136. A serenidade em Heidegger: Um diálogo entre a técnica e arte.
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEAR
CENTRO DE HUMANIDADES
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA
MESTRADO ACADMICO EM FILOSOFIA
JADERSON GONALVES NOBRE
SERENIDADE EM HEIDEGGER: UM DILOGO ENTRE A
TCNICA E A ARTE
Fortaleza CE
2015
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JADERSON GONALVES NOBRE
SERENIDADE EM HEIDEGGER: UM DILOGO ENTRE A
TCNICA E A ARTE
Dissertao apresentada ao Curso de
Mestrado Acadmico em Filosofia do
Programa de Ps-Graduao em Filosofia da
Universidade Estadual do Cear, como
requisito parcial obteno do ttulo de
Mestre em Filosofia.
rea de Concentrao: tica e Esttica
Orientador: Prof. Dr. Eduardo Triandopolis.
Fortaleza CE
2015
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Dados Internacionais de Catalogao na Publicao
Universidade Estadual do Cear
Sistemas de Biblioteca
M488d Nobre, Jaderson Gonalves.
Serenidade em Heidegger: Um dilogo entre a tcnica e a arte [recurso eletrnico] / Jaderson Gonalves Nobre. 2015.
1 CD-ROM: 4 pol.
CD-ROM contendo o arquivo no formato PDF do trabalho acadmico com 98 folhas, acondicionado em caixa de DVD Slim (19 x 14 cm x 7 mm).
Dissertao (mestrado acadmico) Universidade Estadual do Cear, Centro de Humanidades, Mestrado Acadmico em Filosofia, Fortaleza, 2015.
rea de Concentrao: tica e Esttica.
Orientao: Prof. Dr. Eduardo Triandopolis.
1. Serenidade. 2. Mistrio. 3. Tcnica. 4. Arte. 5. Verdade. I. Ttulo.
CDD: 370.9144
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A minha irm Jessica, pela
sinceridade com que leva a vida.
Quando algum nos admira como
se tivssemos um guardio que a
cada passo nos relembra, nos res-
guarda em nosso caminho.
A minha mulher Irlana, que com seu
sorriso alegre me faz acreditar que
sim possvel.
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AGRADECIMENTO
Agradeo antes de tudo a minha famlia, que esteve, est e com certeza
estar, presente em todos os momentos, alegres e tristes de minha vida. Que
ao me dizer que eu poderia ir muito longe, me fez perceber que o meu caminho
no sentido de ir cada vez mais para perto. Amo vocs.
A minha mulher, Irlana, que, alm da presena do dia-a-dia, acreditou e amou,
junto comigo, no que aqui venho a dizer. Alm de me proporcionar uma nova
famlia.
Aos meus amigos que por caminharem juntos, sempre me alimentaram de um
bom nimo para seguir lutando pelo que acredito.
Ao meu orientador, Prof. Eduardo Triandopolis, que por me deixar caminhar
com minhas pernas, com meu esprito, possibilitou que brotasse aquilo que
realmente estava em meu mago.
banca examinadora, Professora Cristiane Marinho, Professora Tereza
Callado, que ao lerem e comentarem o meu trabalho compuseram comigo a
essncia do di-logo.
Agradeo tambm, em especial, a todos os que um dia vierem a ler esta
pesquisa. Que ela lhes animem, tanto quanto me animou ao escrev-la.
natureza, com seus bichinhos e plantas, em uma harmonia to profunda e
contagiante que me revelou a essncia mais originria do que a vida. O estar
em comunho com o que nos cerca e nos compe.
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Todas as obras dos poetas mimticos, se me afiguram ser a destruio da
inteligncia dos ouvintes, de quantos no tiverem o antdoto e o conhecimento
de sua verdadeira natureza.
(Plato, Repblica).
A arte como o nico antdoto superior contra toda e qualquer vontade de
negao da vida
(Nietzsche, Vontade de poder.)
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RESUMO
Em que sentido a Serenidade, como um di-logo entre o pensamento que
calcula e o pensamento que medita um di-logo entre a tcnica e a poesia em
conjunto com a abertura ao mistrio, fonte originrio de todos os vigentes, se
apresentam como uma possibilidade, um caminho de enfrentamento ao perigo
adveniente da crise resultante da dominao global da tcnica nos mbitos
mais essenciais da vida? Esse enfrentamento parece se dar no mbito da
linguagem e do pensar, enquanto a morada do ser. O homem como o guardio
dessa morada do ser aquele que se abrindo ao mistrio do a ser destinado
pode, arriscando-se ao saltar no abismo do que no vige, permitir, ou melhor,
ser permitido, nessa outra possibilidade. Aguardando, correspondendo ao seu
destino, o homem pode ser a medrana do que salva. Para tal pesquisa
colocam-se aqui em di-logo trs ensaios heideggerianos: A questo da
tcnica, A origem da obra de arte e Serenidade. Buscamos uma relao destes
ensaios com outros ensaios centrais de Heidegger, assim como, sua relao
com os filsofos que lhe foram fundamentais para que ele chegasse onde
chegou. Portanto, buscamos pensar as questes presentes a partir de suas
origens, enquanto questes ticas, estticas e metafsicas. Alm de re-colocar
questes fundamentais filosofia como a questo do ser, da verdade e da
linguagem. Trata-se aqui de um debate contemporneo com a tradio que
busca res-guardar algo originrio que caiu no esquecimento.
