando o negro em estereótipos de inferioridade que precisam ser combatidos. Após a análise dos dados, é interessante notar que os indicadores sociais brasileiros ilustra-riam um país menos pobre, caso as diversas esferas do racismo no mercado de trabalho fossem combatidas. Dessa forma, uma estra-tégia de desenvolvimento para o Brasil passa, necessariamente, pelo combate ao racismo.

130 ANOS DA LEI ÁUREA IGOR SALOMÃO MONTEIRO

1 3/05/1888. Século XIX. A escravidão foi abolida parcialmente,

não me pergunte quantos por cento porque não saberei te dizer. O comércio de escravos negros deixou de ser rentável e resolveram “abolir” a escravidão.

Pela idade da Lei Áurea, não temos muito a comemorar, pois o Brasil foi um dos últimos países a decretar lei neste sentido. Foi um pro-cesso que passou pela Lei do Ventre Livre e pela Lei do Sexagenário.

A Lei é boa, só falta o cumprimento dela. A Lei é Áurea, mas o ouro ainda precisa ser burilado, é preciso tirar as impurezas dos vícios jurídicos, combater os privilégios pleonásticos, denunciar e punir empregadores que ainda usam o trabalho escravo.

Ainda existe trabalho escravo ou quase es-cravo no Brasil. Isso é fato.

PRECISAMOS ABOLIR A ESCRAVIDÃO FÍSICA:– Dos que trabalham em abatedouros de carne suína, bovina e de aves e têm lesões relacio-nadas ao trabalho, como síndrome do túnel do carpo, tendinites, depressão e mutilações;

– Dos professores que são mal pagos e são violentados constantemente por estudantes que não veem o menor sentido em estar ali em sala de aula. Tais professores adoecem, se estressam grandemente, entram em depressão, alguns se suicidam, outros usam uma grande quantidade de ansiolíticos e antidepressivos;

da exploração do trabalho de outros;– Dos inúmeros jogadores que sonham em

ser um Neymar, mas vão ter que procurar ou-tra profissão, pois maiores são as frustrações nesta área do que as glórias;

– Dos que pensam apenas em si mesmos, apenas nos seus próprios interesses e reivin-dicações;

– Dos que fazem política para os próprios interesses e não atendem às necessidades do povo;

- Dos jovens que estão escravos das drogas ou do crime organizado e não conseguem ver perspectiva de ascensão social, financeira e educacional;

– Dos que estão presos a conceitos ultracon-servadores, são intolerantes e não se propõem a pensar diferente daquilo que estão acostu-mados a pensar, não se abrem a novas ideias e jeitos de viver.

A deforma trabalhista quer aumentar a ida-de mínima para conseguir a aposentadoria, quer achatar ainda mais o valor do benefício para que as pessoas continuem trabalhando depois de se aposentarem. A deforma traba-

REFERÊNCIAS

DIEESE. Sistema PED – Pesquisa de Emprego e Desemprego: Inserção da População Negra nos Mercados de Trabalho Metropolitanos. Nov. 2017. Disponível em: <https://www.dieese.org.br/analiseped/negros.html>, acesso em 14 fev. 2018.

IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua). [s.d.]. Disponível em: <http://www.sidra.ibge.gov.br/bda/pesquisas/pnadc/default.asp>, acesso em 14 fev. 2018.

Igor Salomão Monteiro é psicólogo (CRP 06/101831) e atua na Seção Técnica de Saúde da Unesp de Rio Claro

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lhista continuará a manter os privilégios de magistrados, militares e políticos, que pouco se importam conosco.

A Lei é Áurea, mas o buraco em que o ou-ro está é mais embaixo. Isabel, nome bonito, prima de Maria, mãe de Jesus. Mas somente o parentesco de nada vale. É preciso mudan-ça e liberdade!

DA ABOLIÇÃO LEGAL SIMBÓLICA À IGUALDADE FÁTICAWALTER DE OLIVEIRA CAMPOS

D entre os diversos ângulos e matizes pelos quais se podem desenvolver reflexões

sobre as comemorações pelos 130 anos da assinatura da Lei Áurea, um dos mais inte-ressantes é o concernente aos efeitos sociais do ato legislativo que pôs fim à escravidão no

sequentemente, à ociosidade e à criminalidade, contribuíram para alimentar os estereótipos negativos em relação aos negros já existentes na sociedade. A lei, que os considerava iguais aos brancos em direitos, não lhes forneceu meios de superação da desigualdade material imposta pelo sistema escravista brasileiro até então vigente. Este teria sido sepultado pela Lei Áurea e parecia parte de um passado já superado, principalmente após a proclamação da República em 1889 e o estabelecimento de uma ordem nacional pretensamente nova. Mas uma estrutura socioeconômica secular não se muda tão radicalmente por uma simples assi-natura numa folha de papel.

