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Urbanismo Urbanismo de lotes ou terrenos), se dará por enfiteuse ou aforamento, um sistema de transferência de uma área sem sua posse plena. Em geral o olhar é de perplexidade, pois são poucas as pessoas que já ouviram tal ter- mo com esse sentido, somado a outros que o complementam, como aforamento, enfiteuse, laudêmio. O léxico parece muito distante e depois da surpresa sobra a falsa sensação de que tal sistema era próprio da história antiga portuguesa ou, quando muito, do período co- lonial no Brasil. Novamente sou obrigado a informar que o “Patrimônio Religioso” é um fenômeno urbano pouco estudado, mas que explica como se deu o “surgimento dos chãos” H abitualmente, estudantes interessados em nossa pós-graduação na área de Ar- quitetura e Urbanismo me procuram no sentido de solicitarem orientação sobre as edificações religiosas e seus bens. De praxe, tento mos- trar a eles que minha área de pesquisa não é necessariamente voltada aos templos e de- mais pertences da Igreja Católica e, sim, aos “Patrimônios Religiosos”. Claro, a partir dai é necessário explicar de forma breve o sentido disso, apontando que se trata de terras rurais concedidas por particulares à Igreja Católica para a criação de um povoado com sua cape- la (MONBEIG, 1984, p.235 e 236), e que a ocupação das datas (atualmente chamaríamos onde se assentaram boa parte das cidades do interior paulista (e certamente não só em nosso Estado), a partir dos meados dos novecentos, e mais celeremente, nas últimas três décadas do século XIX. Ou seja, esse processo é relativa- mente recente e seus reflexos se fazem sentir até nossos dias nas urbes onde o aforamento ainda é presente!!!. A doação da terra para se constituir um Pa- trimônio se dava em honra a um santo, em seu nome, e a denominação desse local expressava claramente sua origem religiosa, quase sempre se iniciava pelo nome do canonizado ou cano- nizada padroeira, sucedido pelo do acidente geográfico que caracterizava a área, em geral um rio (MARX, 1980, p.23). O orago que seria homenageado com a ereção da capela era do agrado do doador, um fazendeiro (ou mesmo grupo deles) que separava uma parte de sua propriedade para a atribuição. Com o passar do tempo e na maioria dos casos, a denomi- nação religiosa desapareceu, ficando apenas o nome ligado à geografia, por exemplo: São Sebastião do Bauru ou São João do Rio Claro, conhecidas hoje apenas por Bauru e Rio Claro. As terras da nova vila, quando arruadas pelo poder civil, seriam administradas e transmiti- das pela Fábrica Paroquial, nome também an- cestral que designa a entidade ligada à Igreja que cuidava dos bens, direitos e rendimentos de uma igreja matriz (ALVES, 1897, p.564). A Fábrica, que se constituía numa corporação formada por clérigos e leigos que administravam os bens da paróquia, disporia da terra doada em datas urbanas, cedidas por aforamento aos interessados em viver no patrimônio. A corporação era composta de pessoas da comu- nidade e, quase sempre, presidida por pároco indicado pelo bispo. O nome Fábrica vem do fabrico da igreja, sua construção, aformosea- mento e compra de alfaias, que era para onde deveriam, em tese, se dirigir os recursos do aforamento das terras urbanas. Mesmo que o Patrimônio ascendesse ao estágio de cidade, seus limites originais e tam- bém os direitos imanentes a ele permaneciam, pois sua doação e transmissão eram perpétu- as, conforme as antigas leis pré-capitalistas que o guiavam, alteradas lentamente confor- me os novos Códigos Civis se sucederam. Ou seja, aqueles que estivessem ocupando áreas do Patrimônio, ou da área foreira, como tam- bém eram designados, além de não terem pos- se definitiva do bem, apenas direito de uso e TRATA-SE DE TERRAS RURAIS CONCEDIDAS POR PARTICULARES À IGREJA CATÓLICA PARA CRIAÇÃO DE POVOADO Patrimônio religioso, o que é isso? O PATRIMÔNIO SE CONSTITUÍA EM CENTRO DE UMA EXTENSA ÁREA DE OCUPAÇÃO RURAL; ELE ASSEGURAVA AOS COMPRADORES DAS FAZENDAS, FAZENDOLAS E SÍTIOS DO ENTORNO UM MÍNIMO DE SEGURANÇA E ‘VIDA URBANA’ Rio Claro, 1949. © Rio Claro (SP). Fundo documental: Correio da Manhã 18 UNESPCIÊNCIA | NOVEMBRO 2018 19 NILSON GHIRARDELLO NOVEMBRO 2018 | UNESPCIÊNCIA

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de lotes ou terrenos), se dará por enfiteuse ou aforamento, um sistema de transferência de uma área sem sua posse plena.