PALAVRAS-CHAVE: Serenidade. Mistrio. Tcnica. Arte. Verdade.
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ABSTRACT
Think in what sense the Serenity, as a con-versation between thinking that
calculates and thought that meditates a con-versation between technique and
poetry together with openness to the mystery, source originating in all existing,
present as a possibility, one danger facing path arising the resulting crisis of
global technical domination over all the most essential areas of human. A
confrontation, so that occurs in the context of language and thinking, while the
same, namely, the abode of being. Man as the guardian of this home of being is
one that opening up the mystery of themselves for can, risking to jump into the
abyss than not prevails, allow, or rather, be allowed, that another possibility.
Waiting, corresponding to its destination, the man may be the possibility than
saved. For such research put into day-logo Heideggerians three tests: The
question of technique, The origin of the artwork and Serenity. Seeking a list of
these tests with the central test Heidegger, as well as their relationship with the
philosophers that this was essential for this came near unto arrived. So it's a
research that seeks to think the issues present from its origins. Debating issues
Ethics, Aesthetics and Metaphysics. In addition to re-raising fundamental
questions of philosophy and of being, of truth and language. A contemporary
debate in confrontation with the tradition and re-save something original search
that fell by the wayside.
KEYWORDS: SERENITY, MYSTERY, TECHNICAL, ART, TRUTH.
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SUMRIO
1 INTRODUO: O silencioso chamado: O caminho que urge........................ 11
2 O PERIGO QUE AMEAA: UM OLHAR ESSNCIA DA TCNICA................ 14
2.1 DA PERGUNTA PELA TCNICA PERGUNTA PELA ESSNCIA: SOBRE A
QUESTO DO SER...............................................................................................
14
2.2 A LIVRE RELAO COM A TCNICA: DA CORRETUDE VERDADE............. 21
2.3 TCNICA GREGA E MODERNA: DA POESIS EXPLORAO....................... 26
2.4 DIS-PONIBILIDADE E COM-POSIO: ACERCA DO DESVELAMENTO
EXPLORADOR DA TCNICA MODERNA............................................................
31
3 POETAS EM TEMPOS INDIGENTES: ACERCA DA ESSNCIA DA
ARTE......................................................................................................................
38
3.1 ONDE MORA O PERIGO CRESCE O QUE SALVA: DA PERGUNTA PELA
TCNICA PERGUNTA PELA ARTE..................................................................
38
3.2 O ORIGINRIO DA OBRA DE ARTE: O PR-EM-OBRA DA VERDADE............ 44
3.3 PENSAMENTO POTICO: UM DIZER SILENCIOSO........................................... 54
3.4 POETAS EM TEMPOS INDIGENTES: UM SALTO NA VEREDA......................... 63
4 O CAMINHAR SERENO: UM AGUARDAR NA PROXIMIDADE DO MISTRIO. 71
4.1 DA DESTRUIO SUPERAO DA METAFSICA: ACERCA DA
IDENTIDADE E DIFERENA................................................................................
71
4.2 SERENIDADE: O DIZER SIM E NO TCNICA................................................ 76
4.3 DA ABERTURA OU MISTRIO: O DEMORAR-SE NO ENTRE........................... 80
4.4 DA ABERTURA AO AGUARDAR: O CAMINHAR SERENO NA VEREDA........... 85
5 CONSIDERAES FINAIS A-CERCA DO ENTENDIMENTO HUMANO: O
SALTO NA VEREDA.............................................................................................
91
REFERNCIAS...................................................................................................... 94
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1 INTRODUO
O silencioso chamado: O caminho que urge
A presente pesquisa tem como proposta pensar a problemtica apontada
por Heidegger no mbito da dominao da tcnica, no presente momento da
humanidade. Adentrando esta problemtica buscaremos ir ao fundo das
questes para demonstrarmos quo dominado encontra-se o homem, e assim,
pensar em que sentido possvel reconhecer essa crise e qual o meio que
devemos proceder para efetivar esse reconhecimento. Ao fazermos uma
imerso nos textos de Heidegger buscaremos, a partir do que foi por ele
pensado, enfrentar essas questes. Destacaram-se para esta pesquisa trs
conferncias em especial: A questo da tcnica (1953); A origem da obra de
arte (1936) e Serenidade (1955).