A preocupação com os efeitos simbólicos sem a contrapartida em termos de efetivida-de é bem exemplificada pela Lei no 1.390, de 1951, conhecida como Lei Afonso Arinos, a primeira lei contra a discriminação racial do Brasil. A crítica jurídica e historiográfica tem apontado que sua elaboração se deu principal-mente em resposta a um evento discriminatório de grande repercussão que poderia macular a reputação de “paraíso da harmonia racial” que o Brasil ostentava perante a comunidade internacional. O texto da Lei Afonso Arinos considerava contravenção (e não crime) con-dutas flagrantemente discriminatórias, como recusar a entrada de alguém em determina-dos lugares ou proibir o ingresso no serviço público por motivo de cor ou raça. A lei, que foi saudada por alguns como a “segunda Abo-lição”, parecia adequada à repressão do tipo de discriminação racial perpetrada em países em que vigorava um racismo institucional e legal, como nos Estados Unidos, mas era in-capaz de coibir as práticas discriminatórias de maior ocorrência cotidiana, as que ocorriam no âmbito privado. E mesmo os eventos de discriminação racial pública e ostensiva ra-ramente resultavam em condenações, como ainda hoje dificilmente resultam, não obstan-te a Lei no 7.716, de 1989, conhecida como Lei Caó, tenha ampliado o rol de condutas discriminatórias, considerando-as crimes e prescrevendo penas mais severas.

Brasil. Do ponto de vista jurídico-político, a Lei Áurea sedimentou, no âmbito normativo, a posição predominante no meio político inter-no em relação à escravidão, em consonância com a pressão inglesa pelo fim do tráfico de escravos. Mais ainda, alinhou a ordem jurídica interna com os ideais iluministas de liberdade e igualdade, que repeliam práticas tão restritivas de direitos como a escravidão. Para a história das populações afrodescendentes, trata-se de um marco simbólico de reconhecimento não apenas da liberdade, mas também da igual-dade em relação aos brancos, pelo menos no aspecto jurídico-formal.

Porém, do ponto de vista da igualdade ma-terial, a Lei Áurea é representativa de leis brasileiras que reconhecem direitos no plano formal, mas não prescrevem as garantias que possibilitem o pleno exercício desses direitos no plano fático. Com efeito, após a Abolição a grande massa de negros libertos viu-se jo-gada na sociedade sem as menores condições de acesso aos bens e serviços necessários a uma vida minimamente digna, como saúde, trabalho, habitação, educação, etc. Tais con-dições, forçando a população negra à vida em condições degradantes, ao desemprego e, con-

A ordem normativa brasileira parece ten-dente à adoção de medidas que busquem re-duzir a desigualdade material que se verifica em detrimento da população negra. A Cons-tituição Federal de 1988, nos incisos II e IV de seu artigo 3o, estabelece como dois dos objetivos fundamentais da República Federa-tiva do Brasil a erradicação das desigualdades sociais e a promoção do bem de todos sem qualquer forma de discriminação, incluindo preconceitos como o de raça. O comprometi-mento do Estado brasileiro com o estipulado na Conferência de Durban contra o Racismo, de 2001, pode ser verificado pela elaboração do Estatuto da Igualdade Racial (Lei no 12.288, de 2010) e pela adoção de medidas afirma-tivas visando à maior inclusão da população negra em importantes setores da vida social em que a participação dessa população ainda é diminuta, como é o caso das cotas raciais para vagas em universidades públicas e em concursos públicos.

Não obstante os indicadores sociais con-tinuem apontando a persistência do desnível entre brancos e negros no Brasil, espera-se que os avanços já conquistados em termos de pro-dução legislativa possam se traduzir cada vez mais em ações públicas e privadas que objeti-vem a melhoria dessa situação. Porém, o que mais preocupa é a constatação de que o racismo insidioso ainda persiste e nos tempos atuais se manifesta, entre outras maneiras, por meio da contestação da necessidade da adoção das me-didas afirmativas, como se vê pelas recorrentes críticas à política de cotas raciais e até mesmo por certo desprezo de boa parte da população pelo movimento de direitos dos negros.