Em geral o olhar é de perplexidade, pois são poucas as pessoas que já ouviram tal ter-mo com esse sentido, somado a outros que o complementam, como aforamento, enfiteuse, laudêmio. O léxico parece muito distante e depois da surpresa sobra a falsa sensação de que tal sistema era próprio da história antiga portuguesa ou, quando muito, do período co-lonial no Brasil. Novamente sou obrigado a informar que o “Patrimônio Religioso” é um fenômeno urbano pouco estudado, mas que explica como se deu o “surgimento dos chãos”

H abitualmente, estudantes interessados em nossa pós-graduação na área de Ar-

quitetura e Urbanismo me procuram no sentido de solicitarem orientação sobre as edificações religiosas e seus bens. De praxe, tento mos-trar a eles que minha área de pesquisa não é necessariamente voltada aos templos e de-mais pertences da Igreja Católica e, sim, aos “Patrimônios Religiosos”. Claro, a partir dai é necessário explicar de forma breve o sentido disso, apontando que se trata de terras rurais concedidas por particulares à Igreja Católica para a criação de um povoado com sua cape-la (MONBEIG, 1984, p.235 e 236), e que a ocupação das datas (atualmente chamaríamos

onde se assentaram boa parte das cidades do interior paulista (e certamente não só em nosso Estado), a partir dos meados dos novecentos, e mais celeremente, nas últimas três décadas do século XIX. Ou seja, esse processo é relativa-mente recente e seus reflexos se fazem sentir até nossos dias nas urbes onde o aforamento ainda é presente!!!.

A doação da terra para se constituir um Pa-trimônio se dava em honra a um santo, em seu nome, e a denominação desse local expressava claramente sua origem religiosa, quase sempre se iniciava pelo nome do canonizado ou cano-nizada padroeira, sucedido pelo do acidente geográfico que caracterizava a área, em geral

um rio (MARX, 1980, p.23). O orago que seria homenageado com a ereção da capela era do agrado do doador, um fazendeiro (ou mesmo grupo deles) que separava uma parte de sua propriedade para a atribuição. Com o passar do tempo e na maioria dos casos, a denomi-nação religiosa desapareceu, ficando apenas o nome ligado à geografia, por exemplo: São Sebastião do Bauru ou São João do Rio Claro, conhecidas hoje apenas por Bauru e Rio Claro.

As terras da nova vila, quando arruadas pelo poder civil, seriam administradas e transmiti-das pela Fábrica Paroquial, nome também an-cestral que designa a entidade ligada à Igreja que cuidava dos bens, direitos e rendimentos de uma igreja matriz (ALVES, 1897, p.564). A Fábrica, que se constituía numa corporação formada por clérigos e leigos que administravam os bens da paróquia, disporia da terra doada em datas urbanas, cedidas por aforamento aos interessados em viver no patrimônio. A corporação era composta de pessoas da comu-nidade e, quase sempre, presidida por pároco indicado pelo bispo. O nome Fábrica vem do

fabrico da igreja, sua construção, aformosea-mento e compra de alfaias, que era para onde deveriam, em tese, se dirigir os recursos do aforamento das terras urbanas.

Mesmo que o Patrimônio ascendesse ao estágio de cidade, seus limites originais e tam-bém os direitos imanentes a ele permaneciam, pois sua doação e transmissão eram perpétu-as, conforme as antigas leis pré-capitalistas que o guiavam, alteradas lentamente confor-me os novos Códigos Civis se sucederam. Ou seja, aqueles que estivessem ocupando áreas do Patrimônio, ou da área foreira, como tam-bém eram designados, além de não terem pos-se definitiva do bem, apenas direito de uso e

TRATA-SE DE TERRAS RURAIS CONCEDIDAS POR PARTICULARES À IGREJA CATÓLICA PARA CRIAÇÃO DE POVOADO

Patrimônio religioso, o que é isso?

O PATRIMÔNIO SE CONSTITUÍA EM CENTRO DE UMA EXTENSA ÁREA DE OCUPAÇÃO RURAL; ELE ASSEGURAVA AOS COMPRADORES DAS FAZENDAS, FAZENDOLAS E SÍTIOS DO ENTORNO UM MÍNIMO DE SEGURANÇA E ‘VIDA URBANA’

Rio Claro, 1949.

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gozo, precisavam pagar o foro anual à Igreja Católica, e, em caso de repassá-las a outrem, o laudêmio. Para os Patrimônios irrelevantes tais taxas eram cobradas com certa frouxidão; entretanto, naqueles em crescimento, onde os imóveis se valorizavam muito, a Fábrica uti-lizava até mesmo ameaças via imprensa para as demandas de arrecadação.

Aspecto fundamental para entendermos o processo é o fato de o Patrimônio constituir-se em centro de uma extensa área de ocupação rural; ele assegurava aos compradores das fa-zendas, fazendolas e sítios do entorno um mí-nimo de segurança e “vida urbana”. Portanto, também funcionava como estratégia na venda da terra rural, essa a rigor liberada ao mercado desde a Lei de Terras de 1850, diferentemente dos “chãos” dentro do Patrimônio, presos às antigas práticas de aforamento.