Neste primeiro ensaio Heidegger pensa a crise de seu tempo como uma
crise que tem por base o modo como se encara a tcnica, o saber, a linguagem
e o ser. Esse modo de pensar e dizer vem se desenvolvendo, a partir do seu
olhar nos primrdios da Filosofia at o perodo clssico com Plato e
Aristteles.
Esse saber encontra-se naquilo que ele chama de seu estgio de
acabamento onde a tcnica passa a reger e a dominar, quase que
completamente, todos os mbitos do humano, ameaando-o em sua essncia.
Assim, ao sermos remetidos a uma leitura mais aprofundada deste ensaio nos
confrontamos com os escritos de outros filsofos como Plato, Aristteles e
tambm, Toms de Aquino, Descartes, Kant, Hegel e Nietzsche. Contudo, em
cada um destes pensadores, teremos um olhar voltado s questes
heideggerianas que aqui buscamos pensar.
Pensada a problemtica e identificado o caminho que se mostrou como
alternativa dominao da tcnica sobre o homem, passaremos ao segundo
momento de nossa pesquisa. Um debate acerca de um ensaio, anterior na
ordem do tempo ao ensaio da tcnica, mas na nossa pesquisa
metodologicamente discutido em um momento posterior.
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A origem da obra de arte o resultado de trs conferncias que se puseram
a tratar da questo da arte e de sua essncia. Na busca pela essncia da arte
enfrentaremos, com Heidegger, alm da sempre presente questo do ser e da
verdade, questes estticas e outras acerca do estatuto do que venha a ser a
Esttica como um campo do saber filosfico. Nessa busca de um retorno ao
que seja o originrio na arte, teremos em vista o que h na essncia da arte
que possa vir a se apresentar como aquela possibilidade de confronto crise
identificada no primeiro ensaio, portanto, algumas questes concernentes a
esse ensaio que, diante o nosso olhar, no esto propriamente ligadas ao que
aqui se busca, no sero tratadas com a profundidade com a qual trataremos
as que propriamente se colocam em nosso caminho. Outros ensaios
heideggerianos acerca da arte, do potico, da linguagem, assim como do
pensamento de Nietzsche sobre a arte, faro parte deste segundo momento de
nossa pesquisa, contudo, novamente como no primeiro ensaio, a estes nos
reportaremos, na medida em que isso se mostrar apropriado ao curso do nosso
caminhar.
Tendo sido feita a leitura destes dois ensaios iniciais, onde o primeiro
apresenta a problemtica e o segundo nos mostra uma outra possibilidade de
confronto, adentraremos o ensaio que nos permitir pensar que tipo de
confronto ocorre entre a tcnica e a arte pensada por Heidegger.
Com o ensaio Serenidade, ensaio norteador deste trilhar como um todo,
pensaremos em questes como inverso, retorno, di-logo, sntese, identidade
e diferena, porm, para que estas questes no nos sejam apresentadas de
fora, o que nos transporia a um mbito completamente diferente do que aqui se
intenta adentrar, percorreremos lentamente, cuidadosamente e
insistentemente, passo a passo, ou seja, no interior das questes, at que
estas se apresentem a ns no que elas so.
Para tanto, como caracterstico na leitura dos escritos heideggerianos,
duas questes que lhes so centrais e que o acompanham por todo o seu
pensar, devem ser devidamente tratadas, para que, assim, esse caminhar
parta, desde os primeiros passos, de dentro de sua filosofia. So estas, as
questes da verdade e do ser. Estas questes sero tratadas a partir de uma
trilogia pensada pelo prprio autor como inter-ligadas, onde uma no pode,
devidamente, ser pensada sem a outra. Essa trilogia composta assim pelas
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conferncias: O que metafsica (1929); A essncia da verdade (1930) e A
questo do fundamento (1929).
Assim percorrido o caminho desta pesquisa, buscaremos, com o devido
cuidado e responsabilidade para com o leitor, apresentar o resultado de um
profundo esforo de pesquisa sobre o essencial ao homem, sua situao
presente e sobre uma possibilidade de enfrentamento de alguns dos problemas
que se apresentam como os mais ameaadores e perigosos para sua
existncia.
A serenidade como uma revoluo radical nossa meta neste trabalho,
pois busca as razes de onde se radica uma vasta gama de problemticas.
Uma disposio que s se mostrar livre de diversos preconceitos que a ela
possam ser atribudos aps essa leitura interior. Aqui, como interior tem-se a
necessidade de um ultrapassar da razo no sentido de uma escuta ao corao
e ao caminho proposto. S por esse olhar interior, a serenidade se mostrar
no como uma mera passividade que se ausenta daquilo que no presente
momento histrico urge, mas, se mostrar como aquela ao mais radical de
confronto crise a qual vem passando toda a humanidade.
