1340224701_ARQUIVO_Opapeldocinemanaconstrucaoda_s_identidade_s_-RitaAndrade.pdf

15
O papel do cinema na construção da(s) identidade(s): A representação de Ousmane Sembène do Senegal da década de 60 RITA DE KASIA ANDRADE AMARAL * Identidade, Memória e Tempo histórico A reflexão do lugar do cinema no campo historiográfico dos estudos de identidade nos encaminha para a sua relação com a memória. A problemática que se tem levantado sobre a velocidade temporal e a rápida comunicação global nos leva a discutir a memória nesse novo espaço social que surge, ou melhor, a “perda” e a busca dessa memória. As intensas mudanças no campo social e político decorridos dessa aceleração do tempo, refletem na forma com que a mídia, os pensamentos, inclusive a história, se relaciona com a sociedade, surgindo cada vez mais uma cultura imagética e audiovisual. Segundo François Hartog(1996) essa “aceleração do tempo e da história” faz com que a historicidade mude no decorrer dos anos, onde deixa de ser o passado a iluminar o futuro, ou uma lição que deve vir do futuro, dando lugar ao que o historiador classificou como presentismo. O presente passa a ter uma grande importância na interpretação do papel da história, em que a preservação das identidades estaria fortemente relacionado com a preservação daquilo que a tornaria “real”, tanto de forma material ou imaterial. O passado não é mais visto como um exemplo, e a aceleração dos acontecimentos e suas reinterpretações faz com que surja a necessidade de recuperá-lo e preservá-lo, salvando-o do esquecimento. Dessa forma que Pierre Nora nos apresenta a necessidade da construção dos lugares de memória . O arrancar do que ainda sobrou de vivido no calor da tradição, no mutismo do costume, na repetição do ancestral, sob o impulso de um sentimento histórico profundo. A ascenção à consciência de si mesmo sob o signo do terminado, o fim de alguma coisa desde sempre começada. Fala-se tanto de memória porque ela não existe mais. A curiosidade pelos lugares onde a memória se cristaliza e se refugia está ligada a este momento particular da nossa história.(Nora,1993, p.7) Acontecimentos de cunho revolucionário pelo mundo, como as independências nos países africanos, chamam atenção para o fim da ideia da passagem segura do passado para o futuro, onde a noção de percepção histórica vai se modulando de forma mais efêmera pela midiatização, ao mesmo tempo em que por outro lado, cria uma nova forma de narrativa histórica e de intervenção social. Que a mídia possuí um caráter de manipulação dos fatos históricos e de produção de várias imagens em um curto espaço temporal é inegável, porém o seu uso, como de qualquer recurso imagético, possui um forte poder discursivo e de alcance maior na população em geral. * Mestranda em História Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ/FFP).

Transcript of 1340224701_ARQUIVO_Opapeldocinemanaconstrucaoda_s_identidade_s_-RitaAndrade.pdf

Page 1: 1340224701_ARQUIVO_Opapeldocinemanaconstrucaoda_s_identidade_s_-RitaAndrade.pdf

O papel do cinema na construção da(s) identidade(s): A representação de Ousmane Sembène do Senegal da década de 60

RITA DE KASIA ANDRADE AMARAL*

• Identidade, Memória e Tempo histórico

A reflexão do lugar do cinema no campo historiográfico dos estudos de identidade nos

encaminha para a sua relação com a memória. A problemática que se tem levantado sobre a

velocidade temporal e a rápida comunicação global nos leva a discutir a memória nesse novo

espaço social que surge, ou melhor, a “perda” e a busca dessa memória.

As intensas mudanças no campo social e político decorridos dessa aceleração do tempo,

refletem na forma com que a mídia, os pensamentos, inclusive a história, se relaciona com a

sociedade, surgindo cada vez mais uma cultura imagética e audiovisual. Segundo François

Hartog(1996) essa “aceleração do tempo e da história” faz com que a historicidade mude no

decorrer dos anos, onde deixa de ser o passado a iluminar o futuro, ou uma lição que deve vir do

futuro, dando lugar ao que o historiador classificou como presentismo.

O presente passa a ter uma grande importância na interpretação do papel da história, em que

a preservação das identidades estaria fortemente relacionado com a preservação daquilo que a

tornaria “real”, tanto de forma material ou imaterial. O passado não é mais visto como um exemplo,

e a aceleração dos acontecimentos e suas reinterpretações faz com que surja a necessidade de

recuperá-lo e preservá-lo, salvando-o do esquecimento. Dessa forma que Pierre Nora nos apresenta

a necessidade da construção dos lugares de memória .

O arrancar do que ainda sobrou de vivido no calor da tradição, no mutismo do costume, na repetição do ancestral, sob o impulso de um sentimento histórico profundo. A ascenção à consciência de si mesmo sob o signo do terminado, o fim de alguma coisa desde sempre começada. Fala-se tanto de memória porque ela não existe mais. A curiosidade pelos lugares onde a memória se cristaliza e se refugia está ligada a este momento particular da nossa história.(Nora,1993, p.7)

Acontecimentos de cunho revolucionário pelo mundo, como as independências nos países

africanos, chamam atenção para o fim da ideia da passagem segura do passado para o futuro, onde a

noção de percepção histórica vai se modulando de forma mais efêmera pela midiatização, ao

mesmo tempo em que por outro lado, cria uma nova forma de narrativa histórica e de intervenção

social. Que a mídia possuí um caráter de manipulação dos fatos históricos e de produção de várias

imagens em um curto espaço temporal é inegável, porém o seu uso, como de qualquer recurso

imagético, possui um forte poder discursivo e de alcance maior na população em geral. * Mestranda em História Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ/FFP).

