132403125 Esboco de Uma Dogmatica Karl Barth

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esboço da famosa dogmatica de karl barth

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ESBOÇO DE UMA,DOGMATICA

KARLBARTH

2006..

Capa:Eduardo de Proença

Revisão:A lceu Lourenço

Tradução:Paulo ZacariasDiagramação:Z-PwblisJl!lJ

ISBN: 85-86671-69-X

Título Original: Esquisse d' Une Dogmatique - 1946

Proibida a reprodução total ou parcial desta obra,de qualquer forma ou meio eletrônico e mecânico, inclusive

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Sumário

I. Introdução: ATarefa da Dogmática................................................. 7

II. Crer ÉTer Confiança.............................................................................. 15

III. Crer Significa Conhecer........................................................................ 25

IV. Crer ÉConfessar a Sua Fé..................................................................... 33

V. Deus Nos Lugares Altíssimo5.............................................................. 43

VI. Deus, O Pai................................................................................................ 53

VII. O Deus Todo-Poderoso........................................................................ 59

VIII. O Deus Criador........................................................................................ 65

IX. O Céu e a Terra........................................................................................ 79

X. Jesus Cristo............................................................................................... 89

XI. O Salvador e o Servo de Deus............................................................ 101

XII. O Filho Único de Deus.......................................................................... 115

XIII. Nosso Senhor 123

XIV. O Mistério e o Milagre do NataL....................................................... 133

XV. Sofreu... 143

XVI. Sob Pôncio Pilatos.................................................................................. 153

XVII. Foi Crucificado, Morto e Sepultado,Desceu ao Inferno.................................................................................. 161

XVIII. Ao Terceiro Dia Ressurgiu dos Mortos............................................ 171

XIX. Ascendeu aos Céus, e Está Assentado

À Direita de Deus Pai Todo-Poderoso............................................. 177

XX AVinda de Jesus Cristo, O Juiz.......................................................... 185

XXI. Creio no Espírito Santo......................................................................... 197

XXII. A Igreja, Sua Unidade, Santidade e Universalidade................... 203

XXIII. O Perdão dos Pecados.......................................................................... 215

XXIV. A Ressurreição do Corpo e a Vida Eterna....................................... 221

Introdução:A Tarefa da Dogmática

A dogmática é a ciência pela qual a Igreja, no nível dos co­nhecimentos que possui, justifica para si mesma o conteúdo

de sua pregação.

Trata-se de uma disciplina crítica, quer dizer, ins­taurada segundo a norma da Sagrada Escritura e segundoos fundamentos das Confissões de Fé.

A dogmática é uma ciência. Em todas as épocas,tem se refletido, falado e escrito interminavelmente sobreaquilo que se deve entender por ciência e não podemosabordar esse problema contentando-nos com uma sim­ples alusão. Darei uma definição de ciência que certa­mente é discutível, mas que pode servir de ponto departida para nossa exposição. Entendemos por ciênciaum ensaio de compreensão e de representação, umabusca e um ensinamento relacionados a um objeto e auma atividade determinados. Nenhum esforço desse gê­nero pode ter a pretensão de ser algo mais do que umatentativa e, ao dizermos isso acerca da própria ciência,não fazemos nada mais que sublinhar sua dupla natureza:ela é provisória e limitada. Nos centros onde a ciência é,de maneira precisa, encarada com a maior seriedade, nãose cria nenhuma ilusão acerca do que o homem pode fa­zer: ele não está envolvido em um projeto em que se com-

8 - Esboço de lImJ Dogm;íricJ

binam a mais alta sabedoria e a mais refinada arte, pois aciência caída do céu, a ciência absoluta, não existe.

A dogmática cristã é, também ela, um ensaio, umatentativa de compreensão e de representação; uma tenta­tiva de ver, entender e fixar determinados fatos parareuni-los e organizá-los sob a forma de ensinamento.

Em cada ciência encontram-se associados o estudodo objeto e sua aplicação a um campo de atividade, pois,nenhuma ciência se reduz à teoria pura ou somente à prá­tica; a teoria está sempre acompanhada da prática quedela se origina. Também a dogmática se oferece a nós emseu duplo movimento: ela é pesquisa e ensinamento, liga­dos a um objeto e a uma atividade.

O sujeito da dogmática é a Igreja cristã. O sujeito deuma ciência não pode ser outro senão aquele que man­tém, com o objeto e a atividade considerados, relações depresença e de familiaridade. Não é, portanto, uma redu­ção lamentavelmente limitativa que impomos à dogmá­tica enquanto ciência quando afirmamos: o sujeito de talciência é a Igreja. A Igreja é o lugar, a comunidade à qualsão confiados o objeto e a atividade próprios da dogmá­tica, isto é, a pregação do Evangelho. Quando dizemosque a Igreja é o sujeito da dogmática, entendemos quedesde o instante em que alguém se ocupe de dogmática,seja para aprendê-la, seja para ensiná-la, esse alguém seencontra dentro do ambiente da Igreja. Aquele que queirafazer dogmática, colocando-se conscientemente fora daIgreja, deve esperar que o objeto da dogmática lhe perma­neça estranho, e de maneira nenhuma se surpreender aoficar perdido logo nos primeiros passos, ou ao parecerum destruidor.

Em dogmática, como em outros assuntos, deve exis­tir familiaridade entre o sujeito da ciência e o objeto queele estuda, e esse conhecimento íntimo tem aqui por ob­jeto a vida da Igreja. Isso não significa que a dogmática

A Tarefa da Dogmática - 9

possa se contentar em retomar e relacionar elementos de­finidos pela autoridade eclesiástica em tempos antigos ourecentes, de sorte que não teríamos que fazer nada maisque repetir suas prescrições. A própria dogmática católicaconsidera sua tarefa diferentemente.

Ao dizer que a Igreja é o sujeito da dogmática, insis­timos em apenas uma exigência: aquele que se ocupedessa ciência, seja como mestre, seja como discípulo,deve aceitar a responsabilidade de se situar no plano daIgreja cristã e da obra que ela desenvolve; é uma condiçãosine qua nono Mas que não haja mal-entendidos: trata-sede uma livre participação na obra da Igreja, de uma res­ponsabilidade, assumida pelo cristão nesse domínio par­ticular.

A ciência dogmática é um meio pelo qual a Igrejajustifica para si mesma o conteúdo de sua pregação, nonível dos conhecimentos que ela possui.

Depois do que acabamos de dizer acerca da ciência,poder-se-ia objetar que ela vai por si mesma. Mas algu­mas concepções relativas à dogmática me obrigam a repe­tir que, de forma alguma, ela é uma ciência caída do céusobre a terra. Seria completamente maravilhoso, dir-se-á,se existisse semelhante dogmática, caída do céu, absoluta.A isso não se pode responder outra coisa senão: sim, sefôssemos anjos!

Mas, por vontade de Deus, nós não somos anjos eassim é bom que disponhamos de uma dogmática hu­mana e terrestre. A Igreja cristã não está no céu, mas naterra e no tempo; ainda que seja um dom de Deus, ela éum dom inserido nas realidades humanas e terrestres e oque se passa dentro da Igreja corresponde a essas realida­des.

A Igreja cristã vive na terra e na história, guardiã dobom depósito (2Tm 1.14), que Deus lhe confiou. Gerenci­adora desse bem precioso, ela segue seu caminho através

10 - Esboço de uma Dogmárica

da história, na força e na fraqueza, na fidelidade e infide­lidade, na inteligência ou incompreensão do que lhe é re­velado.

A história desse munc:o se estabelece e se desenrolaem histórias relativas à natureza e à cultura, aos hábitos eàs religiões, às artes e às ciências, às sociedades e aos Esta­dos. Dentro dessa rede, a Igreja tem também sua história,uma história humana e terrestre, e essa é a razão pela qualnão se pode contestar inteiramente o que Goethe disse aseu respeito: ela foi de época em época uma confusão deerros e de violências. Se formos sinceros, nós cristãos, de­vemos concordar que a história da Igreja não tem cami­nhado diferentemente da história do mundo. E dessamaneira nos é dada a oportunidade de falar modesta ehumildemente da Igreja e da obra eclesiástica que desen­volvemos aqui sob a forma de dogmática.

A dogmática não pode cumprir seu papel se nãopermanecer ligada às atuais circunstâncias da Igreja. AIgreja está consciente de seus limites, já que ela se saberesponsável pelo depósito que deve administrar e conser­var, e que é devedora em relação ao único bom Deus quelhe confiou esse bem. Ela nunca será capaz de realizá-laperfeitamente; ao contrário, a dogmática cristã permane­cerá sempre como um conjunto de reflexões, de pesquisase de descrições relativas, passíveis de erros. Ela tenderá aum saber melhor; outros virão depois de nós, e aqueleque é fiel no seu trabalho espera que esses pensem e di­gam melhor aquilo que nós tentamos pensar e dizer.Hoje, devemos fazer nosso trabalho com modéstia e tran­qüilidade, pondo em jogo os conhecimentos de que dis­pomos. Não será exigido de nós mais do que recebemos.Semelhantes ao servo fiel no pouco (Mt 25.23), não noslamentamos a respeito deste pouco. Não nos é exigidonada além da nossa fidelidade.

A T atera da Dogmática - 11

A dogmática como ciência é chamada para justificaro conteúdo da pregação da Igreja cristã. Não haveria ne­nhuma dogmática, se a tarefa primordial da Igreja nãofosse a de anunciar o Evangelho, de dar testemunho daPalavra pronunciada por Deus. Esse dever sempre ur­gente, esse problema colocado para a Igreja desde as ori­gens - o problema do ensinamento, da doutrina, dotestemunho, da pregação - permanece como a questão,não para o teólogo ou para o pastor apenas, mas para aIgreja toda: o que realmente temos a dizer nós, os cris­tãos?

Pois a Igreja, sem dúvida nenhuma, deve ser um lu­gar onde ressoa uma palavra que se dirige ao mundo. As­sim, uma vez que a missão da Igreja é anunciar a Palavrarevelada por Deus, missão que é, ao mesmo tempo, umaobra humana, desde o começo surge a necessidade deconstituir-se uma teologia, ou isso que denominamos,desde o século XVII, de dogmática.

Existe em teologia um problema de fontes (de ondevem a palavra?) e é a disciplina chamada exegese que estáencarregada de fornecer a resposta. Por outro lado, é pre­ciso satisfazer-se à questão como: estudar a forma e a con­dução da pregação confiada à Igreja; estamos agora noterreno da teologia prática. Entre as duas, existe a dogmá­tica ou teologia sistemática. A dogmática não pergunta arespeito de onde vem a mensagem cristã, nem como seconcretiza, mas apresenta uma questão: o que temos parameditar e para pensar?

Essa questão surgiu, fique bem entendido, tão logoas Escrituras nos ensinaram onde está a fonte, e ela vemacompanhada pela preocupação permanente de não ficarnas declarações teóricas, mas de fazer ressoar concreta­mente essa mensagem no mundo. Falando precisamente apartir da dogmática, deve ficar claro que a teologia não é,por um lado, um mero historicismo, mas uma História

12 - Esboço de lima Dogmática

válida, que penetra a realidade presente, aqui e agora. Poroutro lado, a pregação não se deve degenerar em meratécnica.

De fato, em nossos dias, a questão de qual deve ser oconteúdo da mensagem cristã é mais premente do quenunca antes. Todavia, deve-se sublinhar bem que esseproblema não pode ser resolvido por um recurso exclu­sivo da exegese ou da teologia prática. É necessário quehaja uma dogmática. Quanto à história da Igreja, que sepoderia cometer o erro de desprezar, eu devo acrescentarque sua função é enciclopédica: ela tem a honra de serconstantemente requisitada e ocupa um posto legítimodentro do ensinamento cristão.

A dogmática é uma disciplina crítica. Não se trata,pois, como se acreditou numa ou noutra época, de seprender a quaisquer fórmulas teológicas, antigas ou no­vas, e de se crer que tudo está feito. Pois, se existe umadisciplina crítica que se deva remeter sem cessar ao pro­pósito de sua obra, essa é justamente a dogmática, exteri­ormente determinada pelo fato de que a pregação daIgreja está sempre ameaçada por erros. A dogmática é averificação da doutrina e da pregação da Igreja; longe deconstituir um exame arbitrário, fundado sobre um crité­rio escolhido livremente, é à Igreja que ela vai perguntarsob qual ponto de vist-a normativo ela deverá se colocar.Praticamente, é pela escala da Sagrada Escritura, Antigo eNovo Testamentos, que a dogmática avalia a pregação daIgreja. A Sagrada Escritura é o documento de base quetange ao mais íntimo da vida da Igreja, o documento daEpifania da Palavra de Deus na pessoa de Jesus Cristo.Fora desse documento, nós não temos nada e, onde aIgreja está viva, ela deve sempre de novo se deixar julgar asi própria segundo esse critério. Não se pode tratar dedogmática sem que esse critério permaneça presente edeve-se, sem cessar, voltar à questão do testemunho. Não

A Tarefa da Dogmática - 13

aquele do meu espírito e do meu coração, mas aquele dosapóstolos e dos profetas enquanto testemunho do próprioDeus. Uma dogmática que abandonasse esse critério nãoseria uma dogmática objetiva.

Nós indicamos na tese que abre o capítulo: segundoos fundamentos de suas Confissões de Fé. A Sagrada Escri­tura e as Confissões de fé não estão em um plano idên­tico. Reservamos à Bíblia uma estima e um amor que nãotemos, no mesmo grau, pela tradição, nem mesmo pelosmais valiosos de seus elementos. Nenhuma Confissão deFé datando da Reforma ou da época atual pode, damesma maneira que as Escrituras, elevar-se à pretensãode solicitar o respeito da Igreja.

Mas isso não retira nada do fato de que a Igreja es­cuta e aprecia o testemunho de seus Pais. Então, mesmoque nós não encontremos nele a Palavra de Deus comoem Jeremias ou em Paulo, ele tem para nós um signifi­cado elevado. Obedecendo ao mandamento "honra teupai e tua mãe", nós não nos recusaremos a respeitar, sejana pregação, seja na elaboração científica da dogmática,as afirmações de nossos Pais. Diferentemente das Escritu­ras, as Confissões não têm autoridade que obrigue, masdevemos, todavia, levá-las seriamente em consideração elhes atribuir uma autoridade relativa.

Munida desse critério, a dogmática se lança de ma­neira crítica à sua tarefa que é justificar o conteúdo dapregação cristã e da ligação subsistente entre a mensagemque a Igreja deveria publicar e aquela que ela transmite defato. O dogma é para nós a reprodução, a restituição, pelaIgreja, da Palavra de Deus que lhe foi anunciada.

A Igreja deve se interrogar incessantemente acercado grau de correlação, de correspondência, entre odogma e a mensagem que ela proclama. O objetivo é,pois, muito simples: trata-se de sempre elaborar melhor apregação da Igreja. O aperfeiçoamento, a precisão, o

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14 - Esboço de llma Dogm;Ítica

aprofundamento do que é ensinado na nossa Igreja, sãoobras próprias de Deus, mas que requerem um esforço dohomem. Uma parte desse esforço é representada peladogmática.

Falaremos de dogmática de uma forma elementar,obrigados que somos, no curso deste breve semestre deverão, a nos contentar com um esboço. Desse modo, to­maremos como fio condutor um texto clássico, o Símbolo

dos Apóstolos. 1

Não existe método obrigatório que seja imposto deantemão à dogmática cristã. Cada um é livre, no mo­mento em que vai abordar esses assuntos, para escolhersegundo seu saber e sua consciência o encaminhamentoque lhe parecer bom. É verdade que no decorrer dos sé­culos foi engendrado um procedimento que se tornaria,de algum modo, usual; ele consiste em retomar em gran­des linhas o plano do pensamento cristão: Deus Pai, Filhoe Espírito Santo. Isso deu lugar a desenvolvimentos extre­mamente variados que não cessam de se entrecruzar.

Aqui, ainda, nós temos a escolha. Indo pelo maissimples, nos deteremos na Confissão de fé que todos vo­cês conhecem, que é repetida no culto todo domingo.Deixaremos de lado os problemas históricos. Vocês sa­bem que o termo apostólico deve ser posto entre aspas:esse texto não foi redigido pelos apóstolos; no seu teoratual, ele remonta ao século III e tem sua origem em umafórmula conhecida e reconhecida pela comunidade deRoma. Em seguida, foi divulgado dentro da Igreja, que otomou por uma declaração fundamental. Portanto, não ésem razão que nós o consideramos um clássico.

I. N. Do Ed.: As confissões e credos históricos do cristianismo são comu­mente denominados Símbolos de fé; o autor constantemente fará refe­rência ao Credo Apostólico apenas como o símbolo.

Crer ÉTer Confiança

A Confissão começa por essas duas palavras carre­gadas de significação: "eu creio': Tudo o que nós teríamosa dizer para justificar a tarefa que nos aguarda é coman­dado por esse preâmbulo. Começaremos por três teses,que se aplicam à essência da fé.

A fé cristã é o dom do encontro que torna os homens livrespara escutar a Palavra da graça, pronun-

ciada por Deus em Jesus Cristo, de maneiratal que eles se atêm às promessas e aos

mandamentos dessa Palavra, apesar de tudo,de uma vez por todas, exclusiva e totalmente.

Vimos que a fé cristã, a mensagem da Igreja, consti­

tui o fundamento e o objeto da dogmática. Mas de que se

trata? Daquilo em que crêem os cristãos e da maneira

como eles crêem. Na prática, não se pode separar a forma

subjetiva da fé, fides qua creditur, da pregação, pois essa

pregação implica necessariamente na presença de ho­

mens que escutaram e receberam o Evangelho; homens

que, juntos, foram evangelizados. Mas o fato de acreditar­

mos pode ser desde logo considerado como secundário

16 - Esboço de uma Dogmática

em relação ao que existe de maior e de autêntico na pre­

gação, ao que crê o cristão, isto é, o conteúdo de sua fé; e

ao que devemos anunciar, isto é, o objeto da Confissão de

Fé: creio em Deus, o Pai, o Filho e o Espírito Santo.

A linguagem popular denomina a Confissão de Féde "Credo" e essa expressão deve ao menos nos fazercompreender o que nós acreditamos. Dentro da fé cristãtrata-se, de uma maneira decisiva, de um encontro.

Creio "em ..." diz a Confissão. Tudo depende desse"em ...", desse objeto de fé onde vive nossa fé subjetiva. Énotável que, à parte desta introdução "creio ...", o Credonão diz nada do aspecto subjetivo da fé. Não foi bomquando os cristãos inverteram esta relação, falando muitosobre suas ações e sobre a emoção de experimentar aquiloque ocorre no interior do homem, enquanto permane­ciam mudos sobre o que devemos crer.

Ao silenciar sobre o lado subjetivo da fé para falarde seu aspecto objetivo, o Credo se concentra naquilo quepara nós é essencial, no que devemos ser, fazer e viver.Aqui igualmente é válida a palavra: "aquele que quisersalvar sua vida, perdê-Ia-á, mas aquele que tiver perdido asua vida por minha causa, salva-Ia-á" (Mt 16.25). Aqueleque quiser salvar e conservar a subjetividade perdê-Ia-á,mas aquele que a abandonar pela preocupação com a ob­jetividade, reencontra-Ia-á. Eu creio: efetivamente é mi­nha experiência, uma experiência humana e um fato,uma forma de nossa existência de homens.

Mas esse "creio" se realiza em um encontro com al­guém que não é um ser humano, mas Deus, o Pai, o Filhoe o Espírito Santo. E no instante em que creio eu me sintocompletamente preenchido e tomado pelo objeto de mi­nha fé; o que me interessa não é mais "eu com minha fé",mas aquele em que eu creio. Quando eu penso nele e olho

Crer É Tcr Confiança - 17

para ele, então sinto que tudo vai melhor para mim."Creio em ...", credo in ... , significa: não estou mais só.Nós, os homens, em nosso esplendor e nossa miséria, nãoestamos mais sós. Deus vem ao nosso encontro e ele vema nós como nosso Senhor e nosso Mestre. Nos bons e nosmaus dias, em nosso desregramento ou nossa honesti­dade, vivemos, agimos e sofremos nessa posição de reen­contro. Eu não estou só. Deus vem ao meu encontro. Emtodas as circunstâncias, eu estou com ele. Eis o que signi­fica creio em Deus, o Pai, o Filho e o Espírito Santo.

Esse encontro com Deus é o encontro com a palavrada graça que Deus pronunciou em Jesus Cristo. A fé falade Deus Pai, Filho e Espírito Santo como daquele quevem ao nosso encontro, como objeto de nossa fé. Elaafirma esse Deus que é Uno em si, que foi para nós oDeus único e que foi de novo para a eternidade nos tem­pos em que se realizou sua vontade de amor, seu amorgratuito e incondicional pelo homem, por todos os ho­mens, conforme a sua graça.

Confessar o Pai, o Filho e o Espírito Santo, é dizer

que Deus é o Deus da graça. Isso implica em que nós não

podemos provocar a comunhão com ele: nós não a cria­

mos e não criaremos jamais. Assim como nós não fize­

mos por merecer que ele seja nosso Deus, não temos

nenhuma pretensão de fazer valer nenhum direito sobre

ele. É ele, em sua bondade totalmente gratuita, em sua li­

berdade soberana, que desejou ser o Deus do homem,

nosso Deus. E isso ele nos diz. Quando Deus diz: minha

graça está sobre vós, eis a Palavra de Deus, o conceito

central de todo o pensamento cristão. A Palavra de Deus

é a Palavra de sua graça.

18 - Esboço de lima Dogm,üica

E se vocês perguntarem: onde escutamos essa Pala­

vra de Deus? Eu não posso fazer outra coisa senão

mandá-los de volta ao próprio Deus que nos deu a ouvir a

sua Palavra. Refiro-me ao coração da Confissão de Fé, ao

segundo artigo do Símbolo 2: a Palavra da graça, na qual

Deus nos encontra, é Jesus Cristo, verdadeiro Deus e ver­

dadeiro homem, Emanuel, Deus conosco.

A fé cristã é o encontro com esse "Emanuel", com Je­sus Cristo e, nele, com a Palavra viva de Deus. Quandochamamos a Sagrada Escritura de Palavra de Deus (nós anomeamos assim por que é bem o que ela é), pensamosna Escritura como testemunho dado pelos profetas e pe­los apóstolos à única Palavra de Deus, pensamos no judeu

Jesus, que é o Cristo de Deus3, nosso Senhor e nosso Rei

para sempre.

Quando confessamos isso, ao ousarmos chamar apregação da Igreja de Palavra de Deus, isso deve ser en­tendido como o anúncio de Jesus Cristo, daquele que éverdadeiro Deus e verdadeiro homem para nossa salva­ção. É nele que Deus vem ao nosso encontro. Quando di­zemos: creio em Deus, significa concretamente: creio noSenhor Jesus Cristo.

Eu falei desse encontro como de um dom. É o en­contro pelo qual os homens se tornam livres para escutara Palavra de Deus. O dom e a libertação são uma só e amesma coisa. O dom é o dom de uma liberdade, dagrande liberdade na qual estão compreendidas todas asoutras liberdades. Partindo desse ponto, desejo chegar, nodecorrer deste curso, a fazer com que vocês experimen­tem de novo essa palavra de liberdade, que tem sido

2. Vide nota n" XXX.:). N. do T.: Cristo em grego significa "ungido", logo: o Ungido de Deus.

Crer É Ter Confiança - 19

usada de maneira tão abusiva e que permanece, contudo,como a mais nobre das palavras.

A liberdade é o grande dom de Deus, o dom do en­contro com ele. Por quê um dom? E por quê, precisa­mente, o dom da liberdade? É que o encontro de que falao Credo não se produz por coisa alguma. Ele não repousaem uma possibilidade ou uma iniciativa humana, em umacapacidade que nós, os homens, teríamos de encontrarDeus, de ouvir sua Palavra. Caso quiséssemos examinardo que é que somos capazes, nós nos esforçaríamos emvão por encontrar qualquer coisa que pudesse ser nome­ada como uma disposição para ouvir a Palavra de Deus. É

o imenso poder de Deus que entra em jogo, sem que nóso buscássemos por coisa alguma, e que torna possível oque para nós é impossível. É um dom de Deus, livrementeconcedido e sem qualquer preparação de nossa parte, seencontramos a Deus e em nosso encontro com ele ouvi­mos sua Palavra.

A Confissão do Pai, do Filho e do Espírito Santo fala

em seus três artigos4 de uma realidade e de uma obra ab­solutamente novas, inacessíveis e incompreensíveis a nósoutros, homens. E como essa realidade e essa obra deDeus Pai, Filho e Espírito Santo são para nós uma graçade Deus, é ainda uma nova graça que nossos olhos e ouvi­dos estejam abertos para ele. Aqui a Confissão está fa­lando do mistério de Deus e nós ficamos exatamentedentro desse mistério no momento em que ele se iluminapara nós, no momento em que nos tornamos livres parareconhecê-lo e para viver nele. "Eu creio", disse Lutero,"que não é nem por minha razão nem por minhas forçasque eu posso crer em Jesus Cristo e chegar a ele". Eu creio,é a expressão de um conhecimento pela fé, por meio da

tJ. Vide nota n" XXX.

20 - Esboço de LIma Dogmática

qual eu sei que Deus não se deixa conhecer a não ser porele mesmo.

E se posso repetir isto com fé, isso significa que eulouvo e agradeço pelo fato de que Deus o Pai, o Filho e oEspírito Santo é o que é e faz que ele faz, e revelou-se paramim, destinou-se para mim e me destinou para ele. Eudou graças por ter sido chamado e escolhido, por ter umSenhor que me libertou para ele. É daí que parte a minhafé. O que quer que eu faça, no momento em que eu creio,não tem a menor importância. Mas, o essencial é saberpara o que eu fui convidado, e em vista do que fui liber­tado por aquele que pode realizar isso que eu não possonem iniciar e nem terminar. Estou fazendo uso do domatravés do qual o próprio Deus se deu a mim. Respiro; edoravante respiro feliz e livre dentro da liberdade que eunem conquistei, nem procurei, nem encontrei dentro demim, mas que me foi dada por Deus quando ele veio amim. Trata-se da liberdade de escutar a Palavra da graçade maneira tal que o homem possa se ater a essa Palavra eque a considere como digna de fé.

O mundo de hoje está repleto de palavras e sabemoso que significa uma inflação de palavras, quando elas per­dem o seu '-alor e cessam de ser reconhecidas. Masquando se crê no Evangelho, a Palavra reencontra seucrédito e se faz ouvir de tal maneira que aquele que a es­cutar não mais lhe possa escapar. Pelo Evangelho, a Pala­vra recebe seu sentido e se impõe como Palavra. EssaPalavra maravilhosa, na qual crê a fé, é a Palavra de Deus,Jesus Cristo, em quem Deus anunciou aos homens a suaPalavra, de uma vez por todas.

É assim que crer significa ter confiança. A confiançaé o,ato pelo qual um homem se abandona à fidelidade deum outro, de quem conhece a aquiescência e do qualaceita as exigências. "Eu creio" significa "tenho confi-

Crer É Ter Confiança - 21

ança". Não é mais em mim mesmo que devo ter confiança;não necessito mais de me justificar, de me desculpar, deme salvar, de preservar a mim mesmo. Esse esforço terrí­vel do homem para se manter a si mesmo e para se atri­buir uma razão a si mesmo, esse esforço se torna umesforço sem sentido. Eu creio, não em mim, mas em DeusPai, Filho e Espírito Santo. Torna-se supérflua e caduca aconfiança que se atribuía às instituições que se acreditavaserem dignas, àquelas pretensas âncoras às quais era ne­cessário se agarrar. Supérflua e caduca igualmente setorna a confiança atribuída a certas divindades erguidas,honradas e invocadas pelos homens em todos os tempos.

Qualquer que seja o nome que se lhes dê, Idéias ouPotências do Destino, elas continuam sendo as instânciasàs quais nos entregamos. A fé nos libera da confiança queatribuímos a tais divindades e do temor que elas nos ins­piram, e elimina. as decepções das quais elas são a fonte.Devemos ser livres para ter confiança naquele que merecenossa confiança; ser livres para permanecermos ligadosàquele que é fiel e que assim permanece, contrariamente atodas as outras instâncias. De nossa parte, nós não sere­mos jamais fiéis. Nossa rota está semeada por nossas infi­delidades ao próximo e ocorre o mesmo com asdivindades deste mundo. Elas não mantêm as suas pro­messas; assim, nunca há nelas a verdadeira paz e luz.

Não existe fidelidade a não ser em Deus. A fé é aconfiança que permite que nos mantenhamos nele, nassuas promessas e nos seus mandamentos. Manter-se emDeus é abandonar-se a essa certeza e vivê-la: Deus estáaqui para mim. Tal é a promessa que Deus nos faz: eu es­tou aqui, para ti.

Mas essa promessa está acompanhada por um man­damento. Eu não mais me deixarei conduzir por meuspróprios pensamentos ou segundo meu bel-prazer; eu re­cebi de Deus uma ordem pela qual devo me conduzir du-

22 - Eshoço de uma Dogmática

rante toda minha existência terrestre. O Credo é sempreEvangelho, é a Boa Nova de Deus para os homens, desseEmanuel, Deus conosco, Deus vindo à nós; simultanea­mente e necessariamente, é uma lei. O Evangelho e a Leinão devem ser separados, constituem uma única entidadeno interior da qual o Evangelho é a coisa primordial e aLei permanece contida na Boa Nova. Visto que Deus épara nós, nos é permitido ser para ele. Visto que ele seoferece a nós, nós devemos, por reconhecimento, dar aele o pouco que temos para dar.

Agarrar-se a Deus, portanto, sempre significa: rece­ber tudo de Deus e pôr tudo a seu serviço. E isso, a des­peito de tudo, de uma vez por todas, exclusivamente etotalmente.

É em relação a essas determinações que a fé comoconfiança deve ser ainda caracterizada. E deve-se estabe­lecer que na fé isso se trata de uma possibilidade, não deuma obrigação, pois desde o instante em que se idealiza afé, subestima-se a sua grandeza. Essa grandeza não resideno fato de que sejamos chamados a cumprir algo de ex­traordinário, que ultrapassaria as nossas forças. A fé é, so­bretudo, uma liberdade, uma permissão. Aquele que crêna Palavra de Deus deve poder nela se agarrar apesar detudo aquilo que se opõe a essa Palavra. Não se crê "porcausa de" ou "baseado em", mas se é despertado para a féa despeito de tudo.

Pensem nos homens da Bíblia. Eles não se tornaramcrentes por causa de uma demonstração qualquer, de umaprova; mas um belo dia eles se viram colocados em umasituação que lhes permitia crer e que lhes obrigava a crer,a despeito de tudo. Fora de sua Palavra, Deus nos estáoculto, mas ele se revela em Jesus Cristo. Se nós passamosem frente a ele sem o ver, não devemos nos admirar denão encontrar a Deus, de ir dos erros às decepções, de vero mundo repleto de trevas. Se acreditamos, devemos crer,

Crer É Ter Confiança - 23

apesar de tudo, no Deus oculto e, no fato de que ele estáoculto, está o apelo necessário para nos lembrar de nossalimitação humana. Nós não acreditamos apoiados emnossa razão ou em nossos próprios recursos. Todo crenteautêntico sabe disso bem.

O maior obstáculo à fé é simplesmente essa eternapresunção e também essa angústia que subsistem nonosso coração. Nós não amamos viver pela graça; há sem­pre em nós alguma coisa que se insurge violentamentecontra a graça. Nós não amamos receber a graça, nósamaríamos, no máximo, atribuí-la a nós mesmos. A vidahumana é feita desse vai-e-vem entre o orgulho e o deses­pero, que apenas a fé pode eliminar. Se contar consigomesmo, o homem não pode chegar a ela, uma vez que nãopodemos, nós mesmos, nos libertar do orgulho e da an­gústia. Se formos libertos é graças a uma ação que não de­pende de nós.

Quando se tenta condensar tudo o que representaessa força de oposição e de contradição, tem-se uma vagaidéia do que a Bíblia quer dizer quando fala do Diabo."Deus o disse verdadeiramente?" (Gn 3.1). A Palavra deDeus é verdadeira? Quando se crê, despreza-se esse Di­abo. Mas crer não é um ato de heroismo. Guardemo-nosde fazer de Lutero um herói. Lutero jamais se consideroucomo tal, mas ele sabia de uma coisa: se devemos comba­ter, afrontar o inimigo, é justamente a título de uma pos­sibilidade atribuída, de uma permissão, de uma liberdaderecebida na mais profunda humildade.

Estar na fé: trata-se de uma decisão tomada de umavez por todas. A fé não é uma opinião que se poderia tro­car por uma outra. Aquele que crê apenas durante umtempo não sabe o que é a fé, pois crer supõe uma relaçãodefinitivamente estável. Estar na fé: trata-se de Deus e doque ele fez por nós de uma vez por todas. Isso não evita,por certo, que ocorram enfraquecimentos da fé. Mas,

24 - Esboço de uma Dogm,ítica

considerada em relação ao seu objeto, a fé é uma coisa de­finitiva. Aquele que acreditou uma vez, crê para sempre.Não se assustem com o que digo aqui, mas o consideremcomo um convite. Por certo, podem-se cometer enganosou duvidar, mas quem acreditou uma vez, de alguma ma­neira, porta um character indelebilis: pode assegurar-seem pensamento que está salvo. É preciso aconselhar aosque devem combater a incredulidade que não levemmuito a sério essa mesma incredulidade. Nada além da fédeve ser levado a sério e se temos uma fé semelhante aum grão de mostarda (Mt 13.31) é o suficiente para que oDiabo tenha perdido a partida.

Em terceiro lugar5, fé está relacionada a nós nosagarrarmos exclusivamente a Deus. Exclusivamente por­que Deus é Aquele que é fiel. Existe também uma fideli­dade humana que tem sua origem em Deus e que deveincessantemente nos alegrar e nos fortalecer. Mas o fun­damento dessa fidelidade é sempre a fidelidade de Deus.A fé é a liberdade de se confiar totalmente apenas nele,sola gratia et sola fide. Isso não implica, de maneira ne­nhuma, um empobrecimento da vida humana; ao contrá­rio, todas as riquezas de Deus assim nos são atribuídas.

Para terminar, devemos nos agarrar totalmente à Pa­lavra de Deus. A fé não concerne a um setor particular davida denominado religioso, ela se aplica à existência emsua totalidade, à exterior como à interior, à corporalcomo à espiritual, às zonas sombrias como às claras. De­vemos nos confiar a Deus, seja em relação a nós mesmos,seja em nosso comportamento no interesse do outro, dahumanidade inteira; em relação ao todo da vida e damorte. Ser livre para uma confiança assim definida é terfé.

5. N. do Ed.: A primeira e a segunda considerações, (1) CI despeilo de ludo,e (2) de uma vez por lodos, foram expostas nos parágrafos anteriores.

Crer Significa Conhecer

A fé cristã é a iluminação da razão que permite aos ho­mens a liberdade de viver na verdade de

Jesus Cristo e, por esse mesmocaminho, de conhecer, sem risco de errar,

o sentido de sua vida, bem como a causa e o fimde tudo o que existe.

Pode ser que vocês fiquem surpresos em ver a razãointervir aqui. É de maneira intencional que faço uso desseconceito. Vale a pena lembrar que o famoso conselho:"despreza a razão e a ciência, essa suprema alavanca dohomem", não vem de um profeta, mas do Mefisto de Goe­the. Cristãos e teólogos têm sido sempre muito mal inspi­rados quando, por entusiasmo ou em nome de suasconcepções particulares, acreditaram que deviam se ali­nhar dentro do campo dos adversários da razão. Acimada Igreja cristã, resumindo a revelação e a obra de Deus,

encontra-se a Palavra. 6 "A Palavra se fez carne". O logos(quer dizer o verbo, a razão, a palavra) se fez homem. Apregação da Igreja é um discurso que, muito longe de ser

6. Em grego, o logos, que significa também a razão. (N.do T.da ed.francesa).

2(, - Esboço de uma Dogm,írica

acidental, arbitrário, caótico ou ininteligível, pretende serverdadeiro e procura se impor como tal contra a falsi­dade. Não aceitemos abandonar essa posição perfeita­mente clara! A palavra que a Igreja tem a vocação parapregar não é a verdade em um sentido provisório, secun­dário' mas no sentido primeiro e forte do termo; trata-sedo logos que se manifesta e se revela na razão do homem,no seu entendimento, com toda a sua significação e emtoda a sua verdade. A pregação cristã está ligada ao logos,à ratio, à razão, fonte da revelação na qual o homem comsuas faculdades racionais pode, em seguida, se reencon­trar. Pregação e teologia nada têm a ver com a verborra­gia, o falar em línguas ou a propaganda, incapaz desustentar suas asseverações. Nós conhecemos bem essegênero de discursos edificantes, proferidos com muitaeloquência e ênfase, mas que - é muito claro! - não resis­tem à simples questão no tocante à verdade do que afir­mam. O Credo cristão assenta-se em um conhecimento.Por toda a parte onde ele é pronunciado e confessado, elenão faz mais que criar esse conhecimento. A fé cristã nãoé, de maneira nenhuma, irracional, anti-racional ou su­pra-racional. Bem entendida, ela é, ao contrário, racional.A Igreja que recita o Credo e que se apresenta com a pre­tensão inaudita de pregar, de anunciar a boa nova, pode

fazê-lo porque ela entendeu, compreendeu alguma coisa?e porque ela deseja simplesmente que isso seja compreen­dido, percebido por outros. Não se pode considerar comofelizes as épocas em que, na história da Igreja, a teologia ea dogmática pensaram poder separar a gnosis da pistis, oconhecimento da fé. A fé bem compreendida é conheci-

7. Em alemão Vernunfi (razão) vem de uernehmen (compreender,

entender, perceber), assim como entendimento, em francês, vem de entender.

(f\J. cio T da cd. francesa).

Crer Significa Conhecer - 27

mento, O ato pelo qual se crê é também um ato de conhe­cimento. Crer significa conhecer.

Ditas essas coisas, podemos estabelecer que a fécristã comporta uma iluminação da razão. A fé cristã temum objeto preciso do qual fala o Credo: é Deus, o Pai, oFilho e o Espírito Santo. A particularidade desse objeto, aparticularidade de Deus, o Pai, o Filho e o Espírito Santoé, seguramente, a de permanecer imperceptível ao ho­mem entregue a seus próprios meios de conhecimento.Para permitir que o homem o perceba, é necessário nadamenos que a intervenção do próprio Deus agindo complena liberdade e decidindo soberanamente. Entregue àssuas próprias forças, o homem poderá, no máximo, se­gundo o grau de suas faculdades naturais, de seu entendi­mento e de sua intuição, reconhecer a existência de umser supremo, absoluto, de uma potência superior, de umaentidade que domina toda a realidade. Mas tal descobertanão tem nenhuma relação com o próprio Deus. Ela éfruto das intuições e das possibilidades - limites do pen­samento e do esforço do homem, que pode, com certeza,imaginar um ser supremo sem que, apesar disso, tenhaencontrado Deus. Descobre-se e conhece-se Deusquando ele se dá a conhecer a si mesmo, dentro da sua in­teira liberdade. Chegaremos mais tarde a falar de Deus,de seu ser e de sua natureza, mas desde já devemos espe­cificar bem que ele permanece sendo sempre aquele quese dá a conhecer em sua livre revelação e não um ser ima­ginado pelo homem e ao qual este último cola uma eti­queta "Deus". A linha divisória entre o verdadeiro Deus eos falsos deuses se estabelece já claramente a partir doproblema do conhecimento. Conhecer Deus não se incluino quadro das possibilidades discutíveis. Deus é o con­teúdo e a soma de toda a realidade tal como esta se revelapara nós. O conhecimento de Deus ocorre desde que efe-

28 - Esboço de lima Dogmârica

tivamente ele fale, desde que ele se apresente ao homemde tal forma que o homem não possa deixar de vê-lo eouvi-lo, desde que, numa situação em que não possuimais o controle e na qual ele se torna um enigma para simesmo, o homem se vê colocado diante do fato que vivecom Deus e Deus com ele, porque Deus se agradou disto.Para que ele tenha conhecimento de Deus, é necessárioque tenha revelação divina, sendo o homem ensinado, es­clarecido e persuadido pela intervenção do próprio Deus.Começamos por dizer que a fé cristã nasceu de um en­contro. Podemos precisar a coisa dizendo que a fé cristã eo conhecimento que se possa ter existem desde que a Ra­zão divina, o Logos de Deus, dirige sua lei ao seio da ra­zão humana, sendo esta, segundo sua natureza, obrigadaa se conformar a essa lei.

É dentro desse evento que o homem chega ao verda­deiro conhecimento, pois, a partir do fato de que Deusocupa seu pensamento, seus sentimentos e seus sentidos,o homem e sua razão são revelados a si mesmos. A revela­ção de Deus ao homem é, pois, ao mesmo tempo uma re­velação da verdadeira natureza do homem, quepermanece incapaz de provocar o evento que o ilumina edo qual apenas Deus é o autor. Pode Deus ser conhecido?Sim, Deus pode ser conhecido porque ele se dá a conhe­cer e não pode ser conhecido senão por ele mesmo. Esseevento confere ao homem a liberdade, a capacidade, o po­der de conhecer Deus - a coisa permanecendo em si ummistério. O conhecimento de Deus é um conhecimentoabsolutamente determinado e criado pelo seu objeto, istoé, pelo próprio Deus. Mas isso é precisamente o que é umconhecimento autêntico e, no sentido mais profundo dapalavra, um conhecimento livre. Certamente ele perma­nece um conhecimento relativo, encerrado nos limites dacriatura. E é para seu sujeito que ele se satisfaz muito par-

I I

Crer Significa Conhecer - 29

ticularmente de falar do tesouro que carregamos dentrodos vasos de barro (2Co 4.7). Nossos conceitos são im­próprios para conter esse tesouro. É impossível não verque nesse clima toda forma de orgulho está excluídadesde logo. O homem permanece sendo o que é, impo­tente, sua razão estando submissa aos limites do estado dacriatura. Mas é nesse quadro que convém a Deus se reve­lar. E acontece que aqui, igualmente, é estando louco queo homem se torna sábio, é sendo pequeno que se tornagrande, e que Deus se revela eficaz onde o homem se re­vela impotente (ICo 1.25; 3.18). "Minha graça te basta!Pois a minha potência se realiza na tua fraqueza" (2Co.12.9). Esta palavra se aplica também ao problema do co­nhecimento.

Segundo a tese formulada no começo deste capítulo,a fé cristã é a iluminação da razão que nos dá a liberdadede víver dentro da verdade de Jesus Cristo. É essencialpara a inteligência da fé cristã compreender que a verdadede Jesus Cristo e o conhecimento dessa verdade referem­se à vida. Assim, isso não significa que, por essa razão,deva-se abandonar a idéia de que a fé é um conhecimentopara considerá-la como um conhecimento obscuro, umaexperiência ou uma intuição irracional. A fé é verdadeira­mente um conhecimento, ela está ligada ao logos de Deuse, por conseguinte, constitui algo inteiramente lógico. Averdade de Jesus Cristo é, no sentido mais rigoroso da pa­lavra, uma verdade objetiva. Seu ponto de partida, a res­surreição de Jesus é, segundo os dados do NovoTestamento, um fato que se produziu no tempo e no es­paço. Os apóstolos não se contentaram em descrever edefender uma experiência puramente interior. Eles fala­ram do que viram com seus olhos, do que ouviram comseus ouvidos e do que tocaram com suas mãos. Assim averdade de Jesus Cristo entra no quadro de uma reflexão

.)0 . Esboço de lima Dogmática

humana absolutamente clara, lógica e livre, precisamenteporque ligada a seu objeto. Mas - não separemos as duascoisas - essa verdade diz respeito à vida. Aquilo que sechama ciência, o saber, não saberia o suficiente em si paradescrever essa verdade. Para poder compreender ao queisso remete, é necessário voltar principalmente à noçãode sabedoria própria do Antigo Testamento, à sophia dosgregos, à sapientia dos latinos. Sapientia se distingue descientia, sabedoria de ciência, no que ela implica em umsaber eminentemente prático que engloba a totalidade daexistência humana. A sabedoria é o saber que nos permiteviver de fato em uma situação que é a nossa; ela une aprática e a teoria. O segredo da sua eficácia é que ela éaplicável de imediato e governa nossa existência comouma luz sobre o nosso caminho (SI 119.105). Não umaluz qualquer, oferecida para nossa estupefação ou paranossas reflexões, não uma luz que ofereça a ocasião parafazer fogos de artifício - mesmo quando se trate das maissábias reflexões filosóficas! -, mas a luz que, muito sim­plesmente, ilumina nosso caminho, nossas palavras enossos atos, que brilha sobre nossos dias de saúde e sobrenossos dias de doença, sobre nossa pobreza e sobre nossariqueza; que nos acompanha quando acreditamos vercom clareza, bem como quando nos desencaminhamos.Essa luz que não cessa de estar aqui quando tudo se extin­gue e a morte nos sobrevém.