, portanto, com o maior vigor da seriedade e responsabilidade que
devemos ter sobre o nosso presente momento e lugar que se faz aqui esse
convite leitura das palavras que se seguem. Palavras que pretendem ser uma
conversa entre o que, a partir deste caminhar junto, poderemos chamar de
amigos.
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2 O PERIGO QUE AMEAA: UM OLHAR ESSNCIA DA TCNICA
Neste captulo sero tratadas as questes acerca da tcnica e de sua
essncia, com isso, ser possvel refletir o sentido da crise apontada por
Heidegger sociedade atual. Diante do sentido desta crise, ser buscada,
junto ao filsofo, uma indicao de um caminho de fuga, de confronto, de
superao. Para tal investigao, se dar de incio uma breve introduo ao
pensar heideggeriano concernente ao ser e verdade, pontos centrais em toda
sua obra filosfica. Em seguida abordaremos os questionamentos presentes no
ensaio A questo da tcnica (1953), relacionados com o caminho que aqui
buscamos traar.
2.1 Da pergunta pela tcnica pergunta pela essncia: A questo do ser
A pergunta pela tcnica ser desenvolvida no sentido de indicar uma
situao crtica da humanidade atual e do modo como esse homem se
relaciona com o ambiente que o cerca. Uma situao que, segundo o filsofo
Martin Heidegger (1889-1976), tem na concepo tcnica; lgico-cientfica e
metafsico-filosfica, o centro da problemtica, contudo, no se trata aqui de
negar ou afirmar cegamente a tcnica, mas de desenvolver um questionamento
que abra nossa presena para uma livre relao com esta, pois, s em uma
relao livre pode-se saber o que verdadeiramente a tcnica, pode-se
A infncia da palavra j vem com o primitivismo
das origens.
Nossas palavras se juntavam uma na outra por
amor e no por sintaxe.
Manoel de Barros, Menino do mato.
... pois evidente que h muito sabeis o que
propriamente quereis designar quando empregais a expresso ente. Outrora, tambm ns
julgvamos saber, agora, porm, camos em aporia.
Plato, O sofista.
Ningum de ns, na verdade, tinha fora de fonte.
Ningum era incio de nada.
Manoel de Barros, Poemas rupestres.
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experienciar sua essncia. Para esta caminhada, Heidegger iniciaria com a
pergunta: Qual a essncia da tcnica?
No podemos considerar Heidegger um filsofo sistemtico, pelo contrrio,
seus questionamentos se entrelaam em todo o conjunto de sua obra. Pode-se
ler as questes do ser e da verdade, estas que lhes so fundamentais, em
seus diversos escritos e conferncias, e assim que se d com a tcnica.
Diversos so os escritos onde podemos ler algo relacionado com a questo,
porm, no ensaio A questo da tcnica, que se encontra em uma coletnea
de textos intitulada pelo prprio autor de Ensaios e conferncias, que podemos
encontrar este tema com um maior vigor de desenvolvimento. Da, tomarmos
esse ensaio como base central para esta investigao, mas sempre buscando
relacion-lo com outros textos e autores.
Qual a essncia da tcnica? Heidegger nos indica duas respostas dadas
pela tradio, respostas estas que se concatenam em uma. Diz: i) A tcnica
um meio para um fim; ii) A tcnica uma atividade do homem. Estas
determinaes correntes da tcnica, Heidegger chama de determinao
instrumental e antropolgica da tcnica 1, mas, para que atividade do homem
a tcnica um instrumento e meio? Como se desenvolveu o interesse por seu
domnio? Surgiu para suprir nossas necessidades bsicas, para que o homem
pudesse dominar e se assegurar das incertezas advindas das diversidades do
ambiente que o circunda, bastando, para isso, que o homem domine a tcnica
com todo seu empenho. nesse sentido que diz Heidegger:
A concepo instrumental da tcnica guia todo esforo para colocar o
homem num relacionamento direto com a tcnica. Tudo depende de se manipular a tcnica, enquanto meio e instrumento, da maneira devida. Pretende-se, como se costuma dizer, manusear com esprito
a tcnica. Pretende-se dominar a tcnica. Este querer dominar torna-se tanto mais urgente quanto mais a tcnica ameaa escapar ao
controle do homem. 2
O instrumento que lhe levaria a segurana pelo domnio da natureza,
ameaa-lhe fugir ao controle. essa ameaa que desperta no filsofo a
necessidade de uma real investigao de sua essncia, portanto,
recoloquemos a questo com um maior cuidado, evitando apresentar
1 HEIDEGGER, Martin. A questo da tcnica [1959]. In: Ensaios e conferncias. Trad. br. Emmanuel Carneiro Leo.
Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2002. P.12. 2 Idem.