A Lei Áurea, a “primeira Abolição”, deve ser celebrada como o marco simbólico do fim da desigualdade legal e do início da luta pela igualdade material dos negros brasileiros em relação aos brancos. De maneira otimista, pode-se esperar que num futuro próximo o Estatuto da Igualdade Racial seja celebrado como o marco simbólico da “segunda Aboli-ção”, a abolição da desigualdade social por motivo de cor ou raça.

APÓS A ABOLIÇÃO, A GRANDE MASSA DE NEGROS LIBERTOS VIU-SE JOGADA NA SOCIEDADE SEM AS MENORES CONDIÇÕES DE ACESSO AOS BENS E SERVIÇOS NECESSÁRIOS A UMA VIDA MINIMAMENTE DIGNA

Walter de Oliveira Campos, doutor em História pela Unesp de Assis

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130 anos da abolição130 anos da abolição

a escravidão logo se converteu em um espaço de disputas interoligárquicas, que passaram a pressionar junto ao poder constituído a defesa de seus interesses sobre a questão. Em torno deles estavam as onipresentes justificativas para permanência da escravidão, usualmente atreladas a receios econômicos e sociais acerca da possibilidade do seu fim. Essas teses eram defendidas especialmente por grupos ligados aos grandes latifúndios, que alegavam depen-dência do trabalho escravo para a manutenção das suas estruturas produtivas.

Essa realidade afetou diretamente a maneira como o Brasil era visto e percebido de fora, em um momento em que a nova unidade política procurava uma identidade internacional própria e autônoma. Do exterior o país passou a ser visto como uma sociedade contraditória, em que ditames liberais, consagrados pela Carta Constitucional de 1824, conviviam com um sistema cruel e desumano. A identidade brasi-leira ao redor do mundo se formou dessa visão, encontrando nas décadas seguintes imensas

A ESCRAVIDÃO E A IDENTIDADE INTERNACIONAL BRASILEIRA DANIEL REI CORONATO

P oucos assuntos provocam tantos debates quanto a escravidão no Brasil e seus re-

flexos. A importância do tema é usualmente reiterada, levando pesquisadores e pensadores a revisitá-lo de tempos em tempos. O prolon-gamento desse interesse parece residir na per-cepção de que mesmo após ter se encerrado formalmente em 13 de maio de 1888, ocasião em que foi sancionada a Lei Áurea pela regen-te Princesa Isabel, as contradições e efeitos da escravidão ainda se fazem presentes como traços caracterizadores, e até definidores, da realidade brasileira.

Longe de ser um entendimento contempo-râneo, essa compreensão já existia durante sua vigência, mobilizando forças que disputavam seu manejo e destino. Após a emancipação do domínio metropolitano português (1822)

dificuldades para se desassociar dessa percep-ção, contrastando com a reiterada tentativa do regime imperial de promover uma imagem de civilização e progresso, em especial diante das repúblicas vizinhas. Relatos de estrangeiros, viajantes, diplomatas, entre outros, usualmen-te ressaltavam essa ambivalência, impedindo análises outras que ignorassem essa dimensão.

Essa imagem externa se intensificou à me-dida que o tráfico internacional de escravos, e a escravidão em si, passaram a ser amplamente combatidas no âmbito político e moral pelas grandes potências da época, acentuando a co-nexão entre a instituição escravista e a identi-dade brasileira. Um dos principais atores nesse contexto foi a Inglaterra, que exerceu enorme pressão sobre o governo imperial, usando dos mais variados meios para isso.

Pressionado, o governo brasileiro buscou contornar essa conjuntura desfavorável, pro-curando desde manobras de reenvio dos egres-sos ilegais para seus destinos de origem, até discussões acerca de possibilidades diversas que iam desde adquirir terrenos em possessões portuguesas, incluindo meios de dispersar os cativos entre diversas possessões coloniais, ou mesmo tentar uma associação com os Estados Unidos para criar uma estrutura que pudesse recepcionar os apreendidos.

Esse modelo de ação reforçava a percep-ção externa acerca da natureza da sociedade brasileira, iminentemente assimétrica e es-cravagista, preferindo alternativas incapazes de solucionar verdadeiramente a questão ao invés de combatê-la de frente. Essa tendência se intensificou após o fim do tráfico interna-cional de escravos (1850), especialmente nos debates sobre a atração de imigrantes euro-peus, no modelo de fomento de colônias nas regiões Sul e Sudeste, na aproximação com grupos escravocratas que combatiam na Guer-ra de Secessão Americana (1861-1865), e até na pouco estudada tentativa de acordo com a China para ingresso de habitantes daquela país.