Conhecimento cristão significa viver na verdade deJesus Cristo. É nele que temos a vida, o movimento e o ser(At 17.28), a fim de que possamos ser nele, por ele e paraele (Rm 11.36). Esse conhecimento coincide, pois, abso­lutamente com o que denominamos a confiança em Deuse em sua Palavra. Não nos deixemos imobilizar quandonos é proposto distinguir, separar, nessa matéria. Nãoexiste confiança real, sólida, autêntica, vitoriosa em Deus

Crer Significa Conhecer - 31

e em sua Palavra que não seja baseada na verdade deDeus e de sua Palavra, como não existe conhecimentocristão, de teologia, de confissão de fé e mesmo de ver­dade bíblica que não porte ao mesmo tempo o caráter deverdade viva e real. É preciso que uma e outra, confiançae conhecimento, vida e fé, sejam incessantemente verifi­cadas, controladas e confirmadas uma pela outra.

E é precisamente porque nos é dado viver comocristãos na verdade de Jesus Cristo, à luz do conheci­mento de Deus que ilumina nossa razão, que podemosconhecer com convicção o verdadeiro sentido de nossavida, assim como a razão de ser e o objetivo de tudo o queexiste. Daí o alargamento prodigioso de nosso horizonte:compreender dentro de sua verdade o objeto da fé é, nemmais nem menos, tornar-se capaz de conhecer todas ascoisas, quer dizer, a si mesmo, o homem, o mundo e a to­talidade do cosmos. A verdade de Jesus Cristo não é umaverdade entre outras, pois ela é a verdade de Deus, aprima veritas, e é ao mesmo tempo a ultima veritas. Nãocriou Deus todas as coisas em Jesus Cristo CCI 1.16), nósmesmos aí compreendidos? Não existimos senão nele,quer o saibamos ou não, e o universo inteiro não existesenão nele, sustentado pela sua Palavra potente. O conhe­cer é conhecer todas as coisas. Ser tocado e tomado peloseu Espírito é ser conduzido para dentro de toda a ver­dade (Jo 16.13). Crer em Deus e conhecê-lo torna, pois,impossível a questão do sentido da vida. Ao crer eu vejo osentido da minha vida, o sentido do meu estado de cria­tura, da minha individualidade com seus limites e seu ca­ráter falível, tributário a cada instante do pecado, mastambém do auxílio que Deus me concede ao intervir semcessar em meu favor, apesar de mim e sem nenh~'m mé­rito de minha parte. Em tudo isso eu conheço e identificoa tarefa que me é atribuída, a esperança que a acompanha

32 - Esboço de lima Dogm,ítica

em razão da graça na qual vivo, a realidade da glória queme está prometida e na qual eu já estou secretamente en­volvido aqui e agora, com toda a fraqueza da minha con­dição presente. Crer é reconhecer que tal é precisamenteo sentido de minha vida.

O Credo afirma que Deus é a razão de ser e o obje­tivo de tudo que existe. A razão de ser e o objetivo do uni­verso é Jesus Cristo. Eis o inaudito em todo esse assunto: afé cristã, que implica essa confiança total em Deus e emsua Palavra, esse conhecimento íntimo e profundo da ra­zão de ser e do objetivo de todas as coisas; assim o ho­mem vive, a despeito de tudo que possa ser dito aocontrário, nessa paz que supera todo entendimento (Fp4.7) e que, nisso mesmo, é a luz que ilumina nosso enten­dimento.

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Crer ÉConfessar a Sua Fé

A fé cristã é a decisão que dá aos homens a liberdade de de­clarar publicamente sua confiança naPalavra de Deus e seu conhecimento

de Jesus Cristo, tanto na linguagem da Igreja,como na linguagem do mundo, e sobretudo pelas ações

e atitudes subseqüentes.

A fé cristã é uma decisão, esse é o nosso ponto departida neste quarto capítulo. Certamente a fé é um acon­tecimento dentro do mistério da relação entre Deus e ohomem, acontecimento que manifesta a liberdade da qualDeus faz uso em direção ao homem, ao mesmo tempo emque lhe oferece essa mesma liberdade. Mas isso não ex­c1ui, bem ao contrário, que a fé se traduza por uma histó­ria, quer dizer, que o homem que crê seja levado a agiratravés do tempo.

A fé é o mistério de Deus que irrompe em nossomundo: ela manifesta a liberdade de Deus e a liberdadedo homem em ação. Se ela não se traduzir por nenhumfato - visível e audível - não é fé. Ao falar de Deus, o Pai,o Filho e o Espírito Santo, o Credo quer significar que opróprio Deus em sua essência, em sua vida profunda, nãoé um Deus passivo, inativo, um Deus morto, mas que ele

34 - Esboço de uma Dogmática

existe em uma relação interna, em um movimento que sepode, com fundamento, descrever como uma história,um devir.

Deus não está acima da história. Ele próprio é a his­tória. Por toda a eternidade, concebeu em si mesmo umpropósito do qual a Confissão de Fé exprime linhas gerais

e que nossos paiss denominaram decreto da criação, daaliança e da salvação. Esse propósito Deus executou, deuma vez por todas, sobre o plano da história na obra e namensagem de Jesus Cristo, as quais testemunha concreta-

mente o quarto artigo do Símbol09: "padeceu sob Pôncio

Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado...".

A fé é o que corresponde, por parte do homem, aessa existência e a essa ação de Deus. Seu objeto é esseDeus histórico em sua essência e seu propósito visa, põeem movimento e realiza a história. Uma fé que não sejaela mesma história não é mais a fé cristã, perdeu o seu ob­jeto.

A autêntica fé cristã determina sempre um fenô­meno histórico: a aparição, entre os homens de umamesma época e de todas as épocas, de uma comunidade,de uma reunião, de uma comunhão. Mas ao mesmotempo ela suscita no próprio seio dessa comunidade umapregação, uma mensagem dirigida ao exterior, em direçãoao mundo de fora. Uma luz se acende e "ela ilumina a to­dos os que estão dentro da casa" (Mt 5.15). Em suma: a fédá nascimento e vida a uma comunidade cuja vocação é ade estar no e para o mundo; e é Israel que surge no meiodos povos, e é a Igreja que se reúne, a comunhão dos san­tos, todos os que constituem o corpo de Cristo. Não que

S. N. do Ed.: As primeiras gerações dos Reformadores, que sistematizaramestas doutrinas.

9. Vide nota n° I.

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Crer f, Confessar a Sua Fé - 35

Israel e a Igreja sejam um fim em si mesmos, pois estãoaqui unicamente para significar a vinda do servidor queDeus suscitou para todos.

Há a história, portanto, e aqui é o lugar de falardessa correspondência entre a ação do homem e a obraque Deus realizou na livre decisão da sua graça. Essa his­tória é possível desde que o homem responda, quer dizer,obedeça.

A fé é obediência e não adesão passiva. Obedecer éescolher. Escolher a fé e não a incredulidade, decidir-sepela confiança contra a dúvida, pelo conhecimento con­tra a ignorância. Crer é fazer uma escolha entre a fé e oque não é ela, o erro e a superstição. A fé é o ato de obedi­ência e de decisão pelo qual o homem se apresenta a Deuscomo Deus o exige. Esse ato implica que se deixe de serneutro face a face com Deus, que se abandone essa atitudede indiferença e de irresponsabilidade que impede todadecisão verdadeira; que se deixe, enfim, seu próprio uni­verso para ousar escolher e se ligar abertamente, publica­mente. Uma fé que permaneça algo privado, que não semanifeste para o exterior, não será mais do que uma in­credulidade escondida, uma falsa fé, uma superstição.Pois a fé que tem por objeto Deus, o Pai, o Filho e o Espí­rito Santo não pode não se manifestar publicamente.

Dissemos que "a fé cristã é a decisão que dá aos ho­mens a liberdade de declarar publicamente sua confiançana Palavra de Deus". A responsabilidade pública que ocristão assume implica que ele recebeu o direito, a per­missão; quer dizer que ele conhece uma evidente liber­dade. À liberdade de crer e de conhecer, soma-se aquelade se engajar. Impossível separar uma da outra. Uma con­fiança em Deus que pretenda viver sem conhecimento,não seria verdadeira. E o homem transbordante de confi­ança e de conhecimento que não se sinta livre para de-

.)6 . Esbo~'o de uma DognlCÍrica

clará-los publicamente, merece que dele se diga "suaconfiança e seu conhecimento não valem nada!" O pró­prio Deus, tal como o confessa a Igreja, não é aquele que,longe de permanecer oculto e de querer existir para simesmo, saiu do seu mistério e da sua majestade divinapara descer e se manifestar dentro da sua criação? Não éaquele que se desvela, que se mostra?

Quando se crê nele, não se pode ter escondidos agraça, o amor, a consolação e a luz que vêm dele, nemguardar para si a confiança que se põe na sua Palavra e oconhecimento que se tem dele.

É impossível que as palavras e os atos do crente per­maneçam palavras neutras, atos que não se comprome­tam. Desde que exista a fé, a glória de Deus (doxa, gloria)deve necessariamente brilhar sobre a terra. Se a glória deDeus não se manifesta de uma maneira ou de outra, se elapode ser obscurecida ou deformada por nossa própria sa­bedoria ou por nossa fraqueza, deve-se concluir que a féestá ausente e que a consolação e a luz que Deus concedenão foram recebidas de fato. A glória de Deus entra nocosmos e seu nome é santificado sobre a terra toda vezque aos seres humanos é dado crer, toda vez que se reúnee se põe em marcha o povo, a comunidade de Deus.

A fé dá ao homem, tal como ele é, com todos os seuslimites e sua impotência, em toda a sua perdição e toda asua loucura, a liberdade real para fazer resplandecer aglória e a honra de Deus, de refletir sua luz incomparávelsobre a terra. Não nos é exigido mais do que isso, mas issonos é exigido. Essa liberdade de testemunhar publica­mente sobre a nossa confiança na Palavra de Deus e sobrenosso conhecimento da verdade que está em Jesus Cristo,isso é O que nos termos da Igreja se chama confessar suafé.

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Crer É Confessar a Sua Fé - 37

Confessar sua fé é declarar publicamente na lingua­gem da Igreja, mas é também testemunhar através de de­cisões profanas e, sobretudo, pelas ações e atitudesconseqüentes. Temos aqui, parece-me, as três formas ab­solutamente inseparáveis - impossíveis de se opor umasàs outras e que devem ser vistas sempre ao mesmo tempo- do testemunho cristão, que é em si mesmo uma das ma­nifestações essenciais da fé. As explicações que se seguemformam, portanto, um todo indivisível.

1.A fé nos dá a liberdade de afirmar publicamentenossa confiança e nosso conhecimento, na linguagem pró­pria da Igreja. O que queremos dizer com isso? A igrejateve e tem sua linguagem para ela em todas as épocas. Éassim. No desenvolvimento histórico, ela possui sua his­tória particular, sua própria via. Ao confessar sua fé, nãopode abstrair essa história. Ela vive em um contexto his­tórico absolutamente preciso que não cessará de lhe im­por uma determinada linguagem. Assim, a fé cristã - e otestemunho público dessa fé -necessariamente extrairáseu modo de expressão da Bíblia, das línguas da Bíblia, ogrego e o hebraico, e das traduções que têm sido feitas, as­sim como da tradição da Igreja, das formas de pensa­mento, conceitos e idéias que a Igreja utilizou no decorrerdos séculos para formular, adquirir, defender e desenvol­ver seus conhecimentos. Existe uma linguagem própriada Igreja. É normal. Ousemos chamá-la por seu nome: o"dialeto de Canaã". Nenhum cristão, chamado a confessara fé, quer dizer, chamado para fazer brilhar externamentea luz que está acesa nele, poderá fazê-lo sem utilizar essalinguagem, que é a sua. Vejamos as coisas como elas são:desde que se torne necessário exprimir com precisão ascoisas da fé, desde que se deva falar de nossa confiançaem Deus, em sua Palavra no que ela tem, por assim dizer,

3B - Esboço de lima Dogmática

de específico - e nós devemos bem reconhecer que isso éterrivelmente necessário para que os problemas se tornemclaros - devemos de saída falar o dialeto de Canaã! Te­nhamos essa coragem! Pois certas direções, certos conse­lhos e certas exortações não podem ser comunicados aosoutros senão nesse "dialeto". Não é necessário ser delicadodemais nesse assunto, nem medir excessivamente as pala­vras. "Eu creio", dizemos freqüentemente, "mas minha féé algo tão íntimo e pessoal que estipulei para mim mesmouma regra de evitar citar a mínima palavra bíblica, e quesinto um forte embaraço ao pronunciar até mesmo onome de Deus, isso sem falar de Jesus Cristo, de seu san­gue ou do Espírito Santo ..." Eu respondo: "Caro amigo,admito que possa ter uma fé profunda, cuide somente detornar-se capaz de declará-la publicamente! Caso contrá­rio, esse pudor de sentimentos que reclama poderiamuito bem não ser mais do que o medo dissimulado deter de sair de seu estado de neutralidade interior. Pense!"Sem dúvida, uma vez que a Igreja não ousa confessar suafé na linguagem que é a sua, ela adquire o hábito de nãoconfessar coisa nenhuma! Torna-se, então, uma comuni­dade silenciosa, senão muda. A fé, desde que existe, le­vanta imediatamente a questão: não se deve, alegrementee sem temor, falar a linguagem da Bíblia, exprimir-secomo fez a Igreja no passado e como deve fazer hoje?Forte pela liberdade e segurança que são suas, a fé nãodeixa de suscitar, por toda a parte e sempre, semelhantelinguagem para o louvor e a glória de Deus.

2.Mas isso ainda não pode constituir todo o teste­munho da Igreja. Confessar significa ainda mais. Guar­demo-nos de pensar que a confissão de fé não é mais doque uma coisa espiritual, reservada exclusivamente aodomínio da Igreja e consistindo simplesmente em dar

Crer f: Confessar a Sua Fé - 39

uma certa extensão à sua mensagem. A verdadeira mol­dura da Igreja é o mundo, como se pode notar já à pri­meira vista a partir do fato que, dentro de uma aldeia oudentro de uma cidade, o templo ocupa seu lugar ao ladoda escola, do cinema e da estação. A linguagem faladapela Igreja não poderia ter um propósito em si mesma. É

necessário perceber que a Igreja está verdadeiramenteaqui para o mundo; é preciso que a luz brilhe nas trevas00 1.5). Assim como Cristo não veio para ser servido,mas para servir, não é conveniente que os cristãos exis­tam simplesmente para eles mesmos. Quer dizer que a fé,que se manifesta exteriormente como uma confiança ecomo um conhecimento, determina certas decisões noséculo e que, por constituir um testemunho claro e autên­tico, ela deva poder se traduzir perfeitamente na lingua­gem do Senhor Todo-Mundo, do homem da rua, enfim,na língua daqueles que não têm nem o hábito de ler a Bí­blia nem o de cantar os cânticos, e de quem os meios deexpressão e os centros de interesse são absolutamente di­ferentes. É para o mundo que Cristo enviou seus discípu­los e é no mundo que nós vivemos. Nenhum de nós éapenas cristão; todos somos ao mesmo tempo cidadãosdesse mundo. O mesmo vale para nossas decisões cristãs,para a tradução de nosso testemunho na língua de qual­quer um. A confissão de fé, com efeito, pretende se apli­car à vida tal qual ela é, às circunstâncias de nossaexistência quotidiana com todas as questões teóricas oupráticas que ela nos propõe. Se nossa fé é real, ela devenecessariamente entrar na nossa vida. Em sua forma pu­ramente eclesiástica, o testemunho cristão corre sempre orisco de fazer crer que o crente considere seu credo comoalgo pessoal e privado e que, no mundo tal como é, sãooutras as verdades que têm valor. O mundo vive sobreesse mal-entendido e considera o cristianismo como uma

40 - Esboço de lima Dogrn,irica

agradável "magia" pertencente ao "domínio religioso",certamente respeitável, mas que não convém mexer etudo está dito~ Mas esse mal-entendido pode muito bemexistir entre os próprios cristãos dispostos de bom gradoa fazer da fé seu objetivo, com a condição de não mexercom ela jamais. Não é de ontem que se tenta apresentar oproblema das relações entre a Igreja e o mundo como umproblema de boa vizinhança, cada um permanecendoprudentemente nas posições cuidadosamente preparadas,a despeito de algumas escaramuças que possam acontecernos postos avançados. A Igreja não pode considerar esse"acordo de cavalheiros" como definitivo. De seu ponto devista uma só coisa conta: que seu testemunho possa res­soar igualmente no seio da sociedade que a cerca, dessavez não no dialeto de Canaã, mas na linguagem mais só­bria e menos eclesiástica que o mundo costuma falar.Trata-se, para a Igreja, de traduzir sua mensagem no es­tilo dos jornais, por exemplo. Trata-se de repetir, de umamaneira profana, o que dizemos com as palavras e a lin­guagem da Igreja. O cristão não deverá temer, portanto,usar de uma fala pouco "edificante". Se ele se sentir inca­paz, que se pergunte se o que se diz dentro da Igreja ésempre edificante! Nós conhecemos bem esse jargão pas­toral e clerical que para as pessoas de fora, produz o efeitodo chinês! Tomemos cuidado de não nos isolarmos e denão recearmos falar claro ao mundo. Um exemplo: em1933, numerosos foram aqueles que na Alemanha soube­ram confessar e viver sua fé de uma maneira profunda eautêntica, e nós louvamos a Deus por isso; infelizmente,esses testemunhos foram de alguma maneira bloqueadospela linguagem que servia para formulá-los. Não se soubetraduzir, então, em decisões políticas, o que estava exce­lentemente expresso na língua da Igreja; caso contrário, aIgreja evangélica desse país veria claramente que ela deve-

Crer É Confessar a Sua Fé - 41

ria dizer não ao nacional-socialismo e isso desde o co­meço. E foi assim, então, que não houve, sob a formainteiramente profana, a verdadeira confissão de fé. Imagi­nemos o que teria acontecido se a Igreja tivesse sabidoformular em termos políticos suas convicções espirituais!Ela não foi capaz e as conseqüências estão diante de nos­sos olhos. Um segundo exemplo: hoje, igualmente, exis­tem manifestações de fé cristã séria, autêntica. Estoupersuadido de que os acontecimentos atuais elevaramtanto a fome e a sede da Palavra de Deus, que a Igreja estáa ponto de viver um momento importante. Mas não é su­ficiente que ela se limite a se corrigir, a se consolidar a siprópria e que os cristãos permaneçam uma vez mais entreeles. Em verdade, hoje é indispensável fazer teologia comuma consagração muito maior. Mas, oxalá possamos ver ecompreender melhor do que há pouco tempo a necessi­dade de se traduzir em decisões e em tomadas de posi­ções políticas o que se passa no seio da Igreja! Uma Igrejaevangélica que pretenda hoje permanecer muda sobre aquestão da culpabilidade que os acontecimentos que aca­bamos de viver levantam, ou que simplesmente acredi­tasse poder negligenciá-la, quando esta exige umaresposta em razão mesmo do futuro, se condenaria, desdeo princípio, à esterilidade. Da mesma forma, uma Igrejaque não compreenda sua vocação em relação às pessoasem aflição, e para a qual o ensinamento e a pregação nãocorrespondam aos problemas levantados pela situaçãoatual, uma Igreja que não se ponha inteiramente no tra­balho de responder à urgência dessa tarefa esmagadora,celebrará o seu próprio funeral. Oxalá cada cristão indivi­dualmente possa ver claramente o que sua fé implica: en­quanto ela não passa de uma espécie de agradável torre demarfim que o dispensa de pensar em outrem, enquantoela lhe oferece um tipo de álibi fácil e faz dele um ser du-

42 - Esboço de LIma Dogmática

pIo, ela não é autêntica. Por outro lado, não se pode demaneira nenhuma viver dentro de uma torre de marfim!O homem é um todo e não pode verdadeiramente existirsenão como um todo.

3-Recordemos enfim a última frase de nossa teseinicial: pelas ações e atitudes subseqüentes. É intencional­mente que falo num terceiro ponto, distinto do prece­dente. De que serviria a um homem falar e confessar suafé na linguagem mais forte que pudesse existir, se nãohouvesse a caridade? Confessar sua fé, testemunhar, é umato estreitamente ligado à vida. Crer é ser chamado paraarriscar-se. Tudo depende disso.

Deus Nos LugaresAltíssimos

Segundo a Sagrada Escritura, Deus é aquele que estápresente, vive, age e se dá a conhecer para nós

pela obra que ele determinou e realizou emJesus Cristo na liberdade de seu amor, ele o Único.

o Símbolo dos Apóstolos, que nos serve de pontode partida, abre-se com as seguintes palavras: creio emDeus. Nós pronunciamos assim o conceito maior, o termodecisivo do qual o Credo cristão não é mais do que a ex­plicação e o desenvolvimento. Deus é o objeto da fé de quefalamos nas nossas últimas aulas. É, sumariamente fa­lando, o conteúdo da pregação da Igreja. Contudo, ocorreque Deus parece ser, de uma maneira ou de outra, umarealidade familiar a todas as religiões e a todas as filoso­fias.

Antes de prosseguir, é necessário, pois, determo-nosum instante para perguntar a nós mesmos: que relaçãoexiste entre a palavra "Deus", no sentido em que a em­prega a fé cristã, e naquele que esse nome encobre em to­das as religiões e filosofias de todos os povos e de todas asépocas?

Vamos esclarecer a significação habitual desse vocá­bulo fora da fé cristã. Quando o homem fala de Deus, da

44 - Esboço de LIma Dogmática

natureza ou da essência divina, pretende traduzir o senti­mento de nostalgia e de desorientação que ele experi­menta com todos os seus semelhantes e que o empurrapara procurar uma unidade entre os seres, uma razão deser para sua existência e um sentido para o universo. Elepensa na existência e na natureza de um ser em uma rela­ção mais ou menos coerente com a estonteante diversi­dade de fenômenos e que deveria considerar como aessência suprema que regula e domina toda a realidade.E, se lançamos agora um olhar sobre esse vasto campo depesquisas, onde se dá livre curso à nostalgia e às hipóteseshumanas, nossa primeira impressão é a de uma faculdadede invenção infinitamente diversa, que se conjuga comtodas as arbitrariedades e todas as fantasias.

De fato, encontramo-nos diante de uma montanhade incertezas e de contradições. Quando, pois, falamos deDeus na moldura da fé cristã, devemos ter em mente quenós não estamos acrescentando mais uma noção a todasaquelas que já existem no inventário religioso da humani­dade. Deus, segundo a fé cristã, não é mais um Deus entreos outros. Ele não pertence ao panteão da piedade hu­mana e da engenhosidade religiosa.

Portanto, não é uma questão de se postular no seioda natureza humana a existência de uma tendência uni­versal e inata ao divino, de um conceito geral de Deus queenglobaria, num dado momento, o que cremos e confes­samos quando falamos de Deus enquanto cristãos, de talsorte que nossa fé seria uma fé entre outras, um caso par­ticular dentro de uma regra geral. Um Pai da Igreja dissecom razão: Deus non est in genere - Deus não pertence anenhum gênero!

Quando falamos de "Deus", nós, cristãos, podemos edevemos claramente nos dar conta que esse termo signi­fica de imediato o "totalmente Outro" e que estamos ver-

Deus Nos Lugares Altíssimos - 45

dadeiramente libertos da pesada moldura das buscas, dashipóteses, das imaginações, das ilusões e das especulaçõeshumanas. Não é questão, não mais, de se pensar que o ho­mem em busca do divino poderia, enfim, depois de muitosofrimento, alcançar um degrau de conhecimento tal quecoincidisse praticamente com o conteúdo da fé cristã.

O Deus que a fé cristã confessa não é, à maneira dosdeuses deste mundo, um ser que se encontra ou se in­venta, uma divindade que se oferece ao homem ao tér­mino de seus esforços; ele não é o coroamento, seja ele omais perfeito, de uma procura que pudéssemos iniciarsem mais nada e alcançar por nós mesmos.

É o Deus que, ao contrário, ocupa já e sem retorno o

lugar de tudo aquilo que os homens costumavam chamar"Deus" e, que, excluindo de imediato todas as demais pre­senças, exceto a sua, reivindica o privilégio de ser dele so­mente a verdade. Se não se compreende isso, permanece­

se incapaz de entender aquilo que a Igreja quer dizerquando confessa: creio em Deus. Trata-se aqui de um en­

contro do homem com a realidade a qual ele permanecepara sempre incapaz de buscar e encontrar por si mesmo."O que o olho não viu, o que o ouvido não escutou e o

que não subiu ao coração do homem, Deus o revelou aosque o amam" (lCo 2.9). Assim se exprime o apóstoloPaulo a respeito dessa realidade. E não se pode falar dife­

rentemente.

Deus, no sentido da fé cristã, tem uma existênciaabsolutamente diferente daquilo que habitualmente sechama o divino. Sua natureza é, portanto, totalmente dis­tinta daquela dos seres que se chamavam "deuses". Nós re­sumimos tudo o que se pode dizer a respeito de Deus,segundo a fé cristã, na expressão: Deus nos lugares altíssi-

46 - Esboço de uma Dogm;ítica

mos. Ela se encontra, como vocês sabem, nas narrativasdo Natal (Lc 2.14). É esta pequena frase "nos lugares altís­simos", in excelsis, que eu quero tentar explicar agora.

"Nos lugares altíssimos" significa simplesmente, de­pois do que acabamos de dizer: Deus está acima de nós,acima de todas as nossas intuições, de todos os nossos es­forços, de todos os nossos sentimentos, sejam eles os maissublimes, acima de todos os produtos de nosso espírito,sejam eles os mais admiráveis. E isso significa, em se­guida, como já vimos, que Deus não deposita coisa al­guma de sua razão de ser em nós mesmos e que ele nãocorresponde a nenhuma disposição ou possibilidade denossa natureza, mas que ele não existe e nem tem reali­dade, senão em si mesmo. Como tal, ele não se revela anós através de nossa procura, nossas descobertas, nossossentimentos e nossos pensamentos, mas exclusivamentepor ele mesmo.

É precisamente esse Deus que está sentado nos luga­res altíssimos que se tornou tal para o homem, se deu, sefez conhecer a si. Deus nos lugares altíssimos não signi­fica, portanto, que ele não tem nada a ver conosco, que elenão nos concerne, que ele permanece eternamente estra­nho, mas, segundo a fé cristã, isso quer dizer, ao contrá­rio, que ele veio, desceu até nós, que ele se tornou nossoDeus. É o Deus que afirma e prova sua autenticidade,aquele que nossa mão não pode conter e que, precisa­mente por essa razão, tomou-nos pela mão; aquele que,numa palavra, é o único que merece o nome de Deus, àdiferença de toda as divindades inventadas e que, radical­mente distinto de tudo o que existe, está contudo ligado anós. Quando dizemos com o Símbolo dos Apóstolos:Creio em Deus, é esse Deus que nós estamos confessando.

Tentaremos agora formular de uma maneira maisprecisa o que acaba de ser dito. Segundo a Sagrada Escri-

Deus Nos Lugares Altíssimos - 47

tura, Deus é um ser presente, vivo, atuante e que se faz co­nhecer. Por essa definição, as coisas se tornam muitodiferentes do que seriam se eu tentasse simplesmenteapresentar a vocês alguns conceitos relativos a um ser su­premo e infinito. Nesse caso eu estaria fazendo especula­ção. Mais eu não convido vocês a fazer especulação, pois éum método vicioso, uma vez que, longe de conduzir aDeus, esse método não pode senão nos levar a designarsob esse nome uma realidade que não é ele. Deus estápresente no Antigo e no Novo Testamento que falam dele.E a definição cristã de Deus consiste simplesmente em di­zer: esses livros falam dele, portanto escutemos o que elesestão nos dizendo. Aquilo que se pode ver e entender nasEscrituras é Deus.

Observemos bem: a Bíblia, Antigo e Novo Testa­mentos, não contém jamais a menor tentativa de provar

Deus. Semelhantes tentativas não existem senão fora daBíblia e por toda parte onde se esquece com quem se estálidando quando se fala de Deus. Elas são familiares paravocês: consistem em postular a existência de um ser per­

feito a partir do próprio fato de que tudo o que existe éimperfeito; afirmar que a ordem geral do mundo pressu­põe uma potência ordenadora; partir de nossa consciên­

cia moral para afirmar a existência de um ser supremo,etc. Não tenho a intenção de sair em guerra contra essasdiversas "provas" da existência de Deus. Não sei se vocês

se dão conta de imediato do que elas têm, ao mesmotempo, de frágil e de trágico. Aplicando-se aos deuses fa­miliares a esse mundo, elas são perfeitamente aceitáveis e,

se eu tivesse de entretê-los com essas divindades, não dei­xaria de recorrer às cinco famosas provas da existência deDeus. A Bíblia não conhece esse gênero de demonstração:

48 - Esboço de uma Dogm;itica

para ela, Deus não tem necessidade de ser provado. Ele équem, de uma extremidade a outra, prova-se por si

mesmo: eis-me, diz ele, e a partir do fato que eu existo,

vivo e ajo, torna-se inútil provar a minha existência. É

com relação a essa demonstração que Deus dá de si

mesmo que falam os profetas e os apóstolos. Impossível

falar de Deus de maneira diferente dentro da Igreja. Deus

não tem nenhuma necessidade de nossas provas. Aqueleque se chama Deus, na Sagrada Escritura é insondável, o

que quer dizer que ele não pode ser descoberto por nin­guém. Quando se trata dele na Bíblia e ele é referido com

uma grande familiaridade, mais próximo de nós do que

nós mesmos jamais seremos e mais real que toda outrarealidade, isso não ocorre por ser dado a certos homensparticularmente religiosos a possibilidade de alcançá-lo,

mas porque ele se revelou, ele, o Deus oculto.

Disso resulta que não apenas nós não podemos des­cobrir e provar Deus, mas ainda que ele nos permaneceincompreensível. A Bíblia nunca busca definir Deus, valedizer, fazer com que ele se encaixe em nossos conceitos;mas, quando ela pronuncia seu nome, afirma sem cessarum sujeito que vive, que age, que se faz conhecer por simesmo, ao contrário da entidade definida pelos filósofoscomo um ser supremo, infinito, longínquo e pairando so­bre o universo. A Bíblia conta Deus, relata o que ele fez, ahistória muito precisa realizada neste mundo entre os ho­mens por aquele que se assenta nos lugares altíssimos. Elaassinala a significação e o alcance dessa ação, dessa histó­ria e é assim que prova a existência de Deus e descrevesua natureza. Conhecimento de Deus, segundo a Bíblia esegundo a confissão de fé da Igreja é, pois, conhecimentoda sua presença, de sua vida, de sua ação, de sua revelação

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Deus Nos Lugares Airíssimos - 49

na obra que ele realizou. Assim, a Bíblia não é um livro defilosofia, mas um livro de história, o livro dos poderososatos de Deus, no qual Deus se faz conhecido de nós.

I.A Escritura descreve uma obra: a obra da criação.Deus faz surgir ao seu lado uma realidade outra, distintadele, "a criatura", sem necessidade, na liberdade de seupoder absoluto e na superabundância de seu amor.

2.Uma aliança se estabeleceu entre ele e uma desuas criaturas, entre Deus e o homem. Existe aqui, ainda,uma coisa incompreensível: por que essa aliança entreDeus e o homem, esse homem de quem a Bíblia afirma deuma ponta a outra que é um ingrato, um rebelde, um pe­cador? Apesar disso, sem querer levar isso em conta e seabstendo de endireitar a situação, Deus se dá a si mesmoà sua criatura. E o faz, tornando-se o Deus de um pe­queno povo desprezado do Oriente Médio, Israel. Fazisso, tornando-se um membro desse povo, uma criança e,finalmente, morrendo.

3.Enfim - mas tudo isso não é mais que uma únicae mesma obra -, existe a redenção, a revelação da intençãode Deus que ama na liberdade, no que concerne ao ho­mem e ao mundo, o aniquilamento de tudo aquilo que seopõe a essa intenção, a manifestação de novos céus e danova terra. Tudo isso, um nome o significa e exprime, Je­sus Cristo, o homem em quem o próprio Deus se fez visí­vel e tornou-se ação sobre a terra; Jesus Cristo, o objetivoda história de Israel, em quem a Igreja começa e termina,chave da revelação, da redenção e da nova criação. Toda aobra de Deus está contida nessa única e mesma pessoa.Falar de Deus, segundo a Sagrada Escritura, é necessaria­mente falar de Jesus Cristo.

É dentro dessa obra da criação, da aliança e da re­

denção que Deus está presente, vive, age e se faz conhe-

50 - Esboço de uma Dogmática

cer. Não é permitido fazer-se abstração dessa obra

quando se quer saber algo da existência e da essência deDeus. Deus em pessoa está presente nessa obra e é preci­samente o sujeito dela. Ele age na liberdade de seu amor.Certamente a palavra liberdade e a palavra amor são con­venientes quando se trata de caracterizar o que ele faz e oq ue ele é. Mas deve-se tomar cuidado para não se cair de

novo do concreto no abstrato, da história nas idéias. Euteria medo de dizer: Deus é liberdade ou Deus é amor, sebem que esta segunda fórmula seja bíblica (lJo 4.8). Nósignoramos o que seja o amor, nós ignoramos o que seja a

liberdade, mas Deus é amor, Deus é liberdade. É dele quetemos que aprender sobre uma e sobre outro. Ele é aqueleque ama na liberdade. É como tal que se manifesta naobra da criação, da aliança e da redenção. E aqui é que ve­mos em que consiste o amor: essa necessidade do outro

como tal, o Deus único deixando de ser só para se unir

totalmente à pessoa do outro. Tal é o amor, o livre amorde Deus.

Mesmo sem a criação, Deus não está só. Ele não ne­cessita dela e contudo ele a ama. Esse amor não pode serconcebido senão dentro do absoluto da liberdade divina.O amor de Deus consiste nisso: que Deus o Pai ama o Fi­lho que é, ele mesmo, Deus. Sua obra não é mais do que amanifestação do mistério do seu ser íntimo onde tudo éamor e liberdade.

Quem sabe agora possamos compreender melhor osentido do nosso título: Deus nos lugares altíssimos. É

porque Deus é o Pai, o Filho e o Espírito Santo na obra

que ele realizou em Jesus Cristo, que ele está precisa­mente nos lugares altíssimos. Ele, cuja natureza consiste

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Deus Nos Lugares Alríssimos - 51

em se abaixar; ele, cuja existência se manifesta no ato dedescer ao fundo do abismo; ele, o misericordioso que se

dá à sua criatura a ponto de partilhar a sua decadência

mais profunda, é ele o Deus altíssimo. Ele o é, não apesardisso, em virtude de um paradoxo surpreendente, mas

devido ao fato mesmo de que ele se abaixe assim. É nesse

livre amor que ele está acima de tudo. Ver em Deus umaoutra grandeza é não ter compreendido que ele é "total­

mente Outro", é, como os pagãos, buscar Deus na infini­

dade. Mas ele difere totalmente da idéia que fazemos denossos "deuses" humanos. Ele chama Abraão, conduz um

povo miserável através do deserto, recusa, por séculos in­

teiros' deixar-se desconcertar pela infidelidade e desobe­diência desse povo, aceita se tornar um humilde recém­

nascido no estábulo de Belém e morrer no GÓlgota. Ele éo Senhor teu Deus. Vocês compreendem o que significa omonoteísmo para a fé cristã? Deus não quer saber nada

dessa mania de unidade! Deixemos de lado essa mania do

número um e compreendamos que Deus é o sujeito aomesmo tempo único e absolutamente distinto de tudo o

que existe, radicalmente diferente das divindades ridícu­

las imaginadas pelos homens. Quando se compreendeisso, não se pode deixar de rir deles, como o faz a Bíblia.

Aqui onde o verdadeiro Deus é reconhecido, os ídolos se

desmancham na poeira e só ele permanece. "Eu sou o Se­nhor teu Deus ... tu não terás outros deuses diante da mi­nha face" (Ex 20.2-3). Isso quer dizer: tu não podes teroutros deuses. Tudo o que se chama "deus" ao lado dele

não é mais que o reflexo da nostalgia doentia que está in­cubada no coração do homem com desastrosas conseqü­

ências. Nessa perspectiva, o segundo mandamento se

52 - Esboço de urna Dogmâtica

torna muito claro também: "tu não farás imagem enta­

lhada, nem nenhuma representação ... tu não te prostra­

rás diante deles e tu não os servirás!". Também écompletamente falso postular aqui um conceito filosófico

sobre a invisibilidade de Deus, assim como ver aí uma ex­

pressão típica da mentalidade israelita. O próprio Deus jáfez tudo para se apresentar ele mesmo a nós. Como o ho­

mem poderia querer representá-lo? Dizemos a propósitodisso que a arte cristã é certamente movida pelas melho­res intenções do mundo, mas impotente, porque Deus já

nos deu a sua imagem. Quando se compreende verdadei­

ramente que Deus está nos lugares altíssimos, não se podemais querer representá-lo quer seja por pensamentos,

quer seja por imagens.

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Deus O Pai

o único Deus verdadeiro é por natureza e pela eternidade oPai, origem de seu Filho e, unido a ele, origem do

Espírito Santo. Em virtude dessa maneirade ser, ele é, pela graça, o Pai

de todos os homens, que ele chama em seu Filhoe pelo Espírito Santo para serem seus filhos.

o Deus único, o Altíssimo, é um Pai. Desde quepronunciamos essa palavra, desde que, com o primeiroartigo do Símbolo, nós dizemos Deus, o Pai, devemoslogo nos lembrar do segundo artigo: Deus é o Filho, e doterceiro: ele é o Espírito Santo. Os três artigos do Símbolonos falam a cada vez do mesmo Deus. Não existem aquitrês divindades, não há em Deus divisão, ruptura. Longede afirmar três tipos de "Deus", a Trindade fala, pelo con­trário, estritamente de um único e mesmo Deus. É assimque a Igreja tem interpretado sempre e a própria Escri­tura não nos diz nada de diferente. A Trindade cessa deser uma construção teórica desde que se queira não sepa­rar os três artigos do Credo e reconhecer que o tema nes­ses três artigos trata do mesmo Deus criando o mundo,intervindo com Jesus Cristo e agindo pelo Espírito Santo,e não de três departamentos divinos que têm cada um seu

54 - Esboço de lima Dogndrica

"diretor"! Nós tratamos com uma só e mesma obra doúnico e mesmo Deus, mas esta obra é, ela mesma, um mo­vimento. Pois o Deus em quem acreditamos não é umDeus morto, nem um Deus solitário, mas, sendo inteira­mente o Único, ele não fica, contudo, só em si mesmo, re­colhido em sua majestade divina: a obra que ele realiza,na qual ele nos encontra e que nos permite conhecê-lo, éuma ação dinâmica e viva, por natureza e para a eterni­dade; e para nós que vivemos no tempo da sua graça, ele éo Deus único em suas três maneiras de ser. A Igreja antigaafirma: Deus é um só em três pessoas. Se tem-se em contaa significação que esse último conceito recobria para ela,a Igreja antiga forneceu aqui uma definição inatacável.Com efeito, em latim e em grego, "pessoa" quer dizer exa­tamente aquilo que tentei indicar pela expressão "maneirade ser". Hoje, o termo pessoa evoca para nós, quase queirresistivelmente, a idéia de uma individualidade. E, nessaacepção, ela não é muito conveniente para exprimir o serde Deus Pai, o Filho e o Espírito Santo. Calvino disse emalgum lugar, não sem ironia, que não era permitido re­presentar o Deus trinitário à maneira da maioria dos pin­tores que se contentam em mostrar sobre a tela três"figuras estranhas". Isso não tem nada a ver com a Trin­dade. Quando a Igreja cristã fala do Deus trinitário, pre­tende dizer que ele é ao mesmo tempo e também o Paique é o Filho e o Espírito Santo. Trata-se, portanto, portrês vezes do único e mesmo Deus, de suas três maneirasde ser, de sua Trindade de Pai, de Filho e de EspíritoSanto; tal ele é nos lugares altíssimos e tal ele é em sua re­velação.

É necessário, pois, desde o começo precisar que,afirmando que Deus, o Pai, é "nosso Pai", estamos di­zendo uma coisa válida e justa, correspondendo à sua na­tureza mais profunda, eternamente verdadeira. Deus é o

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Deus O Pai - 55

Pai. Do mesmo modo como quando falamos do Filho edo Espírito Santo. Esse nome de Pai, dado a Deus, não éacidental, um título provisório que nós atribuímos a elepensando: "porque nós sabemos por experiência o que éum pai humano, é bem natural que nós tenhamos apli­cado a Deus essa idéia; mas fica bem entendido que elanão tem nenhuma ligação com a real natureza de Deus,que é inteiramente outra. Dizer que Deus é um Pai, nãotem portanto valor exceto pela ligação com sua revelação,pela ligação conosco. O que Deus é por si mesmo, na eter­nidade, ignoramos. Todavia, agrada-lhe deixar seu misté­rio e é assim que, para nós, ele é o Pai". Falar desse modo énão ver finalmente o que esse nome nos traz de verdade.Quando as Escrituras e a Confissão de Fé chamam de Paia Deus, elas querem dizer que é assim antes de tudo,desde o princípio. É o Pai em si mesmo, por natureza epela eternidade e, em seguida, a partir daí, ele é o nossoPai, o Pai de suas criaturas. Não há, pois, que começaruma paternidade humana e, em seguida, por analogia,uma pretensa paternidade divina. O contrário é que écorreto: a verdadeira paternidade, a paternidade autênticae primeira, está em Deus e é ela que funda todas as nossaspaternidades humanas. A paternidade divina é aquela daqual procedem todas as outras. A epístola aos Efésios diz:"é dele que tira seu nome toda família - em grego patriá ­no céu e sobre a terra" (Ef3.14-15). Estamos bem dentroda verdade, a verdade primeira e fundamental quando,nessa perspectiva radical, reconhecemos Deus comonosso Pai e nos chamamos de seus filhos. Falando deDeus, o Pai, nós exprimimos uma primeira maneira deser de Deus, que condiciona uma segunda, diferente, masque lhe é contudo aplicável, já que lhe pertence propria­mente. Deus é Deus sendo um Pai, o Pai de seu Filho, emquem ele estabelece e define de novo, por si mesmo, sua

56 - Esboço ue uma Dogm,írica

qualidade de Deus. Dizemos bem que ele estabelece e de­fine, não que a criou - o Filho foi engendrado e não cri­ado! Todavia, essa relação entre o Pai e o Filho não esgotaainda o mistério de Deus, sua natureza profunda, alémde, por outro lado, não ameaçar a unidade divina. Acon­tece que o conjunto Pai e Filho afirma uma terceira vezessa unidade na presença do Espírito Santo. De Deus oPai e de Deus o Filho, procede o Espírito Santo. Spiritusque procedit a Patre Filioque. É isso que jamais compreen­deram completamente os infelizes representantes daIgreja do Oriente: o Pai e o Filho selando sua unidade noEspírito Santo que a realiza. O Espírito Santo foi cha­mado, às vezes, de vínculo da caridade, vinculum carita­tis. Não é apesar de, mas por causa da presença em Deusdo Pai e do Filho que existe unidade. Deus é Deus ao seestabelecer em si mesmo e por si mesmo como Deus, aomesmo tempo diferente e idêntico a si mesmo em sua di­vindade. E é assim que ele não está só em si mesmo. Emsi, porque é o Deus trinitário, existindo a vida em toda asua riqueza, a ação e a comunhão em toda a sua pleni­tude. Ele é o movimento e o repouso. Nós podemos com­preender assim tudo o que ele é por nós: o Criador que sedá a nós em Jesus Cristo e nos une a ele pelo EspíritoSanto; é a obra de sua livre graça, a superabundância desua plenitude. Superabundância misericordiosa e gra­tuita! Deus não quer permanecer o que ele é em si mesmoe por si mesmo; aquele cuja presença preenche a eterni­dade quer ser para nós. Que Deus, na plenitude de sua pa­ternidade eternal, por pura graça, - não por que é seu"ofício" - queira também ser nosso Pai, é uma verdade so­bre a qual não temos nenhuma influência. Porque ele é oPai eterno, toda sua obra não pode deixar de levar suamarca. Se ele cria, se ele faz nascer seres que, ao contráriode seu Filho, são distintos dele, se ele aceita existir para

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Deus O Pai - 57

eles, isso não pode significar outra coisa que: ele quer nosfazer participar de sua vida, "a fim de que nos tornemosparticipantes da natureza divina" (2Pe 1.4). Ao chamar­mos Deus de nosso Pai, nós não dizemos outra coisa. Anós é permitido dar-lhe o nome que ele se dá a si mesmoem seu Filho. Em si mesmo, o homem não é um filho,mas uma criatura de Deus,jactus et non genitus! Essa cri­atura, o homem, está sob todos os aspectos em revoltaaberta contra ele, um sem-Deus e, contudo, Deus ochama de seu filho. Se podemos, nós mesmos, nos cha­mar de seus filhos, é unicamente por causa do ato de sualivre graça, por causa de seu aviltamento e de sua miseri­córdia, apesar de nós, por que ele é o Pai e nos dá o poderde participar de sua vida. Nós somos seus filhos em seuFilho e pelo Espírito Santo e, portanto, não porque hajauma relação direta entre Deus e nós, mas porque Deusnos faz participar, a partir de seu próprio movimento, desua natureza, de sua vida e de seu ser. É assim que o bomgrado e a vontade de Deus, o próprio mistério da sua es­sência divina, o mistério da sua relação com seu Filho,contêm, de fato, a chave da sua relação conosco; e quenele, seu Filho, podemos nos chamar seus filhos pelo Es­pírito Santo, quer dizer, pelo mesmo vínculo de caridadeque une o Pai e o Filho. É nessa terceira maneira de ser deDeus, o Espírito Santo, que se acha contida nossa vocaçãosegundo a mesma e eternal decisão do Pai. O que Deus é efaz em seu Filho, concerne diretamente a você, vale paravocê e lhe beneficia. O que é verdadeiro na eternidade, nopróprio Deus, torna-se verdadeiro aqui e agora no tempo.De que se trata? Nem mais nem menos que de uma repeti­ção da vida divina, repetição que nós não podemos nemprovocar, nem suprimir, que o próprio Deus suscita nomundo que ele criou, vale dizer, fora dele. Glória a Deusnos lugares altíssimos! É isso que estamos dizendo

58 - Esboço de uma Dogm,ítica

quando chamamos Deus de nosso Pai. Mas porque elenão é o Pai somente, mas também o Filho - vale dizer,Deus conosco -, devemos acrescentar também: "paz so­bre a terra entre os homens que ele quer bem".

o Deus Todo-Poderoso

o que distingue a potência de Deus da fraqueza, o que aeleva acima de todos os outros poderes e o que

a opõe vitoriosamente à "força em si",é que ela é a potência do direito

decorrente do amor que ele fez brilharem Jesus Cristo. Em conseqüência, a potência

de Deus contém, qualifica e delimita todo o domínio dopossível e domina absolutamente o conjunto do real.