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apressadamente as respostas dadas pela tradio sobre sua essncia. Vamos
demorar com maior cuidado na pergunta em si, escutando o que a pergunta
mesma nos encaminha. Qual a essncia... da tcnica? Ao perguntar assim soa
outro questionamento: o que isto... a tcnica? Esta forma de questionamento,
que se coloca deste modo - o que isto? - a forma de questionar da prpria
Filosofia. Este modo de questionamento j se encontra presente em Plato e
Aristteles. o modo grego de questionar o vigente. Assim, diz Heidegger:
Com a questo agora posta avanamos para a proximidade do
grego. aquela forma de questionar desenvolvida por Scrates, Plato e Aristteles. Estes perguntavam, por exemplo: Que isto o
belo? Que isto o conhecimento? Que isto a natureza? Que isto o movimento?
3
E do mesmo modo podemos fazer a pergunta: O que isto o ente?
Heidegger indica que neste questionamento encontra-se a questo diretriz de
toda histria da Filosofia/Metafsica ocidental, esta que se assemelha com a
histria do esquecimento do ser. Comeamos com a pergunta pela essncia da
tcnica e agora nos encontramos diante da pergunta pelo ente e de sua
diferena diante da pergunta pelo ser. Comeamos em um ponto para agora
chegarmos a sua origem. Aqui, torna-se necessrio um esclarecimento sobre o
que seja o comeo e sua diferena fundamental com o que seja a origem
(Ursprung), ou melhor, com o que seja o originrio, o principial. O comeo no
ainda o princpio, a origem, ou dizendo ainda de forma mais condizente com
o pensar heideggeriano, o comeo no ainda o originrio. Em seu escrito
Hinos de Hlderlin [1935/1935], Heidegger distingue bem essa diferena entre
comeo e princpio. Diz:
Princpio no o mesmo que comeo. (...) O comeo aquilo com que algo se inicia, o princpio aquilo de onde isso vem. (...) O comeo cedo deixado para trs, desaparecendo na continuao
dos acontecimentos. O princpio, a origem, pelo contrrio, evidencia-se primeiramente entre os acontecimentos e s no fim destes est
plenamente presente. (...) Ns humanos nunca podemos principiar com o princpio, disso s um deus capaz pelo contrrio temos
de comear, isto , partir de um incio que s conduz origem ou a indica.
4
Aqui, temos algumas palavras essenciais para o pensar inovador de
Heidegger, Ur-sprung/Ursprungliche e An-fang/Anfngliche. Ur-
3 HEIDEGGER, Martin. O que isto a Filosofia? In: Conferncia e escritos filosficos. Trad. br. Ernildo Stein. So
Paulo: Editora Nova Cultural, 1996. P.30. 4 HEIDEGGER, Martin. Hinos de Hlderlin [1934/35]. Trad. pt. Lumir Nahodil. Lisboa: Instituto Piaget, 1979. pp. 11-12.
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sprung/Ursprungliche pode ser traduzido, na forma de substantivo e na forma
de adjetivo substantivado, por origem e originrio. O mesmo se d com An-
fang/Anfngliche que nos surge como princpio e como principial. Nestas
tradues5 somos remetidos a um ponto de partida, a um solo, a um comeo.
de encontro a esse sentido de ponto de partida que o pensar de Heidegger se
d. No seu ensaio A origem da obra de arte, os termos, Ursprung e Anfang, se
apresentam com todo seu vigor como palavras essenciais no sentido de
originrio e principial: A palavra origem (Ursprung) no sentido de originrio
(Ursprungliche) significa fazer eclodir algo, trazer algo ao ser num salto
fundador, a partir da provenincia da essncia6. Em outro momento diz: O
autntico princpio (Anfang) nunca tem o carter de comeo do primitivo,
sempre como um salto-prvio7.
Para adentrarmos um pouco mais na questo ser feita uma breve
introduo questo do ser e sua relao essencial com o ente. Aqui temos
como destino de nossa investigao uma questo diferente: a da pergunta pela
crise da sociedade atual, denominada por Heidegger de sociedade da era
atmica, e de sua tentativa de indicao de um caminho de confronto. Assim,
esclareceremos em que sentido entendemos nas palavras, originrio e
principial, uma referncia ao sentido do ser, em contraposio ao sentido de
origem e comeo, e sua proximidade ao ente.