Page 2: 1340224701_ARQUIVO_Opapeldocinemanaconstrucaoda_s_identidade_s_-RitaAndrade.pdf

A reconstituição do passado, ou melhor, a tentativa dele e a preservação da memória está

presente em todo o percurso historiográfico, por mais diferentes que sejam seus usos e narrativas.

Vemos que a memória esta diretamente relacionada com a identidade, na medida em que uma

sociedade decide o que deseja preservar em prol de uma história coletiva, de uma cultura em

comum com um grupo, ou seja, de algo que os una. Porém nem sempre essa memória é a

considerada oficial, fazendo com que seja repreendida, ocultada e/ou esquecida.

Compreendemos a importância da memória e sua expansão nos estudos históricos na medida

em que a vemos como parte essencial da cultura, pois essa reúne toda a ação social, seus valores e

costumes, suas linguagens, crenças morais e religiosas. Essa relação nos permite analisar a estrutura

social atual na medida em que percebemos que sua formação cada vez mais tem surgido pelas

constantes formas de encontros culturais, permitidos pela sua intensa produção e circulação através

das tecnologias. Atualmente não é possível acreditar no discurso de uma identidade “pura”, como

por exemplo a solidariedade entre todos os negros da diáspora e da África somente pelo fato de

serem negros, ou de descenderem de uma África. Ser negro, branco ou amarelo não é classificação

suficiente para fazer com que ocorra uma união identitária e de luta político-social. No decorrer dos

séculos os contatos culturais enriquecem a história humana, e no caso específico da África não se

pode negar a influência ocidental em sua cultura. Muito além de uma simples troca cultural, que

muitas vezes pressupõe uma relação passiva, o contato cultural traz tensões que acabam buscando,

de forma consciente ou não, negar essa relação, alterando sua forma e significado. Kwane Appiah

esclarece esse fato ao nos mostrar que as Universidades africanas dependem de um modelo francês

ou inglês, assim como as noções de política e cultura que norteia os romancistas africanos. Dessa

maneira não existe uma identidade pura africana que deve ser recuperada, como ele afirma:

certamente ela [lição que devemos aprender] é que todos já estamos contaminados uns pelos outros, que já não existe uma cultura africana pura, plenamente autóctone, à espera de resgate por nossos artistas(assim como não existe, é claro, cultura norte-americana sem raízes africanas).E há um sentido claro, em alguns textos pós-coloniais, de que a postulação de uma África unitária, em contraste com um Ocidente monolítico- o binarismo do Eu e do Outro- é a última das pedras de toque dos modernizadores, da qual devemos aprender a prescindir.(APPIAH, 1997, p.217)

Não é afirmar que não exista uma identidade nos países africanos, ou de uma África unitária,

como o pan-africanismo e a Negritude tentaram defender. Muito além disso é tentar refletir a sua

formação além da oposição entre o Eu e o Outro, pois ela gera um discurso vitimizante e carente da

cultura africana, o que na verdade está muito distante da realidade. Apesar da pobreza e das

dificuldades econômicas e políticas, vemos o crescimento das artes contemporâneas em vários

países,como os romances, o cinema e a música, arte que muitas vezes toma pra si o papel de discutir

Page 3: 1340224701_ARQUIVO_Opapeldocinemanaconstrucaoda_s_identidade_s_-RitaAndrade.pdf

esse humanismo africano, em defesa de uma cultura própria. A cultura possuí o poder de

estruturação social, como afirma Stuat Hall, e também de compreensão teórica de uma sociedade,

ajudando-a a se desenvolver e se expandir globalmente. É dessa maneira que muitos conhecem as

lutas sociais em países africanos, devido a seus romances e cinema, por exemplo. O aumento das

mostras de filmes étnicos tem levado o ocidente a se deparar com uma África completamente

diferente daquela narrada em filmes norte-americanos, como Tarzan- uma aventura na África, ou

então Diamante de Sangue, em que ambos mostram uma cultura estereotipada entre uma África

tomada por selvas e tribos ou então por guerras civis e miséria. Em contraposição vemos um cinema

nacional, com belas histórias seus conflitos sociais, como Black Girl (La noire de …)1 ou Yeelen2.

A cultura tem cada vez mais ganho espaço nas discussões sobre a identidade e sua

subjetividade, principalmente após os impactos das revoluções culturais do século XX, afirma Hall.

Os estudos sobre a linguagem une mais os campos do social e do psíquico, onde teóricos culturais

afirmam que a linguagem é o principal meio em que se produz e reproduz significados sociais. Esse

sistema de linguagem transmite as prioridades de uma determinada cultura, seus conjuntos

específicos de valores e compreensão do mundo físico e social que as rodeia. Porém isso ocorre

independente do meio de comunicação utilizado para transmitir essa linguagem. Dessa forma que o

cinema passa ser visto como um poderoso meio de estudo cultural, pois apesar das inúmeras

possibilidades que abre para os estudos culturais, também permite a análise social de grupos onde a

documentação histórica escrita limita as pesquisas acadêmicas.