Pelo adjetivo "Todo-poderoso", o Símbolo 10 enunciauma qualidade de Deus, uma perfeição daquele que eledenomina Deus, o Pai. É a única que ele menciona. Maistarde, quando se tentou falar de Deus de uma maneirasistemática e descrever o seu ser houve menos concisão.Falou-se de sua asseidade (isto é, de seu ser enquanto de­pendente de nada além de si mesmo), de sua infinitudeno tempo e no espaço, de sua eternidade. Acrescentou-se,em seguida, sua santidade e sua justiça, sua misericórdiae sua paciência. É preciso prestar muita atenção quandose aplicam assim a Deus os conceitos humanos: eles nãopodem ser justificáveis, exceto a título indicativo, sem a

10. Vide nota nO. 1.

60 - Esboço de uma Dogmárica

pretensão de compreender o ser do próprio Deus. PorqueDeus é incompreensível. Não se trata, por conseguinte, dedefinir, por exemplo, sua santidade ou sua bondade a par­tir das idéias que temos de santidade ou de bondade; es­ses dois atributos não podem ser definidos a não ser apartir do próprio Deus, daquilo que ele é. Ele é o Senhor,ele é a verdade. É indireta e secundariamente que sua pa­lavra pode ser retomada por lábios humanos. No lugar ena posição de todas as qualificações que podem ser utili­zadas para descrever a natureza de Deus, o Símbolo dosApóstolos não usa mais que uma única palavra: o adjetivoTodo-poderoso, servindo como qualificativo para o subs­tantivo "Pai". Essas duas palavras devem ser interpretadasuma pela outra: o Pai é o Todo-Poderoso, o Todo-Pode­roso é o Pai.

Deus é Todo-poderoso. Isso significa, a prinCIpIO:ele é potência. Potência quer dizer poder, recurso, virtua­lidade em relação a uma dada realidade. Toda realidadedada, determinada e subsistente pressupõe um poderfundador. A respeito de Deus nos é dito que ele tem essepoder de criar, de determinar, de manter; mais, que eletem onipotência, isto é, que ele tem tudo em sua mão econstitui a medida do conjunto do real e do possível. Nãoexiste realidade da qual ele não seja ao mesmo tempo apossibilidade. Nada de possibilidade, nada de poder sus­cetível de limitar ou de impedir sua ação. Ele pode tudo oque quer. Poder-se-ia, então, também descrever a potên­cia de Deus como a expressão de sua liberdade. Deus éabsolutamente livre. Isso implica a eternidade, a ubiqüi­dade e a infinitude. Ele tem a potência sobre toda a cadeiade possíveis conteúdos no tempo e no espaço e dos quaisele é o fundamento e a medida. Ele é sem limites. Tudoisso a filosofia pressente corretamente, mas nós estamosainda muito longe da realidade que implica esse conceito

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o DeLIs Todo-Poderoso - 61

de onipotência divina. Existem muitos fenômenos aosquais facilmente se prestam os atributos da potência ouda onipotência divina e que não têm nenhuma ligaçãocom a onipotência de Deus. Conservaremos, então, as de­finições gerais.

Nossa tese inicial indica três graus: a potência deDeus se distingue da fraqueza, ela ultrapassa todos os ou­tros poderes e ela se opõe, vitoriosamente, à "força em si".

A potência de Deus se distingue de todas as formasde fraqueza. A fraqueza pode, com efeito, dispor de umacerta potência e o impossível de uma certa margem depossibilidade. Mas Deus não é de nenhuma maneira fraconesse sentido, sua potência é real, efetiva. Ele não podeser aquele que nada poderia nem aquele que não poderiatudo, mas ele se distingue de todas as outras potênciasporque ele pode tudo o que ele quer. Falar de impotênciade Deus é muito simplesmente ter esquecido que se faladele. Representar-se Deus como um personagem longín­quo, fora do mundo, é com certeza ter mudado de objeto,é imaginar um ser qualquer, fraco e impotente. Deus nãotem nada de uma sombra, de um fantasma inofensivo; eleé o contrário da impotência.

Essa potência de Deus ultrapassa todos os outros po­deres. Esses outros poderes ou potências exercem sobrenós uma pressão aparentemente muito mais forte do queo próprio Deus. Eles parecem ser as únicas coisas reais.Contudo, Deus não faz parte das potências deste mundo,ele nem mesmo é a mais alta, mas ele as ultrapassa infini­tamente, ele é o Rei dos reis, o Senhor dos senhores, cujopoder nada limita nem condiciona. De sorte que todas es­sas outras potências, que como tais existem certamente,encontram-se por definição sob seus pés. Elas não sabe­riam lhe fazer concorrência.

G2 - Esboço de uma Dogm,ítica

E eis o último ponto, que é o mais importante por­que o mais suscetível de dar lugar a toda sorte de confu­sões: Deus não é a 'força em si". É muito sedutor imaginarDeus como a soma de todas as potências reunidas, defazê-lo, no sentido neutro e abstrato, um sinânimo do ser,da liberdade, do poder, da força em si. Seria Deus, dentrodessa perspectiva, a "condensação" daquilo que os latinoschamavam potentia? Constatamos que se tem faladodessa maneira com muita freqüência e que é extrema­mente tentador para o espírito considerar a potência emsi como um domínio sagrado, como a verdade última e achave do mistério do ser. Quem não se lembra de Hitlerfalando de Deus e chamando-o de "Todo-Poderoso"?Ora, o "Todo-Poderoso" não é Deus e não é o caso de separtir da idéia de onipotência para se definir Deus. Falarde "Todo-Poderoso" é expor-se ao terrível perigo de pas­sar ao largo de Deus. Invocar ao "Todo-Poderoso" ou "apotência em si" é abrir o abismo, liberar o caos, chamar odiabo. Não há precisamente melhor definição do diabodo que a que consiste em imaginar um poder em si, neu­tro, independente, soberano. É isso que a Bíblia chama de

caos, o tohuwabohu 11 que Deus abandonou e rejeitouquando criou os céus e a terra. A antítese de Deus, o pe­rigo que não cessa de ameaçar sua criação, é precisamenteesse ataque, essa ofensiva impossível do livre-arbítrio, dapotência em si, buscando se impor e dominar como tal.Desde que a potência em si reivindique a honra e o res­peito, desde que ela entenda ser autoridade e ditar o di­reito, estamos em face da "revolução do niilismo". A

II. N. do T.: Em hebraico no original. Tohuwabohu é a expressão que se en­contra no segundo versículo do Gênesis e refere-se à situação da terrano princípio da sua criação, podendo ser traduzida por vazia e vaga,conforme a Bíblia de Jerusalém, ou mesmo por o deserto e o vazionuma tradução mais literal.

o Deus Todo-Poderoso - 63

potência em si não é outra coisa senão o nada e quandoela se desencadeia e busca se impor é a revolução e não aordem que ela traz. A potência em si é o mal, o fim detudo. Ela tem contra si a potência de Deus, a única que éverdadeira. A potência de Deus não somente a ultrapassa,mas ainda é contra ela. Deus diz não à revolução do nii­lismo. Mas é um não vitorioso, ou seja, a intervenção deDeus provoca o mesmo fenômeno que o sol dissipando abruma: a potência em si perde todo o seu poder e todasua realidade. Desde o instante em que ela é desmasca­rada em todo o seu horror, ela é privada do respeito quese lhe manifestou. Os demônios fogem. Deus e a potênciaem si se excluem mutuamente. Deus significa o possível, apotência em si, o impossível.

Mas em que medida Deus se opõe à força em si, emque medida ultrapassa todos os outros poderes e em quemedida se distingue de todas as formas da impotência? ASagrada Escritura nunca fala da potência de Deus, de suasmanifestações e de suas vitórias, separando-a do direito.A potência de Deus é, de um ponto a outro, uma potênciade direito. Ela é, não potentia, mas potestas, vale dizer, po­tência legítima, fundada no direito.

Mas o que é o direito? Retomando o que já foi dito,podemos afirmar que a potência de Deus é a do direitoporque ela é a onipotência de Deus, o Pai. Vamos lembraraqui como falamos do vínculo que une o Pai e o Filho,dessa vida de Deus que, longe de ser solidão é, ao contrá­rio, movimento, mudança, comunhão íntima. Portanto, aonipotência de Deus é, conforme o direito, a potência da­quele que, em si mesmo, é o amor. Tudo o que ameaça oamor - a solidão e a afirmação de si mesmo - constituiuma injustiça e permanece sem poder real. Deus o re­nega. O que ele aprova é a ordem conforme a que reinanele mesmo entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. A po-

64 - Esboço de uma Dogll1,itica

tência de Deus é uma potência de ordem. A potência deDeus é boa, santa, justa, misericordiosa, paciente. Porfim, o que distingue a potência de Deus da impotência éque aquela é a do Deus trinitário.

Essa potência é a do amor que foi iluminado e reve­lado livremente em Jesus Cristo. É, pois, ainda a obra deDeus que nos vai servir de critério do possível e do real. Oconteúdo de todo poder, de toda virtualidade, de toda li­berdade' coincide exatamente com o que Deus é e faz. Apotência de Deus não é uma potência neutra, anónima;pedir a ele, por exemplo, que faça com que dois e dois se­jam cinco é infantil e sem propósito, porque atrás dequestões desse gênero se esconde precisamente uma idéiaabstrata do "poder". E uma potência suscetível de mentircessaria de ser real. Ela não seria mais que impotência,potência de negação, pretendendo dispor de tudo se­gundo a sua vontade. Ela não tem nada a ver com Deus,vale dizer, com a potência real. A potência de Deus é umapotência autêntica; como tal, ela está acima de tudo. "Eusou o Deus Todo-poderoso, anda em minha presença e sêíntegro" (Gn 17.1). É esse "Eu" que define o Deus Todo­poderoso e, portanto, a própria onipotência. "Todo poderme foi dado no céu e sobre a terra" (Mt 28.18). É a ele, Je­sus Cristo, que todo o poder foi dado. É portanto na obrade seu Filho que a onipotência de Deus se torna visível eviva, enquanto potência salutar e boa. E é desse modo queDeus é o conteúdo, a definição e a limitação de todos ospossíveis; transcendente no sentido em que ele dominaabsolutamente o conjunto do real; imanente no sentidoem que ele habita toda forma do real - ele, o Sujeitoeterno que pronuncia sua Palavra e realiza a sua obra se­gundo seu desejo de amor e para o nosso bem.

o Deus Criador

b'm se fazendo homem, Deus manifestou e atestou que elenão quer existir unicamente para si nem ficar

solitário, Para o mundo distinto dele, eleconcede propriamente a realidade, a

liberdade e uma maneira de ser.Sua Palavra é a força que anima todo

ente criado. Deus suscita, mantém e dirigetoda criatura para que ela manifeste sua glória,

da qual o homem é chamado a ser a testemunha ativapela sua posição no centro da criação.

Creio em Deus, o Pai Todo-poderoso, criador docéu e da terra. Quando nós abordamos esse ponto deCredo cristão, nós não saberíamos suficientemente nosdar conta de que nos encontramos aqui, igualmente, faceao mistério da fé, que implica na intervenção da revelaçãodivina como única garantia de nossos conhecimentos. Oprimeiro artigo do Símbolo, não é uma espécie de átriodos gentios, um tipo de área de entendimento preliminar,onde cristãos, judeus e pagãos, crentes e não-crentes, pu­dessem se encontrar e reconhecer com uma certa unani­midade a existência de um Deus criador. A significaçãodessa última expressão, como, por outro lado, aquela da

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própria criação, permanece tão misteriosa para nós, ho­mens, quanto todas as outras afirmações do Credo. Nãonos é muito mais fácil crer no Deus criador do que crerna concepção de Jesus Cristo pelo Espírito Santo e nonascimento virginal. É falso pretender que a declaraçãorelativa a Deus criador nos seria por assim dizer, direta­mente acessível e que apenas o conteúdo do segundo ar­tigo necessitaria de uma revelação especial. Encontramo­nos, ao contrário, nos dois casos, colocados diante domistério de Deus e sua obra, e há apenas uma única emesma abordagem.

Com efeito, o Símbolo não fala do mundo ou, emtodo o caso, ele não o cita senão de passagem quandomenciona o céu e a terra. Não está dito: "Eu creio nomundo criado", nem mesmo: "Eu creio na obra da cria­ção". Está dito: "Eu creio em Deus, o criador". E tudo o queestá afirmado a respeito da criação, depende desse únicoe mesmo sujeito divino. É sempre a mesma regra: Deus éo sujeito agente, todo o resto é predicado. Aqui, comoalhures, toda a ênfase se apóia no conhecimento de Deuscuja obra não pode ser compreendida senão a posterior, apartir do sujeito criador.

a Credo fala do Deus criador e, em conseqüência,fala de sua obra, a criação do céu e da terra. Por poucoque nós sejamos sérios, vemos claramente que não setrata aqui de um domínio, de alguma maneira, acessível àreflexão ou à intuição humana. As ciências naturais po­dem excitar nossa imaginação e nossa sede de saber aonos propor diversas teorias para a evolução, ao fazer dan­çar diante dos nossos olhos os milhões de anos no decor­rer dos quais o universo se teria formado pouco a pouco;mas quando elas teriam conseguido chegar à origem domundo tal como é? Continuidade é bastante diferentedeste começo absoluto, com o qual os conceitos de Cria-

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o Deus Criador - 67

dor e de criação se relacionam. Certamente é um erro ca­pital falar de um mito da criação. O mito pode, nomáximo, constituir um paralelo à ciência exata, pois a suafunção também consiste em pensar no que é e será sem­pre.

O mito trata dos problemas inevitáveis e eternos co­locados para o homem de todas as épocas pela existênciada vida e da morte, do sonhar e do acordar, do nasci­mento e da morte, do dia e da noite, do amanhecer e doentardecer, etc. Tais são os temas do mito. O mito consi­dera o mundo, por assim dizer, a partir de seus limites,mas trata-se do mundo já existente. Não existe mito dacriação pela simples razão de que a criação como tal, per­manece inacessível ao mito. É assim, por exemplo, com omito babilônico da criação, onde estamos claramente tra­tando com um mito sobre crescimento e decadência, quenão tem conexão alguma com Gênesis 1 e 2. Pode-se, nomáximo, afirmar que o texto de Gênesis conservou al­guns traços mitológicos. Mas a maneira pela qual a Bíbliaos utiliza é sem paralelo na mitologia. Se tivermos de darum nome ao relato bíblico ou classificá-lo dentro de umgênero literário, pode-se falar de saga.

Em Gênesis 1 e 2, a Bíblia fala de acontecimentosque escapam ao nosso conhecimento histórico. Mas elaestá falando com base em um conhecimento e se reme­tendo a uma história. A característica dos relatos bíblicosda criação é que eles estão estreitamente ligados à históriade Israel, vale dizer, à história da ação de Deus desencade­ada pela sua aliança com o homem. Segundo o AntigoTestamento, essa história começa já com a criação do céue da terra. Os dois relatos da criação são, um e outro, ex­pressamente ligados ao tema de todo o Antigo Testa­mento: o primeiro mostra a aliança na instituição do

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Shabat; O segundo a mostra como continuação da obra decriação.

É impossível separar o conhecimento do Criador ede sua obra da ação de que o homem é o objeto da partede Deus. É somente quando nos é apresentada a interven­ção operada em nosso favor por Deus em Jesus Cristo,que podemos conhecer a pessoa do Criador e o sentidode sua obra. A criação é a analogia temporal, distinta deDeus, do que se passa no próprio Deus, vale dizer, domistério em virtude do qual ele é o Pai de seu Filho. Omundo não é Filho de Deus, ele não é "engendrado", maiscriado. Contudo, a ação de Deus como criador somentepode ser compreendida, do ponto de vista da fé cristã,como um eco, um reflexo, uma imagem provinda da rela­ção interna e profunda que existe entre Deus, o Pai eDeus, o Filho. E é a razão pela qual o Símbolo dos Após­tolos atribui a obra da criação ao Pai. Isso não significaque apenas o Pai seja o criador, mas não deixa de subli­nhar essa analogia entre a criação e a relação viva que uneo pai e o Filho. O conhecimento da criação é o conheci­mento de Deus e, por conseqüência, conhecimento de fé,no sentido mais rigoroso e mais exclusivo. Ela não é umaespécie de antecâmara onde a teologia natural pudesse terlivre curso. Como pretenderíamos reconhecer a existên­cia do Pai se ele não nos tivesse sido revelado de antemãocm seu Filho? Nós não saberíamos extrair a idéia de umDeus criador a partir da existência do mundo como tal,em toda a sua diversidade. O mundo tal como é, com to­dos os seus pesares e alegrias, jamais poderá ser para nósmais do que um espelho obscuro, mais que uma ocasiãode exprimir nosso otimismo ou nosso pessimismo; elepermanece incapaz de nos fornecer o mínimo conheci­mento do Deus criador. Ao contrário, cada vez que o ho­mem quis partir das coisas criadas - o céu estrelado

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acima dele, sua própria imagem no fundo de si mesmo ­para atingir a verdade, ele não conseguiu mais do que in­ventar um ídolo. Se Deus pode ser conhecido para, em se­guida, ser reconhecido dentro da criação que se tornaassim um canto de louvor à sua glória, é porque ele nãopode ser buscado e encontrado em outro lugar que nãonaquele onde ele está realmente: em Jesus Cristo. Pela en­carnação, Deus tornou manifesto e digno de fé o fato deque ele é o Criador do mundo. Não há dois tipos de reve­lação.

o artigo do Credo que fala do Criador e de sua obraquer afirmar que Deus não existe para ele mesmo, masque ele fez surgir uma realidade distinta e diferente de si,o mundo. De onde o sabemos? Não temos já todos nosperguntado se todo esse universo que nos rodeia não se­ria mais do que, finalmente, uma aparência, um sonho?Não aconteceu a vocês de, por vezes, experimentaremuma dúvida absolutamente radical - não a propósito deDeus, o que seria uma bobagem! - mas a propósito da re­alidade da existência de vocês? De se perguntar se a vossavida inteira não seria uma ilusão e se o que nós chama­mos de real não seria nada mais do que "o Véu de

Maya",12 isto é, irreal? E pensar que a única coisa que nosresta a fazer é deixar de sonhar o mais rápido possível afim de entrar no "nirvana" de onde saímos? A afirmaçãoda criação é o oposto dessa atitude de desespero. De ondepodemos saber, com toda a verdade, que uma tal atitude éabsurda, que a vida não é um sonho, mas uma realidade,que eu sou eu mesmo e que o mundo existe? A fé cristãnão conhece senão uma resposta: ela afirma com o se­gundo artigo do Símbolo, que foi do agrado de Deus tor-

12. N. do Ed.: Na filosofia indiana, Véu de Maya designa a própria realidade,

considerada ilusória.

70 - Esboço de uma Dogm;írica

nar-se um homem, que em Jesus Cristo nós lidamos como próprio Deus, o Criador feito criatura, com Deus queviveu como todos nós na moldura de nosso tempo e denosso espaço, entre nós, em tal lugar, em uma tal época.Se isso é justo, se é bem verdade que Deus estava emCristo e se esse axioma do qual tudo depende não é umlogro, então existe um lugar onde podemos encontrar econhecer a criatura. Com efeito, se é exato que o Criadorse tornou ele mesmo criatura, se Deus se fez homem - e oconhecimento cristão começa com essa afirmação - JesusCristo nos entrega o segredo do Criador e de sua obra, osegredo da natureza, e esse é o conteúdo do primeiro ar­tigo. A partir do fato de que Deus se fez homem, não émais possível colocar em dúvida a existência da criatura.Quando olhamos para Jesus Cristo e compreendemos queele viveu nossa vida, aqui, essa existência nos é anunciadacomo Palavra de Deus; essa Palavra concerne ao Criador,ela concerne à sua obra e à parte mais surpreendentedessa obra: o homem.

Segundo a fé cristã, o mistério da criação não reside,em primeiro lugar, como o pensam aqueles que os salmoschamam os "insensatos" (SI 14.1), na questão relativa àexistência de uma causa primeira que se chamaria Deus,pois, na interpretação cristã, não poderíamos pressupor aexistência do mundo para se perguntar em seguida se po­deria existir também um Deus. Mas nosso único ponto departida é Deus, o Pai, o Filho e o Espírito Santo. E é daquique surge, em seguida, o grande problema cristão! Seriaverdade que Deus não deseja ser um Deus para si, masque chama o mundo para uma existência independente,de tal sorte que nós existimos como seres distintos ao ladoe fora dele? Aqui está o enigma. Aquele que busca, mesmoque um pouco, conhecer Deus, compreendê-lo e contem­plá-lo tal como ele se revela a nós "nos lugares altíssimos",

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o Deus Criador - 71

no seu mistério, na sua onipotência, na sua trindade, nãopode deixar de se surpreender ao constatar que nós exis­timos e que o mundo existe fora e ao lado dele. Deus nãotem nenhuma necessidade de nós, ele não tem nenhumanecessidade do universo, do céu e da terra. Ele mesmo ésua própria riqueza. Ele possui a plenitude da vida, eledetém toda a glória, toda beleza, toda bondade, toda san­tidade. Ele é auto-suficiente. Ele vive da sua própria beati­tude. Por que, então, o mundo? Tudo é plenamente nele, oDeus vivo. Como pode ele ter alguma coisa ao lado dele,alguma coisa da qual não necessita? Tal é o enigma da cri­ação. E eis a resposta da doutrina da criação: Deus, quenão tem nenhuma necessidade de nós, criou o céu e aterra, me criou a mim mesmo, "sem que eu fosse digno,pela sua pura bondade e misericórdia paternal. Eu devo,por todos esses benefícios, bendizê-lo e render-lhe gra­ças, servi-lo e obedecê-lo. É isso que eu creio firme­mente". Vocês compreendem, através dessas palavras deLutero, o aturdimento do crente em face da criação, estemaravilhamento diante da bondade de Deus, que nãoquer ficar solitário, mas deseja que ao lado dele, uma ou­tra realidade exista?

A criação é uma graça: diante de uma tal afirmaçãose quereria poder ficar imóvel no medo, no tremor e noconhecimento. Deus confere a esse que não é ele o privi­légio de existir e lhe concede uma realidade própria, umamaneira de ser e uma liberdade. A existência da criatura,ao lado de Deus, tal é o grande enigma, tal é o milagre in­compreensível, a questão fundamental à qual nos é pe­dido e permitido responder, tal é o verdadeiro problemaexistencial, radicalmente distinto do enganoso e seguroproblema: existe um Deus? Que exista um universo, eis oinaudito, eis o milagre da graça de Deus. Não é para nósum perpétuo motivo de aturdimento o ser e o ver os se-

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res? Eu posso existir, o mundo pode existir, ainda que seja­mos, um e outro, distintos de Deus, ainda que nos nãosejamos Deus, nem um, nem o outro. O Deus altíssimo, oDeus triúno, o Deus Todo-poderoso, o Pai, não é um ti­rano, ele concede o ser ao que não é ele, ele o deixa ser;mais, ele lhe dá o ser. Nós existimos, o céu e a terra exis­tem na sua pretensa infinitude, porque Deus concedeexistência. Tal é a grande afirmação desse primeiro artigo.

Mas dizer que Deus concede o ser ao mundo, lhe dáa sua realidade, sua maneira de ser e sua liberdade, signi­fica precisamente, contra as afirmações reiteradas dopanteísmo, que o mundo não é Deus. As coisas são taisque nós não somos Deus, mas que estamos perpetua­mente expostos à tentação perniciosa de "querer ser comoDeus". Do mesmo modo, não é o caso de seguir as espe­culações da gnose antiga ou nova, afirmando que o que aBíblia denomina o Filho de Deus, nada mais é, em defini­tivo, do que o mundo criado, ou que o universo é, por es­sência, gerado por Deus. Não se trata ainda de consideraro mundo como uma emanação de Deus, comparável a umrio que teria sua fonte nele. Nesse caso, não se poderiamais falar de criação, mas somente de um movimento vi­tal, saído de Deus e exprimindo seu ser. Criação significaoutra coisa, uma realidade diferente de Deus. Enfim, omundo não deve ser compreendido como uma simplesmanifestação de Deus, o qual não seria, finalmente, maisdo que uma idéia. Deus, que é o único real, o único essen­cial e o único livre, é uma coisa, o céu e a terra, o homeme o universo sendo outra, que não deve ser confundidacom Deus, mas que não existe senão por Deus. Essa reali­dade diferente não é, pois, autônoma: não existe de umlado, o mundo e de outro, Deus, como duas realidades in­dependentes, Deus não sendo para nós mais do que umadivindade distante e ausente, de sorte que haveria dois

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reinos, dois mundos separados: de um lado, o mundo,com sua própria estrutura e leis e, de outro, em algum lu­gar mais longe, Deus, seu reino e seu universo próprios,se prestando às nossas mais ricas descrições, nos ofere­cendo mesmo uma via de acesso na qual o homem pode­ria ser considerado "em marcha" em direção aos cumes.O mundo assim compreendido não seria a criação deDeus, não lhe pertenceria inteiramente nem estaria fun­damentado nele.

Não; o que Deus confere ao mundo é a realidade decriatura, a natureza da criatura, e a liberdade de criatura,uma existência apropriada à criação, o mundo. O mundonão é uma aparência, o mundo existe, mas existe en­quanto criatura. É-lhe permitido existir ao lado de Deus.A realidade que Deus lhe confere, repousa sobre uma cre­atio ex-nihilo, sobre uma criação a partir do nada. Deusfaz surgir uma realidade diferente dele aqui onde não ha­via nada, nenhuma matéria primeira. Se existe um uni­verso, se nós mesmos existimos pela única operação dagraça divina, não podemos nos esquecer um só instanteque na origem de nossa existência e da existência do uni­verso, há não somente uma ação, mas uma criação deDeus. Tudo o que existe fora de Deus permanece constan­temente subtraído por ele ao nada. A maneira de ser queDeus concede à criatura significa ser dentro do tempo edentro do espaço; o fato de possuir um começo e um fim,de vir a ser para cessar de ser. Para toda criatura, há umtempo em que ela não era ainda e um tempo em que elanão será mais. Há, portanto, uma pluralidade de seres. Háo passado e o presente, o imediato e o distante. Dentro dapassagem de um para outro, o mundo encontra suas duasdimensões: o tempo e o espaço. Deus é eterno. Isso nãoquer dizer que não há nele o tempo, mas que trata-se deum tempo diferente do nosso que, finalmente, não é

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nunca um verdadeiro presente e para o qual o espaço sig­nifica sempre separação. Para Deus, o tempo e o espaçosão livres de limites sem os quais para nós eles permane­cem impensáveis. Deus é o Senhor do tempo e do espaço.A partir do fato que ele é a origem dessas duas formas darealidade, ele escapa à limitação e à imperfeição insepará­veis do estado de criatura.

Enfim, a liberdade que Deus dá à criatura significa:existe uma contingência, uma possibilidade de ação dacriatura, vale dizer, uma liberdade de decisão, um certopoder de ser. Mas essa liberdade não pode ser mais doque aquela própria ao estado de criatura que quer que nósnão tenhamos nossa realidade em nós mesmos e que nóssejamos ligados formalmente às categorias do tempo e doespaço. Visto que essa liberdade é real, ela é limitada, deuma parte pelas leis que regem o universo e, de outraparte, pela soberania de Deus. Pois nós não somos verda­deiramente livres a não ser porque Deus, o Criador, é, elemesmo, infinitamente livre. Toda liberdade humana não émais que um reflexo imperfeito da liberdade divina.

A criatura está ameaçada pela possibilidade - exclu­ída para Deus e para ele somente - do nada e da ruína.Ela não pode pretender subsistir em sua maneira de ser amenos que Deus o queira. Caso contrário haverá por to­dos os lados a irrupção do caos. Por si mesma, a criaturanão saberia nem subsistir nem escapar ao caos. E a liber­dade de decisão tal qual Deus a confere ao homem, não éa de escolher entre o bem e o mal. O homem não é, nopensamento de Deus, o asno de Buridan. Com efeito, omal não entra no quadro das possibilidades próprias àscriaturas de Deus. A liberdade de decisão dada ao ho­mem, consiste em liberdade para escolher o único Ser aquem a criatura de Deus pode escolher, em louvar Aqueleque a criou, em cumprir a sua vontade - isso significa: li-

o DeLIs Criador - 75

berdade de obedecer. Mas trata-se de decisão em liber­dade. E é aqui que aparece o perigo. Se acontece de acriatura fazer um outro uso de sua liberdade que não oúnico uso possível, se ela pretender sair de seu papel e desua realidade, vale dizer "pecar", se separar de Deus e de simesma, ela não poderia mais do que cair, na seqüência desua desobediência - sua queda sendo coincidente com aimpossibilidade mesma dessa desobediência, com essaeventualidade para sempre excluída da própria criação! Apartir de então, ela não pode mais estar dentro do espaçoe do tempo a não ser para sua desgraça, sua existência noquadro do passado, do presente e do futuro significando ainfelicidade. É a queda dentro do nada. Poderia ser dife­rente? Se abordo esse tema, é unicamente para mostrarque esse vasto domínio que nós chamamos o mal, amorte, o pecado, o diabo e o inferno, não é criação deDeus, mas, ao contrário, é o que está excluído pela pró­pria criação, aquilo para o que Deus diz não. E se existeuma realidade do mal, não pode ser senão esta realidadeao mesmo tempo excluída e negada, à qual Deus voltou ascostas e que transpôs ao criar o mundo e ao criá-lo bom."E Deus viu tudo o que havia criado, e eis que isso eramuito bom': O mal não foi criado por Deus e não possui aqualidade de criatura; se se desejar a qualquer preço de­fini-lo evitando uma fórmula puramente negativa, deveráser dito que ele nada mais é que a potência do ser quesurge sob o efeito do "não" pelo qual Deus barra a rota aonada!

Não nos é permitido buscar trevas onde tudo é luz.Deus é o Pai da luz. Uma vez que nos pomos a falar de umDeus absconditus caímos na idolatria. É Deus, o Criador,que concede à criatura seu ser. E tudo o que é, tudo o quetem realidade, não existe fora da graça de Deus.

76 - Esboço de lima [)ogndtica

A Palavra de Deus é a força que permite a todas ascriaturas serem o que elas são. Deus as criou, as governa eas mantêm para servir de teatro à sua glória. A esse res­peito, eu gostaria ainda de precisar alguns pontos concer­nentes ao fundamento e o fim da criação, os quais são, emdefinitivo, uma só e a mesma coisa.

o fundamento da criação é a graça de Deus. Queexista uma graça de Deus é o que se impõe a nós de umamaneira viva e efetiva em sua Palavra. No momento emque Deus fala e falou dentro da história de Israel, em Je­sus Cristo e dentro da sua Igreja, no momento em que dizsua Palavra hoje e que a dirá amanhã, a criação foi, é, eserá. O que existe não existe por si mesmo, mas pela Pala­vra de Deus, por causa dessa Palavra, dentro do sentido eem conformidade à intenção dessa Palavra. Deus suportatodas as coisas, ta panta, pela sua Palavra (Hb 1.2; cf. Jo1.1 ss e CI 1). Tudo foi criado por ele, por causa dele. APalavra de Deus, tal como está atestada na Sagrada Escri­tura, a história de Israel, de Jesus Cristo e de sua Igreja, eiso que está primeiro na ordem das realidades; o mundocom todas suas luzes e sombras, seus abismos e seuscumes, vem em segundo. É pela Palavra que o mundo é.Que reviravolta de todos os nossos hábitos de pensar!Não nos deixemos perturbar pela dificuldade que possasurgir para nós por causa de nossa concepção habitual dotempo! O mundo veio a existir, foi criado e é carregadopela criança nascida na manjedoura de Belém; pelo ho­mem que morreu na cruz do Gólgota e ressuscitou no ter­ceiro dia. Tal é a Palavra criadora da origem de tudo o queexiste. É aqui que se encontra o sentido, o fundamento dacriação, e é por isso que a Bíblia se abre com as palavras:"No princípio, Deus criou os céus e a terra. E Deus disse:"Que haja ..." Desde as primeiras palavras desse estranhoprimeiro capítulo da Escritura, Deus fala essa linguagem

o Deus Criador - 77

atordoante! Que não se veja aí uma palavra mágica, ope­

rando uma espécie de encantamento universal, mas, an­tes, que se siga palavra a palavra o texto bíblico que nos

mostra como tudo surgiu dessa Palavra que estava no

princípio: a luz, o céu e a terra, as plantas e os animais e,por fim, o homem.

Se nos perguntarmos agora qual é o objetivo da cri­ação, a quais fins correspondem o universo, o céu, a terrae todas as outras criaturas, eu não conheço senão uma

resposta: tudo isso deve servir de teatro à glória de Deus.

Que Deus seja glorificado, tal é o sentido de toda a reali­dade. Doxa, gloria, vem de um verbo que significa sim­

plesmente: ser desvelado, manifesto. Deus quis se tornar

visível dentro do universo e, nessa perspectiva, a criação éum ato plenamente significativo: "Eis que tudo era muito

bom". A despeito de todas as objeçães que possam ser le­vantadas contra a realidade do mundo, sua excelênciaconsiste indiscutivelmente no fato que ele é chamado

para ser o teatro da glória de Deus, e o homem, a ser a

testemunha dessa mesma glória. Não nos é permitidoprocurar, antes de tudo, conhecer o que é o bom em si

para em seguida protestar quando constatamos que o

mundo não corresponde a essa definição. O universo ébom por causa do objetivo pelo qual Deus o criou. "Tea­

tro da glória de Deus, theatrum gloriae Dei", diz Calvino.

De sua parte, o homem admitido no seio desse concertode louvores é uma testemunha, uma testemunha ativa e

não passiva, no sentido de que ele deve contar o que viu.

Tal é a natureza do homem, tal é sua faculdade essencial:

ser testemunha das obras de Deus. E tal propósito de

Deus o "justifica" por ter criado o mundo.

o Céu e a Terra

a céu é a parte da criação incompreensível para o homem,a terra é a que ele pode compreender.a próprio homem é a criatura posta

no limite do céu e da terra.A aliança entre Deus e o homem

dá o seu sentido e seu objetivo, seu fundamentoe seu valor ao céu e à terra bem como a toda criatura.

o Símbolo fala do "Criador do céu e da terra". Essasduas grandezas tomadas isoladamente e no seu conjunto,podem ser consideradas como objeto daquilo que se con­vém chamar doutrina cristã da criação. Contudo, elas nãosaberiam coincidir com uma imagem do universo qual­quer que seja, saída da reflexão humana mesmo que sedeva reconhecer que nelas se refletem alguns elementosde uma antiga cosmologia. Não é o papel da Sagrada Es­critura, nem o da fé cristã que nos ocupa neste momento,elaborar ou defender uma ou outra representação precisado mundo. A fé não é, de maneira nenhuma, ligada a umacerta imagem do universo, antiga ou moderna. Numero­sas são as teorias cosmológicas que se encontram no seucaminho, no curso dos séculos. E os cristãos estiveramsempre muito mal aconselhados quando acreditaram de-

80 - Esboço de uma Dogm,ítica

ver considerar um ou outro sistema como a expressãoadequada do pensamento da Igreja a propósito da criaçãoencarada sem referência à Palavra de Deus. A fé cristã éabsolutamente livre em relação a todas as cosmologiasque possam existir, o que significa: livre em relação a to­das as tentativas de explicação do real conduzidas se­gundo o critério e com os recursos das correntescientíficas que predominem em um ou outro momentoda história. Enquanto cristãos, nós não saberíamos acei­tar deixar-nos alienar por uma teoria desse gênero, nãoimporta qual, seja antiga ou, ao contrário, que tenha to­dos os atrativos da novidade. Sobretudo, não temos o di­reito de ligar a causa da Igreja a uma ou outra concepçãodo mundo. Uma concepção do mundo implica algo maisdo que uma simples imagem do mundo, no sentido emque ela subentenda uma certa interpretação filosófica emetafísica do homem. Oxalá a Igreja e os cristãos nãoqueiram se deixar levar por esse terreno tão perigosa­mente vizinho da "esfera religiosa"! A Bíblia, no que elatem de decisivo, o Evangelho de Jesus Cristo, não nos diz,em nenhum lugar que temos de adotar essa ou aquelaconcepção de mundo. Toda tentativa de compreender oreal a partir de nós mesmos, de buscar chegar ao fundoda realidade para chegar a um sistema de mundo com ousem Deus, é um empreendimento do qual estamos defini­tivamente dispensados enquanto cristãos. Se acontecer devocês encontrarem tal tentativa, mesmo cristã, eu osaconselho a colocarem-na, sem hesitar, entre parênteses.No atual clima intelectual da Alemanha, essa advertênciamerece ser dada duas vezes em lugar de uma! Com efeito,o termo "concepção de mundo" (Weltanschauung) nãoexiste em nenhum outro idioma além do alemão, comotambém o termo "Blitzkrieg", e quando os anglo-saxões,por exemplo, desejam empregá-lo, eles se deparam com a

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o Céu c a Terra - 81

impossibilidade de encontrar um equivalente exato emsua própria língua e devem se limitar a transcrevê-lo!

É impressionante que o conteúdo da criação seja de­signado pela expressão "o céu e a terra". "No princípio,Deus criou os céus e a terra ..." O Credo não faz, portanto,nada mais do que retomar essa afirmação com a qual seabre a Bíblia. É-nos permitido, contudo, perguntar se osdois conceitos "o céu e a terra" são completamente ade­quados ao seu objeto, isto é, à descrição da criação. Emseu Pequeno Catecismo, Lutero tentou resolver a dificul­dade, dizendo: "Eu creio que Deus me criou assim como atodas as outras criaturas ..." Ele substituiu, assim, o céu ea terra pelo homem e muito particularmente, pelo "eu".Essa alteração ou, se quisermos, essa ligeira correção doCredo é certamente legítima. Pois ela também nos remete'a criatura da qual fala essencialmente o Símbolo, a saber:o homem. Mas então porque a confissão de fé procede di­ferentemente' porque ela fala do céu e da terra e não dohomem? Deve-se seguir Lutero ou deve-se, talvez, vernessa omissão do Credo a prova de que ele considera ohomem em uma altura tal que não vê nenhuma necessi­dade de mencioná-lo? Não deveríamos simplesmentecompreender que, ao falar, como faz, do céu e da terra, oSímbolo está designando de uma maneira profundamenteoriginal o quadro natural que acontece de ser o do ho­mem? A omissão do homem não constituiria aqui umamaneira muito significativa de falar indiretamente dele? Océu e a terra definem um cenário destinado a uma açãomuito precisa e da qual, em nosso ponto de vista, o ho­mem ocupa o centro. Não teríamos nós aqui, uma descri­ção da criação precisamente em função do homem? Emtodos os casos, fica entendido que o céu e a terra nãoconstituem realidades independentes que se poderiamcompreender e explicar por si mesmas, mas que, com a

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presença significativa do homem no seu centro, o cosmosprovém de Deus, pertence a Deus e deve ser consideradodentro da perspectiva do Símbolo como a soma de toda arealidade criada em relação com a vontade e a ação divi­nas. É aqui que aparece a diferença fundamental que se­para qualquer outra concepção de mundo do ponto devista da Sagrada Escritura e da fé cristã. Toda concepçãode mundo implica que se tome seu ponto de partida doexistente como sendo ele mesmo a sua própria razão deser, para alcançar gradualmente a idéia da divindade; aEscritura, ao contrário, fala do céu e da terra, portanto dohomem, unicamente no quadro de uma relação: "Eu creioem Deus, criador do céu e da terra". O genitivo mostraclaramente que acreditamos, não na criação, mas emDeus, o Criador.

O céu é a parte da criação incompreensível para ohomem, a terra é a parte que é compreensível para ele. In­cluo aqui o que o Credo Niceno fala como invisibilia e vi­sibilia. Tentei traduzir essas duas expressões "coisasvisíveis" e "coisas invisíveis" pelos termos "compreensí­vel" e "incompreensível': Quando a Escritura - da qual re­tomamos aqui a terminologia - fala do céu, ela não querdizer simplesmente aquilo que temos o costume de no­mear assim, o céu atmosférico e mesmo estratosférico,mas uma realidade criada, que domina absolutamente onosso "céu" puramente físico. O homem da antigüidade e,particularmente, o habitante do Oriente Próximo repre­sentava o mundo visível como inteiramente recoberto poruma enorme abóbada chamada firmamento. Essa abó­bada constituía, em relação ao homem, o começo do do­mínio celeste, invisível. Acima do firmamento seencontrava um imenso oceano, separado da terra pelo fir­mamento. Além desse oceano, enfim, haveria o própriocéu, o verdadeiro céu, formando o trono de Deus. Se estou

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OCéueaTerra-83

dando esses detalhes, é unicamente para mostrar a repre­sentação em algum tipo "cosmológico" que se encontrapor detrás do conceito bíblico de "céu". Trata-se de umarealidade que se opõe ao homem e o domina absoluta­mente, mas que, ela também, está na ordem das coisas cri­adas. Tudo o que está além do que escapa ao homem e seopõe a ele, assustando-o e exaltando-o alternadamente,não deve ser confundido com Deus. A presença do inin­teligível acima de nós não é, de maneira nenhuma, a pre­sença do próprio Deus: é a presença do céu,simplesmente. Chamá-lo Deus é divinizar a criatura, damesma maneira que o assim chamado "homem primi­tivo", que adora o sol. São muito numerosos os filósofosque, nesse sentido, renderam culto à criatura. O limiteimposto à nossa inteligência não passa entre Deus e nós,ele passa entre o que o Símbolo chama de céu e de terra.Existe, no seio do mundo criado, essa realidade que consti­tui para nós um puro mistério: o céu. Se ela não é o pró­prio Deus, ela faz parte de sua criação. Observemos, depassagem, que o fato mesmo de ser uma criatura com­porta em si um profundo mistério, o mistério do ser,fonte incessante de terror e de alegria. É de maneira ho­nesta que os filósofos e os poetas de todos os tempos pro­curaram exprimir esse mistério. É-nos permitido,enquanto cristãos, igualmente, saber essas coisas, conhe­cer os altos e baixos da existência humana; sim, a vida talcomo é comporta já toda sorte de mistérios e feliz o ho­mem que sabe "que há mais coisas entre o céu e a terra doque pode sonhar nossa vã filosofia!" A criação possui,pois, uma estrutura celeste, misteriosa para o homem,mas que não representa, contudo, nada a temer nem a ve­nerar como algo de divino. Nós estamos postos em ummundo que comporta essa realidade; essa dimensão docéu nos lembra, sem cessar, sob a forma de parábola, uma

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presença completamente diferente, a de Deus, o Criadordo céu e da terra, de tal maneira, contudo, que não con­fundamos jamais o signo com a coisa significada.