O ente tudo que est presente: o carro, a cadeira, a rvore, so os
animais, os homens, tambm deus, a tcnica e a arte, ou seja, qualquer
coisa. So as meras coisas, as coisas de uso e tambm as coisas supremas,
que enquanto coisas esto sendo. Ente (Seiende), , o particpio neutro
grego, o que para nossa lngua portuguesa podemos dizer como o gerndio, do
, o infinitivo presente do verbo ser. Portanto, poderamos traduzir o
por sendo. Assim, ficaria o ser em contraposio ao sendo. A pergunta inicial
da filosofia se deu, como dissemos anteriormente, no modo: O que isto o
ente? O que no momento de esplendor, no momento originrio, perguntava
pelo ser, pelo , tornou-se a pergunta pelo ente, pelo . Assim, que
5 Nas notas de traduo do ensaio A origem da obra de arte, Idalina Azevedo desenvolve, com fortes argumentos, o
sentido da traduo. 6 HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte [1935/36]. Trad. br. Idalina Azevedo e Manuel Antnio de Castro. So
Paulo:Edies 70, 2010. p. 199. 7 Idem, p.195.
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Aristteles, o grande sistematizador, desenvolve sua argumentao acerca da
cincia primeira. Pois, se o ente em cada caso especfico o objeto de uma
determinada cincia: a natureza da Fsica, o homem da Psiquiatria, o
acontecimento da Historiografia, a linguagem da Filologia. O ente, aquilo que
est sendo em cada coisa em geral, o objeto da filosofia, ou como chama
Aristteles, da (filosofia primeira), da
(cincia primeira). Seu objeto o ente e nada mais.
Porm, o princpio, a provenincia de cada ente deste em particular ou
mesmo do ente enquanto tal, no possvel de ser questionada ou justificada
em suas prprias cincias. Diz Heidegger em um ensaio com o ttulo Cincia e
pensamento do sentido [1953], escrito na forma de uma preparao ao ensaio
A questo da tcnica apresentado alguns meses depois:
A natureza, o homem, o acontecer histrico, a linguagem, para as
respectivas cincias, o incontornvel j vigente nas suas objetividades. Dele cada uma delas depende, mas a representao
nenhuma delas poder abra-lo em sua plenitude essencial. (...) O incontornvel assim caracterizado rege e reina na essncia de toda
cincia8.
Sendo a Filosofia, , a cincia do ente enquanto ente, nela
esse incontornvel se apresenta ainda mais incontornvel. Seria, em certo
sentido, esse incontornvel, essa provenincia originria do ente, que
poderamos chamar de ser. No sendo, porm, nada do que est a, mas fonte
principial de tudo que advm. Esse ser, no sendo coisa alguma, no sendo...,
no pode ser objeto de investigao da Filosofia. Da, Heidegger nos dizer que
a morada do ser na linguagem do pensador e do poeta9, ficando ao filsofo o
ente e nada mais. Pois, se o ser no nenhum destes sendo, no ente
algum, se no-ente, se assim o pensar nos permite expressarmos, seria
ento cometer uma infrao regra primeira e fundamental do pensar lgico,
sobre o qual impossvel errar, a saber, o princpio da contradio. Este
princpio, que segundo Aristteles o que rege todo o pensar filosfico, no
permite falar do no-ente sem torn-lo ente, j que o falar filosfico aquele
8 HEIDEGGER, Martin. Cincia e pensamento do sentido [1953]. In: Ensaios e conferncias.
Trad. br. Emmanuel Carneiro Leo. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2002. pp. 54-55. 9 HEIDEGGER, Martin. Carta sobre o humanismo. In: Marcas do caminho. Trad. br. Ernildo
Stein e Enio Paulo Giachini. Petrpolis: Editora Vozes, 2008. p. 326.
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que diz o que isto o ente. Assim, Aristteles se expressa sobre o princpio
da contradio e sua relao com a Filosofia:
Quem possui o conhecimento dos seres enquanto seres devem poder dizer quais so os princpios mais seguros de todos os seres. Este
o filsofo. E o princpio mais seguro de todos aquele sobre o qual impossvel errar. (...) impossvel que a mesma coisa, ao mesmo tempo, pertena e no pertena a uma mesma coisa, segundo o
mesmo aspecto. (...) Essa noo ltima, por sua natureza, constitui o princpio de todos os outros axiomas
10.
esse incontornvel, aportico, essa vereda, que Parmnides chamou de o
terceiro caminho, ou o no-caminho, , (caminho no qual no se v o
caminho de retorno por onde se veio), do qual nos probe seguir em seu poema
Sobre a natureza. Proibindo, por meio das palavras da Deusa ,
Alethea, o jovem justo de seguir, ficando ao errante, poeta e pensador, o risco
de dizer o sentido do ser, risco no qual Heidegger se pe a enveredar. Nota-se
isso, j em sua primeira grande obra, Ser e tempo [1927], onde na primeira
pgina, ao citar uma passagem do Sofista de Plato, diz:
... Pois evidente que de h muito sabeis o que propriamente
quereis dizer quando empregais a expresso ente. Outrora, tambm ns julgvamos saber, agora porm, camos em aporia. Ser que
hoje temos uma resposta para a pergunta sobre o que queremos dizer com a palavra ente? de forma alguma. Assim cabe colocar
novamente a questo sobre o sentido do ser. Ser que hoje estamos em aporia por no compreendermos a expresso ser? De forma alguma. Assim, trata-se de redespertar uma compreenso para o
sentido desta questo11
.