A subjetividade estudos históricos e sociais, inspirados no etnográfico e no patrimônio

imaterial, abrem espaço para as produções cinematográficas, uma vez que surge um interesse pelos

“sujeitos normais”, pelo cotidiano, abrindo o campo de estudos para uma micro-história, como

afirma Beatriz Sarlo:

(...)descobrir nas dobras culturais de toda prática o princípio de afirmação de identidade, invisível na ótica que definia uma 'visão de passado' em que não havia interesse pela inventividade subalterna, e portanto, nesse círculo vicioso de método, não era capaz de observá-la.(SARLO, 2007, p.16).

A cultura passa a constituir tal subjetividade na constituição da identidade e do sujeito

social. De acordo com Hall as pessoas se sentem mais próximas de uma identidade na medida em

que essa a representa de forma mais adequada, ou seja, a identidade vai surgir de um diálogo entre

os conceitos e definições que são representados para nós pelos discursos de uma cultura e pelo

nosso desejo de responder aos apelos feitos por estes significados(HALL, 1997). As expressões

1 Direção de Ousmane Sembène, do ano de 1966. Filme que retrata a oposição entre o mundo moderno ocidental e a

tradição africana. 2 Direção de Souleymane Cissé, 1987, em que busca aprofundar a descrição da espiritualidade africana.

Page 4: 1340224701_ARQUIVO_Opapeldocinemanaconstrucaoda_s_identidade_s_-RitaAndrade.pdf

dessa identidade vem junto com as histórias, biologias e afinidades culturais inventadas, não

deixando de ser real. Na realidade a identidade só funciona quando o grupo a vê como algo real, por

mais inventada que ela seja. O pan-africanismo, a solidariedade negra, a Negritude podem ter uma

força importante e alcançar benefícios, porém elas não existem sem suas mistificações.

Mistificações sobre a solidariedade negra, por exemplo, carrega a ideia da união racial, ou

seja, o fato de ser negro seria o suficiente para a união da África e sua Diáspora. Na verdade a

discussão sobre a identidade negra deve ir além da raça, ainda mais em um continente onde

conflitos intra-raciais são tão fortes, como as disputas religiosas e étnicas. Pois como afirma

Appiah:

ser africano é, para seus portadores, um dentre muitos outros modelos destacados de ser, por todos os quais é preciso lutar e tornar a batalhar constantemente. E de fato, na África, é outra dessas identidades que proporciona um dos modelos mais úteis para essa reelaboração;trata-se de um modelo que se pauta em outras identidades centrais para a vida contemporânea no subcontinente, a saber, a redefinição constantemente cambiável das identidades ‘tribais’, para atender às exigências econômicas e políticas do mundo moderno(APPIAH, 1997, p.246)

A perda da certeza absoluta e a difusão de verdades, como também a descentralização do

sujeito e a diversidade dos modos de vida, abre caminho para identidades dentro de um mesmo

território, em oposição a uma ideia centralizadora, a pluralidade surge junto com a mudança da

narrativa e sua operação cognitiva e interpretativa sobre as formas de manifestação socio-cultural.

Pensar na África é pensar em uma diversidade de costumes locais, de línguas e culturais diferentes

dentro de um mesmo Estado, ser africano é uma afirmação forte, porém insuficiente quando nos

deparamos com as questões de sexos,etnicidades,classes e línguas, de idades, famílias, profissões,

religiões e nações.

• Senegal: Contextualização histórica na formação da identidade nacional

No caso específico do Senegal, território conhecido como senegâmbia no período colonial,

for formado por uma grande diversidade étnica - wolof, fulbe, mande, seereer, tukulor, joola, nalu,

baga, tenda.

No século XVIII a violência e as crises políticas se intensificaram. A etnia dos sebbe, da

qual descende o futuro presidente do Senegal Leopold Senghor, conseguiram centralizar o seu

poder monárquico devido ao apoio dos escravos. Em oposição os muçulmanos irão elevar

revoluções no interior deste território de domínio francês.

Os reinos Wolofes, de onde descende o cineasta Ousmane Sembène, também buscam

centralizar o seu poder. Esse fato é narrado no filme Ceddo, de Ousmane Sembène, onde mostra

Page 5: 1340224701_ARQUIVO_Opapeldocinemanaconstrucaoda_s_identidade_s_-RitaAndrade.pdf

exatamente a evolução de um governo ceddo para o autocrático. O filme mostra como um rei

consegue dominar o poder ao controlar a compra de seus escravos através do comércio de armas de

fogo com os europeus, e a união com o islamismo (marabutos) deteriorando toda uma religião

tradicional ancestralizada dos wolofes. Esse fato é verídico na história do Senegal sob o domínio do

reinado de Lat Sukaabe Fall (1695 – 1720), do Cayor, momento no qual os senhores da guerra

entram no poder.

Outras guerras religiosas muçulmanas e de caráter político vão ocorrer no decorrer do século

XVIII no que é hoje o Senegal. De qualquer forma o que podemos perceber é a dependência que vai

surgindo nesse período da África Negra em relação a Europa. O comércio europeu e o tráfico

negreiro fizeram com que as antigas rotas comerciais do interior se deslocassem para a costa. Além

disso intensificou os regimes sebbe e suas ações violentas, cuja reação foi o surgimento do

movimento muçulmano dos marabutos.

Dessa forma a intenção é perceber o quanto a história do Senegal é composta por complexas

redes de relações étnicas, cuja existência precedeu a chegada dos Europeus nessa região. Pelo

contrário, a sua influência apenas intensificou clivagens internas e suscitou novas tensões sociais,

na medida em que usava o discurso da inferioridade negra na intelectualidade europeia para

legitimar sua invasão territorial.