No lado oposto do céu, a parte superior da criação,se encontra a terra, o mundo de baixo, cujo conteúdo nosé compreensível. É a parte da criação situada no interiordo limite que circunscreve o domínio onde nós podemosver, ouvir, sentir, pensar, contemplar, no sentido mais am­plo. É toda essa esfera, submetida ao poder do homem, aícompreendido o mundo da inteligência e da intuição, queo Símbolo chama de terra. No interior dessa moldura ter­restre, por outro lado, está compreendido aquilo que o fi­lósofo denomina o domínio da razão e das idéias. Nestaparte inferior se pode discernir igualmente as diferençasde valor, por exemplo, entre os objetos sensíveis e os obje­tos inteligíveis, mas eles permanecem limitados a essemundo. É dessa mesma esfera terrestre que o homem tirasua origem: Deus forma o homem da poeira da terra (Gn2.7). O mundo do homem, o teatro de sua existência e desua história ao mesmo tempo que o de seu fim natural("retornarás ao pó"), tal é a terra. Se o homem possui,contudo, uma outra origem e um outro fim que não esse,é unicamente por causa da aliança, instituída por Deusentre ele e sua criatura. É, pois, falar da graça, quando ve­mos no homem mais do que um ser terreno, de quem aterra é o lugar natural e o céu é o limite. Não existemundo humano in abstracto. O homem estaria enga­nando a si mesmo, recusando-se a reconhecer que essemundo que ele compreende, se acha limitado por um ou­tro mundo que ele não compreende. Nós devemos estaragradecidos porque sempre existiram poetas, crianças etambém filósofos para fazer sensível a existência deste li­mite superior. Esse mundo terrestre não é realmente maisque um aspecto da criação. Contudo, não mais que o céu,

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a terra não saberia nos dar posse sobre o domínio deDeus; é isso o que nos ensinam os dois primeiros manda­mentos: "Tu não farás imagem entalhada, nem nenhumaoutra representação das coisas que existem no alto doscéus e em baixo sobre a terra ..." Não há nenhuma potên­cia sobre a terra ou acima no céu que mereça nosso temorou nosso amor.

o próprio homem é uma criatura situada no limitedo céu e da terra, ele está sobre a terra e sob o céu. Ele é oser capaz de compreender seu meio natural, o mundoaqui em baixo; é-lhe permitido ter a posse sobre ele pelosseus sentidos e pela sua inteligência, numa palavra, do­miná-lo: "Eis que tu tens tudo posto sob seus pés!" (SI8.6). É, dentro do quadro que lhe é próprio, o ser livre porexcelência. Mas ele permanece colocado sob o céu: face àface com os invisibilia, as coisas invisíveis, incompreensí­veis e inacessíveis à sua razão, ele permanece absoluta­mente impotente e dependente. O homem tomaverdadeiramente consciência de sua condição de criaturaterrestre na mesma medida em que ele reconhece sua ig­norância no que concerne ao mundo celeste. Parece que,no limite que é o seu, ele tenha por função indicar omundo do alto e o de baixo, de ser um signo de seu pró­prio destino, em função de uma relação que ultrapassa in­finitamente essa que é figurada pelo complexo céu-terra.O homem é, no quadro da criação, o lugar onde a criaturase realiza completamente na superação de si mesma. Ohomem é o ser capaz de dar livremente a Deus o louvorque lhe é devido.

Nós não teríamos, contudo, dito nada ainda, se nãoacrescentássemos logo que é a aliança entre Deus e o ho­mem que dá seu sentido e sua finalidade, seu fundamentoe seu valor ao céu, à terra, assim como a toda criatura. Di­zendo isso, parecemos forçar um pouco o conteúdo obje-

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tivo do primeiro artigo do Símbolo. Mas isso não é maisdo que uma aparência. Pois mencionar a aliança de Deuse do homem, é falar de Jesus Cristo. Essa aliança não é umelemento secundário, sobreposto de alguma maneira, elacoincide, de fato, com a própria criação. Desde que ocriou, Deus começou a se ocupar do homem. Pois tudo oque existe está a tal ponto subordinado à existência dohomem que nisso já se pode ler a intenção de Deus, talcomo ela se manifestará efetivamente no mistério da ali­ança em Jesus Cristo. Por conseqüência, não somente essaaliança coincide com a criação, mas, ainda, ela a precedeno tempo. Antes da criação do mundo, antes da existên­cia do céu e da terra, há a decisão, o decreto de Deus afir­mando sua vontade de comunhão com o homem, talcomo ela se realizou de uma maneira incompreensível eperfeita em Jesus Cristo. Também, quando procuramos arazão de ser e o objetivo de tudo o que existe é, de imedi­ato, dessa aliança entre Deus e o homem que devemosnos lembrar.

Se voltamos agora à criação tal como tentamos des­crevê-la ao falarmos do céu e da terra, com a presença dohomem no limite desses dois grandes domínios, certa­mente nos será lícito afirmar, sem parecer muito temerá­rio e sem que nos acusem de ceder à especulação, queexiste a mesma relação entre o céu e a terra e entre Deus eo homem no seio da aliança, de tal sorte que o simples atoda criação constitui em si um signo único e decisivo, osigno do desejo eterno de Deus. Coexistência e encontrodo alto e do baixo, do inteligível e do ininteligível, do fi­nito e do infinito, eis a criação. Isso tudo é o mundo. Ou,a partir do fato mesmo de que esse mundo comporta efe­tivamente um alto e um baixo que não cessam de se opor;do fato de que, dentro de cada um de nossos suspiros,dentro de cada um de nossos pensamentos, dentro de

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cada uma de nossas expenencias de viventes, o céu e aterra estão sempre presentes, se confrontam, se atraem ese repelem sem cessar de formar um todo, nós constituí­mos, pela nossa simples existência de criaturas, um signo,uma demonstração e uma promessa da destinação finalde toda a criação: esse encontro, essa intimidade, essa co­munhão e, em Jesus Cristo, essa unidade perfeita do Cria­dor e da criatura.

Jesus Cristo

o objeto e o centro da fé cristã é a Palavra idêntica àação pela qual Deus, por toda a eternidade,

decidiu para nosso bem se tornarhomem em Jesus Cristo, tornou-se efetivamente

no tempo e o ficará pelos séculos dos séculos.A obra do Filho pressupõe, assim,

a do Pai e implica a do Espírito Santo.

Com este capítulo, abordaremos o centro mesmo daConfissão de fé, como se pode julgar já ao primeiro golpede olhos pelo lugar considerável que ocupa o segundo ar­tigo. Existe, aqui, mais que uma questão de redação. Já naintrodução, quando se tratou da fé e em nossa primeiraparte, quando falamos de Deus, o Pai Todo-poderoso,Criador do céu e da terra, não fizemos mais que remeterconstantemente a esse centro. Nossa explicação do pri­meiro artigo teria carecido totalmente de pertinência senão o tivéssemos incessantemente apoiado, por antecipa­ção, no segundo. Este ultimo, não é simplesmente a se­qüência do primeiro e o prefácio do terceiro, mas sim afonte luminosa que esclarece um e outro. Historicamente,aliás, provou-se que o Credo cristão provém de um textoprimitivo mais curto e mesmo de uma formula efetiva-

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mente breve, que coincide, quanto ao essencial, com oconteúdo do atual segundo artigo. Supõe-se mesmo que aconfissão de fé da Igreja primitiva era constituída por es­tas simples palavras: "Jesus Cristo (é) o Senhor". O pri­meiro e o segundo artigos não teriam sido acrescentadossenão mais tarde a esse núcleo central. O processo histó­rico não se deveu ao simples acaso. Mesmo de um pontode vista puramente objetivo, não é sem significação o fatode saber que o segundo artigo é historicamente a fontedos outros. É cristão aquele que confessa o Cristo. E umaconfissão de fé cristã tem por objeto Jesus Cristo, o Se­nhor.

É a partir desse centro decisivo, e como uma ex­plicação complementar, que se deve compreender asafirmações do Símbolo relativas a Deus, o Pai, e a Deus,o Espírito Santo. Os teólogos cristãos fizeram uma máescolha cada vez que procuraram edificar diretamente eno abstrato uma teologia do Deus criador, apesar detodo o respeito e seriedade com que eles se empenha­ram nisso.

O mesmo deve ser dito sobre aqueles que tenta­ram partir de uma teologia do terceiro artigo, de umateologia do Espírito, da experiência espiritual, por opo­sição à do Deus criador. Poder-se-ia talvez encontraruma explicação da teologia moderna, tal como a en­tende Schleiermacher, no fato de que a partir de certaspremissas próprias dos séculos XVII e XVIII, ela teriase tornado unicamente uma teologia do terceiro artigo;ao declarar-se do Espírito Santo, ela se acreditava auto­rizada, sem se dar conta de que o terceiro artigo não émais que uma explicação do segundo, uma maneira deprecisar o que Jesus Cristo significa para nós. É a partirde Jesus Cristo somente que nós podemos tentar ver ecompreender do que se trata, dentro da ótica cristã,

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quando abordamos o grande problema - que não deixade nos aturdir e que só podemos formular correndo osmais graves riscos de errar - da relação entre Deus e ohomem. Temos apenas uma resposta para esse pro­blema: Jesus Cristo.

Dessa maneira, não podemos compreender a rela­ção entre a criação, a criatura, a existência, de umaparte, e a Igreja, a redenção, Deus, de outra, partindode uma verdade geral ou dos dados da História das reli­giões, mas unicamente a partir da relação que exprimea pessoa de Jesus Cristo. É nele que nos discernimos o

que significa: Deus acima do homem (r·o artigo) e Deus

com o homem (30 artigo). É porque o segundo artigo, acristologia, é a pedra de toque de todo conhecimento deDeus, no sentido cristão da palavra, o critério de todateologia. "Dize-me qual é a tua cristologia que eu te di­rei quem tu és". É aqui que os caminhos se separam, éaqui que se precisam as relações entre a teologia e a fi­losofia, entre o conhecimento de Deus e o conheci­mento do homem, entre a revelação e a razão, entre oEvangelho e a Lei, entre a verdade divina e a verdadehumana, entre o domínio da alma e o do corpo, entre afé cristã e a política.

É aqui que tudo se torna brilhante ou obscuro,claro ou confuso. Nós estamos no centro. E, por maisfora de alcance, misterioso, difícil que possa nos pare­cer esse centro, podemos afirmar sem medo: doravantetudo se torna extremamente simples, elementar, infan­til. Sim, no momento mesmo em que, como professorde teologia sistemática, meu dever é gritar a vocês:"Atenção! Isso é sério: ou bem fazemos ciência ou bemcaímos nas piores bobagens!" acontece que me vejo en­tre vocês como um monitor de escola dominical diante

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de seus pequenos alunos, com uma mensagem que umgaroto de quatro anos poderia já compreender: "Em ummundo perdido, Cristo desceu - Cristãos, rejubilai­vos!"

o centro de que falamos é a Palavra que atua ou,se preferirmos, a ação da Palavra de Deus. Desde logo,tenho de chamar a atenção de vocês para o fato de quenesse centro vivo da fé cristã, a oposição tão freqüenteentre palavra e ação, doutrina e vida, não tem nenhumsentido. Pois a Palavra, logos, aqui se identifica com aobra, ergon, Verbum coincide com opus. Por tratar-se deDeus e do próprio coração da nossa fé, essas diferençasque nos parecem tão interessantes e essenciais são, nãoapenas supérfluas, mas ainda perfeitamente absurdas.Deus fala, Deus age, Deus ocupa o centro de tudo: averdade se traduz em ato, o ato se manifesta com a forçada verdade. A Palavra é ação, uma ação tal que é, elamesma Palavra, revelação.

Quando pronunciamos o nome Cristo não é osimples suporte verbal de uma realidade superior (oplatonismo não intervém aqui!). Trata-se, sob essenome e sob esse título, da sua pessoa mesmo. Não deuma pessoa fortuita, de um "fato histórico acidental"como entende Lessing, por exemplo. As verdades eter­nas da razão, eis o tipo de fato histórico "acidental"! As­sim, o nome de Jesus Cristo não serve para designar umproduto da história humana. Os homens sempre acredi­taram ter feito uma grande descoberta quando conse­guiram demonstrar que Jesus Cristo não podia deixarde ser o ponto culminante de toda história. Achado me­díocre, na verdade! Mesmo a história do povo de Israelnão saberia se prestar a uma tal demonstração. Certa­mente, a posteriori, é lícito e mesmo necessário afirmar:nesse homem, nesse povo, a história se realizou ... ; mas

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ela o fez seguindo uma linha absolutamente nova e es­candalosa do ponto de vista dos fatos históricos! Lou­cura para os gregos, escândalo para os judeus! (1 Co1.23) Enfim, o nome de Jesus Cristo não esconde umpostulado do homem, não designa o produto de seusdesejos mais nobres nem o tipo de redentor criado pelasua inquietude. O homem nem é capaz de reconhecerpor si mesmo sua inquietude e seu pecado. É-lhe neces­sário primeiro conhecer Jesus Cristo: é em sua luz quenós vemos a luz que nos revela nossas próprias trevas.Todo conhecimento que mereça esse nome, segundo afé cristã, provém do conhecimento de Jesus Cristo.

Mesmo o primeiro artigo adquire um sentido in­teiramente novo quando o lemos sob a perspectiva da féem Jesus Cristo. Ele confessa o Deus criador do céu e daterra, o Deus eterno, inacessível, oculto, incompreensí­vel' cujo mistério domina absolutamente mesmo aqueledo mundo celeste. E eis que o segundo artigo confessauma verdade aparentemente contraditória, em todos oscasos completamente insólita, da qual somente o con­teúdo do primeiro é que nos dá a dimensão do caráterparadoxal e enigmático: Deus toma uma forma, umnome ressoa, um ser humano toma o lugar do Altíssimodiante de nós! Deus Todo-poderoso parece ter perdidosua onipotência.

Nós falamos de sua eternidade, de sua ubiqüidade.E eis-nos mergulhados no tempo, em face de um eventotemporal e localizado, de um acontecimento particularna trama da história humana, de um fato cujo contextoé o começo de nossa era em um lugar bastante definidono globo terrestre. Depois de Deus, o Pai, tal como oconfessa o primeiro artigo, o mesmo Deus provindo damisteriosa unidade de seu ser, se apresenta sob a figurado Filho. Doravante, Deus é esse Outro nele mesmo, ao

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mesmo tempo idêntico e distinto. Ao passo que o pri­meiro artigo do Símbolo descreve o Criador como o ab­solutamente distinto de tudo o que existe, e a criaturacomo soma de todos os seres distintos do ser de Deus, osegundo significa: o Criador se tornou ele mesmo cria­tura. Ele, o Deus eterno, tornou-se não a soma de todasas criaturas, mas sim uma criatura.

Ele que, por toda a eternidade, decidiu para nossobem tornar-se homem em Jesus Cristo, tornou-se ho­mem efetivamente no tempo e permanecerá sendo pe­los séculos dos séculos. Eis Jesus Cristo. Já me ocorreude citar o nome da romancista inglesa Dorothy L.Sayers que, como se diz, voltou-se para a teologia comum interesse notável. Em um pequeno escrito, ela mos­tra o caráter insólito, "interessante", inaudito dessa no­vidade: Deus se fez homem. Imagine-se, um belo dia,na primeira página de um jornal! Sim, trata-se de umanovidade verdadeiramente sensacional que relega todasas outras à última página! É esse fato, absolutamenteperturbador, incomparável e único em seu gênero, queconstitui o centro do cristianismo.

O complexo Deus-homem cedeu lugar a todasorte de combinações, em todas as épocas da história.Por exemplo, a mitologia conhece a idéia da encarna­ção. O que distingue a mensagem cristã da mitologia,qualquer que seja é que, para esta última, a encarnaçãoé, no fundo, a expressão de uma idéia geral, de uma ver­dade universal. O mito continua dominado pelo ritmodos fenômenos, a sucessão do dia e da noite, da prima­vera e do inverno, da vida e da morte; para o mito, a re­alidade tem um caráter intemporal, infinito. OEvangelho de Jesus Cristo não tem nada em comumcom o mito. Ele se distingue, já de um ponto de vistaformal, pelo fato de que se inscreveu plenamente den-

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tro da história: ele afirma que na existência de tal ho­mem particular, Deus se encarnou de tal maneira que aexistência desse homem e a de Deus são uma só emesma coisa. A mensagem cristã está, nesse ponto devista, plenamente inserida na trama da história. É pre­ciso considerar-se em conjunto, no mesmo momento, aeternidade e o tempo, Deus e o homem, para compre­ender o que realmente significa o nome de Jesus Cristo!Jesus Cristo é a realidade da aliança entre Deus e o ho­mem. É apenas referindo-se a ele que podemos falar,com o primeiro artigo, de Deus nos lugares altíssimos,porque então nós conhecemos o homem pela aliançaque o liga a Deus: em sua pessoa concreta, enquanto eleé esse mesmo homem. Da mesma maneira, quando oterceiro artigo nos fala de Deus no homem, de Deustrabalhando por nós e em nós, poderia se tratar aqui deuma ideologia, de uma lição de entusiasmo, de umadescrição da vida interior do homem, de suas experiên­cias e de suas aspirações, da projeção do que se passaem nós quanto a uma divindade imaginária que sechama Espírito Santo. Mas quando observamos a ali­ança que Deus realmente concluiu conosco, homens,sabemos que não se trata disso. Nos é lícito falar comsegurança da realidade do Espírito Santo, em razãomesmo dessa aliança que proclama que Deus, para to­dos os homens, se fez homem em Jesus Cristo.

"á homem, é para teu bem que Deus se encarnoue é teu sangue que corre nas veias do Filho de Deus". Talé a mensagem do Natal. Nós tentamos marcar os trêsaspectos. Primeiramente o acontecimento histórico: otempo que é o nosso, possui um centro que se constituina chave; com todas as suas contradições, seus cumes eseus abismos, nossa história se vê colocada dentro deuma determinada relação com Deus. No centro de

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nosso tempo está esse acontecimento decisivo: Deus sefez homem para nosso bem. Mas o caráter único desseacontecimento, nos obriga a reconhecer que ele não po­deria ser um simples acidente, um fato histórico entreoutros. Somos levados a vê-lo como o acontecimentopor excelência desejado por Deus por toda a eterni­dade. Sob esse segundo aspecto, a mensagem do Natalnos remete ao primeiro artigo do Símbolo; ela afirma ovínculo entre a criação e a redenção. Nos é possível,desde logo, pensar no Deus criador cuja existência pre­cede absolutamente a das suas criaturas, fazendo abs­tração da sua vontade tal como ela se cumpre e semanifesta no curso da história. A vontade eterna deDeus é inseparável dessa forma temporal. Mesmo doponto de vista da eternidade, não há outro Deus alémdesse cuja vontade se encarnou dentro do aconteci­mento histórico de sua ação e de sua Palavra. Tudo issonão tem nada a ver com a especulação. A pregação deJesus Cristo não é uma verdade entre outras. É a ver­dade. Nosso pensamento, uma vez orientado para Deus,não pode fazer abstração do nome de Jesus Cristo. En­fim, há o terceiro aspecto da mensagem do Natal, "Deusque em toda a eternidade decidiu, para o nosso bem,tornar-se homem em Jesus Cristo, o permanecerá pelosséculos dos séculos". O fato de seu caráter histórico, ofato que ela se manifestou no quadro do espaço e dotempo, a aliança ou se preferirmos, a unidade de Deus edo homem, não é uma verdade passageira. Jesus Cristoé o rei cujo reino não terá fim. "Jesus Cristo é o mesmohoje, ontem, eternamente" (Hb 13.8). Tal é nossa situa­ção diante de Deus. Ele nos rodeia verdadeiramente portodos os lados, em Jesus Cristo. Impossível escapar-se­lhe. Impossível também sucumbir dentro do nada. In­vocar Jesus Cristo é se comprometer sobre um caminho

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seguro. "Eu sou o caminho, a verdade e a vida" 0014.6). Trata-se de um caminho que atravessa os tempose cujo centro é o próprio Jesus Cristo; a origem dessecaminho não se perde na noite da história, ela corres­ponde exatamente ao que é. Enfim, esse caminho nãoconduz à escuridão, pois que todo o futuro diante denós porta esse mesmo nome: Jesus Cristo. Jesus Cristo éo que foi, o que é e o que vem, como o exprime o fim dosegundo artigo: ''''De onde virá para julgar os vivos e osmortos". Ele é o Alfa e o Ômega (Ap. 1.8), o princípio eo fim. Quando podemos, com o Símbolo, confessar onome de Jesus Cristo, isso significa que nós encontra­mos Aquele que, mesmo se o ignorarmos, nos tem in­teiramente dentro de sua mão.

Tudo isso, nós o dissemos, é "para nosso bem". Épreciso sublinhar. A aliança de Deus, sua revelação emJesus Cristo, não é simplesmente um milagre, um mis­tério interessante, digno de nossa mais séria atenção.Claro que é isso também, mas com certeza não teremoscompreendido nada se nós imaginamos poder fazerdisso um objeto de pura contemplação intelectual.Mesmo que pretenda se apoiar no Novo Testamento in­teiro e dar lugar aos mais belos discursos, o conheci­mento puro, a gnose, seria apenas um bronze queressoa, um címbalo que retine. A palavra de Melan­chton é completamente justa (Loci communes, 1521), adespeito do uso abusivo que se tem feito na teologiamoderna: Hoc est Christum cognoscere, beneficia Christicognoscere. Em particular, o erro de Ritschl e de sua es­cola consistiu em repudiar completamente o mistérioda encarnação para apresentar o Cristo unicamente sobo aspecto de um ser excepcional, de quem o homempode obter certos benefícios no sentido em que eles re­presentam para ele um certo "valor". Ora, não se pode

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falar abstratamente dos benefícios de Cristo. É precisoconhecê-los concretamente para poder reconhecê-los.

Se existe benefício, ele está única e exclusivamentedentro desse fato da revelação: Deus se fez homem, elese fez homem para o nosso bem. Assim somos auxilia­dos. A partir do fato de que esse ato de Deus foi feitopara nós, seu reino já está aqui. Pronunciar o nome deJesus Cristo é reconhecer que alguém se ocupa de nós eque nós não estamos perdidos. Jesus Cristo é a salvaçãodo homem apesar de tudo o que possa ensombrar suavida, inclusive o mal que provém dele mesmo. Nãoexiste nenhum mal que já não esteja mudado em bempelo evento da encarnação de Deus. Finalmente, nadamais resta a fazer do que redescobrir sem cessar queisto é assim. Nossa vida não é mais um sombrioenigma. Nós vivemos para Aquele que, desde antes donosso nascimento, foi misericordioso para conosco. Seé verdade que nós vivemos longe de Deus, se é verdadeque nós somos inimigos e rebeldes, ainda é verdade queDeus nos preparou o caminho da reconciliação muitoantes que entrássemos em luta contra ele. E se é verdadeque, a respeito de seu distanciamento de Deus, o ho­mem não pode ser considerado mais que um ser deses­peradamente perdido, é ainda infinitamente maisverdadeiro que Deus agiu, age e agirá por nós de talsorte que ele terá, para toda perdição, uma salvaçãopreparada. Tal é a fé para a qual somos chamados naIgreja, pelo Espírito Santo.

Acontece que todos os nossos motivos de queixa,mas também tudo aquilo de que possamos ser acusadoscom razão, todos os suspiros dos homens, todas as suaslamentações e seus desesperos - dos quais não contes­tamos a legitimidade - se distinguem radicalmente detodas as formas de amargura no seguinte: é que, reduzi-

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dos ao nosso papel de acusados ou de acusadores, nossaforça para protestar reside no fato de que nos reconhe­cemos como objetos da misericórdia divina. É unica­mente quando nos é dado medir a profundidade do queDeus fez por nós que podemos tomar consciência danossa miséria. Pois quem conhece a real miséria do ho­mem senão aquele que conhece a autêntica misericór­dia de Deus?

A obra do Filho pressupõe a do Pai e implica a doEspírito Santo como conseqüência. O primeiro artigoindica a origem, o terceiro a finalidade de nossa marcha.O segundo é o caminho onde nos é dado andar pela fé eque estende diante de nós a obra de Deus em toda a suaplenitude.

o Salvador e o Servode Deus

o nome de Jesus e seu título, o Cristo, designam a pessoa ea obra do homem, objeto de escolha divina,

em quem se encontra manifesta e cumprida, a missão pro­fética, sacerdotal e real do povo de Israel.

o segundo artigo do Símbolo se abre por dois ter­mos de origem estrangeira e que comandam todo o seuconteúdo: Jesus Cristo. O primeiro é um nome próprioque designa um indivíduo em particular, o segundo é umtítulo que caracteriza a sua função. Ao pronunciarmosesse nome e esse título, "Jesus, o Cristo", somos colocadosde imediato no contexto da história e da linguagem dopovo de Israel. Eis, pois, bem delimitado o assunto quevai nos ocupar agora: Jesus, nascido em Israel, esse ho­mem particular cuja função precisa consiste em manifes­tar e cumprir o ser e a missão desse povo. Desde o início,as coisas assumem uma fisionomia muito particular, apartir do fato de que o nome "Jesus" pertence à termino­logia hebraica: Jesus é, com efeito, o equivalente de Josué,um nome que se encontra com muita freqüência no An­tigo Testamento, e, notadamente num caso, com um certorelevo. Em troca, o título "Cristo" é de origem grega ou,mais exatamente, a tradução do termo hebraico "Messias"

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que quer dizer: o ungido. Acontece, pois, que o complexo"Jesus Cristo" já é, por si mesmo, o indício de um certomovimento histórico. Que um judeu, que um israelita,que um hebreu de nome Jesus seja o Cristo, eis o que jáconstitui um certo corte da história, de uma história quepassa através de um pequeno povo, Israel, para emergirentre os gregos, vale dizer, no mundo. Não se pode disso­ciar o nome de Jesus Cristo para reter somente um deseus componentes. Jesus Cristo não seria mais ele mesmose não estivesse, em sua pessoa, o Cristo, oriundo de Is­

rael, idêntico ao judeu Jesus. Inversamente, o judeu Jesusnão seria ele mesmo se não existisse, na sua função, oCristo de Deus, atestando no seio dos povos e no coraçãoda humanidade, o mistério e o alcance da vocação de Is­rael. Para poder compreender toda a significação donome de Jesus Cristo, é preciso considerá-lo sempre comessa dupla significação particular e universal. Uma vezque se esqueça de um em favor de outro, acontece que seestará falando, na realidade, de algum outro.

O nome próprio de Jesus significa literalmente:"Yahvé (o Deus de Israel) ajuda!" O título de Cristo, deMessias, servia para designar, entre os judeus do tempode Jesus, o homem dos últimos tempos, esperado por Is­rael e designado para fazer brilhar aos olhos de todos aglória de Deus, ao mesmo tempo oculta e prometida a seupovo. Designava o homem chamado para libertar os ju­deus da miséria e da opressão e que, ele mesmo oriundode Israel, devia reinar sobre os povos. E quando Jesus deNazaré aparece e prega, quando, saído de um humilde vi­larejo da Galiléia, ele emerge em plena história de Israel ­essa história de que, desde sempre, Jerusalém parece ter odever de anunciar a realização - nós aprendemos que, sobessa misteriosa figura, na pessoa do filho de José, é o es­perado Messias, o homem dos últimos tempos que está

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aqui; é como tal que Jesus se apresenta e é como tal que éreconhecido. Acontece que, entre todos os que portavamo nome de Jesus (Deus ajuda, Salvador), muito comum naépoca, só um concretiza em sua pessoa, porque tal é doagrado de Deus, a realização da promessa divina. E, aomesmo tempo, essa realização concerne ao destino de Is­rael, e marca a realização e a revelação de sua vocação es­pecífica no seio da história universal para todos os povos,para o conjunto da humanidade. É significativo que aIgreja primitiva não tenha falado de Jesus, o Messias, massim de Jesus Cristo: é a porta aberta para o mundo. Con­tudo, o nome judeu de Jesus permanece, atestando que éde Israel que a salvação se estende para o mundo inteiro.

Talvez vocês achem estranho que eu insista dessamaneira no nome de Jesus e no seu título. É que, no povode Israel, como de resto em toda antigüidade, os nomes eos títulos não tinham, como é o caso hoje, um caráter pu­ramente exterior e fortuito. Assim, o nome e o título deJesus Cristo exprimem realmente algo, eles constituem,no sentido mais concreto, uma revelação. Não é, pois,questão de ver aí um simples signo exterior, um chama­mento, um ornamento arbitrário. Lembremo-nos, é oanjo que declara a Maria: "Tu lhe darás o nome de Jesus"(Deus ajuda, Salvador, Soter em grego!) (Mt 1.21). Damesma maneira, o título "Cristo", longe de ser uma adjun­ção acidental, pertence ao homem que ele designa em vir­tude de uma necessidade interna. É impossível dissociá-lodo nome que o qualifica; ao contrário, deve-se dizer que ohomem que porta esse nome é feito para portar esse tí­tulo. Não se trata de uma dualidade entre o nome de umpersonagem e sua vocação. É desde o nascimento que Je­sus foi coroado com o título de Cristo, de sorte que suapessoa não existe sem seu título, nem seu título existesem a sua pessoa. Ele é o Josué por excelência, o Deus

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"que ajudà' porque foi escolhido para realizar a obra e afunção do Cristo o servo de Deus, oriundo de Israel, noseu ofício profético, sacerdotal e real.

É preciso que nos detenhamos aqui para sublinhar aimportância do fato de que é dentro da pessoa concretado homem Jesus Cristo que se realiza e se manifesta amissão específica desse povo único que é o povo de Israel,o povo judeu. Cristo, o servo de Deus para todas as na­ções, e Israel, o povo do qual é oriundo, não podem serseparados; são duas grandezas ligadas indissoluvelmentepelo tempo e pela eternidade. Israel não é nada sem JesusCristo e, inversamente, Jesus Cristo não seria Jesus Cristosem Israel. Portanto, é preciso que comecemos por olharIsrael para podermos ter uma visão correta de JesusCristo.

Israel, o povo do Antigo Testamento, é o povo daaliança. Sua história é a da aliança que Deus conclui comele sob formas sempre renovadas. É no contexto de Israelque esse conceito insólito de uma aliança entre Deus e ohomem nasce e se encontra em seu verdadeiro lugar. E éporque essa aliança é a de Deus com o povo de Israel quenão se pode confundi-la com uma idéia filosófica, umaidéia geral. Longe de sermos solicitados por uma idéia,com efeito, encontramo-nos postos diante do fato de queDeus chamou Abraão no meio dos povos para se ligar aele e à sua "posteridade" (Gn 17.7). Toda a história doAntigo Testamento e, por conseguinte, toda a história dopovo de Israel, coincide exatamente com a da aliança deDeus com o seu povo, desse povo com esse Deus que sechama Yahvé. Tendo reconhecido que a fé cristã se dirigea todos os povos e que o Deus que ela prega é o Deus domundo inteiro, nós não devemos nos esquecer que oponto de partida dessa mensagem universal, englobandotodos os homens, é uma ação particular de Deus, ação in-

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sólita e que nos parece terrivelmente arbitrária pela qualele se torna o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó. De sorteque a pedra de toque de toda ação de Deus entre os ho­mens deve ser sempre de novo esta ação particular doDeus de Abraão, de Isaac e de Jacó. O povo de Israel, talcomo aparece no Antigo Testamento, o chamado povoeleito, posto à parte, com todos os seus enganos e todas assuas fraquezas, objeto incessante do amor e da misericór­dia de Deus, mas também dos seus julgamentos mais ra­dicais, é a figura histórica da livre graça de Deus paratodos nós. Mas não se trata somente de um fato histórico:a livre graça de Deus brilhando sobre Israel, sobre os ju­deus, não é uma coisa que os cristãos de hoje, oriundosdo paganismo, possam considerar com um certo desliga­mento sob o pretexto de que ela não lhes diz respeito. Defato, nós não estamos "livres" da história de Israel! Umcristão que dissociasse completamente a Igreja da Sina­goga mostraria com isso que ele não compreendeu nemuma, nem outra. Por toda parte onde se pretendeu erguerum muro entre a Igreja e o povo judeu, a comunidadecristã se viu diretamente ameaçada. Pois essa é toda a rea­lidade da revelação divina que assim se renega implicita­mente; desde então, por pouco que tal filosofia ou talideologia venha a se impor, assiste-se ao advento de umcristianismo do tipo helênico, germânico ou outro. (Re­conhecemos, a esse respeito, que existe desde há muitotempo um "cristianismo helvético" que não vale nadamais que seu equivalente germânico!).

Vocês conhecem o episódio que exprime mais per­feitamente o significado do povo judeu? Frederico II umdia pediu a seu medico pessoal, o suíço Zimmermann,originário de Brugg, na Argóvia: "Diga-me, Zimmer­mann, você pode me dar uma só prova a favor da existên­cia de Deus?" E o outro responde: "Senhor, os Judeus!"

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Ele quis dizer com isso: caso se queira uma prova absolu­tamente visível, evidente para todos e irrefutável da exis­tência de Deus, é para os judeus que se deve olhar. Pois, éum fato, os Judeus existem ainda hoje. Às centenas, as pe­quenas nações do Oriente Próximo desapareceram dacena histórica, todas as antigas tribos de origem semíticase dispersaram ou desapareceram na massa dos outrospovos; só, dentre todos, esse pequeno povo subsistiu. Equando se fala de semitismo ou de anti-semitismo, énesse pequeno povo que se pensa, miraculosamente pre­servado, com as particularidades físicas e intelectuais queo fazem reconhecido e nas quais se baseia para afirmar dequalquer um: "É um não-ariano, um meio, um quarto denão-ariano"! Sim, caso se deseje absolutamente umaprova da existência de Deus, não se deve buscar maislonge! Pois, na pessoa de um judeu é um testemunho quenós encontramos, o testemunho da aliança de Deus comAbraão, Isaac e Jacó e, pois, com nós todos! Mesmo quemnão compreenda a Bíblia pode aqui literalmente ver umalembrança.

E não vêem vocês no que reside todo o verdadeiroalcance teológico, toda a significação intelectual e espiri­tual disso que foi o movimento do Nacional-socialismo?Não é no fato de que ele foi, desde o começo, violenta­mente anti-semita, não é precisamente dentro da nitidezdemoníaca com a qual afirmou sem cessar: o Judeu, eis oinimigo? Sim, sem nenhuma dúvida, o inimigo de uma talempresa não poderia ser outro que não o judeu. Pois é noseio do povo judeu que se conservou, viva e real, até estedia, a revelação de Deus no que ele tem de único e escan­daloso para a razão.

Foi Jesus, o Cristo, o Salvador e o Servo de Deus,quem cumpriu e tornou manifesta a missão do povo deIsrael, foi ele quem realizou a aliança selada entre Deus e

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Abraão. Assim, quando a Igreja declara sua fé nele, reco­nhece-o como o Salvador e o Servo de Deus para nós epara todos os homens, incluída a imensa multidão dosque não têm nenhum vínculo direto com o povo de Israel,ela o faz não apesar do fato de que Jesus foi um judeu(como se existisse nisso alguma coisa de infamante!).Nem se poderia também dizer que, depois de tudo, se Je­sus Cristo é judeu, é por um simples acaso histórico e queele poderia muito bem ter nascido de um outro povo. Issoseria um erro grave. A rigor devemos ao contrário afir­mar que esse Jesus Cristo que nós, cristãos, oriundos dopaganismo, chamamos nosso Salvador e em quem sauda­mos a realização da obra de Deus para nós, foi necessaria­mente um Judeu. É impossível passar ao largo desse fato,inseparável da manifestação concreta de Deus, de sua re­velação. Jesus Cristo é, com efeito, ao mesmo tempo a re­alização da aliança de Deus com Abraão, Isaac e Jacó e arealidade desta aliança - e não o inventor de uma idéia arespeito desta ou daquela forma de aliança - cuja realiza­ção e realidade é a razão de ser e o objetivo de toda a cria­ção, vale dizer, de tudo o que existe em distinção a Deus.O problema de Israel é, sendo inseparável do problema deCristo, o problema da existência. O homem que tem ver­gonha de Israel tem vergonha de Jesus Cristo e, por istomesmo, de sua própria existência.

Eu me permiti sublinhar a existência dessa questãoem razão mesmo do caráter fundamentalmente anti-se­mita do Nacional-socialismo. Não é por acaso, comefeito, que aqui mesmo na Alemanha, nós pudemos escu­tar o famoso slogan: Judá, eis o inimigo. É possível, bementendido, lançar semelhante slogan, certas circunstân­cias podem mesmo tornar a coisa necessária, mas que sepreste atenção então ao que se faz! Atacar Judá é atacarem sua base a própria obra de Deus e sua revelação sem

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as quais muito simplesmente não existe nada. Sim, é aprópria obra de Deus e toda sua revelação que foram pos­tas em questão pelo que se passou na Alemanha sob oreino do Nacional-socialismo e de seu anti-semitismo ra­dical; e isso não somente no plano das idéias e das teorias,mas dentro da própria vida, no plano dos acontecimentosquotidianos. Certamente pode-se afirmar que um talconflito fosse inevitável, mas então que não se fique atur­dido pela maneira como ele terminou. Um povo - e esseera o outro aspecto do Nacional-socialismo - que se de­clara eleito e se apresenta pelo critério absoluto de todaverdade, acaba por se chocar, cedo ou tarde, com o verda­deiro povo eleito. Já essa simples pretensão constituiu, an­tes mesmo que fosse questão de anti-semitismo, umanegação radical de Israel, vale dizer, de Jesus Cristo e, fi­nalmente, do próprio Deus. O anti-semitismo é umaforma de ateísmo ao lado do qual o ateísmo corrente talcomo se encontra, por exemplo, na Rússia, é uma coisabem anódina. Pois o ateísmo na base do anti-semitismotoca em realidades, quer seus iniciadores e seus represen­tantes estejam conscientes disto ou não. Logo ele se vê emconflito com o próprio Cristo. Teologicamente falando ­não faço política aqui - semelhante empresa devia neces­sariamente ecoar e se desmoronar. Há aqui uma rochacontra a qual vêm se quebrar todos os assaltos do homem,por mais potentes que eles sejam. Pois a missão do povode Israel, sua vocação profética, sacerdotal e real é idên­tica à vontade de Deus e à sua obra de salvação tais comose acham cumpridas e manifestadas em Jesus Cristo.

Mas qual é, então, justamente essa missão de Israelque pressupõe toda a Bíblia quando ela fala da escolhadesse povo, de seu caráter único, de sua existência àparte? Ela consiste em representar Deus no seio da huma­nidade. Israel só existe na medida em que completa essa

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missão temível: ser uma comunidade, um povo, uma hu­manidade a serviço de Deus no mundo. Não é, pois, parasua própria glória nem para satisfazer seu orgulho nacio­nal que esse povo foi posto à parte, mas sim para os ou­tros povos, para ser seu servo. Ele é o mandatário de Deussobre a terra. Está encarregado de anunciar a sua palavra:essa é a sua missão profética. Ao mesmo tempo ele devetestemunhar por toda a sua existência que Deus não se li­mita a falar, mas que intervém ele mesmo e se sacrifica:essa é a sua missão sacerdotal. Enfim, através de sua im­potência política, precisamente, ele deve atestar entre ospovos a soberania de Deus sobre todos os homens: essa ésua missão real. A humanidade necessita desse triplo tes­temunho. É essa missão particular de Israel, sob seus trêsaspectos, que o Antigo Testamento quer colocar sob nos­sos olhos quando celebra a fidelidade de Deus a esse pe­queno povo cuja existência está constantementesalvaguardada. Sua missão profética aparece mais parti­cularmente através de certos personagens cujo protótipo,depois de Abraão, é Moisés, o fundador da unidade israe­lita, ao qual sucedem essas figuras tão espantosamente di­versas que são os profetas. Mas, ao mesmo tempo, atravésda existência do Tabernáculo, do Templo e dos sacrifí­cios, pode-se ver se definindo o segundo aspecto dessetestemunho: o aspecto sacerdotal. É durante o reinado deDavi que aparece de uma maneira exemplar a missão deIsrael: ser o representante da soberania de Deus sobre aterra. Contudo - e isto nos concerne diretamente - é fi­nalmente no homem, Jesus de Nazaré, oriundo de Israel,indissoluvelmente ligado a Israel, que se cumpre em todoo seu rigor a missão confiada a esse povo.

A missão de Israel deve ser considerada como ple­namente revelada e cumprida em Jesus Cristo. É porque,ao longo de toda história desse povo, ela permaneceu, de

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início, oculta e sem efeito. Quando se deseja ler atenta­mente o Antigo Testamento, se percebe de imediato equase a cada página, que esse livro não se preocupa nemum pouco em exaltar Israel como "raça" ou nação. Aocontrário, a imagem que ele dá do homem israelita é ex­traordinariamente pouco edificante: é a de um ser que seopõe constantemente à escolha e à vocação da qual é ob­jeto, que se mostra indigno de sua missão e que, precisa­mente porque recusa a graça que lhe é feita, se vê sempresob os golpes do julgamento de Deus. História medíocre,essa do povo de Israel, que caminha de catástrofe em ca­tástrofe, por causa de suas repetidas infidelidades. A infi­delidade só pode significar a infelicidade e a ruína,conforme o anuncia ou confirma a pregação dos profetas.E qual é o resultado dessa história lamentável? A profeciacessa e não resta a esse povo mais que uma lei escrita,marcada pela esterilidade. O templo de Salomão, quesimbolizava a esperança de Israel e sua missão sacerdotal,não é mais que ruína e cinzas. E o que ocorreu com areino de Davi? Quanto pesar para todos os israelitas pen­sar em tudo o que eles perderam sob os golpes do julga­mento de Deus, cujo amor foi sempre tão mal­recompensado. E quando enfim aparece o Messias queeles esperaram durante tão longo tempo, eles o crucifi­cam, confirmando por esse ato supremo o que tinha sidosua atitude no curso de toda a sua história. Eles vêem neleum blasfemador, eles o entregam aos pagãos e a Pilatos,para que ele seja pendurado no madeiro. Eis Israel, eis opovo eleito, eis o que ele faz da sua escolha, da sua mis­são: ele se julga e se condena a si próprio. O anti-semi­tismo vem tarde demais! A sentença sobre Israel já estápronunciada e comparados a essa sentença, todos os ou­tros julgamentos conduzidos sobre esse povo são insigni­ficantes. Daí se segue que a missão desse povo tenha se

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tornado caduca? Não, pois o Antigo Testamento não secansa de afirmar: a escolha de Deus é coisa séria, ela per­manece eternamente válida. O homem, tal como Israelno-lo mostra, é e permanece, a despeito de tudo, o eleitode Senhor, seu mandatário no mundo. A fidelidade deDeus triunfa sobre a infidelidade. E é assim que em tudosendo uma demonstração viva da indignidade do ho­mem, Israel torna-se ao mesmo tempo o sinal da livregraça de Deus, a qual, sem querer levar em consideraçãonossa atitude nos dá o benefício de um prodigioso "ape­sar de tudo". O homem não é mais que objeto da miseri­córdia divina e desde que ele queira ser mais do que isso,deve necessariamente protestar contra a existência dopovo de Israel. Israel depende totalmente e exclusiva­mente de Deus. Está para sempre reduzido a recorrer aele somente. Leiam os Salmos: "Tu sozinho..." O homemnão pode mais que escutar Deus que lhe fala e cuja sobe­rania domina-o constantemente, quaisquer que sejamsuas tentativas para lhe escapar. E é quando a missão deIsrael se cumpre com todo o seu rigor, isto é, por ocasiãoda crucificação de Jesus de Nazaré, que se pode compre­ender, enfim, o mistério desse povo. Pois quem é, então,esse Jesus crucificado senão, ainda uma vez, esse mesmoIsrael pecador e ímpio, Israel, o blasfemador? Mas, dora­vante, ele se chama Jesus de Nazaré. Se considerarmosagora a história desses dois milênios onde o judeu apa­rece sem cessar como um milagre e um absurdo, comoum obstáculo que desencadeia o ódio dos povos - e cadaum poderia colocar aqui seu pequeno refrão anti-semita!-, o que pode ser essa história estranha senão a confirma­ção da rejeição de Israel, tal como Deus a manifesta noGólgota, mas também da escolha desse povo ao qual Deuspermanece fiel, através de todas as vicissitudes? Podemosafirmar isso porque essa fidelidade de Deus triunfou so-

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bre O Calvário. Onde Deus esteve mais perto de seu povosenão no Gólgota? Onde esteve ele, através desse povo,mais fortemente do lado de todos os homens, de todos ospovos? Vocês pensam que estaria em nosso poder excluiros judeus da fidelidade de Deus? Vocês acreditam verda­deiramente que poderíamos privá-los dela? A fidelidadede Deus com relação a Israel é precisamente a garantia desua fidelidade com relação a nós, com relação a todos oshomens.

Mas é preciso virar a página. Jesus Cristo é o coroa­mento e a realização de Israel. Se voltarmos ao AntigoTestamento, não deixamos de encontrar nele igualmente,por toda a sua extensão, homens que, apesar de sua re­volta e de sua perdição, sabem, às vezes - coisa impressio­nante -, reconhecer sua escolha. Mas essa espécie de ecofiel, de resposta da piedade, longe de provir do próprio Is­rael, é um fruto renovado da graça de Deus. Com efeito, agraça, desde que está aqui, obriga os homens a louvar aDeus contra sua vontade e a fazê-los entender a respostaque não pode deixar de suscitar neles, como um simplesreflexo, a luz que os visitou. Há uma graça dentro do jul­gamento. O Antigo Testamento a testemunha não comouma qualidade do homem israelita, mas como um mila­gre de Deus. É apesar das virtudes e dos pecados dessepovo que sua história contém sempre os testemunhos quese abrem por estas palavras: "Assim fala o Eterno ..." (Is43.1). Não são mais que respostas, ecos do milagre da fi­delidade de Deus. O Antigo Testamento fala de um "re­manescente". O que distingue esse remanescente não é avirtude ou a piedade, mas o fato de ter sido chamado. Elecontém os pecadores mantidos no freio pela graça, pecca­tores justi.

A revelação atinge seu ponto culminante na existên­cia de Jesus de Nazaré. Jesus é oriundo de Israel, nascido

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da Virgem Maria e, contudo, ele vem de outra parte, doalto; como tal, ele revela e cumpre a aliança. Israel nãoum doente que se recupera, é aquele que ressuscita dosmortos. Desde que Jesus aparece, é o julgamento de Deusque brilha; este julgamento vai ao encontro de todosaqueles que o homem pronuncia contra si mesmo, elelhes retira sua última aparência de realidade. A fidelidadede Deus triunfa no oceano da miséria e pecado humanos.Deus tem misericórdia do homem. Este se liga a ele nomais íntimo de seu ser. Ele jamais deixa de atrair comcordas de amor povo infiel. E eis que este homem de Is­rael, não por sua natureza, mas por um milagre da graça,de novo se ergue em Israel, triunfa da morte é elevado àdireita de Deus!