Em São Paulo, o avanço da lavoura do café, tocada por força de trabalho imigrante, pro-piciou a abertura de centenas de Patrimônios Religiosos, futuras cidades, num primeiro mo-mento antes da chegada das plantações e, logo após, tendo as lavouras ao seu redor, grande parte em áreas de terras devolutas apropria-

das por particulares, consideradas nos mapas oficiais como ¨terrenos despovoados .̈ Grosso modo, tal região do Estado pode ser demar-cada por um polígono que abrange o centro e centro-oeste do Estado, onde se encontram cidades criadas como Patrimônios Religiosos, entre os meados, e mais expressivamente nas últimas três décadas do século XIX, devido à expansão da cultura cafeeira.

Para se ter uma idéia da amplidão da for-mação urbana paulista no século XIX, Pierre Monbeig nos dá alguns números: em 1879, a província possuía 100 municípios; no final do século XIX, o Estado terá 161, 41 criados na última década (MONBEIG, 1984, p.113), claro, sem considerarmos os inúmeros Patri-mônios já existentes e que estavam, ainda, por se constituir em sedes municipais. A rapidez do processo e sua escala são únicas no Brasil. Em 1872, na província, apenas a capital con-tava com mais de 30 mil moradores; em 1920, eleva-se a 34 o número delas, e reúnem uma população de 2.351.673 habitantes. O cres-cimento das cidades de São Paulo com mais de 30 mil habitantes, entre 1872 a 1920, é de 7.393%, contra um crescimento de 448% da população do Estado em conjunto. No país, em período idêntico, é de 412% o crescimento das cidades e de 203% para toda população (SILVA, 1976, p.99).

O termo Patrimônio Religioso ou, mais co-mumente, “Patrimônio” foi bastante usual até meados do século XX, para designar povoados cujas origens vieram de terras aforadas pela Igreja Católica. De certa forma, a denomina-ção tornou-se sinônimo de povoado, vila ou pequeno aglomerado urbano, ao menos até que o mesmo fosse elevado a sede de municí-pio, quando a designação “Cidade” seria usu-almente empregada.

Embora a Igreja fosse, até a primeira cons-tituição republicana, parte do Estado, e de certa maneira braço deste para a implantação de cidades (MARX, 1991), é importante ob-servar que para o arruamento das terras dos Patrimônios Religiosos, bem como para sua administração, fazia-se necessário todo um ar-

cabouço legislativo e burocratas ligados à esfera temporal, e que, portanto, o civil e o religioso entrelaçavam-se continuamente, parte das ve-zes com previsíveis conflitos. O mesmo se deu em relação àqueles particulares que aforavam os terrenos da Igreja, que se sentiam injusti-çados pelas contínuas cobranças de tributos.

Entretanto, após a Republica e principalmen-te a partir do século XX, passa a vigorar para a constituição de novas cidades o loteamento privado, mesmo que ainda denominado de “Pa-trimônio” por força da tradição. São exemplos as cidades situadas mais a oeste e extremo oeste do Estado, como Marília e Presidente Prudente, entre dezenas de outras, forjadas a partir de loteamentos privados. Marília se es-tabelece a partir da junção de “Patrimônios” pertencentes a vários coronéis, sendo os prin-cipais os do “Alto Cafezal” e o de “Marília”. Mesmo as expansões urbanas dos antigos Pa-trimônios Religiosos, constituídas por bairros e vilas estabelecidos ao seu redor, terão seus lotes vendidos de forma livre e desembaraçada como uma mercadoria capitalista.

O novo século passa a impor outras relações para o urbano e com elas caem em anacro-nismo as concessões através de “Patrimônio”, bem como o termo, na acepção exposta por este breve artigo.

Nilson Ghirardello é professor do departamento de Arquitetura, Urbanismo e Paisagismo da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação (FAAC), Câmpus da Unesp de Bauru.

Este artigo é baseado no livro: A formação dos patrimônios religiosos no processo de expansão urbana paulista (1850-1900), Nilson Ghirardello,Editora Unesp, 2010,268 páginas, R$ 60.

ReFeRênCias BiBLiOGRÁFiCas

ALVES, J.A.F. Consolidação das leis relativas ao juízo da provedoria. Rio de Janeiro, Laemmert & Cia., 1897.

MARX, M. Cidade brasileira. São Paulo, Melhoramentos, Editora da Universidade de São Paulo, 1980.

---------------. Cidade no Brasil, terra de quem? São Paulo, Edusp-Nobel, 1991.

MONBEIG, P. Pioneiros e fazendeiros de São Paulo. São Paulo, Hucitec, Polis, 1984.

SILVA, S. Expansão cafeeira e origens da indústria no Brasil. São Paulo, Alfa-Omega, 1976.

A vila (Bauru) era subordinada ao município de Fortaleza (próximo de Agudos) criado em 1887, cuja instalação, bastante solene, aconteceu no dia 7 de janeiro de 1889.

Vista de Presidente Prudente, “Praça da Bandeira”.

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