Ser que encontramos nas cincias, seja ela uma cincia especfica, ou
seja, ela a cincia primeira, esse carter aportico? Ou, justamente deste
aportico, incontornvel que a cincia busca fugir? Se perguntar pela essncia
de uma coisa perguntar por sua fonte originria, pelo que , pelo
incontornvel que se pe como fonte principial, ento por meio da tcnica, da
cincia, no chegaremos a experienciar, ou ao menos nos aproximar do que
seja essa essncia. Diz Heidegger:
10
ARISTTELES. Metafsica. Trad. br. Marcelo Perine da edio Italiana de Giovanni Reale.
So Paulo: Edies Loyola, 2005. pp. 143-145. 11
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo [1927]. Trad. br. Macia de S Cavalcante Schuback.
Petrpolis: Vozes, 2008. p. 34.
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A essncia da tcnica no , de forma alguma, nada de tcnico. Por isso nunca faremos a experincia de nosso relacionamento com a
essncia da tcnica enquanto concebermos e lidarmos apenas com o que tcnico, enquanto a ele nos moldarmos ou dele nos afastarmos. (...) De acordo com uma antiga lio, a essncia de
alguma coisa aquilo que ela . Questionar a tcnica significa, portanto, perguntar o que ela
12.
S um caminho no tcnico-lgico-cientfico pode nos enviar a uma
experincia originria com a essncia da tcnica. Esse caminho um caminho
do pensamento, pois se nos mantivermos no mbito da tcnica, como
poderamos ainda querer questionar algo a respeito dela, e possuir uma
definio correta? Essa definio h muito tempo nos diz que a tcnica um
meio e uma atividade do homem. Ela nos diz que a tcnica um instrumento
do homem para atingir os seus fins.
Quem ousaria negar que ela correta? (...) Com certeza. O correto
constata sempre algo exato e acertado naquilo que se d e est em frente (dele). Para ser correta, a constatao do certo e exato no precisa descobrir a essncia do que se d e apresenta. Ora, somente
onde se der esse descobridor da essncia, acontece o verdadeiro em sua propriedade. Assim, o simplesmente correto ainda no o
verdadeiro. E somente este nos leva a uma atitude livre com aqui que, a partir da sua prpria essncia, nos concerne
13.
Pe-se em nosso caminho a questo da verdade. com esta explanao
que passaremos ao prximo passo do caminho que, aqui, estamos a trilhar.
Ainda de forma introdutria, o prximo passo ser pensar a questo da
verdade e sua contraposio ao que seja o correto, ao que seja a adequao.
Portanto, contrapor o sentido de verdade para Heidegger, como ,
alethia e des-velamento, aos conceitos de , omoiosis (corretude) e
adequatio (adequao) entender um processo de sucessivas transformaes
np decorrer da tradio filosfica no que se entende por verdade, do seu
nascimento originrio aos dias atuais.
2.2 A livre relao com a tcnica: Sobre a corretude e a verdade
12
A questo da tcnica, p. 11. 13
Idem, pp. 11-12.
-
22
Estamos buscando desenvolver um questionamento que nos transponha
para uma livre relao com a tcnica. Tal relao s se d verdadeiramente
diante de sua essncia, diante do que seria a tcnica. A tradio nos diz que a
tcnica um meio e uma atividade do homem, definio que Heidegger chama
de concepo instrumental da tcnica. Quem negaria a sua corretude? Porm,
diante do at aqui exposto, algumas interrogaes se fazem necessrias: o
correto j o verdadeiro? O que corretude e qual o seu mbito? A verdade foi
desde sempre pensada como corretude? Como a verdade foi pensada em seu
momento originrio? Qual a relao entre verdade, corretude e tcnica?
Precisamos percorrer cada um desses passos, como num caminhar, na busca
de desenvolver algo no sentido desse livre relacionar-se com a tcnica que
aqui buscamos.