Israel é, no fundo, a projeção da livre graça de Deus.Ele forma o quadro do acontecimento decisivo onde,dentro da sua relação com o homem, Deus se torna visí­vel: a ressurreição de Jesus Cristo. O homem aparece dora­vante dentro da luz da glória de Deus. Tal é a graça, ofruto da condescendência de Deus para com o homem. Eo lugar desse evento é o homem Jesus, oriundo de Israel.E a conseqüência desse evento que ilustra uma vez mais ocaráter positivo da graça, é essa extensão prodigiosa daaliança de Abraão a todos os outros homens.

"Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a todacriatura" (Mc 16.15). Tal é a graça: sua natureza é se es­tender, ir do particular ao geral. Mas, porque a salvaçãovem dos judeus, esse povo está não somente sob o golpedo julgamento, mas também sob o benefício da graça. Agraça que repousa sobre Israel, enquanto povo eleito echamado, é visível até os nossos dias na Igreja, que é es­sencialmente composta por judeus e pagãos. Na epístolaaos Romanos, capítulos 9-11, o apóstolo Paulo não secansa de dizer que não há uma Igreja de judeus e uma

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Igreja de pagãos, mas que a Igreja é a comunidade únicade homens oriundos de Israel e de pagãos. Essa dupla ca­racterística é constitutiva da Igreja e longe de sentir ver­gonha, ela deve considerar como um título de glória ofato de contar em seu seio com descendentes autênticosde Abraão. A existência de cristãos de origem judaica é amarca visível da unidade do povo de Deus que, visto deum lado, se chama Israel, e, de outro, Igreja. E se existeainda, ao lado da Igreja uma Sinagoga que tira sua exis­tência da rejeição de Jesus Cristo e da vã ambição de con­tinuar a história de Israel, de fato, já há muito terminada,não podemos ver aí mais do que um tipo da Igreja, comosua sombra através dos séculos; como tal, ela continua aparticipar, quer queira quer não, do testemunho dado aDeus e à sua revelação. A videira não está morta. O queconta, é que Deus a plantou, é o que ele fez nela e o queele lhe deu; e tudo isso tornou-se manifesto em JesusCristo, o homem oriundo de Israel.

o Filho Único de Deus

A revelação de Delis /lO !Il)rflL:11I }t:sus Cristo é compulsóriae exclusiva e se traduz por uma ação plenamente

salutar, porque Jesus Cristo não é um serdiferente de Deus, mas o Filho

único do Pai, isto é,o próprio Deus vivo, sua graça,

sua verdade e sua onipotência em pessoa;como tal, é o único verdadeiro Mediador entre Deus

e todos os homens.

Eis-nos chegados à questão relativa à verdadeira di­vindade de Jesus Cristo. De fato, no ponto em que chega­mos, a resposta a essa questão não deixa mais dúvida.Tentemos apenas perceber em que termos essa reposta seimpõe a nós.

Ao longo de nossa exposição, temos constantementetopado com o conceito de revelação ou da Palavra deDeus. Trata-se do ato pelo qual Deus se faz conhecer, damensagem que ele mesmo nos dá. No mundo existem nu­merosas revelações, oráculos e mensagens se arrogando aqualidade de "Palavras de Deus". Trata-se, pois, de saber ­e nós iremos tomar posição quanto a isso - em que me­dida isso que nós mesmos entendemos aqui por revelação

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de Deus se impõe e deve ser aceito como tal. É certo que ahistória da humanidade no seu conjunto como a dos indi­víduos particulares é fértil em eventos de toda natureza,capazes de nos fazer sentir "uma presença misteriosa" quese impõe a nós de maneira irresistivel, nos subjuga e nãonos deixa mais. Nós poderíamos facilmente ilustrar acoisa. A vida humana é como que pontuada de "revela­ções", quer se trate de amor, quer de potência, quer de be­leza, etc. Porque seria necessário, então, que isso que aquidenominamos revelação de Deus, ou seja, o evento coin­cidente com a vinda de Jesus Cristo, fosse uma revelaçãoexclusiva? A essa questão (sobre o "absolutismo" do cris­tianismo, veja Troeltsch), deve-se responder: de fato, esta­mos cercados por muitas outras "revelações" mais oumenos compulsórias ou legítimas. Mas do ponto de vistada fé cristã nós temos o direito de afirmar que lhes faltauma autoridade última, absoluta, indiscutível. Pode-sepercorrer a surpreendente diversidade, deixando-se vezpor outra iluminar, convencer ou subjugar; não é menosverdade que nenhuma delas possui esse supremo poderde impedir que aquele que elas capturaram por um ins­talHe, se desprenda em seguida, tal como um homem que,depois de ter visto seu reflexo num espelho, continue seucaminho e imediatamente esqueça o que viu. É evidenteque um elemento capital falta a esse tipo de revelações: aforça compulsória. Não que elas sejam impotentes, insig­nificantes, ineficazes, mas, e é aqui que a fé cristã nosforça a reconhecer, elas são, enfim, apenas revelações dagrandeza, da potência, da bondade e da beleza tal comoessas existem nesta terra criada por Deus. A terra estáplena de glória e magnificência. Ela não seria nem a cria­çâo de Deus, nem o quadro que ele fixou para nossa vida,se ela não estivesse repleta de revelações. Os filósofos, ospoetas, os músicos e os profetas de todos os tempos o sa-

o Filho Único de Delis - 117

bem. Portanto, falta a essas revelações, próprias da terra, aautoridade capaz de prender definitivamente o homem.O homem pode atravessar o mundo inteiro sem se sentirpreso a nada. Mas, poderiam se tratar de revelações celes­tes, quer dizer, revelações do mundo invisível e incompre­ensível que nos rodeia por todos os lados e exerce sobrenós uma pressão contínua. Quantos motivos de espanto,de encantamento, existem nesse imenso domínio e nosescapam! O que seria o homem sem essa presença cons­tante do mundo celeste acima de sua cabeça? Contudo, asrevelações que se pode obter ali, pertencem também à or­dem da criação: elas não possuem a autoridade derra­deira. Falta-lhes algo. Todo o domínio celeste permanece,como o terrestre, submisso à contingência. Ele se apre­senta para nós como embaixador extraordinariamentebrilhante de um grande monarca; contudo, nós sabemosque ele não é esse monarca, mas somente o seu mensa­geiro. É assim com todas as potências do céu e da terra,com todas as suas "revelações". Sabemos que existe ainda"alguma coisa" acima delas. Por mais formidáveis que elaspudessem ser, mesmo que elas alcançassem a enverga­dura da bomba atômica, elas não seriam capazes de nosprender em última instância, nem nos subjugar definiti­vamente. Si fractus illabitur orbis, impavidum ferient rui­nae! (Horácio). A humanidade não demonstrou, mais deuma vez, através desses últimos anos de guerra, que elapermanece invulnerável aos piores acontecimentos? Naverdade, fora do próprio Senhor, não há senhor capaz departir o coração do homem. Impassível, a humanidadeatravessa todas as ruínas e pode resistir a todas as potên­cias deste mundo.

Quando, pois, a Igreja cristã fala de revelação, não édessas manifestações terrestres ou celestes, por mais altasque sejam elas, que ele quer falar e sim da potência que se

118 - Esboço de uma [)ogmârica

encontra acima de todas as potências, quaisquer que se­jam; numa palavra, trata-se da revelação do próprio Deuse não da revelação de um divino cá de baixo ou lá decima. Se, pois, a verdade que é o objeto desta conversação,a saber, a revelação de Deus em Jesus Cristo, tem um ca­ráter compulsório e exclusivo, se ela é verdadeira e total­mente salutar, é porque ela não destaca uma realidadediferente e separada de Deus, celeste ou terrestre, mas simo ser íntimo de Deus, a própria pessoa de Deus Altíssimo,criador do céu e da terra do qual nos fala o primeiro ar­tigo do Símbolo. Nas inumeráveis passagens onde Jesusde Nazaré (que a Igreja primitiva reconheceu e declaroucomo sendo o Cristo) é chamado o Senhor (Kyrios), oNovo Testamento não faz outra coisa senão retomar otermo "Yahvé" pelo qual o Antigo Testamento designa opróprio Deus. Esse Jesus de Nazaré que atravessa das ci­dades e vilas da Galiléia, e sobe a Jerusalém, onde foi acu­sado, condenado e crucificado, é o Eterno (Yahvé) dequem fala o Antigo Testamento, é o Criador, é o próprioDeus. Um homem como todos nós, pois, situado notempo e no espaço, possui todos os atributos de Deus,sem deixar, contudo, de ser homem, isto é, plenamentecriatura. O próprio Criador se torna, sem enfraquecer emnada sua divindade, não um semi-deus, não um anjo, masmuito simplesmente, muito realmente, um homem. Eis oque quer dizer a Confissão de fé quando afirma que JesusCristo é o Filho único de Deus. Ele é o Filho de Deus, istoé, Deus no ato soberano pelo qual ele dispõe de si mesmo.Esse Deus que dispõe assim de seu ser, esse Filho únicode Deus, é esse homem particular, Jesus de Nazaré. PorqueDeus não é somente o Pai, mas também o Filho, porqueseu ser íntimo é o lugar desse movimento continuo (ele éDeus, mas, dentro do próprio ato de seu ser, ele é o Pai e oFilho), ele tem a faculdade de ser, ao mesmo tempo, o

o filho Único de Deus - 119

Criador e a criatura, como é, ao mesmo tempo, o Pai e oFilho. Porque essa ação, essa revelação de Deus é a obrado Filho eterno de Deus ela ocupa, em completa legitimi­dade, um lugar absolutamente único em relação ao con­junto da criação. Sim, porque aqui, o próprio Deusintervém, porque esta criatura é seu Filho, o aconteci­mento que se efetiva no homem Jesus de Nazaré possuium caráter compulsório, exclusivo e plenamente salutar.Ele se distingue de todos os outros acontecimentos que seproduzem ao nosso redor e que são também, bem enten­dido, um efeito da vontade e do desejo de Deus. A revela­ção e a ação de Deus em Jesus Cristo não são um efeitoqualquer da sua vontade, mas o próprio Deus intervindona criação.

No ponto em que chegamos, me parece bastante in­dicado dar a palavra à Igreja do século IV que, no con­texto da controvérsia relativa à divindade de Cristo, seexprime assim: "Cremos num só Senhor, Jesus Cristo, Fi­lho único de Deus, nascido do Pai antes de todos os sécu­los, luz de luz, verdadeiro Deus de verdadeiro Deus,gerado e não criado, de uma mesma substância que o Paie por quem tudo foi feito, que, por nós, homens, e pornossa salvação, desceu dos céus ..." (Credo Niceno, 381d.C). Não faltaram vitupérios contra essa fórmula aolongo dos séculos e vocês encontrarão, certamente, du­rante seus estudos, numerosos sábios e mesmo professo­res que não compreendem e deploram profundamenteque a Igreja tenha podido chegar aqui. Eu gostaria queagora vocês se lembrassem um pouco dessas lições e to­massem um tempo para refletir um instante. Pois, todosesses ataques contra o que se chama "ortodoxià' fazem re-

I ". d I b ,,13 .a mente pensar nos UlVOS os o os, aos quaIS, mesmo

1:3. No texto alemão: Wolfsgeheul. (N. do T.).

120 - Esboço de uma Dogm,itica

que se lhes atribua um mínimo de cultura, devemos recu­sar juntar-nos. Sim, há algo de bárbaro nos insultos pro­feridos contra os Pais da Igreja antiga. Parece-me que,mesmo sem ser cristão, deve-se ter um pouco de respeitopara reconhecer a envergadura das tentativas teológicasdeles, em particular no problema que nos ocupa. Houve apresunção de que as fórmulas do Símbolo de Nicéia nãofossem bíblicas. Mas há muitas verdades, reconhecida­mente necessárias e boas que não estão formuladas comtodas as letras na Bíblia. A Bíblia não é um livro de recei­tas, é um documento único da revelação divina. É precisoque a revelação nos fale de maneira que possamos com­preendê-la. Em cada época, a Igreja viu-se na obrigaçãode responder ao que lhe era dito na Bíblia. Ela viu-seobrigada a fazê-lo, cada vez, com uma outra língua e comoutras palavras, diferentes daquelas da Escritura. O textode Nicéia é uma dessas respostas da Igreja que foram tes­tadas em combate. Nesse caso, em particular, era absolu­tamente necessário que fosse conduzido esse combate por

um iota 14: Jesus Cristo era o próprio Deus ou um simplesherói celeste ou terrestre? Não se tratava de uma questãoqualquer, vê-se; mas nesse iota é o Evangelho como umtodo que estava em jogo. Ou bem seria com o próprioDeus que nos relacionaríamos em Jesus Cristo, ou bemcom uma criatura. A história das religiões conhece à pro­fusão seres divinos ou semi-divinos. Lutando até o san­gue sobre o ponto que nos ocupa, a teologia antiga sabia,pois, o que fazia.

Certamente esse combate não foi sempre tão edifi­cante; ele se misturou bastante com o "humano". Mas será

1<1. N. do Ed.: É o nome da menor letra do alfabeto grego, usada aquipara significar um detalhe que alguns poderiam considerar sem im­portância (cf. uso semelhante por Jesus em Mt 5.18).

o Filho Único de Delis - 121

que esse lado desagradável merece tal interesse? Cada umsabe que os próprios cristãos não tiveram nunca a preten­são de ser e não são anjos. Não é lícito, quando uma ques­tão essencial está em jogo, invocar, com um grande gestoabençoado, a paz, a paz a qualquer preço; deve-se, aocontrário, empenhar todas as forças em um combate quedeve ser mesmo levado até o fim, sem se considerar nin­guém. Graças a Deus, os Pais do século IV por mais ab­surdos, mais humanos, mais pedantes que possam nosparecer hoje, não temeram conduzir um tal combate. To­das as suas fórmulas queriam dizer uma só e a mesmacoisa: é que o Filho único nascido do Pai antes de todosos séculos, luz de luz, verdadeiro Deus de verdadeiroDeus, não é uma criatura, mas o próprio Deus, da mesmasubstância (e não de substância semelhante) que o Pai,Deus em pessoa. "Por quem tudo foi feito e quem por nós,os homens ( ... ) desceu dos céus". Desceu a nós: eis JesusCristo. E eis como a Igreja antiga o viu, eis como ele seimpôs a ela e o testemunho que ela deu a ele na sua Con­fissão de fé, e que nos chama também a uma confissão se­melhante. É ainda possível, quando se compreende isso,deixar de aderir ao grande consensus da Igreja? Que in­fantilidade permanecer em lamentações estéreis a propó­sito da ortodoxia e da teologia gregas! Isso não temnenhuma ligação com a questão em si. E se as circunstân­cias que cercaram a redação dos antigos símbolos cristãosnão foram sempre "edificantes", não será porque tudo oque empreendemos nós, os homens, permaneça forçosa­mente sujeito à caução, repleto de confusão e de insufici­ência? Mas é muito importante passar por isso paraatingir um resultado mesmo que pouco claro e perti­nente. Dei providentia et hominum confusione!

Muito simplesmente e muito praticamente, o con­teúdo dos antigos símbolos deve nos permitir ver com

122 - Esboço de lima Dogm:ítica

clareza; ao confessar a sua fé no Filho de Deus sob aforma que se conhece, os homens de Nicéia puseram odedo sobre o que distingue e distinguirá sempre a fé cristãdisso que se chama religião. Nós temos ligação com opróprio Deus e não com quaisquer deuses. É próprio da fécristã nos fazer "participar da natureza divina" (2Pe 1.4).Do que se trata, de fato? Do acontecimento pelo qualDeus se aproximou de nós a tal ponto que, pela fé, nósparticipamos de seu ser. Jesus Cristo é, pois, o Mediadorentre Deus e os homens. É dentro dessa perspectiva quetudo deve ser interpretado: Deus se põe no nosso nívelpara nos elevar ao dele. Que um tal milagre devesse seproduzir e se tenha efetivamente produzido, eis o que nosfaz medir nosso pecado e nossa miséria em toda a suaverdadeira profundidade. É sobre esse milagre inaudito,esse acontecimento que nos ultrapassa totalmente, que aIgreja e toda a cristandade têm os olhos postos. Deus sedeu ele mesmo a nós. E é por isso que toda palavra, todaproposição cristã tem algo de absoluto, o que não seriapossível às outras palavras humanas. A Igreja não tem"opiniões", pontos de vista, convicções, ela não se deixalevar por uma idéia. Ela crê e ela afirma sua fé, quer dizer,ela fala e age a partir da mensagem fundada em Cristoque ela recebe do próprio Deus. Daí o caráter exclusivO deseu ensinamento, de suas consolações e de suas exorta­ções das quais toda a força procede não dela mesma, masdo acontecimento prodigioso pelo qual Deus quis serpara nós, em Jesus Cristo, seu Filho único.

Nosso Senhor

A exislêllCÚZ do /wmern Jesus Cristo é, em virtude da suadivindade, a decisão soberana sobre a existência de

todo homem. Ela está baseada no fato de que,pela dispensação de Deus,

este Alguém representa tudo e,portanto, tudo está ligado e subjugado a este

Alguém. Sua comunidade sabe disso.E é isto que deve ser proclamado ao mundo.

Perguntei a mim mesmo se, ao invés destas senten­ças, simplesmente não copio a explanação de MartinhoLutero sobre o segundo artigo: "Creio que Jesus Cristo,verdadeiro Deus nascido do Pai na eternidade, e tambémverdadeiro homem nascido da Virgem Maria, é meu Se­nhor...". Nestas palavras, Lutero expressou o conteúdocompleto do artigo segundo. Se olharmos para o texto,talvez pareça, exegeticamente, um ato arbitrário, porém,seguramente, um ato arbitrário de um gênio. Afinal, Lu­tero, na verdade, não fez mais do que remontar ao maisoriginal e mais simples vocabulário do Credo, Kyrios JesusChristos, Jesus Cristo é o Senhor. Ele comprimiu e redu­ziu a este denominador tudo o que está declarado no se­gundo artigo. Na sua formulação a verdadeira Divindade

124 - Esboço de uma Dogmática

e a verdadeira humanidade se tornam o predicado destesujeito. A obra completa de Cristo é a obra completa doSenhor. A declaração integral que este Senhor nos propõeé de que sejamos sua possessão; "para que eu viva sob eleno seu reino e o sirva", porque ele é meu Senhor, que "meredimiu quando estava perdido e condenado, adquiriu­me, livrou-me de todos os pecados, da morte e do poderdo mal". E a promessa cristã, na sua integralidade, está di­recionada para "que eu o sirva em retidão eterna, inocên­cia e glória", de acordo com sua glória. A integralidade setorna uma analogia da exaltação de Cristo.

Não queria iniciar esta exposição desta parte doCredo sem chamar sua atenção enfaticamente para o textode Lutero. Mas vamos tentar trazê-la para bem perto danossa própria linha de pensamento. O que se quer dizerquando dizemos que Jesus Cristo é nosso Senhor? Cos­tumo parafrasear, dizendo que a existência de JesusCristo é a soberana decisão sobre a existência de todo ho­mem. Uma soberana decisão foi tomada sobre nós, ho­mens. Se estamos conscientes dela e lhe fazemos justiça,isto é outra questão. Temos a declaração de que ela foi to­mada. Esta decisão não tem nada que ver com um des­tino, uma determinação neutra e objetiva do homem, quepoderia, de alguma forma, ser lida da natureza e históriado homem; porém esta decisão soberana sobre a existên­cia de todo homem consiste na existência do homem Je­sus Cristo. Porque ele é, foi e será, esta decisão soberana éimposta sobre todo homem. Você se lembra que, no iní­cio da nossa aula, enquanto era exposto o conceito de fé,decidimos que a fé cristã deve ser vista absolutamentecomo uma decisão do homem, que é tomada à vista deuma decisão divina. Quando dizemos que Deus é nossoSenhor e Mestre, como cristãos não estamos pensando, àsemelhança de todo misticismo, como algo divino e des-

Nosso Senhor - 125

conhecido e de certa forma indefinível e final, que pairasobre nós como um poder e nos domina. Porém, estamospensando da figura concreta, o homem Jesus Cristo. Ele énosso Senhor. Uma vez que ele existe, Deus é nosso Se­nhor. Precedendo toda existência humana, como um apriori, assim é a existência de Jesus Cristo. É isto que aConfissão de fé cristã nos diz. O que significa esta prece­dência dele? Não deixe a idéia de uma precedência tem­poral ser proeminente. Ela aconteceu, mas acabou, háeste grande histórico perfeito, no qual o senhorio foi esta­belecido sobre nós, nos anos 1-30 na Palestina - porém,não é este o caso. Quando a precedência temporal ad­quire sua importância, é devido à existência deste homempreceder nossa existência em virtude da sua incompará­vel importância. Ele precede nossa existência em virtudeda sua autoridade sobre nossa existência, no poder da suadivindade. Voltemos ao que dizíamos na última aula.Agora podemos ver o que se queria dizer quando dizía­mos que a existência deste homem é, em palavras simples,a existência do próprio Deus. É nisto que constitui o valordeste homem, que é o conteúdo da sua vida, que é seu po­der sobre nós. Uma vez que Jesus Cristo é o único Filhogerado por Deus, "de uma substância com o Pai", por­tanto, também de sua natureza, seu ser humano, é umacontecimento no qual a decisão soberana está consu­mada. Sua humanidade é, na verdade, humanidade, a es­sência de toda humanitas. Não como um conceito ouidéia, mas como uma decisão, como história. Jesus Cristoé o homem, e a medida, a determinação e limitação detodo ser humano. Ele é a decisão quanto ao propósito eobjetivo de Deus, não somente para ele, mas para todohomem. É neste sentido que a Confissão cristã chama Je­sus Cristo "nosso Senhor".

126 - Esboço de uma Dogmárica

Esta soberania, decisão régia em Jesus Cristo, estáfundamentada sobre o fato de que pela disposição deDeus este único homem representa todos. Está funda­mentada, isto é, esta decisão soberana de Deus - ou seja,o senhorio de Jesus Cristo - não é um ato cego de poderem si mesmo voltado para nós, homens. Você se lembracomo falamos da onipotência de Deus e como sublinhei adeclaração de que "o poder em si mesmo é maligno; que opoder pelo poder é o Diabo". O senhorio de Jesus Cristonão é poder pelo poder. Quando a igreja cristã confessaque "Creio que Jesus Cristo é o Senhor", portanto, nãoestá pensando numa lei cega pairando ameaçadoramentesobre nós, não em um poder histórico, não em um des­tino ao qual o homem está exposto indefeso, diante doqual sua percepção final consistiria apenas em reco­nhecê-lo como tal; mas ela está pensando no próprio se­nhorio do seu Senhor. Seu senhorio não é apenaspotentia; ele é potestas. Ele se torna reconhecível para nóscomo ordenança não apenas de uma vontade insondável,mas como ordenança de sabedoria. Deus é justo e sabe oque está fazendo, assim ele é nosso Senhor e quer ser co­nhecido e reconhecido por nós como tal. Evidentemente,esta base do senhorio de Cristo nos conduz ao mistério.Eis algo objetivo, uma ordem que está acima de nós e se­parada de nós, uma ordem à qual o homem deve sujeitar­se, a qual deve reconhecer, a qual ele deve apenas ouvir eobedecer. Como poderia ser de outra forma, uma vez queo próprio senhorio de Cristo já foi fundado e consiste nopoder da sua Divindade? Onde Deus é rei, o homem sópode prostrar-se e adorar. Mas adorar na presença da sa­bedoria de Deus, da sua justiça e santidade, do mistérioda sua misericórdia. Esta é a reverência cristã diante deDeus e o louvor do cristão para Deus, do serviço cristão e

Nosso Senhor - 127

obediência. A obediência está no ouvir e o ouvir significareceber a palavra.

Gostaria de tentar e indicar esta base do senhorio deCristo resumidamente. A declaração de abertura diz queesta decisão soberana está baseada no fato de que esteUnigênito da dispensação de Deus representa todos. Omistério de Deus, e dessa forma, o de Jesus Cristo, é queele, o Unigênito, este homem, pelo seu ser Único - nãouma idéia, mas Único que é totalmente concreto nestetempo e lugar, um homem que carregou um nome e vemde um lugar, e que, como todos nós, tem um histórico devida no tempo - não apenas existe por si mesmo, mas éÚnico para todos. Você pode tentar ler o Novo Testa­mentú do ponto de vista deste "para nós". Pois a existênciainteira deste homem, que permanece no centro, é deter­minado pelo fato de que ela é uma existência humana, re­alizada e cumprida não apenas dentro do seu próprioreferencial e com seu próprio significado em si mesmo,mas para todos os outros. Neste homem único Deus vêtodo homem, todos nós, como se através de um espelho.Através deste meio, através deste Mediador somos conhe­cidos e vistos por Deus. Desta forma, podemos e devería­mos entender a nós mesmos como homens vistos porDeus nele, neste homem, como homens feitos conhecidospara ele. Ante seus olhos na eternidade Deus mantêm oshomens, cada homem, nele, neste Unigênito; e não ape­nas diante dos seus olhos, mas amados e eleitos e chama­dos e feitos sua possessão. Nele, desde a eternidade, ele seamalgamou a si mesmo a cada homem, a todos os ho­mens, ao longo de todo o espectro que abrange o ser cri­ado como homem, através da miséria humana até a glóriaprometida ao homem. Tudo que se refere a nós é decididonele, neste único homem. É à semelhança deste Único, àsemelhança de Deus, após a qual o homem foi criado ho-

128 - Esboço de uma DogmáricJ

mem. Este Único em sua humilhação carrega o pecado, aperversidade, a estupidez, o sofrimento e a morte de to­dos. A glória deste Único é a glória que foi intencionadapara todos nós. Para nós sua intenção é que podemosservi-lo em eterna justiça, inocência e bem-aventurança,uma vez que ele ressuscitou, vive e governa na eternidade.Assim é a sabedoria da dispensação de Deus, esta coesãode cada homem e todos os homens com o Único; esta é,visto assim para falar de cima, a base do senhorio deCristo.

E agora a mesma coisa vista do lado do homem.Uma vez que esta dispensação de Deus existe, uma vezque iniciamos nesta coesão, uma vez que Jesus Cristo é oúnico homem e permanece diante de Deus em nosso fa­vor, e nós nele somos amados, sustentados, conduzidos egerados por Deus, somos propriedade de Jesus Cristo, porobrigação estamos ligados nele, este Proprietário. Ob­serve bem que esta nomeação de nós para ser sua propri­edade, esta conexão de nós para ele não possui emprimeira instância algo como uma moral ou mesmo umaqualidade religiosa, mas ela repousa sobre um estado deobrigações, sobre uma ordem objetiva. O elemento morale religioso é a cura posterior. Evidentemente, o resultadonecessariamente também incluirá um elemento de mora­lidade e religião. Porém, no primeiro caso o fato é sim­plesmente que pertencemos a ele. Em virtude dadispensação de Deus o homem é propriedade de Cristo,não apesar de, mas na sua liberdade. Pois assim como ohomem conhece e vive sua liberdade, ele vive na liber­dade que lhe é oferecida e criada para ele pelo fato de queCristo intercede por ele na presença de Deus. Esta é agrande boa ação de Deus, anunciada nisto, que JesusCristo é o Senhor. É a divindade desta boa ação, a divin­dade da misericórdia eterna que, antes de existirmos ou

Nosso Senhor - 129

pensarmos nele, fomos buscados e achados nele. Nestamisericórdia divina que também é para nós a base do se­nhorio de Cristo e que nos libera de todos os outros se­nhorios. É esta misericórdia divina que exclui o direito detodos os outros senhores falarem e torna impossível esta­belecer outra autoridade ao lado desta autoridade e outrosenhor ao lado deste Senhor, e ouvi-lo. É esta eterna mi­sericórdia, na qual esta dispensação sobre nós está inclu­ída, que torna impossível recorrer ao passado o SenhorJesus Cristo para outro senhor e contar mais uma vezcom o destino, história ou natureza, como se fossem estascoisas que, na verdade, tivessem nos dominado. Uma vezque vimos que a potestas de Cristo está baseada na mise­ricórdia de Deus, bondade e amor, somente então aban­donamos todas as reservas. Então a divisão entre a esferareligiosa e outras esferas cessa. Cessamos de separar entrecorpo e alma, entre serviço de Deus e política. Todas estasseparações cessam, pois o homem é um, e como tal estásujeito ao senhorio de Cristo.

A comunidade sabe que Jesus Cristo é nosso Se­nhor, isto é conhecido na igreja. Mas a verdade "nosso Se­nhor" não depende do nosso conhecimento oureconhecimento, ou da existência de uma congregaçãoonde ela é entendida e tem sua expressão; é porque JesusCristo é nosso Senhor que ele pode ser conhecido e pro­clamado como tal. Mas ninguém conhece como uma ob­viedade que todos os homens têm seu Senhor nele. Esteconhecimento é uma questão da nossa eleição e chamado,uma questão da comunidade reunida junto pela sua Pala­vra, uma questão da Igreja.

Citei a exposição de Lutero do segundo artigo. Al­guém poderia objetar esta exposição, onde Lutero faz do"nosso" Senhor um "meu" Senhor. Evidentemente, nãome aventuraria a fazer disto uma acusação contra Lutero;

130 - Esboço de uma Dogm;írica

pois esta concentração de Lutero sobre a exposição indi­vidual adquire uma urgência e um peso extraordinário."Meu Senhor!" - através desta confissão O todo alcançauma realidade e existencialidade fantásticas. Mas não de­vemos perder de vista o fato de que, em concordânciacom a expressão aceita do Novo Testamento, a Confissãodiz, "nosso Senhor". Da mesma forma que na Oração doSenhor, oramos no plural, não como uma multidão, masem companheirismo. A confissão "nosso Senhor" é a con­fissão daqueles que são chamados em sua congregaçãopara serem irmãos e irmãs, com a comissão geral para en­frentar o mundo. São aqueles que conhecem e confessamJesus Cristo como a pessoa que ele é. Eles o chamam"nosso" Senhor. Mas uma vez que estamos cientes de queexiste tal lugar de conhecimento e confissão, devemosolhar mais uma vez para fora, para a cena completa; e nãodevemos considerar o "nosso Senhor" em qualquer sen­tido limitado, como se a congregação dos cristãos tivesseseu Senhor em Jesus Cristo, mas outras assembléias e co­munidades tivessem outros senhores. O Novo Testa­mento não deixa dúvidas para o fato de que existe apenasum Senhor e este Senhor é o Senhor do mundo, JesusCristo. É isto que a comunidade tem de pregar para omundo. A verdade e realidade da Igreja pertence ao ter­ceiro artigo. Mas este tanto pode ser dito aqui, que a co­munidade de Jesus Cristo não é a realidade que existe porsi mesma; ela existe porque tem uma comissão. O que elaconhece ela tem de dizer ao mundo. "Deixe sua luz bri­lhar diante dos homens" (Mt 5.16). Fazendo isto, sendocomo era desde o princípio, a única e viva advertênciacontra o mundo, a proclamação da existência do Senhor,dessa forma não levantando falsos reclamos para simesma, por sua fé ou seu conhecimento. Não, JesusCristo é o Senhor.

Nosso Senhor - 131

Entretanto, aqui também o Credo de Nicéia temfeito pouco progresso comparado com o Credo dos Após­tolos - assim chamado, unicum dominum, o sole Senhor.Expressar e proclamar isto é a comissão da Igreja. Entreos cristãos e na congregação devemos considerar o que échamado o "mundo", como a priori nada mais do que odomínio, do que aqueles homens, que devem ouvir istomesmo, e além disso, de nós. Tudo o mais que concebe­mos que conhecemos sobre o mundo, todas as manifesta­ções de incredulidade são proposições secundárias e nãonos preocupam fundamentalmente. O que interessa e nospreocupa como cristãos não é que o mundo está onde nósestamos, que ele fecha seu coração e cabeça à fé, mas sim­plesmente isso, que estes homens são pessoas que devemouvir de nós, para quem nós podemos proclamar o Se­nhor.

Neste ponto eu gostaria, a propósito, de responder apergunta que se me tem colocado várias vezes durante es­tas semanas: "Você não está ciente de que há muitos dosque estão sentados nesta classe que não são cristãos?"Sempre sorrio e digo: "Isto não faz nenhuma diferençapara mim". Deveria ser completamente temeroso se a fédos cristãos objetivasse a separação e separasse uns dosoutros. Ela é, na verdade, o motivo mais forte para reunirhomens e ligá-los todos juntos. E o que os liga, simples­mente e desafiadoramente, ao mesmo tempo, a comissãoque a comunidade tem para proclamar sua mensagem. Seconsiderarmos a questão mais uma vez do ponto de vistada comunidade, isto é, do ponto de vista daqueles que se­riamente desejam ser cristãos - "Senhor, eu creio: ajuda­me na minha descrença!" (Mc 9.24) - devemos lembrarque tudo dependerá não de o cristão pintar para o não­cristão em palavra e ação um quadro do Senhor ou umaidéia de Cristo, mas sobre seu sucesso em, com suas pala-

132 - Esboço de uma Dogm,ítica

vras humanas e idéias, apontar o próprio Cristo. Pois estanão é a concepção dele, não o dogma de Cristo que é oSenhor verdadeiro, mas ele que é confirmado na palavrados Apóstolos. Diga-se a todos os que se consideramcrentes: Que nos seja concedida não fundamentar umaimagem, quando falamos de Cristo, um ídolo cristão, masem toda nossa fraqueza apontar Aquele que é o Senhor eassim, no poder da sua Divindade, a soberana decisão so­bre a existência de todo homem.

o Mistério e o Milagredo Natal

A verdade da concepção de Jesus Cristo pelo Espírito Santoe seu nascimento da Virgem Maria nos conduzà verdadeira Encarnação do verdadeiro Deus,

realizada na sua manifestaçãohistórica, e lembra a forma

especial através da qual este iníciodo ato divino da graça e revelação, que

aconteceu em Jesus Cristo, foi distinguido deoutros acontecimentos humanos.

Chegamos agora a um dos pontos, e talvez, na ver­dade, ao ponto, no qual sempre, e até mesmo em larga es­cala na comunidade cristã, somos insultados. Talvez sejaa sua experiência também, uma vez que esteve pronto aseguir a explanação até aqui, embora ocasionalmenteconstrangido quanto a saber onde isto nos levará; você élevado ao assunto repentinamente pelo que está para viragora - e que não é minha invenção, mas a Confissão daIgreja! Não vamos ficar apreensivos, mas tendo cami­nhado até aqui em paz relativa, queremos abordar esta se­ção da mesma forma, pacificamente e objetivamente, aseção "concebido pelo Espírito Santo, nascido da VirgemMaria". Aqui também nosso interesse deve ser simples-

134 - Esboço de uma [)ogm,írica

mente a verdade; mas também devemos nos aproximarcom muita reverência, para que as questões que nos dei­xam apreensivos, como "devemos acreditar nisto?", nãoseja a última, mas que talvez mesmo aqui possamos res­ponder um "Sim" com muita alegria.

Temos de tratar com o início de uma série completade pronunciamentos sobre Jesus Cristo. O que estivemosouvindo até agora foi a descrição de um sujeito. Todavia,agora ouvimos uma quantidade de definições - conce­bido, nascido, padecido, crucificado, sepultado, desceu,subiu novamente, assentou-se à direita de Deus, por estarazão ele voltará... que descrevem uma ação ou umevento. Estamos interessados com a história de uma vida,começando com geração e nascimento como qualquervida humana; uma vida inteira notavelmente comprimidaem uma pequena palavra "padeceu", uma história de pai­xão e, finalmente, a confirmação divina desta vida em suaRessurreição, sua Ascensão e ainda a conclusão formidá­vel que, devido a tudo isso, ele voltará para julgar os vivose os mortos. Ele, que vive e age, é Jesus Cristo, o Filho deDeus, nosso Senhor.

Se quisermos entender o significado de "concebidopelo Espírito Santo e nascido da Virgem Maria", sobre­tudo devemos tentar ver que estas duas declarações for­midáveis asseguram que o Deus da livre graça tornou-sehomem, um homem real. A Palavra eterna se fez carne.Este é o milagre da existência de Jesus Cristo, a vinda doDeus dos altos céus até nós - o Espírito Santo e a VirgemMaria. Este é o mistério da Natividade, da Encarnação.Nesta parte, a Confissão da Igreja Católica faz o sinal dacruz. E nos mais variados cenários, compositores têm re­produzido este et incanatus est. Este milagre celebramosanualmente, quando celebramos o Natal.

o Mistério c o Milagre do Natal - 135

Se este milagre devo compreender

Então permaneça reverente meu espírito

Tal in nuce é a revelação de Deus; podemos apenascompreendê-la, somente ouvi-la como início de todas ascoisas.

Porém não há nenhuma dúvida aqui sobre a con­cepção e o nascimento em geral, mas de uma concepção enascimentos específicos. Por que concebido pelo EspíritoSanto e porque nascido da Virgem Maria? Por que estemilagre especial que se pretende expresso na Encarnação?Por que o milagre da Natividade anda lado a lado com omistério da Encarnação? Uma declaração noética é colo­cada, por assim dizer, ao lado de uma declaração ontoló­gica. Se na Encarnação tratamos com o elemento em si,aqui tratamos com o símbolo. Os dois não podem serconfundidos. O elemento envolvido na Natividade é ver­dadeiro por si mesmo. Contudo, ele é relembrado, ex­posto no milagre do Natal. Porém, seria injusto concluirque, embora "apenas" um símbolo esteja envolvido, istosignifique que se possa subtraí-lo do mistério. Deixe-mealertá-lo contra isto. É raro na vida ser capaz de separarforma e conteúdo.

"Verdadeiro Deus e verdadeiro homem". Se conside­rarmos em primeiro lugar esta verdade cristã básica à luzde "concebido pelo Espírito Santo", a verdade evidente éque o homem Jesus Cristo simplesmente tem sua origemem Deus, isto é, ele deve sua origem na história ao fato deque Deus em pessoa tornou-se homem. Isto significa queJesus Cristo é, na verdade, homem, verdadeiro homem,mas ele não é apenas um homem, não somente um domextraordinário ou um homem especialmente orientado,para não dizer um super-homem; mas, enquanto homem,

136 - Esboço de uma Dogm,üica

ele é o próprio Deus. Deus é um com ele. Sua existênciacomeça com a ação especial de Deus; como homem eleestá fundamentado em Deus, ele é verdadeiro Deus. O su­jeito da história de Jesus Cristo é, portanto, o próprioDeus, tão verdadeiro quanto é um homem que vive, sofree age. Tão seguramente quanto está envolvida nesta vida,da mesma forma esta iniciativa humana tem seus funda­mentos no fato de que nele e através dele Deus tomou ainiciativa. Deste ponto de vista não podemos deixar dedizer que a Encarnação de Jesus Cristo é análoga à cria­ção. Mais uma vez Deus age como criador, mas agora nãocomo o Criador a partir do nada; pelo contrário, Deusadentra a criação e cria juntamente com ela um novo co­meço, um novo começo na história e, além do mais, nahistória de Israel. Na continuidade da história humanaum ponto se torna visível no qual o Próprio Deus apressa­se ao encontro da criatura e se torna um com ela. Deus sefez homem. Desta forma esta história começa.

Agora, temos de virar a página e nos achegar à se­gunda declaração expressa relacionada a isto, quando di­zemos "nascido da Virgem Maria". O fato realçado é queestamos na terra. Há uma criança humana, a Virgem Ma­ria; assim como enviado por Deus, Jesus também veiodeste ser humano. Deus deu-se a si mesmo uma origemhumana terrena, este é o significado de "nascido da Vir­gem Maria". Jesus Cristo não é "apenas" o verdadeiroDeus; isto não seria encarnação verdadeira - nem é eleum ser intermediário;. ele é um homem como todos nós,um homem sem restrição. Ele não apenas se assemelhaconosco; ele é o mesmo que nós. Como Deus é o sujeitona vida de Jesus Cristo, assim o homem é o sujeito nestahistória, porém, não no sentido de um sujeito sendo in­fluenciado, mas de um homem que está na ação. O ho­mem não se torna um marionete neste encontro com

o Mistério e o Milagre do Natal- 137

Deus, mas se há humanidade genuína, aqui está, onde opróprio Deus se fez homem.

Isto configuraria o círculo que pode ser visto aqui;isto é, a verdadeira divindade e verdadeira humanidadeem completa unidade. No Concílio de Calcedónia, em451, a Igrej a tentou cercar esta unidade contra todos osequívocos; contra a unificação monofisista, que resultoudo assim chamado docetismo, que estava fundamental­mente desapercebido de qualquer humanidade verda­deira em Cristo Deus se fez homem apenasaparentemente - e contra a tentativa nestoriana de au­mentar a distância entre Deus e homem, que queria sim­plesmente separar, e segundo a qual a divindade de Cristopode ser considerada a todo instante como separada dasua humanidade. Além disto, esta doutrina retoma umerro mais antigo, aquele dos assim chamados ebionitas. Apartir destes ebionitas o caminho conduz aos arianos quedesejaram entender Cristo simplesmente como uma cria­tura especialmente exaltada. O Concílio de Calcedóniaformulou a tese de que a unidade é "sem confusão, semmudança, sem divisão, sem separação". Talvez você estejainclinado a descrever isto como "teólogos abandonados"ou como "escaramuças de clérigos". Todavia, em todas es­tas disputas a preocupação nunca foi deixar o mistério delado, como se quiséssemos por esta fórmula resolver aquestão racionalmente; mas os primeiros esforços daIgreja eram - e isto que a torna digna de nossa atenção ­conduzir os olhos dos cristãos de uma forma adequada aeste mistério. Todas as outras tentativas foram tentativaspara solucionar o mistério dentro de uma capacidade decompreensão humana. O próprio Deus e o homem miste­rioso, isto podia ser entendido; até mesmo a única coinci­dência deste Deus e deste homem na forma de Jesuspoderia ser explicada. Mas estas teorias, contra as quais a

1.~8 - Esboço de lima Dogmitica

igreja primitiva se voltou, não atentam para o mistério.Mas a ortodoxia primitiva estava interessada em unir ho­mens sobre este centro, e ao homem que recusasse acredi­tar deveria ser ignorado; mas nada deve ser diluído aqui;este sal não deve perder seu sabor. Eis a razão da grandeaplicação de esforços pelos primeiros concílios e teólogos.Há uma grosseria de nossa parte, nos dias de hoje, comoresultado de uma intelectualidade de alguma forma bár­bara, dizer que eles foram "muito longe" naqueles dias, aoinvés de sermos gratos pelo trabalho fundamental queentão realizaram. Você não precisa, evidentemente, subirao púlpito e recitar esta fórmula; mas você deveria assu­mir a questão como absolutamente fundamental. A cris­tandade tem visto e estabelecido o que está envolvido nomilagre da Natividade, ou seja, a unia hypastatica, a uni­dade genuína do verdadeiro Deus e do verdadeiro ho­mem no único Jesus Cristo. E somos convidados a nosagarrar a isto.

Certamente, todos vocês agora observam que, nes­tas expressões "concebido pelo Espírito Santo" e "nascidoda Virgem Maria", algo especial ainda está sendo manifes­tado. A declaração é de uma procriação e de um nasci­mento raros. A isto dá-se o nome de nativitas Jesu Christi.Um milagre leva ao mistério da verdadeira divindade e daverdadeira humanidade, o milagre desta procriação edeste nascimento.

O que se quer dizer com "concebido pelo EspíritoSanto?" Não significa que o Espírito Santo é suposta­mente o pai de Jesus Cristo; em sentido restrito, apenas anegação está declarada através dela, de que o homem Je­sus Cristo não tem pai. Em sua procriação não acontece oinício da existência humana, mas sua humana existênciainicia na liberdade do próprio Deus, na liberdade na qualo Pai e Filho são um na ligação do amor, no Espírito

o Mistério c o Milagre do Natal - 139

Santo. Assim, quando olhamos para o início da existênciade Jesus, na verdade estamos olhando para o profundo daDivindade, na qual o Pai e Filho são um. Esta é a liber­dade da vida mais íntima de Deus, e nesta liberdade aexistência deste homem começa em 1 a. C. Por este acon­tecimento, pelo próprio Deus muito concretamente ini­ciar neste ponto consigo mesmo, este homem que de simesmo não estava capacitado ou propenso, pode nãoapenas proclamar a Palavra de Deus, mas por si mesmoser a Palavra de Deus. No meio da velha humanidade, anova se inicia. Este é o milagre do Natal, o milagre daprocriação de Jesus Cristo sem um pai. Isto não tem nadaque ver com os mitos narrados em diversos lugares nahistória da religião, mitos de procriação de homens pordeuses. Não temos nada que ver com este tipo de procria­ção. O próprio Deus assumiu-se como Criador e nãocomo um parceiro desta Virgem. A arte cristã de temposmais remotos tentou reproduzir este fato, isto é, de quenão havia nenhuma questão de um evento sexual. E temsido bem confirmado que esta procriação se concretizouespecialmente pelo ouvido de Maria, que ouviu a Palavrade Deus.