Cada uma dessas passagens revelava faces e contornos complementares da escravidão bra-sileira, levantando questionamentos externos

sobre os elos entre aquela instituição e o verda-deiro interesse dos oligarcas e governantes na sua extinção. A demora para que uma solução definitiva fosse encontrada intensificou essa visão, mesmo após o aumento dos movimentos abolicionistas que pavimentaram os caminhos para a Lei Áurea. Essa trajetória produziu uma identidade internacional associada à escravidão e seus resquícios, condicionando até hoje de diversas maneiras a percepção externa sobre as vicissitudes brasileiras.

ESCRAVIDÃO NA PÓS-MODERNIDADEJOÃO PAULO VANI

N este ano, o Brasil celebra 130 anos da assinatura da Lei Áurea, a etapa final

para a abolição da escravidão em nosso país, precedida pela Lei Eusébio de Queirós, de 1850, considerada um dos primeiros passos para o fim da objetificação do negro, com a proibição do tráfico de escravos, e com a Lei do Ventre Livre, de 1871, a partir da qual os negros nasciam livres.

Com o fim da escravidão de negros oriun-dos da África, dois processos se iniciaram: a desigualdade de oportunidades entre negros e brancos e a nova forma de escravidão, a moral, por meio da qual o europeu, que por motivos diversos chegava ao Brasil, era empregado nas lavouras – e explorado pelos ex-senhores de escravos. Aqui, nas terras do Novo Mundo, percebia que tinha a receber, ao final do pe-ríodo de um mês, menos do que havia gasto para a própria subsistência. Que ideia genial! Se não é mais permitido neste país colocar grilhões em tornozelos negros, basta colocar sobre as costas dos europeus o peso de gasta-

SE NÃO É MAIS PERMITIDO NESTE PAÍS COLOCAR GRILHÕES EM TORNOZELOS NEGROS, BASTA COLOCAR SOBRE AS COSTAS DOS EUROPEUS O PESO DE GASTAREM MAIS DO QUE GANHAM

Daniel Rei Coronato é doutor pelo Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP).

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nas lavouras de café, mas com os nordestinos que, em busca de uma vida melhor, migravam para as lavouras de cana-de-açúcar do Sudeste e, em condições similares àquelas vividas pelos “escravos” europeus, morriam de esgotamen-to em busca de mais dinheiro: ao receber por metro de cana cortada, buscavam cargas de trabalho insanas, e sucumbiam.

A falta de humanidade percebida no su-jeito fragmentado do mundo pós-moderno, o indivíduo que em meio à volatilidade de suas relações é incapaz de perceber o outro, é também incapaz de se dar conta de que no mundo atual existe espaço para formas de escravidão que vão além da exigência física e do subjugo moral. Poderíamos, então, pensar na escravidão voluntária e inconsciente, em que o próprio indivíduo, em busca de uma ilusória posição social ou ampliação de suas possibilidades de consumo, se torna escravo de seus próprios desejos, abrindo mão de sua dignidade; esse escravo vive em função do consumo e a ele mesmo se entrega.

Entretanto, não podemos fazer de conta que não sabemos que ainda existem, em nos-so país, debaixo de nossos narizes, e às portas

rem mais do que ganham, assim trabalharão de sol a sol, por anos a fio, mas jamais, jamais!, poderão se dizer escravos.

Sobre a desigualdade de oportunidades entre negros e brancos, temos de considerar terem restado aos negros recém-libertos os empregos que os brancos não queriam, postos para esfor-ço físico ou cargas de trabalho excruciantes.

Se, poucas décadas após o término oficial da abolição da escravatura, uma nova forma de subjugar já se encontrava em voga, é com tristeza que podemos notar, ainda nos dias atuais, outras formas de escravidão.

Uma dessas formas de escravidão pode ser vista na Europa, décadas mais tarde na Alema-nha nazista, que com seus campos de trabalho escravo fazia com que judeus e tantos outros cidadãos de “segunda classe” trabalhassem até a exaustão, pois não eram posse, e nada valiam sob aquela perspectiva, cujo descarte, portanto, poderia ser feito sem grandes consequências, fosse em valas comuns, fosse na transferência para os campos de extermínio, no Holocausto.