Vemos que as questões religiosas e étnicas criaram as bases sociais do Senegal

independente, que na busca pela sua nacionalidade, relaciona seus valores tradicionais à uma

Negritude contemporânea. O passado até agora abordado nos mostra algumas problemáticas

essenciais para se estudar o nacionalismo e a identidade na África, porém é a partir de 1935 que

esses movimentos ganham mais intensidade, época que ficou conhecida como a “idade do ouro”.

Foi durante a década de 30 que vemos na Europa a ascensão da extrema-direita , afetando as

suas determinadas colônias. No caso específico da França na década de 40, sua política se via sob o

domínio do nazismo e o regime de Vichy. Esse regime levou a separação dos territórios franceses

em África, devido a reação, como afirma Majhemout Diop:

a década fascista, 1935- 1945, teve maior impacto sob o nacionalismo africano que sobre a natureza do imperialismo europeu. Se as politicas coloniais da França e dos Estados ibéricos se degradaram sob a direção fascista de Salazar e Franco e sob o regime de Vichy, entretanto, a mudança mais contundente foi a reação da África a estas politicas. A década de 1935- 1945 configurou um importante ponto de inflexão para a historia da libertação da África, muito mais que um momento decisivo para o próprio imperialismo europeu. A era fascista nada mais foi senão um novo paragrafo da historia dos impérios europeus, mas ela inaugurou um novo capitulo nos anais do nacionalismo africano.(DIOP, 2010, p.68)

Nas décadas de 1935-1945 politicamente a África é marcada pelo desenvolvimento do

nacionalismo moderno e novos níveis dessa consciência histórica, como também organizações

políticas modernas. Além disso os africanos participam da luta na Europa contra esses regimes

Page 6: 1340224701_ARQUIVO_Opapeldocinemanaconstrucaoda_s_identidade_s_-RitaAndrade.pdf

fascistas, como soldados. Na África a resistência a esses regimes vão tomar formas religiosas, como

o caso dos mourides e dos discípulos de Shaykh Hamahullah no Sahel.

O esforço de guerra para a África na 2º Guerra Mundial estava além de servir soldados3, mas

também matérias-primas e alimentos. A África francesa estava dividida devido a guerra e a entrada

do nazismo na França. Em 1940 sobe ao poder, desfazendo a IIIº República, o regime político

fascista em Vichy sob a direção do general Pétain. Seu rival era o general Charles De Gaulle que

mantinha a luta por uma “França livre”.A África ocidental, sob a ordem do governador geral

Boisson, se alia ao regime de Vichy, enquanto a África equatorial se alia a Félix Éboué, negro

originário da Guiana Francesa e governador do Chade.

Sob o regime de extrema direita na sua metrópole a África francesa se encontrava em

situações econômicas precárias, o que aumentava a insatisfação popular, que já estava esgotada da

guerra. Cadernetas de racionamento eram entregues aos europeus e negros assimilados, bens de

consumo vinham das vizinhas colonias europeias, porém quando não do mercado negro. Os

europeus eram poupados do trabalho forçado, enquanto os negros tinham que trabalhar refazendo

estradas e reconstituindo propriedades. Essa situação gerava tensões sociais que muitas vezes eram

direcionadas para questões religiosas, de onde vinham líderes que mais intervencionistas, como

afirma Diop:

Em 1942, os Joola da baixa Casamansa se revoltaram contra esses excessos, conduzidos pela pastora Aline Sitoe que protestava contra o fato dos agentes do comandante exigirem dos camponeses um volume de arroz superior ao que eles realmente eram capazes de produzir. Tropas intervieram e muitos Joola foram mortos. Aline Sitoe fora exilada em Tombuctu juntamente com seus principais tenentes. Ela la “morreria”. Ali, como alhures, a produção baixara. A mão de obra era rara em razão do recrutamento e do alistamento militar mas, também, porque a população fugia dos agentes da colonização francesa e buscava refugio nas vizinhas colonias, britânicas e portuguesas.(DIOP, 2010, p.79)

Os comerciantes, funcionários públicos e alguns ricos mercadores atuavam nas colônias

francesas, juntamente com uma certa quantidade de operários, suficientemente fortes para se

manifestarem com greves, como umas das famosas do Senegal, a dos ferroviários em Thiès, 1938.

A população passa a migrar para as capitais e os representantes do governo eram tidos como

“malfeitores do colonialismo”. Dessa forma as estruturas tradicionais vão sendo questionadas, e

algumas inclusive destruídas. É no quadro das Quatro Comunas que o Senegal é identificado como

o primeiro a se ter agitação política, como por exemplo, o surgimento do movimento Jovem

Senegal na década de 20, liderado por Tiécoura Diop. No fim dos anos 30 surgem os primeiros

sindicatos após o decreto de 20 de março de 1937 que inaugurava os contratos coletivos de trabalho

e delegados que representem esses trabalhadores.

3 De 1939 até 1940 cerca de 80.000 indivíduos foram enviados a França, e 100.000 outros foram enviados entre

1943-45.

Page 7: 1340224701_ARQUIVO_Opapeldocinemanaconstrucaoda_s_identidade_s_-RitaAndrade.pdf

Esse nacionalismo se associa ao pan-africanismo na medida em que que caracteriza como

uma força de integração e de libertação. De acordo com S. K. B. Asante(2010) esse movimento

possui três fases, a colonial (1935-57), a independência como um movimento de libertação e a

iniciada na década de 70, onde foi reforçada pelas mudanças econômicas mundiais e suas

consequências na economia africana.