"Nascido da Virgem Maria". Mais uma vez e agorade um ponto de vista humano, o macho é excluído. O ma­cho não teve nenhuma participação neste nascimento. Oque está envolvido aqui, se você preferir, é o ato divino dejulgamento. Para o que agora se inicia, o homem em nadacontribuiu através da sua ação e iniciativa. O homem nãoestá simplesmente excluído, pois a Virgem está presente.Mas o macho, como agente específico da ação humana nahistória, com sua responsabilidade no direcionamento daespécie humana, deve agora retirar-se para segundoplano, com a impotente figura de José. Esta é a respostacristã à questão da mulher: aqui, a mulher permanece ab-

140 - Esboço de uma Dogm,üica

solutamente em primeiro plano, além disso, virgo, a Vir­gem Maria. Deus não escolheu o homem em seu orgulhoe em sua rebeldia, mas o homem em sua fraqueza e hu­mildade, não o homem em seu papel histórico, mas o ho­mem na fraqueza de sua natureza assim representada pelamulher, a criatura humana que pode confrontar Deusapenas em palavras, "Sou serva do Senhor; que aconteçacomigo conforme a tua palavra" (Lc 1.38). Esta é a coope­ração humana nesta questão, isto e apenas isto! Não deve­mos pensar no mérito da existência desta serva nemtentar mais uma vez atribuir poder à criatura. Mas Deustem visto o homem em sua fraqueza e em sua humildade,assim como Maria expressou o que somente a criaçãopode expressar em seu encontro. Assim Maria o fez e as­sim, portanto, a criatura diz "Sim" para Deus, como parteda grande aceitação que chega ao homem da parte deDeus.

o milagre do Natal é a forma atual do mistério daunião pessoal de Deus com o homem, a unia hypostatica.Repetidas vezes a igreja cristã e sua teologia tem insistidoque não devemos postular que a realidade da Encarnação,o mistério do Natal, tinha que, por absoluta necessidade,tomar a forma deste milagre. A verdadeira Divindade e averdadeira humanidade de Jesus Cristo em sua unidadenão dependem do fato de Cristo ter sido concebido peloEspírito Santo e nascido da Virgem Maria. Tudo o quepodemos dizer é que foi do agrado de Deus deixar o mis­tério real e tornar-se manifesto em sua forma. Nova­mente, isto não pode significar que contra esta formafatual do milagre estamos como que livres para afirmá-loou não, subtrair algo e dizer que temos ouvido, mas quetemos reservas, que esta questão pode estar em outraforma para nós. Talvez entendamos melhor a relação daquestão e forma, que está presente aqui, dando uma

o Mistério e o Milagre do Natal- 141

olhada na história, familiar a todos, da cura do paralítico:"Mas, para que vocês saibam que o Filho do homem temna terra autoridade para perdoar pecados... Levante-se,pegue a sua maca e vá para casa" (Mc 2.10, 11). "Para quevocês saibam..."; desta forma o milagre do nascimentovirginal deve ser também entendido. O que está em ques­tão é o mistério da Encarnação como a forma visível domilagre. Entenderíamos mal Marcos 2, se quisermos in­terpretar em sua leitura que o milagre principal foi o per­dão dos pecados e o milagre corporal apenas umincidente. Uma coisa obviamente pertence necessaria­mente à outra. Da mesma forma deveríamos dar umalerta, também, contra considerar o milagre da nativitas àparte, e aderir ao mistério como tal. Uma coisa deve serdita definitivamente, que, toda vez que as pessoas queremfugir do milagre, uma teologia vem como ajuda, que ces­sou de entender e também de honrar o mistério, e tem,pelo contrário, se esforçado em exorcizar o mistério daunidade de Deus e homem em Jesus Cristo, o mistério dagraça livre de Deus. Por outro lado, onde este mistério sefaz entendido e onde os homens evitam qualquer tenta­tiva da teologia natural, uma vez que eles não têm neces­sidade dela, o milagre chega para ser graciosamente ealegremente reconhecido. Ele se torna, podemos dizer,uma necessidade interna neste ponto.

Sofreu...

A vida de Jesus Cristo não é um triunfo, mas uma humi­lhação, não um sucesso, mas uma falha, não uma

alegria, mas sofrimento. Por esta mesma razãoela revela a rebelião dos homens

contra Deus e a ira de Deuscontra o homem, que se segue

necessariamente; mas ela tambémrevela a misericórdia na qual Deus se

envolveu nos negócios próprios do homeme conseqüentemente em sua humilhação, falha e sofri­

mento, para que, dessa forma, nãonecessitassem ser mais da alçada do homem.

No Catecismo de Calvino podemos nesta passagemler a extraordinária conclusão que na Confissão a vida deJesus é ignorada até a Paixão, porque o que aconteceunesta vida até à Paixão não pertence à "substância danossa redenção". Tomo a liberdade de dizer que aqui Cal­vino está errado. Como pode alguém dizer que o resto davida de Jesus não é substancialmente para nossa reden­ção? Neste caso qual seria seu significado? Uma narrativameramente supérflua? Penso que está envolvido na vidacompleta de Jesus algo que recebe seu início no artigo "ele

144 - Esboço de uma Dogmática

padeceu". Em Calvino temos um exemplo prazeroso anteos nossos olhos, de alunos de um grande mestre semprevendo melhor do que ele; pois no Catecismo de Heidel­berg, composto pelos discípulos de Calvino, Olevian eUrsino, a Questão 37 pergunta: "O que tu entendes pelapequena palavra 'sofrer'?" "Que ele durante todo o tempoda sua vida na terra, mas especialmente ao fim disso, car­regou em seu corpo e alma a ira de Deus contra o pecadode toda a raça humana". A favor da visão de Calvino pode,claro, ser aduzido que Paulo, e as epístolas do Novo Testa­mento em geral, raramente referem-se a esse "todo otempo" da vida de Cristo, e que os apóstolos também, se­gundo Atas, parecem ter mostrado consideravelmentepouco interesse na questão. Para eles, aparentemente,apenas uma coisa sobressaia, que, traído pelos judeus, eleestava liberado para os gentios, foi crucificado e ressurgiuda morte. Mas se os cristãos da igreja primitiva estavamcom seu olhar tão completamente concentrado no Cruci­ficado e Ressurreto, isto não é para ser tomado como ex­clusividade, mas de forma inclusiva. O fato de que Cristomorreu e ressurgiu é uma redução da vida completa de Je­sus; mas nisto devemos também ver seu desenvolvi­mento. A vida completa de Jesus vem sob o título"padeceu".

Este é um fato extremamente surpreendente, para oqual não temos sido preparados diretamente pelo quetem sido dito. Jesus Cristo, o Filho único de Deus, nossoSenhor, concebido pelo Espírito Santo, nascido da VirgemMaria, verdadeiro Filho de Deus e verdadeiro filho do ho­mem - qual a relação destas coisas com o desdobramentode toda a sua vida sob o signo de que ele "padeceu"? Podí­amos esperar algo diferente, algo resplandecente, triun­fante, bem sucedido, jubiloso. De qualquer forma, nãoouvimos uma palavra disso, mas, predominante na pleni-

Sofreu ... - 145

tude de sua vida, a asserção de que "ele padeceu". Na ver­dade, é a última palavra? Não podemos negligenciarcomo esta vida completa termina: no terceiro dia ele res­surge da morte. Assim, a vida de Jesus não é completa­mente desprovida de um sinal da alegria vindoura e davitória vindoura. Não sem motivo tanto é dito sobre glo­rificação e, não sem motivo há a figura da alegria do casa­mento tantas vezes mencionada. Embora, certamente,não é sem admiração que várias vezes ouvimos Jesus cho­rando, mas nunca que ele riu, e há ainda para ser dito quecontinuamente através do seu sofrimento houve uma es­pécie de centelha de alegria na natureza à sua volta, emcrianças e, sobretudo, de alegria em sua existência e emsua missão. Ouvimos mais uma vez que é dito que ele seregozijou sobre o fato de que Deus havia ocultado este co­nhecimento do sábio, mas revelado aos ingênuos. Assimnos milagres de Jesus há triunfo e alegria. Cura e alegriaaqui irrompem na vida dos homens. Parece que se tornouvisível quem está agindo. Na história da Transfiguração,na qual é relatado que os discípulos viram as vestes de Je­sus mais alvas do que a neve, o que na terra é perfeita­mente possível, este outro algo, a questão da sua vida ­podemos também dizer, seu início e origem - se tornamvisíveis por antecipação. Bengel está indubitavelmentecerto quando diz dos Evangelhos antes da Ressurreiçãoque podemos dizer de todas estas histórias de Jesus queeles spirant resurrectionem. Mas, mais do que isso, nãopodemos, na verdade, dizer. Há uma fragrância do inícioe do fim, uma fragrância de Divindade triunfante queestá na ação.

Mas o tempo presente da sua vida está, na verdade,sofrendo desde o início. Não há dúvida de que para osevangelistas Lucas e Mateus a infância de Jesus, seu nasci­mento e a manjedoura em Belém, já estavam sob o signo

146 - Esboço de uma Dogmática

do sofrimento. Este homem é perseguido toda sua vida,um estranho para sua própria família - que declaraçõeschocantes ele profere! - e para sua nação; um estranhonas esferas do Estado, da Igreja e da civilização. Que ca­minhos de incompreensão ele trilhou! Em que completasolidão e tentação ele permaneceu entre os homens, os lí­deres da sua nação, até mesmo confrontando as massasdo povo e no próprio círculo dos seus discípulos! Nestecírculo estreitíssimo ele encontrou seu traidor; e no ho­mem ao qual ele diz: "Tu és a Rocha.. :', o homem que onegou três vezes. Finalmente, é aos discípulos de quem seé dito que "todos o abandonaram" e o povo clama emcoro: "Fora com ele! Crucifica-o" A vida completa de Je­sus é vivida nesta solidão e, assim, já na sombra da cruz. Ese a luz da ressurreição ilumina aqui e ali, isto é uma ex­ceção que comprova a regra. O filho do homem deve su­bir a Jerusalém, lá deve ser condenado, torturado ecrucificado - ressurgir novamente no terceiro dia. Masprimeiro é este dominante "deve" que o leva à morte.

O que isto significa? Não é o oposto do que pode­mos esperar das novas de que Deus se fez Homem? Aquihá sofrimento. Observe que é aqui pela primeira vez naConfissão que o grande problema do mal e sofrimentoencontra-nos diretamente. Já nos referimos claramentecom freqüência a isso. Mas segundo a carta esta é a pri­meira vez que temos uma indicação do fato de que na re­lação Criador e criatura tudo não é o melhor, que ailegalidade e a destruição dominam, que dor é acrescen­tada ao sofrimento. Aqui, pela primeira vez, o lado som­brio da existência penetra em nosso campo de visão, enão no primeiro artigo, que fala de Deus o Criador. Nãona descrição da criação como céu e terra, mas aqui nadescrição da existência do Criador que se tornou criatura,o mal aparece; aqui a distante morte se torna visível. O

Sofreu ... - 147

fato de que isto é assim, no mínimo, significa isto: que adiscrição é exigida em todas as descrições da fraqueza edo mal como sendo, em alguma medida, independentes.Quando isto foi realizado mais tarde, foi relativamentenegligenciado que tudo isto entra em campo unicamenteem conexão com Jesus Cristo. Ele sofreu, ele deixou visí­velo que é a natureza do mal, da revolta do homem con­tra Deus. O que conhecemos do mal e do pecado? O quesabemos do que é chamado sofrimento, ou o que significaa morte? Aqui conseguimos entendê-lo. Aqui aparece estatreva completa em sua realidade e verdade. Aqui as quei­xas são destacadas e punidas, aqui a relação entre Deus eo homem é, na verdade, clarificada. O que são todas asnossas visões, o que é tudo o que o homem pensa quesabe sobre sua estupidez e pecaminosidade e sobre o es­tado perdido do mundo, o que é toda especulação sobre osofrimento e morte confrontado com o que se tornou ma­nifesto aqui? Ele, ele sofreu, aquele que é verdadeiro Deuse verdadeiro homem. Toda conversa independente sobreo assunto - isto é, conversa separada dele - necessaria­mente será inadequada e imperfeita. A menos que a con­versa sobre esta questão parta do centro, ela será irreal.Que o homem pode suportar os mais terríveis golpes doDestino e atravessar intocado como quem atravessa umapancada de chuva, isto pode ser visto por nós hoje em dia.Estamos simplesmente intocados tanto pelo sofrimentoquanto pela própria realidade do mal; sabemos distoagora. Portanto, podemos repetidamente escapar do co­nhecimento da nossa culpa e pecado. Podemos apenasconseguimos um conhecimento adequado, quando co­nhecemos que ele que é verdadeiro Deus e verdadeiro ho­mem, padeceu. Em outras palavras, é preciso fé para ver oque é o sofrimento. Aqui houve sofrimento. Tudo o maisque conhecemos como sofrimento é sofrimento irreal

148 - Esboço de uma Dogmática

comparado com o que aconteceu aqui. Somente desteponto de vista, compartilhando do sofrimento que ele so­freu, podemos reconhecer o fato e a causa do sofrimentoem todo lugar no cosmos criado, secretamente e aberta­mente.

Se olharmos para este "ele padeceu", podemos co­meçar do fato de que ele era Deus que se fez homem emJesus Cristo, que agora tem de sofrer, não da imperfeiçãodo mundo criado, nem por qualquer padrão da natureza,mas de homens e de sua atitude para com ele. De Belém àcruz ele foi abandonado pelo mundo que o cercava, repu­diado, perseguido, finalmente acusado, condenado e cru­cificado. Estes são os ataques dos homens sobre ele, sobreo próprio Deus. Aqui há uma revelação da rebelião dohomem contra Deus. O Filho de Deus é negado e rejei­tado. Com o Filho de Deus os homens podem apenas fa­zer o que eles fizeram segundo a parábola do viticultor:"Este é o herdeiro. Venham, vamos matá-lo, e a herançaserá nossa". Esta é a resposta do homem à graciosa pre­sença de Deus. Para sua graça, ele não expressa nada alémde um "Não" cheio de ódio. É a nação de Israel que rejeitaem Jesus seu Messias e Rei. É a nação de Israel que nãoconhece nada melhor a fazer com o Líder prometido detoda a sua história, à qual ele dá significado, conclui ecumpre, do que entregá-lo, finalmente, aos gentios. As­sim Israel lidou com seu Salvador. E o mundo gentílico naforma de Pilatos pôde, por sua parte, apenas aceitar estaentrega. Ele executa o julgamento que os judeus pronun­ciaram, e desta forma participam semelhantemente nestarebelião contra Deus. O que Israel faz aqui é a revelaçãode um conteúdo que está presente na história completa deIsrael: os homens enviados por Deus não são recebidoscom júbilo como auxiliadores, confortadores e curadores;mas, de Moisés em diante, e aqui mais uma vez, conclusi-

Soti-eu... - 149

vamente, eles enfrentam o fato de que o homem diz Nãopara eles. Este Não toca diretamente o próprio Deus. As­sim, somente neste ultimato, a mais íntima e direta pre­sença de Deus, que expressa a distância do homem dele,se torna manifesta. Aqui se torna manifesto o que é o pe­cado. Pecado significa rejeitar a graça de Deus como tal,que nos envolve e está presente em nós. Israel pensa quepode ajudar a si mesmo. Visto deste ponto, devemos dizerque tudo o que pensamos que sabemos como pecado é in­significante e casual e uma simples aplicação do pecadooriginal. Da mesma forma que no Antigo Testamento to­dos os mandamentos não têm nada além do que uma in­tenção, a de conduzir o povo de Israel para o pacto dagraça de Deus, portanto a transgressão de todos os man­damentos é perversa e má, porque manifesta o protestodo homem contra a graça de Deus. O fato de que Jesus, oFilho de Deus sofreu sob os judeus e gentios revela - e so­mente ele revela - o mal em sua realidade. Somente desteponto podemos compreender o fato, a extensão e o con­teúdo do impedimento do homem, pois, pela primeiravez somos aqui desafiados com a raiz de toda grande e in­significante transgressão. Enquanto nós, em toda nossapecaminosidade e nossa culpa mútua em grandes e insig­nificantes formas, não reconhecemos esta raiz e vemosnós mesmos acusados no sofrimento de Cristo, vemosnós mesmos mais uma vez nesta rebelião do homem con­tra o próprio Deus, todo conhecimento ou reconheci­mento de culpa é vã. Pois de todo conhecimento de culpaalém deste conhecimento, nós podemos nos livrar maisuma vez, como um poodle molhado que se seca balan­çando todo o corpo. Enquanto não virmos a perversidadeem sua natureza real, não estamos presos (mesmo se fa­larmos com veemência sobre nossa culpa) à confissão,"pequei contra os céus e perante ti". Este "perante ti" se

150 - Esboço de LIma Dogmâlica

torna óbvio aqui, e óbvio como o âmago e significado detoda culpa individual na qual estamos envolvidos. Estaculpa individual não se torna, portanto, incidental. O queé feito por homens em ações individuais, desde a ação dePilatos até aquela de Judas, é a rejeição da graça de Deus.Mas o que é feito pelos homens adquire sua importânciacompleta do que foi feito para Deus. Pois nosso conheci­mento completo do mal dependerá do nosso reconheci­mento de que o homem está sob acusação de ser ofensorcontra Deus. Somente podemos ver a culpa infinita na­quilo em que permanecemos contra Deus; o Deus que sefez homem. Onde somos culpados com respeito ao ho­mem, somos automaticamente lembrados deste homem.Pois cada homem que temos ofendido e torturado é umdaqueles que Jesus Cristo chamou seus irmãos. Agora, oque temos feito para ele, temos feito para Deus.

É verdade que na vida de Jesus e na história da suaPaixão é também a vida simples de um homem que se de­senrola. Pense nas grandes obras de arte cristãs, da visãode Grünewald no "Sofredor sobre a Cruz", até as tentati­vas menos talentosas, na obra conhecida "Caminhos daPaixão", da piedade católica? Tudo isto é este homem emseu tormento, enquanto ele mergulha pelos degraus dosdesfiladeiros da tribulação, de ser golpeado e, finalmente,de ser morto. Mas mesmo visto deste aspecto não é ape­nas o homem em sua imperfeição que como um ser mor­tal pode ser atormentado, embora não sendo Deus; pois afigura do Jesus sofredor é a figura daquele condenado epunido. Desde o início, o que causou o sofrimento de Je­sus é a ação legal da sua nação, que finalmente se tornacompletamente explícita. Eles o vêem como o supostoMessias que é diferente daquele esperado por eles, contracujo clamor eles podem, portanto, apenas protestar.Pense na atitude dos fariseus, adentrando o Sinédrio: lá

Sofreu ... - 151

você tem o pronunciamento de um veredicto. Este vere­dicto expressa o julgamento mundano executado por Pi­latos. Os Evangelhos colocam ênfase precisamente sobreeste ato legal. Jesus é a Pessoa acusada, condenada e pu­nida. Aqui nesta ação legal é revelada a rebelião do ho­mem contra Deus.

Mas nisso há também a revelação da ira de Deuscontra o homem. "Padeceu" é explicado no Catecismo deHeidelberg como Jesus carregando a ira de Deus por suavida inteira. Desta forma, ser um homem significa estardiante de Deus e merecer esta ira. Nesta unidade de Deuse homem, o homem está limitado a ser este condenado egolpeado. O homem Jesus em sua unidade com Deus é afigura do homem golpeado por Deus. Mesmo a justiça domundo, que cumpre este julgamento, o faz pela vontadede Deus. O Filho de Deus se fez homem a fim de deixar ohomem ser visto sob a ira de Deus. O Filho do homemdeve sofrer, ser entregue e crucificado, diz o Novo Testa­mento. Nesta Paixão a conexão se torna visível entre aculpa infinita e a reconciliação que necessariamente se se­gue sobre esta culpa. Torna-se claro que, onde a graça deDeus é rejeitada, o homem se apressa para a sua própriaperdição. É aqui, onde o próprio Deus se fez homem, quea mais profunda verdade da vida humana é manifesta: osofrimento total que corresponde ao pecado total.

Ser um homem significa estar tão situado na pre­sença de Deus como Jesus está, isto é, ser o portador daira de Deus. Isto nos pertence, e seu fim é a morte. Toda­via, este não é o final, nem a rebelião do homem, nem aira de Deus. Mas o mais profundo mistério de Deus éeste, que o próprio Deus, no homem Jesus, não se esqui­vou de tomar o lugar do homem pecador e de ser (aqueleque não conhecia pecado, ele o fez pecado) o que o ho­mem é, um rebelde, carregando nele o sofrimento tal

152 - Esboço de LIma Dogmática

como homem, para ser ele mesmo o culpado completo e areconciliação completa! Foi isto que Deus fez em JesusCristo. Isto é, sem dúvida, o elemento absoluto ocultodesta vida, que vê primeiro a luz na ressurreição deCristo. Mas a paixão de Cristo pode ser erroneamente in­terpretada' se não fôssemos além da queixa sobre o ho­mem e seu destino. Na verdade, o sofrimento de Cristonão foi exaurido neste desafio de protesto contra o ho­mem e o terror diante da ira de Deus (este é apenas umlado da Paixão e mesmo o Antigo Testamento apontaalém dela). A aliança de paz permanece também acimadesta insurgente e assustadora figura do homem. Deus éaquele que se fez culpado e reconciliação. Portanto, o li­mite se torna visível, ajuda total contra a culpa total. Estaé a última coisa, como ela também foi a primeira, queDeus está presente e sua bondade é infindável. Mas o sig­nificado disto pode apenas se tornar claro no contextoposterior. Devemos passar para a consideração, que estáinterposta numa forma extraordinária, quer dizer, "sobPôncio Pilatos".

Sob Pôncio Pilatos

Em virtude do nome de Pôncio Pilatos estar conectado comele, a vida e a paixão de Jesus Cristo é um evento

na mesma história mundial na qualnossa vida também acontece.

E com a cooperação deste estadistaela adquire visivelmente o caráter de urna

ação na qual o compromisso e retidão divinos,assim corno a perversão humana e a injustiça da ordena­

ção do Estado do que aconteceno mundo, se tornaram efetivas e manifestas.

Como Pôncio Pilatos entrou para o Credo? De certaforma grosseira e sarcástica, a resposta pode ser antes detudo: como um cachorro num belo quarto! Da mesmaforma como a política envolve a vida humana e depois, deuma forma ou outra, a vida da Igreja também! Quem éPôncio Pilatos? Na verdade, uma figura desagradável e in­significante com um caráter detestável. Quem é PôncioPilatos? Um funcionário extremamente subalterno, umaespécie de comandante militar do governo aliado queocupava o poder em Jerusalém. O que ele fazia lá? A co­munidade judaica local expediu uma resolução, para aexecução da qual não tinha suficiente autoridade. Foi tra-

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zida uma sentença de morte, que agora deveria ser legali­zada pelo poder executivo de Pilatos. Depois de algumahesitação, ele faz o que exigiam dele. Um homem insigni­ficante num papel completamente externo; pois tudo quehavia de importante e espiritual foi exaurido entre Israel eCristo no Sinédrio que o acusa e o rejeita. Pilatos se postaem seu uniforme e é usado, e seu papel não é nada hon­roso; ele reconhece que o homem é inocente e mesmo as­sim o encaminha para a morte. Ele era forçado a agirestritamente segundo a lei, mas não age assim e se deixadeterminar pelas "considerações políticas". Ele não seaventura a manter a decisão judicial, mas se rende ao cla­mor popular e entrega Jesus. Ele cumpriu a crucificaçãopelas suas coortes. Quando no meio da Confissão daIgreja Cristã, no momento em que estamos no ponto deentrarmos na área do mais profundo mistério, tais coisasvêm à mente, e alguém pode até exclamar como Goethe,"um negócio sujo! Que vergonha! Uma fraude política!"Mas lá está "sob Pôncio Pilatos..."; portanto, devemos per­guntar a nós mesmos o que isto significa. A romancistaDorothy L. Sayers, escreveu uma peça para a rádio inglesaintitulada The man born to be King [O homem nascidopara ser rei], e nela interpreta o sonho de Procla, a esposade Pilatos, onde esta mulher ouviu num sonho, atraves­sando os séculos em cada língua, este mesmo brado: "So­freu sob o poder de Pôncio Pilatos". Como pôde PôncioPilatos entrar para o Credo?

O nome em conexão com a Paixão de Cristo deixainequivocamente claro que esta Paixão de Jesus Cristo,este desvelar da rebelião do homem e da ira de Deus, ape­sar da sua misericórdia, não aconteceu no céu ou em al­gum planeta remoto, ou mesmo em algum mundo dasidéias; aconteceu em nosso tempo, no centro da históriamundial na qual nossa vida humana é vivida. Portanto,

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não devemos escapar desta vida. Não devemos alçar vôopara uma terra melhor, para alguma altura ou outro lugardesconhecido, nem para outra Terra do Faz-De-Conta es­piritual, nem para um conto de fadas cristão. Deus veiopara nossa vida em sua mais completa amabilidade e te­mor. Que a Palavra se fez carne também significa que elase tornou temporal, histórica. Ela assume a forma quepertence à criatura humana, na qual há pessoas tais comoo próprio Pôncio Pilatos - o povo ao qual pertencemos eque somos nós mesmos em qualquer tempo numa escalaligeiramente grande! Não é necessário fechar nossosolhos para isto, pois Deus também não fechou os seus; elea assumiu com tudo. A Encarnação da Palavra é umevento extremamente concreto, no qual um nome hu­mano pode fazer parte. A Palavra de Deus tem o caráterde hic et nunc. Não há nada da opinião de Lessing de quea Palavra de Deus é uma "verdade eterna da razão", e nãouma "verdade acidental da história". A história de Deus é,na verdade, uma verdade acidental da história, como esteinsignificante comandante. Deus não se envergonhou deexistir neste estado acidental. Aos fatores que determi­nam nosso tempo humano e história humana, tambémpertencem, em virtude do nome de Pôncio Pilatos, a vidae Paixão de Jesus. Não somos abandonados neste mundoassustador. Neste mundo alienado, Deus veio até nós.

Sem dúvida, fica claro que este mesmo fato de queJesus Cristo sob o poder de Pôncio Pilatos pode apenassofrer e morrer, caracteriza a história mundial como umfato extremamente questionável. Aqui se torna óbvio quetemos a ver com este mundo passageiro, a velha era, omundo cujo representante típico, Pôncio Pilatos, con­fronta Jesus em completa impotência e desamparo. O po­der mundial de Roma está exposto, assim como Pilatos, otenente do grande senhor em Roma está exposto. Esta é a

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forma como a ação política total aparece à luz da aproxi­mação do Reino de Deus: tudo direcionado para um rom­pimento e previamente contraditado. Este é um lado: estemundo no qual Cristo veio, é iluminado por ele em suacompleta fragilidade e estupidez.

Mas não seria correto pararmos aqui, pois o episó­dio de Pilatos, em todos os quatro Evangelhos, tem aindamuito mais importância, para que estejamos satisfeitoscom declarações de que Pilatos é apenas um homem destemundo. Ele não é apenas isto, mas o estadista e político;portanto, este encontro entre o mundo e o Reino de Deusé, na verdade, muito especial. Não é uma questão de en­contro entre o Reino de Deus e o conhecimento humano,a sociedade humana, o trabalho humano, mas do encon­tro entre o Reino de Deus e a polis. Pilatos, assim, repre­senta a ordem que confronta a outra ordem representadapor Israel e a Igreja. Ele é o representante do imperadorTibério. Ele representa a história mundial, no que diz res­peito estar sob as ordens do Estado. Que Jesus Cristo so­freu sob Pôncio Pilatos, significa, portanto, também queele aceitou a ordem deste Estado. "Não terias nenhum po­der sobre mim, se do céu não te fosse dado" 00 19.11). Je­sus Cristo estava falando muito sério quando disse: "Dai aCésar o que é de César" (Mt 22.21). Ele deu-lhe o que eradele; ele não atacou a autoridade de Pilatos. Ele sofreu,mas não protestou contra Pilatos proferir um julgamentosobre ele. Em outras palavras, a ordem do Estado, a polis,é a área na qual sua ação também, a ação da eterna Pala­vra de Deus, acontece. É a área na qual, segundo a per­cepção humana, sob a ameaça e aplicação da força física,a decisão é tomada quanto ao certo e errado na vida ex­terna dos homens. Este é o Estado, isto é o que chamamospolítica. Tudo o que acontece no domínio da política é, dealguma forma, uma aplicação desta tentativa. O que

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acontece no mundo é sempre igualmente ordenado peloEstado, embora, felizmente, não somente pelo Estado! Nomeio deste mundo de ordenanças do Estado, surge JesusCristo. Pelo fato de sofrer sob Pôncio Pilatos, ele tambémparticipa desta ordem, portanto é digno de consideraçãoo que este fato deve significar, como as ordens externas separecem, como a realidade total de Pôncio Pilatos parecedo ponto de vista do sofrimento do Senhor.

Este não é o lugar para desenvolver a doutrina cristãdo Estado, que não é para ser separada da doutrina cristãda Igreja. Todavia, umas poucas palavras devem ser ditasaqui, pois neste encontro de Jesus e Pilatos tudo está reu­nido in nuce, daquilo que seria considerado e dito do ladodo Evangelho com relação ao domínio da polis.

Ordem do Estado, poder do Estado, como represen­tado por Pôncio Pilatos vis-à-vis Jesus, torna-se visível emsua forma negativa, em toda perversão e injustiça huma­nas. Alguém pode, na verdade, dizer que se em algum lu­gar o Estado é visível como o Estado do erro, esse lugar éaqui; e se em algum lugar o Estado tem sido exposto e suapolítica provou-se monstruosa, então mais uma vez estelugar é aqui. O que fez Pilatos? Ele fez o que políticos fa­zem mais ou menos sempre, e o que sempre se identificoucom a realização da política em todos os tempos: ele ten­tou resgatar e manter a ordem em Jerusalém e, dessaforma, ao mesmo tempo preservar sua própria posição depoder, por meio de subordinar a clara lei, para a proteçãoda qual ele estava, na verdade, instalado. Extraordináriacontradição! Sua ocupação é decidir sobre o certo e o er­rado; esta é sua raison d'etrê; e a fim de manter sua posi­ção, "temendo os judeus", renuncia a fazer exatamente oque estava obrigado a fazer: ele cede. Na verdade, ele nãoconden'a Jesus - ele não pôde condená-lo, ele não o achaculpado - todavia, ele o entrega. Ao entregar Jesus, ele

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também está se entregando. Por tornar-se o protótipo detodos os perseguidores da Igreja e pelo que Nero verianele, pelo Estado injusto que está atuando aqui, como umEstado caído em desgraça. Na pessoa de Pilatos o Estadoabandona sua própria base de existência e se transformaem covil de ladrões, um Estado gângster, o ordenamentode uma camarilha irresponsável. Isto é a polis, isto é polí­tica. É de se admirar que alguém queira tapar o rosto di­ante disso? Se o estado tem, durante anos e décadas seapresentado a si mesmo somente nesta aparência, não éde se admirar que alguém se canse do domínio completoda política? Na verdade o Estado assim observado, o Es­tado após o padrão de Pilatos, é a polis em sua mais puraoposição à Igreja e ao reino de Deus. Este é o Estadocomo ele é descrito no Novo Testamento, em Apocalipse13, como a Besta do abismo, com a outra Besta com ogrande focinho que a acompanha, a qual a primeira Bestacontinuamente glorifica e adora. A paixão de Cristo setorna o desmascaramento, o julgamento, a condenaçãodesta Besta, cujo nome é polis.

Mas isto não é tudo, e não podemos parar nesteponto. Se Pilatos, antes de tudo, traz à superfície a deteri­oração do Estado e, portanto, o Estado injusto, devemostambém não falhar em reconhecer neste espelho côncavoo bom preceito de Deus que está aqui estabelecido, emantém-se, e efetivo, o Estado justo, que é, na verdade,desgraçado pela injustiça das ações humanas, mas que,tanto quanto a Igreja correta, não pode ser completa­mente posto de lado, porque repousa sobre a instituição emandato divino. O poder que Pilatos demonstra não émenos concedido a ele porque ele abusa dele. Jesus o re­conhece, exatamente na forma em que mais adiante Pauloreunia os cristãos romanos para reconhecer, mesmo noestado de Nero, a instituição e mandato divinos, para

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conformar a este mandato e assim renunciar a todo cristi­anismo não-político, e, particularmente, reconhecer suaresponsabilidade para a manutenção do Estado. Que a or­dem do Estado está correlacionada como sendo uma or­dem de Deus, está também claro no caso de Pilatos, nisto- enquanto como um mau estadista ele entregou Jesus àmorte, ele não pode senão, como um genuíno estadista,declará-lo inocente. Também se torna visível com umaforça excepcional, que Pilatos, um mau estadista, tem po­der e vontade para fazer exatamente o contrário do quecomo um genuíno estadista ele podia ter desejado e feito- libertar Barrabás e levar Jesus à morte, e portanto (quãodiferente da forma que lemos em 1 Pedro 2.14!) "honraros que praticam o mal e punir o bem" - mas, como resul­tado (que não o exime, mas justifica a sabedoria deDeus!), ele deve cumprir também a suprema lei. Que Je­sus, o justo, deveria morrer no lugar do injusto, que con­seqüentemente este homem - Barrabás! - deveria serlibertado no lugar de Jesus, foi, na verdade, a vontade deDeus no sofrimento de Jesus Cristo. E desta forma foi seusofrimento sob Pôncio Pilatos, o estadista mau - justocontra sua vontade. E foi a vontade de Deus no sofri­mento de Jesus Cristo, que Jesus deveria ser entregue pe­los judeus para os pagãos, que a Palavra de Deus podesair do seu estreito domínio da nação de Israel para omundo gentio. O gentio que aceita Jesus - desde as mãosimundas de Judas, dos sumo-sacerdotes e do povo de Je­rusalém, ele próprio um homem com mãos sujas - estegentio é o estadista perverso, Pôncio Pilatos - justo con­tra sua vontade! Num certo aspecto, ele também é, comoHamann o chamou, o executor do Novo Testamento,num certo sentido o fundador da Igreja de judeus e gen­tios. Assim, Jesus triunfa sobre aquele, sob cujas perversi­dades ele tem de sofrer. Assim, Jesus triunfa sob o

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mundo, no qual trilhando-o ele tem de sofrer. Assim, eleé o Senhor também onde ele é rejeitado pelos homens.Assim a própria ordem política, independentemente desua corrupção através da culpa humana quando Jesus foipor ela subjugado, está destinada a tornar claro que está,na verdade, subjugada a ele. Eis por que os cristãos devemorar pelos governantes. Eis por que eles tornam-se res­ponsáveis por sua manutenção. Eis por que a tarefa doscristãos é buscar o melhor para a cidade, honrar a divinaindicação e instituição do Estado, escolhendo e desejandono melhor do seu conhecimento, não o Estado errado,mas o Estado direito, o Estado que faz do fato de que seupoder vem "de cima", não uma vergonha, como Pilatos,mas uma honra. E além disto eles estão confiantes de quea lei de Deus na vida política, mesmo onde ela é ignoradapelos homens e pisoteada, é a parte mais forte, por causada Paixão de Jesus - o Jesus para quem todo poder no céue na terra é dado. A provisão foi feita para que o mal e pe­queno Pilatos se inquietasse à toa, no final das contas.Como, neste caso, poderia um cristão tomar partido dele?

Foi Crucificado,Morto e Sepultado,Desceu ao Inferno

Na morte de Jesus Cristo, Deus humilhou a si mesmo e en­tregou a si mesmo, a fim de cumprir sua lei

sobre todo homem pecador,assumindo seu lugar e,

assim, de uma vez por todas,removendo do homem para si mesmo

esta maldição que o afetou, a punição que ohomem merecia, o passado que quer ver corrigido,

o abandono no qual ele caiu.

o mistério da Encarnação se desdobra no mistérioda Sexta-feira Santa e da Páscoa. E mais uma vez é como avemos sempre presente no mistério completo da fé, ouseja, de que devemos sempre ver as duas coisas interliga­das, devemos sempre entender uma pela outra. Na histó­ria da fé cristã, na verdade, sempre esteve latente que oconhecimento dos cristãos sempre pendeu mais para umlado do que para outro. Temos isto na decisiva inclinaçãoda Igreja Ocidental em relação à theologia crueis - isto é,uma tendência em tornar público o fato de que ele foi en­tregue pelas nossas transgressões. Enquanto que a IgrejaOriental acentua mais o fato de que ele ressuscitou paranossa justificação, e, portanto, inclina-se para a theologia

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gloriae. Nesta questão não há nenhum sentido em quererjogar uma contra a outra. Você sabe desde o início queLutero enfatizou a tendência ocidental - não a theologiagloriae, mas a theologia crucis. O que Lutero pretendeudizer com isto está certo. Mas não devemos erigir e con­firmar qualquer oposição; pois não há nenhuma theologiacrueis que não tenha seu complemento na theologia glo­riae. É evidente que não há nenhuma Páscoa sem a Sexta­feira da Paixão, mas do mesmo modo não há Sexta-feirada Paixão sem a Páscoa! Demasiada tribulação e sobrie­dade são facilmente lavradas no cristianismo. Mas se acruz é a Cruz de Jesus Cristo e não uma especulação so­bre a cruz, que qualquer pagão fundamentalmente tam­bém possa tecer, então não pode nem por um segundoser esquecido ou ignorado que o Crucificado ressurgiu damorte no terceiro dia. Celebraremos, neste caso, a Sexta­feira da Paixão completamente diferente, e talvez seriadesejável não cantar na Sexta-feira da Paixão os hinostristes e desconsolados da Paixão, mas começar a cantaros hinos da Páscoa. Não foi uma coisa triste e pesarosaque aconteceu na Sexta-Feira da Paixão; pois ele ressusci­tou. Quero ser o primeiro a declarar que você não podetomar abstratamente o que temos a dizer sobre a morte ea Paixão de Cristo, mas já olhar além para o lugar ondesua glória é revelada.

Este âmago da cristologia tem sido descrito na velhateologia sob dois conceitos principais de exinanitio e oexaltatio de Cristo. Qual o significado que a humilhação ea exaltação assumem aqui?

A humilhação de Cristo inclui o todo, começandocom "sofreu sob Pôncio Pilatos", e decididamente visívelem "foi crucificado, morto e sepultado, desceu ao in­ferno". O que ocorreu primeiro, certamente, foi a humi­lhação deste homem que sofreu, morreu e transitou pelas

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mais densas trevas. Mas o que primeiro dá sua significa­ção para a humilhação e o abandono deste homem é ofato de que este homem é o Filho de Deus, e de que não éoutro senão o próprio Deus que se humilha e se entrega asi mesmo.

Assim, quando este fato é contrabalançado com o aexaltação de Jesus Cristo como o mistério da Páscoa, estaglorificação é, na verdade, uma auto-glorificação deDeus; é para sua honra que este triunfo aconteça: "Deusbradou em alta voz". Mas o mistério verdadeiro da Páscoanão é que Deus é glorificado nele, mas que o homem éexaltado, elevado pela mão direita de Deus e permitidotriunfar sobre o pecado, a morte e o diabo.

Quando sustentamos estes dois pontos juntos, entãoo quadro que temos diante de nós é de uma inconcebíveltroca, de uma katalage, isto é, uma substituição. A recon­ciliação do homem com Deus acontece ao colocar Deus asi mesmo no lugar do homem e o homem no lugar deDeus, como o mais puro ato da graça. É este milagre in­concebível que se torna nossa reconciliação.

Quando a própria Confissão já acentua este "crucifi­cado, morto e sepultado..." numa forma puramente ex­terna através de uma franqueza e integridade de umregistro que não é superabundante em palavras; alémdisso, quando os Evangelhos prolongam a história daCrucificação até um certo ponto, e quando em todos ostempos a Cruz de Jesus é evidenciada como o centro realde toda a fé cristã; quando em todos os séculos se ouverepetidas vezes, Ave crux única spe mea, temos de ser cla­ros em que o ponto não é a glorificação e ênfase na morteem martírio de um fundador de uma religião - há histó­rias indubitáveis de mártires mais impressionantes, masnas quais não estamos interessados - e nem mesmo é aexpressão do universal sofrimento-do-mundo sobre a

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Cruz como uma espécie de símbolo do limite da experi­ência humana. Por meio disso nos distanciamos do co­nhecimento daqueles que têm testemunhado o JesusCristo crucificado. No sentido do testemunho apostólico,a crucificação de Jesus Cristo é a ação concreta do pró­prio Deus. Deus muda a si mesmo, o próprio Deus setorna mais próximo, Deus pensa que não é uma explora­ção ser divino, isto é, ele não se apega aos despojos comoum salteador, mas Deus reparte consigo mesmo. Tal é aglória da sua Divindade, aquela onde ele pode ser "abne­gado", aquela onde ele pode, na verdade, perdoar a simesmo em alguma coisa. Ele se mantém genuinamenteverdadeiro para si mesmo, mas somente por meio de nãoter de limitar-se à sua Divindade. É a profundeza da Di­vindade, a grandeza da sua glória que é revelada no pró­prio fato de que ela também pode se esconder em suamais pura oposição, na mais profunda das rejeições e namaior das misérias da criatura. O que acontece na Cruci­ficação de Cristo é que o Filho de Deus assume para simesmo é que deve se tornar a criatura em estado de re­volta, que quer libertar-se da sua condição de criatura edeclarar-se a si mesmo o Criador. Ele se põe a si mesmonas necessidades da criatura e não a abandona a simesma. Além disso, ele não apenas a ajuda de fora e asaúda de longe; ele faz sua a desgraça da sua criatura.Com que propósito? Para que sua criatura seja livre, paraque o fardo que carrega sobre si seja tirado. A própria cri­atura deve estar em frangalhos, mas Deus não deseja isto;ele quer ver a sua salvação. É tão grande a ruína da cria­tura que qualquer coisa menos que a auto-entrega deDeus não seria suficiente para o seu resgate. Mas Deus étão grande, que foi sua vontade entregar a si mesmo. Re­conciliação significa Deus tomando o lugar do homem.Deixe-me acrescentar que nenhuma doutrina deste mis-

foi Crucificado, Morto c Sepultado, Desceu ao Inferno - 165

tério central pode compreender com precisão e exaustãoou expressar até onde Deus interveio por nós. Não con­funda minha teoria da reconciliação com a própria re­conciliação. Todas as teorias da reconciliação não passamde indicadores. Mas esteja atento também para este "pornós": nada pode ser subtraído dele! O que quer que adoutrina da reconciliação procure expressar, ela deve di­zer isto.

Na morte de Jesus Cristo, Deus tem cumprido sualei. Na morte de Jesus Cristo, ele atuou como Juiz paracom o Homem. O homem se colocou num ponto no qualo veredicto de Deus é declarado sobre ele e tem de sercarregado inevitavelmente. O homem permanece diantede Deus como um pecador, como um ser que está sepa­rado de Deus, que se rebelou contra aquilo que ele deveser. Ele se rebelou contra a graça; como se isso fossepouco, ele virou as costas para a gratidão. Tal é a vida hu­mana, este constante afastar-se, este vulgar e sutil pecado.O pecado leva o homem à necessidade inconcebível: elese torna impossível diante de Deus. Ele se coloca ondeDeus não pode vê-lo. Ele colocou-se, por assim dizer, pordetrás das costas da graça de Deus. Mas as costas do"Sim" de Deus é o divino "Não"; é o julgamento. Assimcomo a graça de Deus é irresistivel, assim também seujulgamento é irresistível.

Agora podemos entender o que foi declarado deCristo, que ele foi "crucificado, morto e sepultado.. :',como a expressão daquilo que está, na verdade, cumpridosobre o homem.

Crucificado. Quando um israelita era crucificado,significava que ele era amaldiçoado, banido, não apenasdo domínio da vida, mas da aliança com Deus, removidodo círculo dos eleitos. Crucificado significava rejeitado,ser entregue à morte da forca infligida aos pagãos. Vamos

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deixar claro o que está envolvido no julgamento de Deus,no qual a criatura humana tem de sofrer do lado de Deuscomo uma criatura pecadora; ele está envolvido na rejei­ção, na maldição. "Maldito todo aquele que for pendu­rado no maneiro". O que recaiu sobre Cristo é o quedeveria recair sobre nós.

Morto. A morte é o fim de todas as possibilidadespresentes de vida. Morrer significa exaurir a última daspossibilidades que nos foi dada. Quer desejemos interpre­tar morrer fisicamente e metafisicamente, seja o que forque aconteça, uma coisa é certa, que acontece o últimoato que pode acontecer na existência da criatura. Seja oque for que aconteça além da morte deve, pelo menos, seralgo diferente da continuidade desta vida. A morte real­mente significa fim. Este é o julgamento perante o qualnossa vida está: a espera da morte. Nascer e crescer, ama­durecer e envelhecer, é caminhar em direção ao momentono qual para cada um de nós será o fim, definitivamente ofim. A questão vista deste lado, é uma questão que trans­forma a morte num elemento em nossa vida, sobre o qualpreferimos não pensar.