Voltando para a realidade brasileira, de duas, três décadas atrás, a escravidão ainda podia ser percebida no campo, não mais com europeus

dos anos 2020, os mercados para tráfico de órgãos, ou de crianças, ou de escravas sexu-ais, formas e mais formas de escravidão. O mundo real, sem cor, ainda persiste. E não é só isso: é preciso que esteja também em nossa análise a situação do refugiado, que abando-na sua terra, sua cultura e seu povo, em uma fuga da morte que nem sempre significa vida: sírios, haitianos e venezuelanos, dentre tantos outros, que chegaram ao nosso país em busca de oportunidades, mas encontraram apenas humilhação e exploração.

É de fundamental importância que, ao re-memorarmos os 130 anos da libertação dos escravos negros no Brasil – pois nada há para comemorar –, estejamos certos de que a es-cravidão continua a existir, de formas diversas daquela banida pela assinatura da Princesa Isabel, podendo ser encontrada por aí, nas esquinas, nas fábricas, nos restaurantes, sob marquises, nos semáforos e em camadas qua-se invisíveis da sociedade, quase sempre ao lado dos negros, que continuam lutando por igualdade, por melhores condições de vida, pela ampliação de suas oportunidades. En-fim, pelo reconhecimento de sua dignidade.

GRITOS ABAFADOS NO PASSADO E NO PRESENTERENAN ANTÔNIO DA SILVA

P olicarpo Quaresma é o epíteto da crítica à sociedade brasileira na República Velha. O

país livrou-se do Imperador e da família imperial, mas manteve os mesmo vícios odiosos comuns às aristocracias: uma classe dominante que ama o ócio, como sinal de distintiva nobreza, e que despreza o trabalho como sendo algo a ser feito por pessoas desqualificadas, de segunda categoria (BARRETO, 1983, p. 46-48). Ironicamente, po-rém, o Brasil dispunha de um Código Criminal que ia contra essa visão social. No seu capítulo XIII, cujo tema era “Dos Vadios e Capoeiras”, os artigos 399 a 404 previam punição a quem não trabalhasse para subsistência, sendo puni-do com prisão, deportação (estrangeiros) ou até recolhimento “a estabelecimentos disciplinares industriais, onde poderão ser conservados até à idade de 21 anos” (BRASIL, 1890). Aliás, esse código fazia explícita referência aos temos “va-dio” e “vagabundo”.

Qual era, contudo, a realidade brasileira? Dois anos antes desse decreto, em 1888, a

João Paulo Vani, presidente da Academia Brasileira de Escritores. Coordenador do programa “Brazilian Studies” da University of Louisville, nos Estados Unidos. Aluno de doutorado do Programa de Pós-graduação em Letras da Unesp/SJRio Preto, é mestre em Teoria Literária (Unesp) e Especialista em Administração (MBA) com ênfase em Comunicação e Marketing.

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morrer de forme, outros foram lançados nas ruas sem possuir absolutamente nada e sem oferta de trabalho (os seus antigos senhores preferiam contratar os imigrantes europeus que vinham chegando ao Brasil desde 1870 a pagar salário para seus outrora escravos), por fim, negros passaram à criminalidade para buscar obtenção de sustento, vivendo nas pe-riferias das cidades, no que veio a ser chamado “favela”, em alusão a uma planta muito comum no Brasil que se espalha de maneira rápida e espantosa (CORDEIRO; SECCO, 2015).

Logo, as leis de vadiagem e vagabundagem atingiriam especificamente negros, que eram colocados à parte da sociedade, algo contra o que a República, cuja virtude e nobreza deveria ser evidente em relação ao famigerado Impé-rio, não fez absolutamente nada. Ademais, os europeus que aqui chegaram, vindos de um continente cujas lutas operárias e disputas trabalhistas eram concomitantes ao início da industrialização na Europa, a partir de meados do século XVII e com grande força nos séculos XVIII e XIX, não aceitariam certas realidades

então Regente Brasileira assinou a Lei 3.353 de 13 de maio de 1888, com apenas dois arti-gos, sendo que o primeiro dizia: “É declarada extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil.” (BRASIL, 1888) e o segundo revoga-va qualquer disposição em contrário. Qual o

resultado dessa lei? Considerando que a es-cravidão persistiu no Brasil por quase quatro séculos como política econômica de Estado, declarar o fim da escravidão implicava ime-diatamente em eliminar os escravos, não o sistema de trabalho que, em verdade, seguiu de maneira discreta nos rincões brasileiros. O ideário da abolição foi convertido em ideologia da liberdade.