Somente em 1957, com a independência de Gana, que o pan-africanismo define seus

objetivos, buscando uma integração política, cultural e econômica, em nível continental e além.

Uma série de Conferências e uniões foram se forjando no plano sócio politico africano para

direcionar sua política não somente interna, quanto externa.

Porém tal política não favorecia as diferenças étnicas e seus regionalismos, o que acabou

gerando barreiras para o sucesso desse movimento. O Pan-africanismo intelectual ou Negritude

assenta no princípio de que as civilizações africanas foram adulteradas pela colonização branca,

pelo que só poderiam recompor-se pondo termo a esta e reencontrando-se consigo próprias

mediante um retorno às origens e pela exaltação dos seus tradicionais valores culturais e étnicos.

Durante a fase da luta pela independência a ideologia africana irá se basear em ideias que lhe

dariam um caráter de unidade, como a “independência”, “unidade africana” e o “socialismo”. A

existência de uma entidade de dominação comum, a potência colonizadora, facilitou a convivência

entre os diferentes grupos culturais africanos.

As primeiras eleições multipartidárias e o fim das guerras civis na África ocorrem com o

fim da Guerra Fria e a queda do Muro de Berlim, aliado aos fatores internos dos países. Para a

análise desses fenômenos surgem duas correntes de interpretação que marcaram os discursos sobre

o continente africano, a marxista nacionalista, e a da identidade cultural ou nativista.

A corrente marxista e nacionalista vai se caracterizar por uma ideia de vitimização, não

ocorrendo uma real crítica da história, mas sim atribuída as entidades determinantes de sua vida

sócio-cultural. Segundo Campos(2007), esse pensamento vai levar a África a dizer que não é

responsável pelas catástrofes que ocorrem em seu solo, percebendo seu destino como imposto pelo

condicionamento econômico. Essa concepção levou os movimentos de libertação nacional e os

movimentos sociais a atitudes acríticas, reforçando a violência, fetichização do poder estatal e o

sonho de uma sociedade de massas.

Por outro lado, a corrente da identidade cultural sugere uma tensão estrutural que opunha

uma ideia de igualdade da humanidade, e outra que fixava as particularidades, visando o princípio

da tradição e dos valores autóctones, como por exemplo, a negritude e o pan-africanismo, como

vimos anteriormente. As teorias raciais do século XVIII e XIX fizeram com que os negros

buscassem sua afirmação na defesa de sua cultura como diferente e única perante as demais.

Page 8: 1340224701_ARQUIVO_Opapeldocinemanaconstrucaoda_s_identidade_s_-RitaAndrade.pdf

A ideologia nacional vai cedendo lugar para os discursos históricos, “ao mesmo tempo em

que se proclama a unanimidade nacional, se exalta com mais ou menos vigor a resistência do herói

nacional escolhido no momento da independência para servir de exemplo às novas gerações”(

BARRY, 2000), no caso do Senegal o herói foi Lat-Joor. As tradições orais estão em alta no início

do período pós-colonial, nas rádios, onde existe uma preferencia as reinos que desempenharam

antes da colonização e na posição que ocupam no Estado- Nação, no Senegal o povo Wolof que tem

possui esse papel.

O novo nacionalismo vai construir uma identidade nacional mobilizando diversas memórias

para enraizar o poder, que já tinha perdido sua influência sobre as populações. Assim, a dissidência

armada dos Joola de Casamansa exprime o caso extremo da rejeição da unidade nacional, fundada

sobre a tirania da história colonial que legitima ainda o Estado moderno no Senegal. E a população

de Fuuta Toro desarmada ou desesperada se refugia na terra para reivindicar a exclusividade das

vantagens do pós-barragem no rio Senegal. Em todos os níveis se apela para as tradições regionais,

aldeãs ou locais com o fim de exprimir reivindicações num contexto nacional de crise.

• Cinema Africano e a busca pela Identidade

Quando lidamos com imagens não estamos lidando somente com o objeto ou o conceito que

representam, mas a maneira como representam também e fundamental. As imagens que chegam até

nós há vem “codificadas”, cabendo a análise de cinema descobrir como isso é feito. O cinema

organiza sua representação para passar um sentido específico a um público específico, e sendo

assim, possuí seus próprios códigos e modos de estabelecer seus significados sociais ou narrativos.

Além disso ele é subjetivo, pois trabalha com a interpretação de um sujeito ou grupo social sobre

determinadas questões sócio-políticas ou culturais de uma determinada sociedade, quando não

trabalha diretamente com a questão da memória.

Ao utilizar as películas como fontes históricas temos que pensar sobre o que levaram os

indivíduos a construírem de uma determinada maneira a sua narrativa. As “distorções” de

acontecimentos, ou o modo de construção de uma sequencia onde são utilizadas montagens para

fazer com que uma defesa se eleve perante a outra, não devem ser consideradas problemas, pelo

contrário, um recurso eficaz na análise de uma mentalidade social.

Os estudos de memória mostram uma tensão entre as tradições locais e as nacionalistas,

principalmente no mundo pós-guerra, tais políticas de memória estão presentes nas culturas

populares, principalmente no cinema e seu “poder” de influência.