Sepultado. Ele permanece lá tão discretamente enuma simples superficialidade. Mas ele não está lá pornada. Algum dia seremos enterrados. Algum dia um pu­nhado de homens se dirigirão ao cemitério onde descerãoum caixão e todos retornarão para casa; mas alguém nãovoltará, e este tal serei eu. O selo da morte será que elesme enterrarão como uma coisa que é supérflua e pertur­badora na terra dos vivos. "Sepultado" dá à morte o cará­ter de passagem e declínio e à existência humana ocaráter de transitoriedade e corruptibilidade. Então, qualo significado da vida humana? Significa apressar-se paraa sepultura. O homem apressa-se para encontrar o seupassado. Este passado, no qual não há mais futuro, será a

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coisa final: tudo o que somos terá ido e terá sido corrom­pido. Talvez a memória permanecerá, enquanto houverhomens que gostem de lembrar-se de nós. Mas algum diaeles também morrerão e a memória deles também se ex­tinguirá. Não há um grande nome na história humanaque num dia ou outro não será esquecido. Este é o signifi­cado de ser "sepultado"; e este é o julgamento sobre o ho­mem, que no túmulo ele é deixado ao esquecimento. Estaé a resposta de Deus para o pecado: não há nada maispara ser feito com o homem pecador, exceto enterrá-lo eesquecê-lo.

Desceu ao inferno. No Antigo Testamento a imagemde inferno é algo diferente do que se desenvolveu posteri­0rmente. Inferno, o lugar do inferi, Hades no sentido doAntigo Testamento, é, na verdade, o lugar de tormento, olugar de completa separação, onde o homem continua aexistir apenas como um não-ser, como uma sombra. Osisraelitas pensavam neste lugar como um lugar onde oshomens se perpetuavam suspensos a rodear como som­bras furtivas. E a parte ruim sobre estar no inferno nosentido do Antigo Testamento é que na morte não po­diam mais louvar a Deus, não podiam mais ver sua face,não podiam mais cumprir as regras do Sabath de Israel. Éum estado de exclusão de Deus, o que torna a morte tãotemerosa, e que faz do inferno o que ele é. O homem estarseparado de Deus significa estar num lugar de tormento."Choro e ranger de dentes" - nossa imaginação não estáadequada para esta realidade, esta existência sem Deus. Oateu não está consciente do que é a não-existência deDeus. A não-existência de Deus é a existência no inferno.O que mais além disto é oferecido como resultado do pe­cado? O homem não se separou de Deus por seu próprioato? "Desceu ao inferno" é simplesmente a confirmaçãodisto. O julgamento de Deus é justo - isto é, ele oferece ao

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homem o que ele quer. Deus não seria Deus, o Criadornão seria o Criador, a criatura não seria a criatura e o ho­mem não seria o homem, se este veredicto e sua execuçãopudessem ser detidos.

Porém, agora, a Confissão nos diz que a execuçãodeste veredicto é efetivada por Deus desta forma, que ele,o próprio Deus, em Jesus Cristo seu Filho, uma vez verda­deiro Deus e verdadeiro homem, assumiu o lugar do ho­mem condenado. O julgamento de Deus é executado, a leide Deus assume seu curso, mas de uma tal forma que oque o homem tinha de sofrer é sofrido por Aquele, quecomo Filho de Deus sofreu por todos. Tal é o senhorio deJesus Cristo, que se ofereceu por nós diante de Deus, to­mando sobre si o que nos pertencia. Nele, Deus se faz res­ponsável, até ao ponto no qual somos amaldiçoados eculpados e perdidos. Ele estava em seu Filho, que na pes­soa deste homem crucificado suporta no Gólgota tudoaquilo que deveria ser levado por nós. Desta forma elepõe um fim à maldição. Não é da vontade de Deus que ohomem pereça; não é da vontade de Deus que o homempague o que estava sujeito a pagar; em outras palavras,Deus extirpa o pecado. Ele o faz, não a despeito da suajustiça, mas é a própria justiça de Deus que ele, o Santo,intervenha a favor nós, os profanos, que ele queira salvar­nos e assim o faça. Justiça no Antigo Testamento não é ajustiça do juiz que faz o devedor pagar, mas a ação de umjuiz que no acusado reconhece o vilão que ele deseja aju­dar dando-lhe os direitos. É isto que significa justiça. Jus­tiça significa assentar o direito. E é isto que Deus faz.Certamente, não sem a punição ser suportada e toda aangústia irromper, mas através de ele colocar-se no lugardo culpado. Ele que pode e faz isto é justificado pelo fatode que ele assume o papel da sua criatura. A misericórdiade Deus e a justiça de Deus não são divergentes entre si.

Foi Crucificado, Morro e Sepulrado, Desceu ao Inferno - 169

"Seu Filho não é igualmente querido para ele,

Ele o entregou; pois ele

Do fogo eterno através do seu sangue

Me resgataria,"

Este é o mistério da Sexta-feira da Paixão.

Mas, na verdade, estamos olhando para além daSexta-feira da Paixão, quando dizemos que Deus vem emnosso lugar e assume nosso castigo sobre si. Deste modo,ele, na verdade, o toma de nós. Todo sofrimento, todatentação, assim como nosso morrer, é apenas a sombra dojulgamento que Deus já executou a nossa favor. Aquiloque na verdade nos afetava e podia nos afetar, foi, na ver­dade, lançado fora de nós na morte de Cristo. Isto estáatestado pelas palavras de Cristo na Cruz: "Está consu­mado!" Portanto, na visão da Cruz de Cristo somos con­vidados, por um lado, a perceber a magnitude e peso donosso pecado e o custo do nosso perdão. Num sentidomais rigoroso não há conhecimento do pecado exceto àluz da Cruz de Cristo. Pois somente compreende o que éo pecado, quem sabe que seu pecado é perdoado. Por ou­tro lado podemos perceber que o preço é pago ao nossofavor, pois somos absolvidos do pecado e suas conseqü­ências. Não somos mais tratados e vistos por Deus comopecadores, que devem passar sob o julgamento por suaculpa. Não temos mais nada para pagar. Somos absolvi­dos gratuitamente, sola gratia, pela própria intervençãode Deus por nós.

Ao Terceiro DiaRessurgiu dos Mortos

Na Ressurreiçclo de Jesus Cristo, o homem é, de uma vezpor todas, exaltado e levado a descobrir com Deus

seu direito contra todos os seus adversáriose assim libertar-se para viver uma nova vida, na qual elenão mais terá pecado e, portanto, a maldição, a morte, o

túmulo e o inferno à sua frente, mas atrás de si.

"Ao terceiro dia ressurgiu dos mortos" é a mensa­gem da Páscoa. Ela assegura que não foi em vão que Deusse humilhou em seu Filho; fazendo assim ele seguramenteagiu também para sua própria honra e para a confirma­ção da sua glória. Pela sua misericórdia triunfou em suaprópria humilhação, o resultado sendo a exaltação de Je­sus Cristo. E quando dissemos anteriormente que na hu­milhação o Filho de Deus estava envolvido e, portanto, opróprio Deus, devemos agora enfatizar que o que está en­volvido na exaltação é o homem. Em Jesus Cristo o ho­mem é exaltado e levado para a vida para a qual Deus olibertou na morte de Jesus Cristo. Deus, por assim dizer,abandonou a esfera da sua glória e o homem pôde agoratomar seu lugar. Esta é a mensagem da Páscoa, o objetivoda reconciliação, a redenção do homem. É o objetivo quejá era visível na Sexta-feira da Paixão. Através da interces-

172 - Esboço de LIma Dogmática

são de Deus pelo homem - os escritores do Novo Testa­mento não estavam temerosos em usar a expressão"pagando" - o homem é uma criatura resgatável.Apolytrosis é um conceito legal que descreve o resgate deum escravo. O alvo é que o homem seja transferido paraoutro status na lei. Ele não pertence mais àquilo que tinhadireito sobre ele, ao domínio da maldição, morte e in­ferno; ele é traduzido para o reino do querido Filho deDeus. Isto significa que seu posição, sua condição, seustatus legal como um pecador é rejeitado em toda forma.O homem não é visto mais seriamente por Deus comoum pecador. O que quer que ele possa ser, tudo que existepara ser dito dele, tudo que possa vir a reprová-lo, Deusnão o leva mais a sério como um pecador. Ele morreupara o pecado; lá na Cruz do GÓlgota. Ele não está maispresente para o pecado. Ele é reconhecido e estabelecidodiante de Deus como um homem justo, como aquele queé justo diante de Deus. Assim como se apresenta, ele tem,evidentemente, sua existência em pecado e, assim, em suaculpa; mas ele o tem atrás dele. A mudança foi comple­tada, de uma vez por todas. Mas não podemos dizer, "Euabandonei de uma vez por todas, eu experimentei" - não;"de uma vez por todas" é o "de uma vez por todas" de Je­sus Cristo. Mas se cremos nele, então é nosso. O homemestá em Cristo Jesus, que morreu por ele, em virtude dasua Ressurreição, o Filho amado de Deus, que vive por epara o bom grado de Deus.

Se esta é a mensagem da Páscoa, então você percebeque na Ressurreição de Jesus Cristo há a revelação dofruto ainda escondido da morte de Cristo. É este exatoponto decisivo que está ainda escondido na morte deCristo, oculto sob o aspecto no qual o homem lá aparececonsumido pela ira de Deus. A partir de agora o NovoTestamento nos torna testemunhas de que este aspecto do

Ao Terceiro Dia Ressurgiu dos Mortos - 173

homem não é o significado do evento no Gólgota, masque por trás deste aspecto o real significado deste eventoé aquele que é revelado no terceiro dia. Sobre este terceirodia começa uma nova história do homem, tanto que po­demos até mesmo dividir a vida de Jesus em dois grandesperíodos, os trinta e três anos até sua morte, e o bemcurto e decisivo período dos quarenta dias entre suamorte e a Ascensão. Ao terceiro dia começa uma novavida de Jesus; mas, ao mesmo tempo, no terceiro dia co­meça um novo Aeon, uma nova forma de mundo, depoisdo velho mundo ter sido completamente acabado e qui­tado na morte de Jesus Cristo. A Páscoa é a novidade deum novo tempo e mundo na existência do homem Jesus,que agora começa uma nova vida como conquistador,como um condutor vitorioso, como o destruidor do fardodo pecado do homem, que foi posto sobre ele. Nesta suaexistência diferenciada a primeira comunidade viu nãoapenas a continuação sobrenatural da sua vida anterior,mas uma nova vida completa, aquela do exaltado JesusCristo e simultaneamente o início de um novo mundo.(Os esforços para relacionar a Páscoa a certas renovações,como as que ocorrem na natureza, como a primavera, ouaté mesmo no despertar do homem pela manhã, e assimpor diante, não têm qualquer força. Depois da primaverasegue-se, inexoravelmente, um inverno, e depois do des­pertar, o cair no sono novamente. O que temos aqui sãomovimentos cíclicos renováveis. Mas tornar-se novo naPáscoa é tornar-se novo de uma vez por todas.) Na res­surreição de Jesus Cristo o reivindicação está feita, se­gundo o Novo Testamento, de que a vitória de Deus emfavor do homem na pessoa de seu Filho já foi ganha. APáscoa é, na verdade, o grande penhor da nossa espe­rança, mas ao mesmo tempo este futuro já está presente

174 - Esboço de lima Dogm,ítica

na mensagem da Páscoa. É a proclamação da vitória jávencida. A guerra está no fim - embora aqui e acolá tro­pas estejam atirando, porque ainda não ouviram nada so­bre a capitulação. O jogo está vencido, embora o jogadorainda faça alguns movimentos adicionais. Na verdade, elejá está derrotado. O relógio está parando, embora o pên­dulo ainda oscile lentamente para lá e para cá. É neste es­paço interino que estamos vivendo: as coisas velhas jápassaram, eis que tudo se fez novo. A mensagem da Pás­coa nos conta que nossos inimigos, o pecado, a maldiçãoe a morte foram vencidos. No final das contas, eles nãopodem mais causar danos. Eles ainda se comportamcomo se o jogo ainda não tivesse acabado, a batalha nãoterminada; devemos ainda contar com eles, mas funda­mentalmente devemos parar de temê-los de uma vez portodas. Se você ouviu a mensagem da Páscoa, você nãopode mais andar por aí com uma face trágica e uma con­duta existencial desanimada de um homem que não temesperança. Uma coisa ainda está segura, e somente estacoisa deve ser levada a sério: que Jesus é o Vitorioso. A se­riedade de quem olha para trás, como a esposa de Ló, nãoé a seriedade cristã. Pode estar queimando lá atrás - everdadeiramente está queimando -, porém devemosolhar, não para isso, mas para o outro fato, de que somosconvidados e convocados a tomar com seriedade a vitóriada glória de Deus neste homem Jesus e se regozijar nele.Só então podemos viver em gratidão e não em medo.

A Ressurreição de Jesus Cristo revela e completaesta proclamação de vitória. Não devemos transmutar aRessurreição em um evento espiritual. Devemos ouvi-la edeixá-la contar-nos a história de como houve um túmulovazio, que uma nova vida além da morte tornou-se visí­vel. "Este [homem arrebatado da morte] é o meu Filho

Ao Terceiro Dia Ressurgiu dos Morros - 175

amado, no qual tenho prazer". O que foi anunciando nobatismo no Jordão agora se torna um evento e manifesto.A todos que conhecem este evento, a ruptura entre o ve­lho mundo e o novo é proclamada. Eles ainda têm umapequena linha para terminar, até que se torne visível queDeus em Jesus Cristo já cumpriu tudo para eles.

Ascendeu aos Céus,e Está Assentado À Direita

de Deus Pai Todo-Poderoso

o objetivo da obra de Jesus Cristo, que aconteceu de umavez por todas, é o fundamento da sua Igreja através

do conhecimento, confiado às testemunhas dasua ressurreição, de que a onipotência deDeus e a graça de Deus, que são ativas e

aparentes nele, são uma e a mesmacoisa. Assim, o fim desta obra é também o início

do tempo-final, isto é, do tempo no qual a Igreja temde proclamar para todo o mundo a graciosa onipotência e a

onipotência graça de Deus em Jesus.

o curso do texto da Confissão de Fé mostra-nos ex­teriormente que estamos nos aproximando de um obje­tivo, o objetivo da obra de Jesus Cristo, desde que elaaconteceu de uma vez por todas. Nessa estrada ainda háuma parte pendente, que é futuro e que se tornará visívelao final da Confissão, "de onde ele há de vir" mais umavez... Mas o que aconteceu de uma vez por todas, agora seapresenta consumado diante de nós em uma série com­pleta de verbos no tempo perfeito: gerado, concebido,nascido, sofrido, crucificado, morto, sepultado, desceu,ressuscitou; e agora, subitamente um presente: "Está as­sentado à direta de Deus ...". É como se tivéssemos esca-

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lado uma montanha e agora alcançado seu cume. Estepresente é completado por um final no perfeito, que eleascendeu aos céus; o que por sua parte completa o "res­surgiu dos mortos".

Com este "está assentado à direita de Deus Pai" ob­viamente passamos para um novo tempo que é nossotempo presente, o tempo da igreja, o tempo-final, inaugu­rado e fundado pela obra de Jesus Cristo. No Novo Testa­mento o relato deste evento constitui a conclusão dosrelatos da Ressurreição de Jesus Cristo. Há - quase aná­logo aos milagres da Natividade - uma linha tênue rela­tiva no Novo Testamento, que fala da ascensão de Cristoaos céus. Aqui e acolá apenas a Ressurreição é mencio­nada e então diretamente a parte sobre estar à mão direitado Pai. No Evangelho também a ascensão aos céus é men­cionada de modo relativamente escasso. O que está envol­vido é esta transição, a mudança do tempo da revelaçãopara o nosso tempo.

Qual é o significado da Ascensão? Segundo o quetemos dito sobre céus e terra, ela significa em qualquermedida que Jesus deixa o espaço terreal, o espaço, isto é,que foi concebido para nós e que ele criou por amor anós. Ele não pertence mais a ele como nós pertencemos.Isto não significa que se tornou alienado para ele, que esteespaço não é seu espaço também. Pelo contrário, uma vezque ele permanece acima deste espaço, ele o preenche e setorna presente para ele. Mas agora, evidentemente, nãomais na maneira do tempo da sua revelação e da sua ativi­dade terreal. A Ascensão não significa que Cristo subiupara outro domínio do mundo criado, para o domínio doque é inconcebível para nós. ''À direita de Deus" significanão apenas a transição do concebível para o inconcebívelno mundo criado. Jesus é removido na direção do misté­rio do espaço divino, o que está absolutamente oculto ao

Ascendeu aos Céus, e Está Assentado à Direita de Deus Pai Todo-Poderoso - 179

homem. Não são os céus a sua morada; ele está comDeus. O Crucificado e o Ressurreto está onde Deus está.A meta da sua atividade sobre a terra e na história é queele vai para lá. Envolvido na Encarnação e na Crucifica­ção está a humilhação de Deus. Mas na Ressurreição deJesus Cristo está envolvida a exaltação do homem. Cristoestá agora, como o Condutor da humanidade, comonosso Representante, no lugar onde Deus está e na formana qual Deus é. Nossa carne, nossa natureza humana, estáexaltada nele para Deus. O fim da sua obra é que estamoscom ele em ascensão. Estamos com ele ao lado de Deus.

Deste ponto inicial temos que olhar para trás e parafrente. Se entendermos o Novo Testamento corretamente,com seus testemunhos para esta conseqüência da vida eatividade de Jesus Cristo, esta conseqüência é caracteri­zada em um caminho duplo.

Deste Último surgiu a luz, que é vista pelos seusApóstolos. O conhecimento conclusivo está confiado àstestemunhas da sua Ressurreição. No Evangelho segundoSão Mateus permanecem as palavras de Cristo (28.18):"Poi-me dada toda autoridade nos céus e na terra'. É sábioe necessário trazer estas palavras em conexão com a parte"à direita de Deus Pai Todo-poderoso". O conceito de oni­potência aparece nos dois pontos. Em Efésios 4.10 omesmo conhecimento é declarado: ''Aquele que desceu éo mesmo que subiu acima de todos os céus, a fim de en­cher todas as coisas..."; enchê-las com sua vontade e suaPalavra. Ele agora está nas maiores alturas; ele agora é oSenhor, e revelado como tal. Voltamos a esta passagempara coisas que nós tocamos acima na exposição do pri­meiro artigo. Se falamos corretamente do Deus Todo-po­deroso que está sobre todas as coisas, então nuncadevemos entender por onipotência de Deus qualquercoisa além da realidade da qual o segundo artigo fala. O

180 - Esboço de Llma Dogmática

conhecimento que os Apóstolos adquiriram com base naRessurreição de Cristo, cuja conclusão é a Ascensão deCristo, é essencialmente este conhecimento básico de quea reconciliação que aconteceu em Jesus Cristo não é umahistória casual, mas que nesta obra da graça de Deus nóslidamos com a palavra da onipotência de Deus, de queaqui a última e suprema coisa entra em ação, atrás da qualnão há nenhuma outra realidade. Não há nada para alémdeste evento, do qual o segundo e o terceiro artigos falam.Cristo é aquele que tem todos os poderes, e com ele esta­mos engajados, se acreditamos. Reciprocamente, a onipo­tência de Deus é revelada e ativa inteiramente na graça dareconciliação de Jesus Cristo. A graça de Deus e a onipo­tência de Deus são idênticas. Nunca devemos entenderuma sem a outra. Aqui, mais uma vez, temos de lidar coma revelação do mistério da Encarnação, que este homem éo Filho de Deus e o Filho de Deus é este homem. JesusCristo tem este lugar, esta função sobre todos nós, e ele astem na realidade final. Ele está em relação a Deus como oÚnico para o qual o poder de Deus é absolutamente con­fiado; como um Governador ou um Primeiro Ministro,para quem seu Rei transferiu todo seu poder. Jesus Cristofala como Deus e age como Deus; e reciprocamente, sequisermos sa1)er da fala e ação de Deus, precisamos ape­nas olhar para esse homem. Esta identidade de Deus ehomem em Jesus Cristo é o conhecimento, a revelação doconhecimento, pelo qual a obra de Jesus Cristo, cumpriu­se de uma vez por todas, alcançou sua conclusão.

"Está assentado à direita de Deus Pai" - o cume foialcançado, o passado permanece atrás de nós e entramosno domínio do presente. É isto que temos para dizer donosso tempo - que é a primeira e última coisa que im­porta para nossa existência no tempo. Nesta base está estaexistência de Jesus Cristo, assentado à direita de Deus Pai.

Ascendeu aos Céus, e Esd Asscntado à Direita de Dcus Pai Todo-Poderoso - 181

Qualquer que seja a prosperidade ou derrota que acon­teça em nosso espaço, qualquer que seja a mudança, ou oque quer que passe, há uma constante, uma coisa que per­manece e continua, é este seu assentar à direita de DeusPai. Não há nenhum ponto decisivo histórico que se apro­xime disto. Aqui temos o mistério do que chamamos his­tória mundial, história da Igreja, história da civilização;aqui temos a coisa que fundamenta tudo. Este primeirode tudo absoluto, simplesmente significa a coisa que estáexpressa mais uma vez no final do Evangelho de São Ma­teus, pelo tão conhecido mandato missionário: "Ide portodo o mundo e fazei discípulos, batizando-os e ensi­nando-os a observar as coisas que tenho mandado".Como conseqüência, este conhecimento, de que a "onipo­tência de Deus é a graça de Deus", não é um conheci­mento inútil. E a conclusão do tempo da revelação não éo fim de um espetáculo, onde a cortina se fecha e os es­pectadores podem ir para casa, mas ela termina com umdesafio, com um mandamento. O evento da salvaçãotorna-se agora a ponta de um evento mundial. O queagora se torna visível para os Apóstolos corresponde aofato de que aqui também na terra, como uma história hu­mana, como uma ação dos discípulos, há um lugar ter­reno que corresponde ao lugar celestial, uma vida e açãode testemunhas da sua Ressurreição. Com a partida de Je­sus Cristo para o Pai, algo é estabelecido na terra. Suapartida significa não apenas um fim, mas também uminício, mesmo que não como uma continuação do seu ad­vento. Para isto não seria dito que a obra de Jesus Cristosimplesmente continua na vida de cristãos e na existênciada Igreja. A vida dos santos não é o prolongamento da re­velação de Jesus Cristo sobre a terra. Isto contradiz o seu"Está consumado". O que aconteceu em Jesus Cristo nãoprecisa de continuação. Mas, evidente, o que aconteceu

182 - Esboço de uma Dogm,ítica

de uma vez por todas possui no que agora acontece sobrea terra uma correspondência, um reflexo; não uma repe­tição, mas uma semelhança. E toda esta vida cristã é na féem Cristo, tudo isto é chamado de comunidade, é esta se­melhança, este sombreamento a partir da existência de Je­sus Cristo como a Cabeça do seu corpo. Cristo funda suaIgreja ao ir para o Pai, ao fazer-se conhecido para seusApóstolos. Este conhecimento significa o chamado de"Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda cria­tura". Cristo é o Senhor. Isto é o que toda criação, o quetodas as nações devem conhecer. A conclusão da obra deCristo é, portanto, não uma oportunidade dada para osApóstolos para inatividade, mas o serem enviados para omundo. Aqui não há repouso possível; aqui há, pelo con­trário, correria e corrida; aqui está o início da missão, oenviar da Igreja ao mundo e para o mundo.

Este tempo que agora vivemos, o tempo da Igreja, éao mesmo tempo o tempo-final, o tempo no qual a exis­tência ou o significado da existência do mundo das cria­turas alcança seu objetivo. Ouvimos, quando falamos daCruz de Cristo e Ressurreição, que a batalha foi vencida,o relógio está parando, mas Deus ainda tem paciência,Deus ainda está esperando. Para este tempo da sua paci­ência ele colocou a Igreja no mundo, e o significado desteúltimo tempo é, que ele está repleto da mensagem doEvangelho e que o mundo tem seu mandamento, para ou­vir esta mensagem. Podemos chamar este tempo que ir­rompeu com a Ascensão de Jesus aos céus, "o tempo daPalavra', talvez também o tempo do abandono e, em certosentido, da solidão da Igreja na terra. É o tempo no qual aIgreja está unida com Cristo apenas na fé e pelo Santo Es­pírito; é o tempo interino entre sua existência terrena eseu retorno em glória; é o tempo da grande oportunidade,da tarefa da igreja voltada para o mundo; é o tempo da

Ascendcu aos Céus, c Esd Assentado à Diteita de Deus Pai Todo-Poderoso - 183

missão. Como dissemos, é o tempo da paciência de Deus,no qual ele está esperando pela Igreja, e, com a Igreja,pelo mundo. Pois o que tem acontecido conclusivamenteem Jesus Cristo como o cumprimento do tempo, obvia­mente não é para ser realizado sem a participação do ho­mem, sem o louvor a Deus dos seus lábios, sem os seusouvidos, que podem ouvir a Palavra, sem os seus pés emãos, pelos quais eles podem se tornar mensageiros doEvangelho. Que Deus e homem tornaram-se um em JesusCristo pode ser visto, primeiro pelo fato de que há ho­mens de Deus na terra, a quem é concedido serem suastestemunhas. O tempo da Igreja, o tempo-final - o quetorna o tempo tão significante e grandioso, não é que eleseja o tempo-final, mas que ele deixa oportunidade para oouvir, crer e arrepender, para proclamar e compreender amensagem. É tempo que se concretiza para Jesus Cristono relacionamento do "Eu estou à porta, e bato". Ele estámais próximo. Ele deseja entrar; tão próximo e ainda dolado de fora, diante da porta, e já podemos ouvi-lo e ficarà espera da sua entrada. - Neste tempo interino e tempo­final, neste tempo de espera e da paciência divina, nelechega a ordem dupla da divina providência, as conexõesentre Igreja e Estado, das esferas internas e externas emsua oposição e coordenação. Elas não são as últimas or­dens ou a última palavra; mas, corretamente entendidas,elas são as boas ordenanças para o objetivo, que corres­pondem à graça de Deus. A Ascensão é o começo destetempo em que vivemos.

A Vinda de Jesus Cristo,o Juiz

A memória dez Igreja é também sua expectativa, e suamensagem para o mundo é também a esperança

do mundo. Pois Jesus Cristo, de cuja palavrae obra a Igreja conscientemente, e o

mundo ainda inconscientemente,origina, é o mesmo que veio ao encon-

tro da Igreja e do mundo, como o objetivodo tempo que está chegando ao fim, a fim de tornar

visível, finalmente e para todas as pessoas, a decisão to­mada nele a graça e o reino de Deus

como a medida pela qual a humanidadeinteira e cada existência humana é medida.

"...De onde há de vir julgar os vivos e os mortos".Depois de muitos perfeitos e o presente, segue-se o futuro- "ele voltara'. Podemos analisar gramaticalmente todo osegundo artigo em três tempos, que ele veio, que ele estáassentado à direita de Deus e que ele voltará.

Primeiro, deixe-me dizer algo sobre o conceito cris­tão do tempo. Não podemos deixar de perceber que aquiuma luz estranha cai sobre o que num sentido genuíno eapropriado é chamado de tempo real - o tempo à luz dotempo de Deus, a eternidade.

186 - Esboço de uma Dogmática

Jesus Cristo veio, todos aqueles tempos passados,responderiam pelo que denominamos passado. Mas quãoinapropriado seria dizer deste evento que ele foi um pas­sado. O que Jesus sofreu e realizou não é certamente pas­sado; pelo contrário, é o velho que foi passado, o mundodo homem, o mundo da desobediência e desordem, omundo da miséria, pecado e morte. O pecado foi cance­lado, a morte foi vencida. O pecado e a morte existiram, etoda a história humana, incluindo aquela que segue seucurso post Christum, exatamente em nossos dias, existi­ram. Tudo isto é passado em Cristo; podemos apenaspensar em tudo isto olhando para trás.

Mas Jesus Cristo assentou-se ao lado do Pai, comoaquele que sofreu e ressurgiu dos mortos. Isto é o pre­sente. Assim ele está presente como Deus está presente,como isto já se admite que ele voltará como a pessoa queele uma vez foi. Ele que é hoje o mesmo que foi ontem,também será o mesmo amanhã - Jesus Cristo ontem ehoje, e o mesmo para a eternidade. Uma vez que JesusCristo existe como a pessoa que foi, obviamente ele é oinício de um tempo novo, diferente daquele que conhece­mos, um tempo no qual não há desvanecimento, mas otempo real que tem um ontem, um hoje e um amanhã.Mas o ontem de Jesus Cristo é também o seu hoje e seuamanhã. Não é ausência do tempo, uma eternidade vaziaque tem lugar no seu tempo. Seu tempo não está no fim;ele continua seu movimento desde ontem para hoje, até oamanhã. Ele não possui a temerosa efemeridade do nossopresente. Quando Jesus Cristo assentou-se à direita doPai, a existência dele com Deus, sua existência como opossuidor e representante da divina graça e poder outor­gada aos homens, não tem nada que ver com o que ridi­culamente concebemos como eternidade - isto é, umaexistência sem o tempo. Se esta existência de Jesus Cristo

A Vinda de Jesus Cristo, O Juiz - 187

à direita de Deus é uma existência real e como tal a me­dida de toda existência, então ela também existe notempo, embora em outro tempo além desse que conhece­mos. Se o senhorio e governo de Jesus Cristo à direta doPai é o significado do que vemos como a existência danossa história do mundo e nossa história de vida, entãoesta existência de Jesus Cristo não é uma existência sem otempo, e a eternidade não é uma eternidade sem o tempo.A morte é sem o tempo, o nada é sem o tempo. Então so­mos homens sem o tempo quando estamos sem Deus esem Cristo. Assim, não temos o tempo. Mas esta ausênciade tempo ele venceu. Cristo tem o tempo, a plenitude dotempo. Ele assentou-se à direita de Deus como aquele queveio, aquele que agiu e sofreu e triunfou na morte. Suaparte à direita de Deus não é apenas o extrato desta histó­ria; é o eterno dentro desta história.

Paralelamente a esta existência eterna de Cristo hátambém sua existência transformadora. O que era, veio; oque aconteceu acontecerá. Ele é o Alfa e o Ômega, o cen­tro do tempo real, o tempo de Deus; que não é o temposem significado que passa. Não o presente como nós o co­nhecemos, no qual todo "agora" é apenas um salto donunca-mais para o ainda-não. Seria este presente a agita­ção na sombra do Hades? Na vida de Jesus Cristo outropresente nos encontra, que é o próprio passado, e, por­tanto, não uma ausência de tempo que leva ao nada. Equando se diz que Cristo está voltando, este retorno não éum objetivo localizado no infinito. A "infinitude" é umaatividade desconfortável e não um predicado divino, masaquilo que se refere à natureza da criatura caída. Este fimsem um fim é apavorante. É uma imagem da perdição dohomem. O homem se encontra em tal estado que ele éprecipitado numa interminável falta de propósito. Esteideal do infindável nada tem que ver com Deus. Um li-

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mite é, pelo contrário, preparado para este tempo. JesusCristo é e traz o tempo real. Mas o tempo de Deus tam­bém tem um fim, assim como um início e um meio. Ohomem está circundado e envolto em todos os lados. Istoé a vida. Portanto, a existência do homem se torna visívelno segundo artigo: Jesus Cristo com seu passado, pre­sente e futuro.

Quando a comunidade cristã olha para trás ao queaconteceu em Cristo, na sua primeira vinda, sua vida,morte e ressurreição, quando ela vive nesta memória, en­tão não é uma mera lembrança, não o que chamamos his­tória. Isto que aconteceu de uma vez por todas, pelocontrário, é o poder da divina presença. O que aconteceuainda acontece e, como tal, acontecerá. O ponto do qual acomunidade cristã origina-se, com sua confissão de JesusCristo, é o mesmo ponto ao qual ela vai ao encontro. Suasrecordações são também suas expectativas. E quando acomunidade cristã aborda o mundo, sua mensagem à pri­meira vista tem certamente o caráter de uma narrativahistórica, então a fala é de Jesus de Nazaré, que sofreu sobPôncio Pilatos, depois de nascer sob o Imperador Au­gusto. Mas que angústia se a mensagem cristã para omundo tivesse parado neste evento. O conteúdo e obje­tivo desta narrativa seria inevitavelmente de um homemque viveu o "era uma vez" ou uma figura lendária para aqual muitas nações olhariam para trás de uma maneirasemelhante, um fundador de uma religião entre outros.Quão decepcionado o mundo estaria sobre o que fez e fazexistir a verdade, sobre as boas novas que "Cristo veiopara nossa reconciliação; regozijai, ó cristandade!" Esteperfeito "Cristo veio" também deve ser proclamado emsua contextualização contra o mundo como aquilo queeste mundo mais espera, e em cujo encontro a históriamundial também vai.

A Vinda de Jesus Cristo, O Juiz - 189

Além disso, a fé cristã poderia ser vista como expec­tativa e esperança; mas esta expectativa podia ser de umcaráter vazio e generalizado, Uns esperam por melhorestempos, melhores circunstâncias "nesta vida", ou naforma de outra vida no tão-chamado "além". Assim, sutil­mente a esperança cristã se torna uma expectativa inde­terminada por alguma espécie de glória desejada. Algunsse esquecem do verdadeiro conteúdo e objetivo da expec­tativa cristã - ou seja, de que aquele que vem é o mesmoque foi. Estamos para encontrar aquele de quem viemos.Isto também deve, na relação entre a Igreja e o mundo,ser a substância da sua mensagem: ela não aponta para ovazio quando concede coragem e esperança para os ho­mens; ela pode dar coragem e esperança em vista do queaconteceu. "Está consumado" é completamente válido. Otempo perfeito cristão não é imperfeito; mas correta­mente entendido o perfeito tem a força do futuro. "Meutempo está em tuas mãos!" (5131.15). Assim nos admira­mos como Elias na força deste alimento quarenta dias equarenta noites para o Monte de Deus, também chamadoHorebe. Ainda é a caminhada e não o objetivo, mas umacaminhada direcionada pelo objetivo. Eis a maneira comonós, cristãos, podemos falar aos não-cristãos, Não deve­mos nos sentar entre eles como corujas melancólicas, masna certeza do nosso alvo, que sobrepuja todas as outrascertezas. Todavia, quantas vezes nos postamos envergo­nhados entre os filhos do mundo, e quão freqüentementenós as compreendemos se a nossa mensagem não as satis­faz. Aquele que entende que "nosso tempo está em tuasmãos" não tratará altivamente os homens do mundo que,na esperança precisa que muitas vezes nos envergonha,seguem seu caminho; mas ele os entenderá melhor doque eles entendem a si mesmos. Ele verá a esperança delescomo uma parábola, um sinal de que o mundo não está

190 - Esboço de lima Dogmática

abandonado, mas tem um início e um propósito. Nós,cristãos, devemos transportar o verdadeiro Alfa e Ômegaao coração da esperança e pensamento seculares. Mas sópodemos fazer isso se excedermos o mundo em confi­ança.

Portanto, a situação é que o mundo origina-se in­conscientemente, enquanto que a Igreja origina-se cons­cientemente de Jesus Cristo, da sua obra. O fato objetivo éque Jesus Cristo veio e que falou sua palavra e fez suaobra. Isto existe, independentemente de se nós, homens,cremos ou não. Isto vale para todos, para os cristãos epara os não-cristãos. Derivamos do fato de que Cristoveio e devemos olhar o mundo de acordo com isto. Que omundo seja "mundano" não quer dizer nada. Mas é omundo no meio do qual Jesus Cristo foi crucificado e res­surrecto. A Igreja também surgiu dele e está na mesmaposição que o mundo. Mas a Igreja é o lugar onde a pes­soa tem conhecimento disto e isto, na verdade, faz a tre­menda diferença entre a Igreja e o mundo. Nós, cristãos,podemos saber isso, podemos ver com olhos abertos a luzque ressurgiu, a luz da parúsia. Nisto reside uma graça es­pecial, na qual podemos nos alegrar a cada manhã. Naverdade, não merecemos esta graça; os cristãos não sãomelhores do que os filhos do mundo. Portanto, isto podeser apenas uma questão de sua apresentação, a partir doseu conhecimento, algo para os outros que não conhe­cem. Eles devem deixar brilhar a tênue luz, que foi conce­dida a eles.

Tanto a Igreja quanto o mundo estão diante daquelede quem eles se originam. E para os dois o milagre é queeste alvo de esperança não está em algum lugar, devendonós construir laboriosamente a estrada que nos conduz aela, porém o que está dito na Confissão é Venturus est.Não que devemos vir; é ele quem vem. Aonde chegare-

A Vinda de Jesus Cristo, O Juiz - 191

mos com nossa preocupação e correria? A história domundo, com sua diligência, com suas guerras e seus ar­mistícios, a história da civilização com suas ilusões e im­probabilidades - é este o caminho? Temos de sorrir. Masquando ele vem, ele que é o Ator, então tudo aquilo que étão miserável em nossa "progressividade" é visto sob umanova luz. A fraqueza e temeridade tolas da Igreja e domundo são elevadas por ele. "Cristo nasceu". Mais umavez o Advento. A vinda de Cristo mais uma vez é a vindadaquele que está presente. Portanto, a tolice dos pagãos ea fraqueza da Igreja não têm desculpas, mas elas entramna luz do dia de Páscoa: "O mundo estava perdido, Cristonasceu". Todavia, Cristo não apenas intercedeu por nós;ele também intercederá por nós. Desta forma a existência- ambas, humana e cristã - é mantida desde o início até oseu fim. Cristo não foi e nem será envergonhado de serchamado nosso Irmão.

"... De onde há de vir". Neste "de onde" está contidosobre tudo este fato, de que ele emergirá da obscuridadeonde ele está para nós hoje, onde ele é proclamado e cridopela Igreja, onde ele está presente para nós apenas na suaPalavra. O Novo Testamento diz deste futuro porvir que"ele virá sobre as nuvens dos céus com grande poder eglória" e "assim como o relâmpago sai do Oriente e vaipara o Ocidente, assim será a vinda do Filho do homem"(Lc 21.27; Mt 24.27). São metáforas, mas metáforas dasrealidades finais, que ao menos indicam que isto nãoacontece mais em mistério, mas é completamente reve­lado. Ninguém mais será capaz de enganar-se sobre estarealidade vivente. Portanto, ele virá. Ele rasgará os céus ese postará diante de nós como a pessoa que ele é, assen­tado à direita da divina onipotência. Ele vem como aqueleem cujas mãos nossa existência inteira está selada. Neleesperamos, ele está voltando e ele será manifesto como

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aquele a quem já conhecemos. Em suas mãos estão todosestes eventos; a única coisa à espera é aquilo que está en­coberto para ser removido para que todos o vejam. Ele jácumpriu isto e ele tem o poder de fazê-lo manifesto. Emsuas mãos se encontra o verdadeiro tempo e não o temposem fim no qual nunca temos o tempo. Mesmo neste mo­mento este cumprimento pode existir. Nossa vida tem umcumprimento e este cumprimento será manifesto. Nossofuturo consiste em nosso ser mostrado que tudo foi cor­reto e bom em nossa existência e nesta história do mundomá e - milagre dos milagres! - nesta ainda mais má histó-

ria da Igreja. Não podemos vê-lo: o que está em Heussi 15

não é bom, e o que está nos jornais não é bom. Todavia,algum dia será manifesto como reto, porque Cristo foi ocentro. Ele governa, assentado à direita do Pai. Isto virá àluz e toda lágrima será enxugada. Este é o milagre do qualpodemos ir ao encontro, e o qual em Jesus Cristo será ex­posto a nós como já existente, pois ele virá em sua glória,como um relâmpago que brilha do Oriente e se estendepara o Ocidente.

"... Para julgar os vivos e os mortos". Se desejarmosentender corretamente aqui, devemos desde o início su­primir certas imagens do julgamento do mundo, até ondepodemos, e fazer um esforço para não pensar o que elasestão descrevendo. Todas estas visões, como os grandespintores as representaram, sobre o julgamento do mundo(Miguelangelo na Capela Sistina), Cristo avançando como punho cerrado, dividindo aqueles que estão à direitadaqueles que estão à esquerda, enquanto o olhar de al­guém se mantém fixo naqueles da esquerda! Os pintoresimaginaram, até certo ponto com prazer, como estes con-

15. () alemão Karl Heussi (1877-1961), historiador da igreja, cuja obra erabastante crítica.

A Vinda de Jesus Cristo, O Juiz - 193

denados naufragavam no lago do inferno. Mas não é esteo caso. A Pergunta 52 do Catecismo de Heidelberg per­gunta: "Que conforto terás com a vinda de Cristo parajulgar os vivos e os mortos?" Resposta: "De que em todosos meus sofrimentos e perseguições possa olhar com mi­nha cabeça ereta para o próprio Cristo, que antes se en­tregou a si mesmo por mim no julgamento de Deus elevou sobre si todas as minhas maldições, para vir comoJuiz dos céus.. :' Há uma observação diferente e chocanteaqui. O retorno de Jesus Cristo para julgar os vivos e osmortos são boas novas de alegria. "Com a cabeça ereta", ocristão e a Igreja podem de devem confrontar este futuro.Pois aquele que vem é o mesmo que anteriormente ofere­ceu a si mesmo para o julgamento de Deus. É pelo seu re­torno que esperamos. Se tivesse sido concedido aMiguelangelo e outros artistas ouvir e ver isto!

Jesus Cristo vindo novamente para julgamento, suaúltima e universal manifestação sempre é descrita noNovo Testamento como a revelação. Ele será revelado,não somente para a Igreja, mas para todos, como a pessoaque ele é. Ele não apenas será o juiz, ele é já o é; mas entãopela primeira vez ele se tornará visível, que isto não é umaquestão do nosso Sim e Não, nossa fé ou nossa falta de fé.Na claridade e publicidade plenas o "está consumado"virá à luz. Por isto a Igreja está esperando; e sem o saber omundo está esperando também. Estamos todos na rota deencontro desta manifestação. Não parece, todavia, que agraça e a justiça de Deus são, na verdade, válidas como amedida pela qual a humanidade completa e cada indiví­duo em si são medidos. Ainda temos dúvidas e ansieda­des. Ainda há lugar para a justiça pelas obras e orgulhopela piedade assim como pela impiedade. Isto pode aindaser visto. A Igreja proclama Cristo e a decisão feita nele.Porém ainda se vive neste tempo que é chegado ao fim e é

194 - Esboço de lima Dogmática

portador de todas as marcas de grande fraqueza em si. Oque traz o futuro? Mais uma vez, não um ponto decisivona história, mas a revelação do que é. É o futuro, mas ofuturo daquilo que a Igreja rememora, daquilo que jáaconteceu de uma vez por todas. O Alfa e o Ómega são amesma coisa. A volta de Jesus Cristo provará que Goetheestava certo quando escreveu:

':4 Deus pertence o Oriente e o Ocidente;

De Norte a Sul repousam as terras

Na profunda paz das próprias mãos de Deus."

Na perspectiva bíblica o juiz não é primariamenteaquele que recompensa alguns e pune outros; ele é o ho­mem que cria a ordem e restaura o que foi destruído. Po­demos encontrar este juiz, esta restauração ou, melhor, arevelação desta restauração em confiança incondicional,porque ele é o juiz. Em confiança incondicional, porqueviemos da sua revelação. O tempo presente parece tãomesquinho e desprezível e não nos satisfará, nem mesmoo presente tempo da Igreja e da cristandade. Mas é estacristandade que pode e deve deixar-se chamar repetidasvezes, chamada de volta à sua origem e ao mesmo tempoa encontrar o futuro de Jesus Cristo, O deslumbrante eglorioso futuro do próprio Deus, que é o mesmo ontem ehoje e para sempre. Para a seriedade da idéia de julga­mento nenhum dano será feito, pois será manifesto que agraça de Deus e a justiça de Deus são a medida pela qualtoda a humanidade e cada homem será medido. Venturusjudicare: Deus sabe tudo o que existe e acontece. Entãopodemos ficar bem apavorados, e neste ponto estas visõesdo Juízo Final não são simplesmente sem significado.Aquele que não provém da graça e da justiça de Deus nãopode existir. Tanto a "grandeza" humana quanto a cristãtalvez mergulhe infinitamente para a mais profunda das

A Vinda de Jesus Cristo, O Juiz - 195

trevas. Que existe um tal Não divino, de fato está pressu­posto neste judicare. Mas no momento em que admitimosisto devemos reverter para a verdade de que o Juiz que se­para alguns para a esquerda e os outros para a direita, é,na verdade, aquele que se entregou a si mesmo para o jul­gamento de Deus no meu lugar e levou todas as minhasmaldições sobre si. Foi ele quem morreu na Cruz e res­suscitou na Páscoa. O temor de Deus em Jesus Cristo nãopode ser nenhum além daquele que permanece na alegriae confiança da pergunta: "Na vinda de Cristo o que teconforta?" Isto não nos leva à apostasia. Há uma decisãoe uma divisão, mas através dele, que intercede por nós.Existe nos dias de hoje uma divisão mais aguda e um de­safio mais urgente do que a mensagem sobre este Juiz?

Creio no Espírito Santo

Quando os homens pertencem a Jesus Cristo de tal ma­neira que eles têm liberdade para reconhecersua Palavra como destinada também a eles,sua obra como realizada também para eles,

a mensagem sobre ele como tambémsua tarefa; e assim,

por sua parte, liberdade paraesperar pelo melhor de todos os outros

homens, isto acontece, na verdade, como suaexperiência e ação humanas, e mesmo que não em vir­

tude da sua capacidade, determinação eesforço humanos, mas somente

na base do Dom gratuito de Deus,no qual tudo isto é concedido a eles. Neste

ato de conceder e dar, Deus é o Espírito Santo.