As consequências imediatas foram: mui-tos negros continuaram em servidão para não

brasileiras passivamente. Há relatos de que alguns italianos e alemães eram mantidos em situação análoga à escravidão nos cafezais de São Paulo, no Rio Grande do Sul e em Minas Gerais. Os antigos donos de escravos perderam suas posses humanas, mas não perderam seus vícios opressores. Essa situação, contra a qual a lei e até mesmo a Constituição republicana eram inócuas foi se tornando cada vez mais insustentável.

Esses abusos contra os trabalhadores no Brasil atingiram seu limite em julho de 1917, quando aconteceu a Greve Geral da Indústria e do Comércio, promovida pelas organizações operárias de inspiração anarquista. Anarquis-mo é uma ideologia política que se opõe a todo tipo de hierarquia e dominação política, econômica, social e cultural, incluindo o Es-tado, o capitalismo, as instituições religiosas, o racismo e o patriarcado. Através de uma análise crítica da dominação, o anarquismo pretende superar a ordem social na qual esta se faz presente através de um projeto construti-vo baseado na defesa da autogestão, tendo em vista a constituição de uma sociedade libertária baseada na cooperação e na ajuda mútua entre os indivíduos e onde estes possam associar-se livremente (CORREA, 2015, p. 79). No Brasil, a fundação da Confederação Operária Brasi-leira (COB) em 1906, que incluiu federações operárias locais de São Paulo, Rio de Janeiro, Santos e Porto Alegre, levou à greve geral em 1917 e a uma insurreição em 1918, marcando a hegemonia anarquista no movimento ope-rário do país nesse período (p. 41).

As oligarquias brasileiras começavam a par-tir de então a ter dores de cabeça com o mo-vimento trabalhista que, ao invés de oferecer objetos para seu controle, tinha à sua frente pessoas cujo raciocínio crítico não aceitava os desmandos que, por séculos, as elites brasileiras cometiam contra os escravos e trabalhadores livres sob seu controle. Esse foi o início, no Brasil, das lutas de cunho social, por direitos, por justiça, por um tratamento igualitário e por ganhos justos, condizentes com o árduo trabalho que enriquecia cada vez mais a oli-

garquia dominante brasileira.Como sempre, porém, o Brasil não estava

na vanguarda dessas lutas. Na verdade, o país apresenta um atraso contumaz em comparação aos seus vizinhos lationo-americanos. Enquan-to em 1906 formava-se a COB e somente em 1917 vem a Greve Geral, a muitos quilômetros daqui, no México, o movimento anarquista, se consolidou já em 1868, quando foi funda-da uma organização específica anarquista, La Social, e entre 1877 e 1878 os anarquistas constituíram hegemonia no movimento operá-rio mexicano, articulados no Gran Círculo de Obreros en México (GCOM). Ou seja, quase 50 anos separam o Brasil do México no que diz respeito às lutas por direitos sociais, civis, políticos e econômicos, sendo que no Brasil elas começam em 1917 e até 1988 são apenas um grito quase abafado. O México, porém, em 1917, promulga uma obra prima: a primeira Constituição da História a falar em tais direi-tos, tão bem elaborada, que está em vigor até hoje, com emendas, evidentemente.

Referências

BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. 17. ed. São Paulo: Ática, 1983, p. 46-48.

BRASIL. Decreto 847 de 11 de outubro de 1890: Promulga o Código Penal. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-847-11-outubro-1890-503086-publicacaooriginal-1-pe.html>.

_______. Lei 3.353 de 13 de maio de 1888: Declara extinta a escravidão no Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM3353.htm>.

CORDEIRO, I.; SECCO, R. “Cnidoscolus”. In Lista de Espécies da Flora do Brasil. Jardim Botânico do Rio de Janeiro, 2015. Disponível em: <http://floradobrasil.jbrj.gov.br/jabot/floradobrasil/FB17494>.

CORRÊA, Felipe. Bandeira Negra. Rediscutindo o anarquismo. São Paulo: Prismas, 2015.

AS LEIS DE VADIAGEM E VAGABUNDAGEMATINGIRIAM ESPECIFICAMENTE NEGROS, QUE ERAM COLOCADOS À PARTE DA SOCIEDADE

Renan Antônio da Silva: Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Unesp – Araraquara. Realizou estágio doutoral com bolsa CAPES/PDSE junto ao Centro em Investigação Social (CIS/ISCTE-IUL), em Lisboa/Portugal (2015-2016) sob processo de número 99999.006746/2015-02. É mestre em Desenvolvimento Regional, na linha temática Políticas Públicas (2014). É cientista social (2012). Foi bolsista (2014/2015) da Fundação para o Desenvolvimento da UNESP (FUNDUNESP). E-mail: [email protected]

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