No caso específico da África para se falar de um cinema nacional temos que lidar com as

Page 9: 1340224701_ARQUIVO_Opapeldocinemanaconstrucaoda_s_identidade_s_-RitaAndrade.pdf

questões dos recursos de produção, distribuição e acessibilidade ao públicos desses filmes. Além

disso o fim da influência europeia sobre os recursos econômicos e a censura por parte dos Estados

africanos é essencial para a expansão do cinema africano, como afirma Ngugi Wa Thiong'o:

Por isso, uma descolonização dos recursos econômicos e da tecnologia é indispensável para que estes estejam disponíveis para mais cineastas africanos, como também a descolonização do espaço político que permita a criação de um campo democrático para que os cineastas possam confrontar questões importantes, sem o medo de retaliações do governo ou de que seus filmes sejam impedidos de alcançar os seus verdadeiros públicos na África.(THIONG'O, 2007, p.27)

Os cineastas africanos buscam retratar em seus filmes as mudanças sociais que os países

vem sofrendo desde a independência e o legado pós-colonial. Tais mudanças são retratados através

de conflitos sociais, como a cidade e a aldeia, a mulher ocidental e a tradicional, a nova burguesia

africana e a população que manteve suas raízes, entre outros. Os cineastas africanos se voltam para

o passado como um dever de memória, porém olham para o presente e o criticam, afim de

acreditarem num futuro melhor.

O cinema estará relacionado ao contexto de representação. A palavra representação possui o

significado de um ato de criar ou recriar um determinado objeto, dando-lhe uma nova significação,

um outro sentido, tendo em mente que as representações sociais elas mesmas não oferecem um

conceito a priori, fazendo com que a enxerguemos como um processo. Cada vez mais na História

tem se aberto espaço para discussões de fontes historiográficas além dos documentos escritos, mais

defendidos pela escola metódica do século XIX, onde a oralidade e a imagem tem ganhado espaço,

principalmente com o surgimento da História Nova, fazendo com que o cinema possa ser discutido

como fonte para se entender melhor a mentalidade das sociedades, entramos cada vez mais na

discussão levantada pela história total. Somente por volta dos ano sessenta e setenta do nosso século

que o filme é visto como documento e como agente transformador da história. Jorge Nóvoa nos

afirma que desde a formação da história com Heródoto nenhum documento se impôs tanto a ponto

de ganhar uma formulação teórica, onde para os cientistas sociais esse passa a ser um modelador

das mentalidades, sentimentos e emoções dos indivíduos.

A psicanalista Lúcia Villela Kracke nos apresenta no seu artigo uma visão onde os :

filmes são mitos modernos e que mitos, contos de fadas e narrativas em geral são metáforas pelas quais buscamos entender e explicar nossas percepções da realidade, nossa origem, nosso futuro, nosso mundo. É através delas que procuramos elucidar nosso conhecimento acerca dos desejos, conflitos e medos que estão na origem tanto dos sonhos quanto das diversas ações humanas. (KRACKE, 2006, p.12)

Seguindo essa linha de pensamento, o mito é uma forma de procurar entender a vida, achar

soluções para questões que aparentemente não tem respostas. Baseando-se nessa abordagem a

psicanalista Kracke(2006) afirma que os filmes são hoje a maior forma usada para construir mitos,

Page 10: 1340224701_ARQUIVO_Opapeldocinemanaconstrucaoda_s_identidade_s_-RitaAndrade.pdf

oferecendo assim chance de entendermos os valores que são compartilhados por nossas sociedades,

definindo valores, medos e conflitos. O cinema então está enraizado no processo de formação

cultural de uma determinada sociedade, a partir do momento em que na sua criação narrativa estão

inseridos valores de realidade e também de mistificações.

Levando essa ideia para o Continente Africano vemos que a ligação do cinema e a

construção de uma identidade nacional esta além das fronteiras determinadas pelo imperialismo

ocidental, mas também na base de seus mitos passados pela tradição oral, servindo assim como

fonte de seu desenvolvimento. O “pai” do cinema africano, o cineasta senegalês Ousmane Sembène

declara que o seu papel se assemelha ao dos griots.

O início da produção cinematográfica africana nos países colonizados pela França sofreu

sérias censuras, a ponto de um grupo formado pelos primeiros alunos africanos do IDHEC ter que

dirigir o seu filme África sobre o Sena(1957), em Paris, sendo esse considerado o primeiro filme

verdadeiramente africano. O filme Borom Sarret(1962) de Ousmane Sembène foi um avanço para o

cinema africano, pois é a primeira vez que o cinema é mostrado por quem entende e partilha das

diversidades culturais ali presentes. “O cinema, como os mitos fundadores, representa um povo e,

numa fase mais avançada de organização social, define uma modalidade particular de figuração e

advento da nação”,nos afirma Mahomed Bamba, que dissertando sobre essa afirmação nos mostra

que as sociedades capitalistas projetam o cinema como maior contador de suas histórias, pois ele se

desenvolve e reflete o desenvolvimentos das nações. Temos ainda que levar em conta que é difícil

falarmos de nações na África, pois após a sua descolonização e as independências não surgiu

efetivamente uma consciência nacional, mas muitas vezes reivindicações ligadas a movimentos

etnicos-tribais. Porém podemos levar em conta que a África esta em um processo de construção de

uma consciência nacional, onde os filmes participam desse processo pois ajuda a nação a se projetar

no tempo e no espaço, como afirma Frodon:

O século XX foi o século do cinema, que se afirmou, ao mesmo tempo, como divertimento de massa, como novo modo de criação artística e como produtor das mitologias do seu tempo. Existe, portanto, uma solidariedade entre a história das nações e a do cinema. Mas esta solidariedade não é somente histórica, ela é ontológica. Existe uma comunidade de natureza entre a nação e o cinema: nação e cinema existem, e só podem existir pelo mecanismo da projeção (FRODON, 1997, p.12)

O movimento pan-africanista utiliza essa ferramenta para buscar a união cultural do

continente africano, porém vai além da busca pelo passado, trazendo para o cinema fatos sócio-

politicos atuais, porque simbolicamente a realidade de uma país não vale apenas para ele, mas para

todos do continente, afirma Bamba(1998). Um passo importante do cinema na África foi a criação

do FESPACO, um festival de cinema, que buscava uma interação entre todos os cineastas da África,

Page 11: 1340224701_ARQUIVO_Opapeldocinemanaconstrucaoda_s_identidade_s_-RitaAndrade.pdf

como também de mostrar para o público africano o seu cinema local. Além disso existe também

uma apoio do ocidente para as produções cinematográficas de países menos desenvolvido.