Neste ponto do Credo mais uma vez repete-se a pa­lavra "creio". Isto não tem apenas um significado estilís­tico; aqui a atenção é chamada com urgência para o fatode que o conteúdo da Confissão Cristã é levantado maisuma vez para uma nova luz, e o que agora se segue nãoestá obviamente conectado com o que veio antes. É como

198 - Esboço de uma Dogmárica

se fizesse uma pausa; é uma pausa notável entre a Ascen­são e o Pentecostes.

As afirmações do terceiro artigo estão direcionadasao homem. Enquanto o primeiro artigo fala de Deus, osegundo do Deus-homem, agora o terceiro fala do ho­mem. Não devemos neste ponto, evidentemente, separaros três artigos; devemos entendê-los em sua unidade. Es­tamos ocupados com o homem que participa no ato deDeus, e, além disso, participa ativamente. O homem per­tence ao Credo. Este é o mistério que não foi ouvido, doqual estamos agora nos aproximando. Há uma fé no ho­mem, desde que este homem participe ativamente e livre­mente no trabalho de Deus. E isto que na verdadeacontece, é a obra do Espírito Santo, a obra de Deus naterra, que tem sua analogia na obra oculta de Deus, naemanação do Espírito da parte do Pai e do Filho.

Qual é o significado desta participação do homemna obra de Deus, de seu livre e ativo compartilhar? Nãoseria nada confortável se tudo permanecesse objetivo. Há,também, um elemento subjetivo; podemos ver a modernaexuberância deste elemento subjetivo, que já foi introdu­zido na metade do século dezessete, e trazido por Schlei­ermacher para a ordem sistemática, como uma tentativaforçada de trazer a verdade do terceiro artigo.

Há uma conexão geral de todos os homens comCristo, e todo homem é seu irmão. Ele morreu por todosos homens e ressuscitou por todos os homens; portanto,todo homem é enfocado pela obra de Jesus Cristo. Queseja assim, é a promessa para toda a humanidade. Esta é abase mais importante, e a única que abrange tudo, do quechamamos humanidade. Aquele que uma vez percebeu ofato de que Deus se fez homem não pode falar e agir de­sumanamente.

Creio no Espírito Santo - 199

Mas, antes de tudo, quando falamos do EspíritoSanto, não vamos olhar para todos os homens, mas parahomens especiais que pertencem, de uma maneira espe­cial, a Jesus Cristo. Quando falamos do Espírito Santo, es­tamos falando de homens que pertencem a Jesus Cristode uma maneira especial que eles têm a liberdade de reco­nhecer sua Palavra, sua obra, sua mensagem em uma ma­neira precisa, e também esperar de sua parte o melhorpara todos os homens.

Quando falamos de fé, acentuamos o conceito de li­berdade. Onde estiver o Espírito do Senhor, aí há liber­dade (2Co 3.17). Se desejarmos parafrasear o mistério doEspírito Santo, é melhor escolher este conceito. Receber oEspírito, ter o Espírito, viver no Espírito significa se liber­tar e se permitir viver em liberdade. Nem todos os ho­mens são livres. Liberdade não é uma coisa natural e nãoé simplesmente um predicado da existência humana. To­dos os homens estão destinados à liberdade, mas nem to­dos estão nesta liberdade. Onde passa a linha deseparação está oculto a nós, homens. O Espírito sopraonde ele quer 00 3.8). Não verdade, não é uma condiçãonatural do homem para ele ter o Espírito; isto sempre seráuma distinção, um Dom de Deus. O que importa aqui é,simplesmente, pertencer a Jesus Cristo. Não nos ocupa­mos com Espírito Santo como algo novo e diferente dele.Esta sempre foi uma concepção errônea do EspíritoSanto. O Espírito Santo é o Espírito de Jesus Cristo. "Re­ceberá do que é meu e vos dará" 00 16.14). O EspíritoSanto não é nada mais do que uma certa relação da Pala­vra com O homem. No derramamento do Espírito Santono Pentecostes, há um movimento - pneuma significavento - de Cristo para o homem. Ele soprou sobre eles:"Recebei o Espírito Santo!" Cristãos são todos aqueles so­prados por Cristo. Portanto, num certo aspecto, nunca

200 - Esboço de uma Dogm,ítica

poderemos falar de modo suficientemente solene do Es­pírito Santo. O que está envolvido é a participação do ho­mem na Palavra e obra de Cristo.

Mas esta simples coisa é ao mesmo tempo algo su­premamente inconcebível. Pois esta participação do ho­mem significa participação ativa. Vamos ainda ponderaro que isto significa em sua mais profunda verdade: sertrazido ativamente para a grande esperança de JesusCristo que sustenta todos os homens, não é verdadeira­mente uma coisa natural. É uma resposta para a perguntaque se renova diante de nós a cada manhã. Ela envolve amensagem da Igreja Cristã; e através do meu ouvir estamensagem ela torna-se minha própria tarefa. Esta mensa­gem também passa por mim, como cristão; também metorno portador dela. Mas, por meio dela, sou colocado naposição de, por minha parte, considerar os homens, todosos homens, muito diferentemente de antes; já não possomais fazer outra coisa senão esperar o melhor para todos.

Ter ouvidos internos para a Palavra de Cristo, seragradecido por sua obra e ao mesmo tempo responsávelpela mensagem dele e, por último, ter confiança nos ho­mens por amor a Cristo - esta é a liberdade que obtemos,quando Cristo sopra sobre nós, quando ele nos envia seuSanto Espírito. Se ele não vive mais num lugar remotohistórico ou celestial, teológico ou eclesiástico para mim,se ele se aproxima de mim e toma posse de mim, o resul­tado será que eu ouço, que sou agradecido e responsável eque, finalmente, posso esperar por mim mesmo e por to­dos os outros; em outras palavras, que eu posso viver deuma maneira cristã. É uma coisa tremendamente grandee de modo algum uma coisa natural, obter esta liberdade.Devemos, portanto, cada dia e cada hora orar Veni Crea­tor Spiritus, ouvindo a Palavra de Cristo e em ação de gra­ças. Este é um círculo fechado. Não "possuímos" esta

Creio no Espírito Santo - 201

liberdade; ela é, repetidas vezes, concedida a nós porDeus.

Na expos1çao do primeiro artigo da Confissão eudisse que a criação não era um milagre menor do que onascimento virginal de Cristo. E agora, em terceiro lugar,gostaria de dizer que o fato de que há cristãos, homensque têm esta liberdade, não é um milagre menor do que onascimento virginal de Jesus Cristo do Espírito Santo e daVirgem Maria, ou do que a criação do mundo a partir donada. Pois, se lembrarmos o que, e quem, e como somos,devemos clamar. "Senhor, tem misericórdia de nós'~ Paraeste milagre os discípulos esperaram dez dias após a As­censão do Senhor aos céus. Não senão depois desta pausao derramamento do Espírito Santo aconteceu e com issouma nova comunidade surgiu. Lá aconteceu um novo atode Deus, que, como todos os atas de Deus, é uma confir­mação dos anteriores. O Espírito não pode ser separadode Jesus Cristo. "O Senhor é o Espírito", diz Paulo.

Quando os homens podem receber e possuir o Espí­rito Santo, isto é naturalmente uma experiência humana eum ato humano. É também uma questão de entendi­mento e de vontade e, posso dizer na verdade, da imagi­nação. Isto também pertence ao ser um cristão. O homemcompleto, até nas mais íntimas regiões do tão chamado"inconsciente", é tomado em clamor. A relação de Deuscom o homem inclui o homem completo. Mas não devehaver má compreensão: o Espírito Santo não é uma formade espírito humano. A teologia é tradicionalmente reco­nhecida como uma das "ciências do intelecto". Isto podepassar como piada de bom gosto. Mas o Espírito Santonão é idêntico ao espírito humano, porém o encontra.Não desejaríamos degradar o espírito humano -é parti­cularmente necessário tratá-lo com um pouco de carinhona nova Alemanha - e mesmo os teólogos não deveriam

202 - Esboço de LIma Dogmática

se desviar numa atitude papista e arrogante. Mas esta li­berdade da vida cristã não vem do espírito humano. Ne­nhuma capacidade humana, ou possibilidades, ouesforços de qualquer espécie podem alcançar esta liber­dade.

Quando acontece de o homem obter liberdade tor­nando-se um ouvinte, responsável, agradecido, uma pes­soa esperançosa, não é por causa de um ato do espíritohumano, mas somente por causa do ato do Espírito Santo.Portanto isto é, em outras palavras, um Dom de Deus.Isto tem que ver com um novo nascimento, com o Espí­rito Santo.

A Igreja, Sua Unidade,Santidade e Universalidade

Desde que aqui e acolá, através do Espírito Santo, os ho­mens se encontram com Jesus Cristo e,desta forma, também um com o outro,

a comunidade cristã visivelmentesurge e existe aqui e acolá.

É uma forma do único, universale santo povo de Deus, e uma comunhão

de homens e obras santas, que se submeteao governo único de Jesus Cristo, em quem ela

está fundamentada, que também almeja viver somente nocumprimento do seu serviço como

embaixadora, reconhecendo seuobjetivo unicamente na sua esperança,

que é o seu limite.

Devemos ser breves nesta parte, que por direito de­veria ser tratada muito completamente. Nossas horas depalestra são numeradas. Mas talvez não haja nenhumprejuízo nisso. Hoje, há coisas demais ditas sobre a Igreja.Há algo melhor: vamos ser a Igreja!

Seria um grande lucro, se o urgente desejo de Luterotivesse sido cumprido e a palavra "congregação" tivessetomado o lugar da palavra "Igreja". Claro que podemos

204 - Esboço de uma Dogmárica

achar na palavra "Igreja" o que é bom e verdadeiro, umavez que Igreja significa Kyriake Oikia, a Casa do Senhor;ou, originada de circa, um espaço circular fechado. Asduas explanações são possíveis, mas ekklesia certamentesignifica congregação, um ajuntamento, que surge daconvocação para a assembléia nacional que se encontraao chamamento do mensageiro, ou melhor, ao som datrombeta do arauto.

Uma congregação é o ajuntamento daqueles quepertencem a Jesus Cristo através do Espírito Santo. Ouvi­mos que estes homens especiais pertencem, de umaforma especial, a Jesus Cristo. Isto acontece quando oshomens são chamados pelo Espírito Santo para participa­rem na Palavra e obra de Cristo. Esta associação especialtem sua analogia ao nível horizontal na associação daque­les homens uns com os outros. O derramamento do Espí­rito Santo afetou diretamente o ajuntamento desteshomens. Não podemos falar do Espírito Santo - isto por­que é neste ponto que a congregação aparece imediata­mente - sem a continuação do credo ecclesiam, creio naexistência da Igreja. Reciprocamente, ai de nós, quem so­mos nós quando falamos da Igreja sem estabelecê-la to­talmente na obra do Espírito Santo~ Credo in Spiritumsanctum, mas não Credo in ecclesiam: Creio no EspíritoSanto, mas não na Igreja. Ao contrário, creio no EspíritoSanto, e, portanto, também na existência da Igreja, dacongregação. Portanto, devemos eliminar todas as idéiasde outra assembléia humana ou sociedades que têm exis­tido, parcialmente pela natureza, parcialmente peIa histó­ria, na base de acordos e organizações. A congregaçãocristã surge e existe, nem por natureza nem pela decisãohistórica humana, mas como uma divina convocatio.Aqueles chamados ao ajuntamento pela obra do EspíritoSanto congregam-se ao serem convocados por seu Rei.

A Igreja, Sua Unidade, Santidade e Universalidade - 205

Onde a Igreja coincide com a vida natural da comuni­dade, com, por exemplo, aquela das nações, o perigo deuma má compreensão sempre é ameaçador. Ela não podeser formada por mãos humanas; por isto a entusiasmadae rápida fundação de igrejas, tal como acontece na Amé­rica e também algumas vezes na Holanda, é um negócioduvidoso. Calvino gostava de aplicar à Igreja uma con­cepção militar, a de la compagnie des fideles. Uma compa­nhia geralmente vem do ajuntamento sobre a base de umcomando e não sobre a de um livre acordo.

Através de homens se congregando aqui e acolá noEspírito Santo surge aqui e acolá uma congregação cristãvisível. É melhor não aplicar a idéia de invisibilidade paraa Igreja; somos todos inclinados a escorregar com isto nadireção de uma civitas platonica ou alguma espécie de"terra de cucos nas nuvens", na qual os cristãos estão uni­dos intimamente e invisivelmente, enquanto a Igreja visí­vel é desvalorizada. No Credo dos Apóstolos ela não éuma estrutura invisível que é planejada, mas um ajunta­mento completamente visível, que se origina com os dozeApóstolos. A primeira congregação era um grupo visível,que causou um alvoroço público visível. Se a Igreja nãotem esta visibilidade, então não é a Igreja. Quando digocongregação, estou pensando primariamente na formaconcreta de uma congregação em local particular. É claroque cada uma destas congregações tem seus problemas,como a congregação de Roma, de Jerusalém etc. O NovoTestamento nunca apresenta a Igreja fora dos seus proble­mas. Sempre que um problema de variação na congrega­ção individual aparece, pode levar a uma divisão. Tudoisto pertence à visibilidade da Igreja, que é o objeto do se­gundo artigo. Cremos na existência da Igreja - o que sig­nifica que cremos que cada congregação em particularseja uma congregação de Cristo. Guarde bem isto: uma

206 - Esboço de uma Dogm,írica

pessoa que não crê que nesta congregação à qual per­tence, incluindo aqueles homens e mulheres, viúvas e cri­anças, a congregação de Cristo existe, não crê naexistência da Igreja. Credo ecclesian significa que creioque aqui, neste lugar, nesta assembléia visível, a obra doEspírito Santo acontece. Por isto não pretendo uma deifi­cação da criatura; a Igreja não é o objeto da fé, não cre­mos na Igreja; mas cremos que nesta congregação a obrado Espírito Santo se torna um evento. O mistério daIgreja é que para o Espírito Santo não é pouca coisa tertais formas. Conseqüentemente, existem na verdade nãomuitas Igrejas, mas uma Igreja em termos desta ou da­quela igreja concreta, que reconheceria a si mesma comouma Igreja e todas as outras também.

Credo unam ecclesiam: creio em uma forma do povode Deus que ouviu a voz do Senhor. Existem também di­ferenças arriscadas como aquela, por exemplo, entre anossa e a Igreja Católica Romana, na qual não é simplesreconhecer uma Igreja. Mas, mesmo assim, a Igreja aindaé mais ou menos reconhecível. Mas, antes de tudo, oscristãos são simplesmente convocados para crer em Deuscomo a origem comum, o objetivo comum da Igreja parao qual eles são chamados. Não somos colocados numatorre, da qual podemos vislumbrar todas as variedades deIgrejas; simplesmente estamos na terra num lugar defi­nido e existe a Igreja, a única Igreja. Cremos na unidadeda Igreja, na unidade das congregações, se cremos naexistência da nossa Igreja concreta. Se cremos no EspíritoSanto nesta Igreja, então mesmo na pior das hipótesesnão somos absolutamente separados das outras congrega­ções. Os verdadeiros cristãos ecuménicos não são aquelesque vulgarizam as diferenças e flutuam acima delas; massão aqueles que em suas respectivas igrejas são concreta­mente a Igreja. "Onde dois ou trés estiverem reunidos em

A Igreja, Sua Unidade, Santidade e Universalidade - 207

meu nome, aí estarei" (Mt 18.20) - isto é a Igreja. Nele,apesar de todas as variedades nas congregações individu­ais, estaremos unidos, de alguma forma, uns com os ou­tros.

"Creio na santa... Igrejà'. Qual é o significado desancta ecclesia? Segundo o costume do termo, ele significa"estar separado'~ Pensamos na origem da igreja, daqueleschamados do mundo. "Igrejà' sempre significará uma se­paração. Ouvimos que há também sociedades naturais ehistóricas, mas somente a congregação cristã é a ecclesiasaneta. Ela é distinta de toda estas sociedades por causada sua comissão, seu fundamento e seu objetivo.

"Creio na santa igreja católica [universal] ..." - eccle­sia catholica. O conceito de catolicidade está manchadopara nós, porque em conexão com isso pensamos daIgreja Católica Romana. Mas os Reformadores indubita­velmente fizeram uma reivindicação sobre este conceitopara si mesmos. O que está envolvido é o povo único,santo e católico de Deus. Fundamentalmente os três con­ceitos fazem a mesma declaração: ecclesia catholica signi­fica que através de toda a história a Igreja permanece amesma consigo mesma. Ela não altera sua natureza. Há,evidentemente, diferentes formas nas principais igrejas.Há também fraquezas, perversões, erros em todas elas.Mas não há igrejas substancialmente diferentes. A oposi­ção a elas poderia ser apenas aquela de que há verdadeirase falsas igrejas. Faremos bem em não incluir esta oposiçãocom muita rapidez e freqüência dentro da discussão.

A Igreja é a comunhão dos santos, communio sanc­tOfum. Aqui existe um problema de exegese: é o nomina­tivo sancti ou sancta? Não quero decidir esta disputa, masapenas falar se não existe a intenção de uma ambigüidadenotável num sentido mais profundo. Pois somentequando as duas interpretações são assimiladas lado a

20S - Esboço de uma Dogmática

lado, a questão recebe seu completo e melhor significado.Saneti significa não especialmente um povo excelente,mas, por exemplo, povo como os "santos em Corinto", queforam santos extremamente esquisitos. Mas estes compa­nheiros esquisitos, a quem também pertencemos, sãosaneti. A congregação é o lugar onde a Palavra de Deus éproclamada e os sacramentos são solenizados e o compa­nheirismo da oração acontece, não mencionando os donse obras interiores, que são o significado daqueles exterio­res. Então, saneti pertence a saneta e vice-versa.

Deixe-me recapitular: Credo eeclesiam significa quecreio que a congregação à qual pertenço, na qual tenhosido chamado à fé e sou responsável pela minha fé, naqual tenho meu ministério, é aquela Igreja santa e univer­sal. Se não acredito nela, não acredito em nada dela. Nemfalta de beleza, nem "rugas e manchas" nesta congregaçãopodem desviar-me do caminho. O que está envolvidoaqui é um artigo de fé. Não há sentido, quando buscamosa "verdadeira' congregação, abandonar a congregaçãoconcreta. Em todo lugar estamos nos "relacionando comhomens'~ Claro, a separação não pode ser excluída; elapode ser objetivamente necessária. Mas nenhuma divisãojamais levará o "relacionamento com homens" a ser ex­cluído completamente em uma recém-separada congre­gação do Espírito Santo. Quando os Reformadoreschegaram e a Igreja Romana permaneceu atrás da IgrejaReformada e separada dela, não estava em ação na Igrejaevangélica nenhuma Igreja imaculada, pois ela tambémestava cheia de "manchas e rugas" até nossos dias. Pela fécertifico que a congregação concreta a qual pertenço epela vida da qual sou responsável, está designada para atarefa de fazer neste lugar, nesta forma, aquela santaIgreja universal visível. Dizendo Sim para isto, comoaquele que pertence a outras congregações pelo Espírito

A Igreja, Sua Unidade, Santidade e Universalidade - 209

Santo, espero e tenho esperança de que o Espírito Santode Jesus Cristo atesta nisto e através disto também aos ou­tros e confirma que nisto aquela natureza santa e univer­sal da Igreja se tornará visível.

No Credo de Nicéia um quarto ponto é acrescen­tado a estes três predicados da Igreja, que eu creio na­quela una, santa, católica e apostólica Igreja. Mas estequarto predicado não permanece simplesmente numa fi­leira com os outros três predicados, mas procura explicá­los. Qual é o significado de Unidade, Catolicidade, Santi­dade? O que distingue a congregação de todas as outrassociedades do tipo natural ou mesmo histórico? Talvezpossamos dizer que ela é a ecclesia apostolica - isto é, aIgreja fundada sobre o testemunho dos Apóstolos - quetransmite seu testemunho e que foi constituída e seráconstituída sempre em novidade pelo fato de que ela ouveo testemunho dos Apóstolos. Somos desafiados com acompleta totalidade da existência da Igreja e ao mesmotempo com a totalidade dos problemas, nos quais não te­mos tempo nem espaço para entrar. Mas tentarei tornarvisível em três linhas o que a apostolicidade da Igreja sig­nifica.

Nossa declaração de abertura diz que a congregaçãocristã é "uma comunhão de homens e obras santas, que sesubmete ao governo único de Jesus Cristo, em quem elaestá fundamentada, que também almeja viver somente nocumprimento do seu serviço como embaixadora, reco­nhecendo seu objetivo unicamente na sua esperança, queé o seu limite". Aqui você vê as três linhas que estão envol­vidas.

Onde a Igreja Cristã está, estamos obviamente co­nectados de uma forma ou outra com Jesus Cristo. Estenome indica a unidade, santidade e universalidade daIgreja. Quer esta base e apelo aconteça de jure é a questão

210 - Esboço de lima Dogmática

que deve ser levantada em cada congregação em todo lu­gar. Onde a Igreja Apostólica está, a Igreja que ouve etransmite o testemunho dos Apóstolos, um sinal defini­tivo estará vivo, uma nota ecclesiae, de que Jesus Cristo, asaber, não é apenas aquele de quem a igreja se origina,mas que Cristo é aquele que governa a congregação. Ele, esomente ele! Em nenhum lugar ou espaço a Igreja é umaautoridade que se sustenta a si mesma, mas - e aqui se se­gue um importante princípio com relação ao governo daIgreja - fundamentalmente a Igreja não pode ser gover­nada nem monarquicamente nem democraticamente.Aqui Jesus Cristo governa sozinho, e qualquer governodo homem pode apenas representar este governo dele. Edeve deixar-se medir por este governo. Mas Jesus Cristogoverna em sua Palavra pelo Espírito Santo. O governo daIgreja é, assim, idêntico com a Sagrada Escritura, atravésdo seu testemunho dele. Portanto, a Igreja deve continua­mente estar ocupada com a exposição e aplicação da Es­critura. Onde a Bíblia se torna um livro morto com a cruzsobre a capa e margens douradas, o governo de Jesus naIgreja é inativo. Neste caso, a Igreja não é mais aquelasanta Igreja universal, mas permanece a ameaça de rup­tura naquilo que é profano e separatista. Evidente que atémesmo esta "Igreja" se chamará pelo nome de JesusCristo. Entretanto, não são as palavras, mas a realidadeque interessa; e tal Igreja não estará numa posição paratrazer a realidade à ação.

A vida da única santa Igreja universal está determi­nada pelo fato de que ela é o cumprimento do ministériode embaixadora ordenado sobre ela. A Igreja vive comooutras comunidades vivem, mas neste ministério daIgreja sua natureza aparece - proclamação da Palavra deDeus, administração dos sacramentos, um maior ou me­nor desenvolvimento litúrgico, a aplicação da lei da Igreja

A Igreja, Sua Unidade, Santidade e Universalidade - 211

(a tese de R. Sohm é um trabalho fantástico, pois atémesmo a primeira congregação tinha ao menos um orde­namento como Igreja, isto é, Apóstolos e congregação) e,por último, uma teologia. O grande problema, que aIgreja tem de responder repetidas vezes, é este - o queacontece em e por meio de todas estas funções? É umaquestão de edificação? É a bem-aventurança de indiví­duos ou tudo que o envolve? É o cultivo da religião viva,ou objetivamente uma ordem (segundo o conceito onto­lógico de Igreja) que deve simplesmente ser cumpridacomo a obra de Deus? Onde a vida da Igreja está exauridano auto-serviço, tem-se o gosto de morte; o elemento de­cisivo foi esquecido, de que a vida inteira é vivida apenasno exercício do que chamamos ministério de embaixadorda Igreja, proclamação, kerygma. Uma Igreja que reco­nhece sua comissão não desejará, nem estará apta a petri­ficar em quaisquer de suas funções, para ser uma Igrejaem interesse próprio. Há o "grupo dos crentes em Cristo";mas este grupo foi enviado: "Ide e pregai o Evangelho!".Ele não diz, "Ide e celebrai o ministério!"; "Ide e edificai avós mesmos com o sermão!"; "Ide e celebrai os Sacramen­tos!"; "Ide e apresentai-vos na liturgia, que porventura re­pita a liturgia celestial!"; "Ide e deixai o legado de umateologia que possa gloriosamente se desdobrar como aSumma de Thomas de Aquino!" Claro, não há nada queproíba tudo isto; pode haver uma boa causa para fazertudo isto; mas nada, nada afinal para seu interesse pró­prio! Nela, todas aquelas coisas devem prevalecer: "Pregaio Evangelho a toda criatura!" A Igreja corre como oarauto para entregar a mensagem. Não é um caracol quetransporta sua pequena casa sobre suas costas e está tãobem acomodado, que apenas ocasionalmente liga suasantenas, e depois pensa que a "exigência de publicidade"foi satisfeita. Não, a igreja vive pela sua comissão como

212 - Esboço de lima Dogmática

arauto; ela é la compagnie de Dieu. Onde a Igreja está viva,ela deve perguntar a si mesma se está servindo esta co­missão ou se tornou-se um objetivo em si mesma? Se oúltimo for o caso, então como regra ela começa a ter ogosto pelo "sagrado", com afetos de piedade, a agir comosacerdote e murmurador. Qualquer um com nariz agu­çado sentirá o cheiro e achará formidável! O Cristianismonão é "sagrado"; pelo contrário ele respira o ar fresco doEspírito. De outra forma, não é Cristianismo. Pois ele éalgo "mundano" exposto para toda humanidade: "Ide portodo o mundo e pregai o Evangelho a toda criatura".

Agora, o último ponto, de que onde a Igreja estiver,também haverá um alvo, o reino de Deus. Este objetivoda Igreja está destinado a constituir uma contínua inquie­tação para os homens na Igreja, cuja ação não tem ne­nhuma relação com a grandeza do objetivo. Não devemospermitir que a existência cristã, isto é, a existência daIgreja, a existência teológica, seja privada deste. Podeacontecer que queiramos largar a mão do arado, quandocomparamos a Igreja com este objetivo. Podemos, comfreqüência, ter uma aversão pela vida da Igreja como umtodo. Se você não conhece esta opressão, se você simples­mente sente-s? bem dentro das paredes da Igreja, vocêcertamente nâo viu a verdadeira dinâmica desta questão.Na Igreja podemos ser como um pássaro na gaiola queestá sempre se debatendo contra as grades. Algo bemmaior está em jogo do que nosso punhado de pregação eliturgia! Mas onde a Igreja Apostólica está viva, alguémconhece, verdadeiramente, este anseio, nós ansiamos pelamansão preparada para nós, mas não fugirmos, simples­mente não abandonamos. Pela esperança do reino, nósnão nos permitimos ser impedidos de permanecer comoum soldado raso na compagnie de Dieu, e assim avançarpara o alvo. O limite nos é marcado pelo alvo. Se real-

A Igreja, Sua Unidade, Santidade e Universalidade - 213

mente esperamos pelo reino de Deus, então podemos su­portar a Igreja em sua insignificância. Então nãoficaremos envergonhados em descobrir na congregaçãoconcreta a única Igreja santa e universal, e então nenhumindivíduo será envergonhado da sua confissão particular.A esperança cristã, que é a coisa mais revolucionária quesomos capazes de pensar e além da qual todas as outrasrevoluções são meros cartuchos vazios, é uma esperançadisciplinada. Ela orienta o homem nas suas limitações:nela você persevera. O Reino de Deus é chegado, por­tanto, você não deve começar a luta pelo Reino de Deus.Tome seu lugar e esteja em seu lugar como um verdadeirominister verbi divini. Você pode ser um revolucionário,mas você pode ser também um conservador. Onde estecontraste entre revolucionário e conservador está unidoem um homem, onde ele pode ser de uma vez completa­mente ansioso e completamente tranqüilo, onde ele podeestar com os outros desta maneira na congregação, naqual os membros reconhecem um ao outro em anseio eem humildade na luz do divino humor, ele fará o que temde fazer. Nesta luz toda nossa ação na Igreja é permitidae, na verdade, recomendada. Portanto, a Igreja, esperandoe apressando, caminha ao encontro da vinda do Senhor.

o Perdão dos Pecados

o homem cristão olha para trás e, apesar do seu pecado,recebe o testemunho, através do Espírito Santo

e através do santo batismo, da morte deJesus Cristo e assim da justificação

da sua própria vida.Sua fé, por último, está fundada

no fato de que o próprio Deus, tomandoo lugar do homem em Jesus Cristo,

assumiu responsabilidadeincondicional por seu caminho.

Este é o caminho do homem cristão, que foi consti­tuído pela graça de Deus e que tem seu lugar na congre­gação. Não devemos, portanto, sob circunstância alguma,separar o que temos ouvido agora, perdão dos pecados,ressurreição do corpo e vida eterna, do fato de que Deus,pelo Espírito Santo, age de maneira tal que há homensque ouvem, e surge uma congregação. O caminho do cris­tão é derivado do perdão dos pecados e conduz à ressur­reição do corpo e vida eterna. Esta origem do homemcristão está concentrada, realmente e substancialmentenum único ponto. Este ponto é o centro do segundo ar­tigo, a paixão e ação de Jesus Cristo. Estamos juntos com

216 - Esboço de uma Dogmática

ele no Espírito Santo. Somos a sua congregação, e tudoque é nosso é originalmente e particularmente dele. Vive­mos pelo que ele é. Não devemos nos afastar deste centrode toda a verdade. Perdão dos pecados, ressurreição, vidaeterna não são coisas externas a Cristo, mas são a ação deDeus na sua luz. Ele, o Único, ilumina, e o homem cristãomove-se em sua luz. O que distingue o homem cristão éque ele permanece neste feixe de luz que vem de Cristo.Mas esta existência na luz não é um propósito egoísta, po­rém o homem cristão move-se nesta luz, a fim de ter luzem si mesmo. Deus amou o mundo de tal maneira quedeu o seu único Filho. Cristãos são mensageiros no lugarde Cristo. Mas aqui na congregação ele é reconhecido, eleé visto e experimentado, o que Cristo é para o homem,para todos os homens, a fim de que o testemunho possaser conduzido daqui.

Creio no perdão dos pecados - este é o ponto noqual o cristão obviamente olha para trás no caminho doqual ele vem. Não somente no momento da sua 'conver­são', mas é o que acontece sempre quando o cristão olhapara trás: ele está olhando para o perdão dos pecados.Este é o acontecimento que o confronta e o impele parauma atitude, isto e nada mais. Não se acrescenta a isto,como perdão dos pecados e minha experiência ou perdãodos pecados e minhas realizações! O que está em retros­pecto, sabemos por nós mesmos, somente pode ser isto,que vivemos através do perdão. Para sermos honestos, so­mos indigentes.

Se perdão dos pecados significa tudo que ficou paratrás de nós, então um julgamento passou sobre nossavida. Não há nenhum mérito, aquele da gratidão, diga­mos, no qual tenho oferecido toda espécie de coisas aoquerido Deus. Tenho sido um lutador! Tenho sido um te­ólogo! Talvez tenha escrito livros! Não, isto não justifica.

o Perdão dos Pecados - 217

Tudo que fomos e fizemos estará sujeito ao julgamento deque estava em pecado. E pecado significa transgressão,desvio. Se havia alguma coisa a mais, sempre foi a coisaque veio de cima, da qual não temos de que nos jactar,mesmo porque é a misericórdia de Deus. Todo dia deve­mos começar, podemos começar com a confissão: "Creiono perdão dos pecados". Na breve hora da nossa morteainda teremos mais para dizer. Talvez possamos melhorclarificar o conceito de perdão ou remissio, como algumacoisa que foi gravada em escritos, por exemplo, nossavida; agora um grande golpe, e ele é retirado por inteiro.Ele merece ser retirado e - graças a Deus! - será retirado.Apesar do meu pecado, agora posso aceitar um testemu­nho de que meu pecado não será mais lembrado paramim. Não posso, por mim mesmo, removê-lo de mimmesmo. O pecado significa a perdição eterna do homem.Como poderíamos por nós mesmos conduzir esta remo­ção? Que tenho pecado significa que sou um pecador.

Mais uma vez tudo isto nos leva ao testemunho doEspírito Santo, o testemunho da Palavra de Deus ouvida eo testemunho do batismo. Pois a relevância do santo ba­tismo é esta, de que podemos durante toda a nossa vidapensar no fato de que somos batizados; assim como Lu­tero na tentação apanhou um giz e escreveu na lousa,baptizatus sumo O batismo fala de mim completamente,independentemente se sempre estive atento ao testemu­nho do Espírito Santo com a mesma vivacidade. Há algode errado com a nossa percepção. Há um sobe e descenela; algumas vezes a Palavra não é viva para mim, e éaqui onde o fato pode intervir, de que sou batizado. Maisuma vez em minha vida um sinal foi estabelecido, de queestou seguro mesmo quando o testemunho do EspíritoSanto não me alcança. Assim como nasci, também fui ba­tizado. Como uma pessoa batizada, tornei-me uma teste-

218 - Esboço de uma Dogm;Í(ica

munha para mim mesmo. O batismo não confirma nadaalém do que o Espírito Santo confirma, porém como umapessoa batizada posso por mim mesmo ser uma testemu­nha para o Espírito Santo e restaurar a mim mesmo poreste testemunho. O batismo me lembra do ministério dotestemunho, uma vez que ele me leva ao arrependimentodiário. Ele é um sinal estabelecido em nossa vida. Comoas braçadas do nadador estão sempre em movimento paraque ele não afunde, assim o batismo nos chama de voltaao testemunho.

Mas este testemunho é a Palavra de Deus para nós,dizendo: Você, ó homem, com seu pecado, pertence com­pletamente, como propriedade de Jesus Cristo, ao domí­nio da misericórdia inconcebível de Deus, que não nos vêcomo aqueles que vivem por viver e agem por agir, masdiz para nós, 'Você está justificado'. Para Mim você não émais um pecador, mas onde você está também Eu estarei.Olhe para este Outro. Se você está ansioso sobre como searrepender, deixe apenas que se lhe diga: "Teus pecadosforam perdoados". Se você perguntar "que mais posso fa­zer, como adequar minha vida em companheirismo comDeus", deixe a resposta chegar até você de que a expiaçãopor sua vida já foi realizada e sua comunhão com Deuscompletada. Sua reação, ó filho do homem, consiste ape­nas na aceitação desta situação, de que Deus o vê agoramais uma vez e o recebe mais uma vez em Sua luz, como acriatura que você é. "Fomos sepultados com ele na mortepor meio do batismo" (Rm 6.4). Batismo é a representa­ção da morte de Cristo no meio da nossa vida. Ele nos dizque quando Cristo foi morto e sepultado também fomosmortos e sepultados, nós transgressores e pecadores.Como aquele que foi batizado, você pode ver você mesmocomo morto. O perdão dos pecados repousa no fato deque este morrer aconteceu no tempo no GÓlgota. O ba-

o Perdão dos Pecados - 219

tismo diz a você que aquela morte foi também a suamorte.

o Próprio Deus, em Jesus Cristo, tomou a iniciativade dar o primeiro passo no lugar do homem. Pensamosmais uma vez na nossa declaração de que a reconciliaçãoé uma troca. Deus agora assume a responsabilidade pornós. Agora somos sua propriedade, e ele nos tem à suadisposição. Nossa própria indignação não nos afeta mais.Vivemos agora pelo fato de que ele faz isto, o que significanão uma existência passiva, mas uma existência extrema­mente ativa. Se pudermos usar a figura, podemos pensarem uma criança desenhando um objeto. Ela não conseguefazê-lo. Então o professor senta-se no lugar do aluno e de­senha o mesmo objeto. A criança fica ao seu lado e ape­nas olha, enquanto o professor traça os finos desenhosem seu próprio caderno de exercícios. Isto é justificação ­Deus realizando em nosso lugar o que não podemos rea­lizar. Fui desembaraçado das formas minúsculas; agora,se ainda há algo a ser dito contra mim, verão que isto nãomais me diz respeito, mas àquele que sentou-se no meulugar. E todos os que têm alguma reclamação contra mim,o diabo e suas legiões e aqueles queridos companheiros,se ousarem erguer-se contra mim, verão ele sentado emmeu lugar. Esta é minha situação. Assim, sou inocente,posso me rejubilar completamente, porque as acusaçõescontra mim cessaram. A justiça de Jesus Cristo agora éminha justiça. Isto é o perdão de pecados. "Como és tujusto diante de Deus? Somente pela fé em Jesus Cristo"(Pergunta 60, Catecismo de Heidelberg). Foi assim que aReforma viu a questão e a expressou. Deus nos concedeuque aprendamos como adquirir mais uma vez a verdadecompleta da vida que resulta dela.

Agora não devemos dizer que isto não é suficientepara viver pelo perdão 'somente'. Esta objeção foi levan-

220 - Esboço de lima Dogm,ítica

tada contra o Credo e fortemente contra os Reformado­res. Que tolice! Como se quisesse dizer que o perdão dospecados, não fosse a única coisa pela qual vivemos, o po­

der de todos os poderes! Como se tudo não estivesse la­tente na frase! É precisamente quando estamos

conscientes de que 'Deus é por mim', que sou no verda­

deira sentido responsável. Pois deste ponto de vista e so­mente dele há uma ética verdadeira, temos um critério dobem e do mal. Portanto, viver pelo perdão não significade qualquer maneira passividade, mas o viver cristão emsua plenitude. Se preferirmos descrevê-la como a grandeliberdade ou uma disciplina estrita, como a piedade oucomo verdadeiro mundanismo, como moralidade parti­cular ou como moralidade social, se olhamos para estavida sob o signo da grande esperança ou sob o signo da

paciência diária, de qualquer forma vivemos apenas peloperdão. Aqui está a distinção entre o cristão e o pagão, ocristão e o judeu. O que não passa sobre esta lâmina afi­ada do perdão de pecados, ou graça, não é cristão. Poristo seremos julgados, sobre isto o Juiz um dia questio­nará, quer você viva pela graça ou já escolheu deuses parasi mesmo, ou talvez queira se tornar como um. Você temdemonstrado a fé de um servo, que não tem do que se jac­tar? Neste caso você é aceito; desta forma você certa­mente tem sido misericordioso também e tem perdoadoseus devedores; também tem seguramente confortado ou­tros e sido a luz, suas obras também têm se demonstradoboas, obras que fluem do perdão dos pecados. A perguntasobre estas obras é a pergunta do Juiz, que temos de en­frentar.

A Ressurreição do Corpoe a Vida Eterna

o olhar do cristão para além e apesar da sua morte, re­cebe do Espírito Santo e da Ceia do Senhor

o testemunho da ressurreição deJesus Cristo e assim da

conclusão da sua própria vida.Sua fé nisto está fundamentada no fato

de que, uma vez que ao homem é permitido tomar,em Jesus Cristo, o lugar de Deus, foi-lhe concedido a par­

ticipação incondicional na glória de Deus.

Um cristão olha para trás, falamos na declaração deabertura anterior. Um cristão olha para frente, dizemosagora. Este olhar para o passado e olhar adiante consti­tuem a vida do cristão, a vita humana Christiana, a vidade um homem que recebeu o Espírito Santo, que pode vi­ver na congregação e é chamado para ser nela uma luzpara o mundo.

Um homem olha adiante. Fazemos uma volta, comose fosse de 180 graus: atrás de nós está o nosso pecado ediante de nós a morte, o morrer, o caixão, o túmulo, ofim. O homem que não leva isto seriamente, o fato de queestamos olhando para este fim, o homem que não percebeo que o morrer significa, que não fica apavorado com isto,

222 - Esboço de lima Dogndrica

que não tenha talvez a alegria suficiente na vida e assimnão conhece o temor do fim, que ainda não entendeu queesta vida é um Dom de Deus, que não tem inveja da lon­gevidade dos patriarcas, que não tinham apenas cem, mastrezentos, e quatrocentos, ou mais anos, o homem que,em outras palavras, não assimilou a beleza desta vida, nãopode compreender o significado da "ressurreição". Poisesta palavra é a resposta ao terror da morte, o terror deque esta vida algum dia chegará ao fim, e este fim é o ho­rizonte da nossa existência. "No meio da vida somos afi­velados à morte.. :: A existência humana é uma existênciasob esta ameaça, marcada por este fim, por esta contradi­ção continuamente levantada contra nossa existência:você não pode viver! Você crê em Jesus Cristo e pode ape­nas crer, e não ver. Você está diante de Deus e gostaria dese regozijar e pode se regozijar, todavia deve experimen­tar a cada dia como seu pecado é novo a cada manhã. Hápaz, e, todavia, apenas a paz que pode ser confirmada pormeio da luta. Aqui entendemos, e, todavia, ao mesmotempo entendemos tão pouco. Há vida, mas a vida aindano vale da sombra da morte. Estamos lado a lado, porémum dia nos separaremos um do outro. A morte põe seuselo sobre tudo; é o salário do pecado. A conta está fe­chada, o caixão e a corrupção são a última palavra. A dis­puta está decidida, e decidida contra nós. Isto é a morte.

Agora o cristão olha adiante. Qual o significado daesperança cristã nesta vida? Uma vida após a morte? Umevento fora da morte? A pequena alma que, como a bor­boleta, esvoaça sobre a sepultura e ainda é preservada emalgum lugar, a fim de viver em imortalidade? É assim queos pagãos vêem a vida após a morte. Mas isto não é a es­perança cristã. "Creio na ressurreição do corpo". Corpona Bíblia é simplesmente o homem; homem, além disto,sob o signo do pecado, homem caído. Para este homem é

A Ressurreição do Corpo c a Vida Eterna - 223

dito "Tu ressuscitarás': Ressurreição significa não a conti­nuação desta vida, mas sua conclusão. Para este homemum "Sim" é dito onde a sombra da morte não pode alcan­çar. Na ressurreição, nossa vida está envolvida, nós, ho­mens como somos e estamos situados. Nós ressuscitare­mos, ninguém mais tomará nosso lugar. "Seremostransformados" (lCo 15); isto não quer dizer que umavida diferente se inicia, mas "o corruptível se revestirá deincorruptibilidade e o mortal de imortalidade". Então serámanifesto que "a morte foi tragada pela vitória". Portanto,a esperança cristã afeta nossa vida como um todo: as nos­sas vidas serão completadas. Esta que foi semeada em de­sonra e fraqueza ressuscitará em glória e poder. A espe­rança cristã não nos conduz para longe desta vida; pelocontrário, é a revelação da verdade na qual Deus vê nossavida. É o triunfo sobre a morte, mas não um vôo para oAlém. A realidade desta vida está envolvida. A escatolo­gia, corretamente entendida, é a coisa mais prática quepode ser considerada. Nela, a luz cai sobre nossas vidas.Esperamos por esta luz. "Nós te oferecemos esperança",disse Goethe. Talvez até ele mesmo sabia desta luz. Amensagem cristã, em toda medida, de modo confiante econfortante, proclama esperança nesta luz.

É verdade que não podemos nos conceder ou persu­adir de que temos esta esperança de que nossa vida seráconcluída. Ela deve ser crida, apesar da morte. O homemque não conhece o que é a morte também não conhece oque é a ressurreição. É necessário o testemunho do Espí­rito Santo, o testemunho da Palavra de Deus proclamadae ouvida na Escritura, o testemunho do Jesus Cristo res­surreto, a fim de que se creia que haverá luz e que esta luzcompletará nossa vida incompleta. O Espírito Santo, quefala a nós na Escritura, nos ensina que podemos viver estagrande esperança.

224 - Esboço de uma Dogmática

A Ceia do Senhor pode ser mais compreendida doponto de vista da Páscoa, do que geralmente a vemos.Não é primariamente uma refeição de luto ou fúnebre,mas a antecipação da festa de casamento do Cordeiro. ACeia é uma refeição alegre: o comer da carne dele, JesusCristo, e beber do seu sangue, é comida e bebida da vidaeterna no meio da nossa vida. Somos convidados à suamesa e assim jamais seremos separados dele. Portanto,neste sinal o testemunho da sua refeição está unido aotestemunho do Espírito Santo. A Ceia verdadeiramentenos diz, "você não morrerá, mas viverá", e proclama aobra do Senhor! Você! Somos convidados à Mesa do Se­nhor, que não é apenas uma imagem; é um aconteci­mento. "Todo o que crê em mim terá vida eterna". Suamorte está posta na morte. Você já está, na verdade,morto. O terror que você enfrenta, você já deixou com­pletamente para trás. Você deve viver como um convi­dado para esta mesa. Você deve ir na força desta comidaquarenta dias e quarenta noites. Nesta força isto é possí­vel. Deixe prevalecer isto, que você comeu e bebeu; deixetudo que é mortal que o circunda ser conquistado. Nãoacalente seu lamento com ternura; não faça um pequenojardim disso com salgueiros chorões suspensos! "Não tor­nemos a cruz e a dor maiores do que a nossa melancolia".Somos chamados para uma situação diferente. "Se morre­mos com Cristo, cremos que também com ele viveremos"(Rm 6.8). O homem que crê nisto já começou aqui eagora a viver a vida plena.

A esperança cristã é a semente da vida eterna. EmJesus Cristo não estou mais num ponto no qual possomorrer; nele nosso corpo já está no céu (Pergunta 49, Ca­tecismo de Heidelberg). Desde que recebemos o testemu­nho da Ceia do Senhor, já vivemos aqui e agora na anteci­pação do eschaton, quando Deus será tudo em todos.