Como aconteceu em Angola, diversos outros países após conquistarem sua independência se

deparam com um governo autoritário que tem dificuldade de criar uma união. No caso de Agostinho

Neto vemos que justamente a grande frente que foi feita a ele e a MPLA foi uma associação de

escritores que buscavam mais liberdade de expressão4.

O Cinema Africano ainda está longe de fazer frente as grandes indústrias ocidentais,

principalmente pelo fato da crise e do subdesenvolvimento que ocorreu no continente no pós-

independência. Países como Egito e África do Sul são os que mais desenvolveram a indústria

cinematográfica, não ocorrendo o mesmo no que resta da África subsaariana. Mohamed

Bamba(2007) diz que cada filme africano representa uma forma de afirmação e de propagação da

diversidade cultural. A ajuda financeira para a produção cinematográfica vem de países

europeus,como a França e a União Europeia, tendo porém um caso a parte que é a África do Sul

devido a sua infra-estrutura herdada do apartheid, onde a produção, distribuição e exibição se

consolidaram durante os anos desse processo histórico. Gana e Nigéria são os maiores produtores

de filmes Africanos, afirma Bamba, que tentam levantar uma problematização sobre a formação da

identidade e do nacionalismo. O cinema busca tornar o invisível, visível, mas tem que fazer isso de

forma artística, porque afinal o cinema é uma arte, não está ligado apenas ao caráter instrutivo,tem

que haver uma união entre conteúdo e harmonia artística.

• Análise do Curta-metragem Borom Sarret no uso do cinema no Senegal

Os filme de Ousmane Sembène são vistos como marcos chave do início da construção do

cinema africano, por serem os primeiros filmes contados por negros sobre a sua própria história. Os

intelectuais da esquerda vinham em sua obras as denúncias da política da França sobre o Senegal.

Seu primeiro filme foi Borom Sarret, considerado o primeiro filme de um Africano negro

para um público pagante. Esse filme representa uma sociedade que ficou perdida entre o tradicional

e o pós-colonial. Com duração de menos de 30 minutos, narra a história de um carroceiro que vive

em Dakar, mostrando a sua pobreza e seu modo de vida na miséria. Contrário ao sentimento de

otimismo que surge no pós-independência, Sembène mostra que mesmo livre do domínio Francês

direto, continuavam dependentes de sua ajuda.

O filme inicia com a tela preta preenchida pelo som de uma reza tribal e mística, que logo

em seguida é substituída pela imagem de uma avenida movimentada com carros e pessoas

4 União de Escritores Angolanos (UEA),que buscavam uma reestruturação do campo literário.

Page 12: 1340224701_ARQUIVO_Opapeldocinemanaconstrucaoda_s_identidade_s_-RitaAndrade.pdf

caminhando pelas ruas, como uma contraposição entre o tradicional e o moderno. A escuridão

posteriormente revela um alto contraste, o corte da cena dos bairros pobres nativos, cortando a uma

cena do suplicante (Ly Abdoulaye) rezando para a bênção em primeiro plano com sua esposa

trabalhando silenciosamente em segundo plano, como o par assiduamente executando seus rituais

diferentes (e intrinsecamente reveladores) na ruptura da Aurora.

Figura 1:1º cena do filme, onde o homem aparece rezando e sua mulher trabalhando.

Figura 2: 2º cena do filme, contrapondo a

visão da miséria e do tradicional, cena anterior, com a de uma cidade e suas modernidades

Nesse curta-metragem Ousmane Sembène mostra a vida de um Borom Sarret(um derivado

do termo francês bonhomme charret), uma charrete de aluguel que circunda os bairros nativos de

Dakar, muitas vezes levando passageiros igualmente pobres que pagam com promessas ou apertos

de mãos.

Figura 3: Bairros dos nativos que circundam Dakar, capital do Senegal. Nessa bairro mora o Borom Sarret, e os demais nativos na miséria retrata por Ousmane Sembène

Page 13: 1340224701_ARQUIVO_Opapeldocinemanaconstrucaoda_s_identidade_s_-RitaAndrade.pdf

O filme se passa como uma narração de história, relembrando os griots africanos, possuindo

poucos diálogos diretos. A imagem em preto e branco ressalta a realidade da pobreza. As

vestimentas dos nativos, apesar de não transpassarem as vivas cores típicas, mostram a forma

tradicional de vestimentas, em contraposição com os personagens de Dakar, com características

mais ocidentais. O vestuário faz parte de um arsenal dos meios de expressão fílmicos, e como tal

devemos considerá-lo em relação ao estilo da direção. Seu papel é destacar os diferentes cenários

para colocar em evidência gestos e atitudes dos personagens. No gênero realista, adotado por

Sembène, se percebe a preocupação com a exatidão.

O dia começa a render quando clientes pagantes reais começam a contratar seus serviços -

uma entrega sobrecarregado de blocos de concreto de construção e um casal correndo para o

hospital para o nascimento de seu filho - começar a substituir os viajantes que não podiam pagar,

pegando uma carona para a praça principal. Como ganhou dinheiro na mão, ele decide parar em

uma interseção para desfrutar da manhã e almoçar. Nessa cena, retrata na imagem a seguir, em que

leva uma mulher para a maternidade Sembène faz uma crítica sútil as mulheres “modernas”, quando

o homem da charrete, pensando, diz :

-“E essa mulher, que tem sempre a sua cabeça sobre o meu ombro? Por que não apoia a sua cabeça em outro

lugar? Sobro o ombro de seu marido. Mulheres modernas, nunca vamos entender elas”

Figura 4: Cena em que Sembène retrata a diferenciação entre a mulher tradicional, que aparece no início do filme fazendo os trabalhos domésticos e abençoando o dia de seu marido, e a mulher moderna caracterizada como ocidentalizada, corruptível. Outra fala importante do filme se relaciona com as busca pela tradição e pelas raízes

culturais e ancestrais como ponto fundamental da construção da identidade desse novo homem

negro que surge no Senegal independente. Apesar do país renegar ele a escravidão, ele não se vê

dessa forma devido aos seus ancestrais.

Page 14: 1340224701_ARQUIVO_Opapeldocinemanaconstrucaoda_s_identidade_s_-RitaAndrade.pdf

-“Quem canta sobre os meus ancestrais? Os bravos guerreiros do passado. O mesmo sangue corre

nas minhas veias. Aliás, não é porque a vida nova me reduziu a esse trabalho de escravo, que não

sou mais um nobre, como meus ancestrais”.

Outro conflito evidente em seu curta-metragem é a oposição entre a nova classe que surge,

com suas casas bonitas, com carros, ruas asfaltadas, em oposição aos bairros com ruas cobertas de

areia, casas pobres e pessoas famintas. O cenário tem muita importância no cinema, pois o realismo

da cena pede um realismo do quadro e da ambientação, afirma Marcel Martin(2007). O cenário vai

compreender tanto as paisagens naturais quanto as montadas pelos homens. Para Sembène o cenário

não tem outra implicação além de sua própria materialidade, não significa senão aquilo que é.

Por fim, a cena que gostaria de terminar essa análise corresponde a analogia entre a Europa e

a exploração. Fica exposto uma visão critica sobre uma das ações, na qual em um de seus serviços o

carroceiro é enganado por um homem vestido de terno e gravata que pede para levá-lo até um bairro

com características europeias, chamado Plateau. Lá ele é impedido de entrar com seu carreto, logo o

homem desce e continua seu trajeto, não pagando o carroceiro por seu serviço. Ao tentar reivindicar

seus direitos é reprimido pelos policiais do local assim não conseguindo o dinheiro para se

alimentar. Fica claro no filme a analogia do homem de terno com o europeu francês e o Bairro

como a Europa e que de lá o que saia era apenas a exploração do trabalhado Negro. A fala do

personagem no final do curta-metragem que consegue englobar todo o sentimento presente durante

toda a narrativa: “Isso é uma prisão. Essa é a vida Moderna. Essa é a vida nesse país”.

Page 15: 1340224701_ARQUIVO_Opapeldocinemanaconstrucaoda_s_identidade_s_-RitaAndrade.pdf

Referência Bibliográfica

APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro, Contraponto, 1997. BAMBA, Mohamed. Cinema no Mundo: África. São Paulo: Escrituras Editora, 2007. BARRY, Boubacar. Senegâmbia:O Desafio da História Regional. Sephis– Centro de Estudos Afro Asiáticos,Universidade Cândido Mendes, Brasil. Amsterdam/Brasil, 2000. CAMPOS, Adriana Pereira; SILVA, Gilvan Ventura. Da África ao Brasil:Itinerários históricos da cultura Negra. Vitória, Flor&Cultura, 2007. DIOP, Majhemout. A África Tropical e a África Equatorial sob domínio francês, espanhol e português. In:História geral da África, VIII: África desde 1935 / editado por Ali A. Mazrui e Christophe Wondji. – Brasília : UNESCO, 2010. FRODON, Jean-Michel. (1998) apud BAMBA,Mahomed. Os cinemas africanos: entre construção identitária nacional e sonho panafricanista. Disponível em: <http://malembemalembe.ceart.udesc.br/textos/bamba.doc> HALL, Stuart. A Centralidade da Cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo. Revista Educação e Realidade, Porto Alegre, UFRGS, vol.22, nº:22, p.15-45. HARTOG, François. Tempo e História: “Como escrever a História da França hoje?”. História Social, Campinas -SP, nº:3, p.127-154, 1996. NORA, Pierre. Entre memórias e histórias: A problemática dos lugares. Revista Projeto Histórica, São Paulo, nº:10, p.7 -29, dez/1993. SARLO, Beatriz. Tempo passado: Cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo, Companhia das Letras,2007. THIONG'O, Ngugi Wa. A descolonização da mente é um pré-requisito para a prática criativa do cinema africano? In: Cinema no Mundo: Indústria, Política e Mercado, África, vol. 1. São Paulo, Escrituras Editora, 2007. KRACKE, Lúcia Villela. Perspectivas ocidentais sobre um filme do Oriente: Nenhum a menos. Comunicação & educação ,Ano XI ,Número 1 , jan/abr 2006.