O correto j o verdadeiro? Heidegger constantemente nos leva a um
questionamento do habitual e recorrente, e nesse habitual, nossa concepo
de verdade se apresenta como a mera corretude. A verdade no pensamento
calculista se apresenta como exatido, contudo, o correto no atinge a
profundidade do verdadeiro. Permanece na superficialidade do presente e
habitual, mas, em que sentido o filsofo diferencia corretude de verdade? Onde
cada um destes sentidos atua? O pensar heideggeriano acerca do ser e do
ente ser relacionado ao que foi apresentado pelas seguintes palavras de
Heidegger: O correto constata sempre algo de exato e acertado naquilo que se
d e est em frente (dele)14
.
O correto se relaciona com aquilo que se d e est em frente dele. Seu
mbito o do vigente dado, posto. Seu mbito o do ente. Acertado e exato
seu relacionamento com o ente, com o j desvelado, contudo, nada sabe sobre
o ser. No desvela sua essncia, mas movimenta-se no j desvelado, no posto,
dado, ordinrio e habitual, sendo que, somente onde se der esse descobrir da
essncia acontece o verdadeiro em sua propriedade15
. Enquanto o correto diz
sobre o posto, o verdadeiro abre-o ao seu aparecer. O verdadeiro deixa viger, o
que destinado do ser ao ente, do ainda no vigente ao vigente. nesse
descobrir que se mostra o relacionar-se com o ser. Abrindo uma clareira, ou,
como clareira que se permite o vir vigncia algo do ser, que se d um
14
Ibidem. 15
A questo da tcnica, p.13.
-
23
acontecer do ser. Ento, se o correto tem o seu mbito no ente, a verdade
encontra-se em relao com o ser. Sendo somente esta verdade capaz de
permitir a livre relao com o essencial, com o ser. Mas de onde Heidegger
apreende essa distino entre verdade e corretude que aqui foi apenas posta,
mas no foi trilhada? Onde encontra o pensador solo para este caminhar?
Onde inicia o seu caminhar acerca da verdade, da abertura? Para essa
pergunta nos remetemos s suas palavras:
Este aberto foi concebido pelo pensamento ocidental desde o seu incio, como , o desvelado. Se traduzimos a palavra por desvelamento, em lugar de verdade, essa traduo no
somente mais literal, mas ela compreende a indicao de pensar mais originariamente a noo corrente de verdade como
conformidade do enunciado16
.
Somos ento encaminhados pelas fendas de nossa investigao, aos
gregos e seu modo de pensar. O que os gregos entendiam por ,
desvelamento? A questo da verdade para Heidegger, juntamente com a
questo do ser, torna-se o cerne do seu pensar. Assim, to fundamental como
a questo do ser a questo da verdade em seu pensar como um todo.
necessrio que mantenhamos ambas, como um s pensar, caminhando juntas.
Um ensaio fundamental, no que concerne a discusso sobre a verdade, o
ensaio A essncia da verdade [1930]. Este, em conjunto com o O que
metafsica? [1929] so considerados os textos da virada (Kehre) do
pensamento heideggeriano. O prprio filsofo chama este momento de viragem
de seu pensar17
. Onde o ser passa a ser buscado diretamente, por meio de seu
acontecer potico-apropriante (Ereignis). Diferentemente de sua busca anterior,
a partir do ente privilegiado homem, a partir do Da-sein, em ambas as fases de
seu filosofar, se assim realmente se pode dizer, a essncia da verdade como
, des-velamento, se pe como uma questo central.
Verdade se disse primeiramente, no mundo grego, como ,
desvelamento. Heidegger inaugura, ou recupera em seu sentido originrio, uma
leitura a essa palavra essencial. Essa palavra verdade to sublime e, ao
mesmo tempo, to gasta e embotada designa o que constitui o verdadeiro
16
HEIDEGGER, Martin. A essncia da verdade [1930]. In: Marcas do caminho. Trad. br. Ernildo Stein e Enio Paulo Giachini. Petrpolis: Editora Vozes, 2008. p. 200. 17
Cf. Cartas sobre o humanismo. pp. 339-341.
-
24
enquanto verdadeiro (fazer, pro-duzir, deixar vir clareira)18
. Na palavra
o pensador escuta, para muito alm da mera corretude, adequao,
certeza, objetividade, realidade. Nela ressoa o originrio, ressoa o
desvelamento que abre. Uma abertura que deixa advir o destinado do mistrio
do oculto. composta pelo privativo, mais o radical , que
podemos traduzir por velado, oculto, esquecido. Da a traduo heideggeriana
de i por des-velamento, des-ocultao, des-esquecimento. Aquilo que
deixa o fechado do velamento vir ao vigor do vigente como o des-velado, que
passa do no-dado ao dado, ao doado, dizendo, portanto, algo completamente
distinto de exatido, corretude ou adequao. Verdade dizia sobre um
acontecimento essencial do ser.
Onde este sentido mais originrio de verdade se perdeu? Foi deixado de
lado e com isso esquecido? Onde se deu to grande desvio de pensamento?
Heidegger identifica o incio desta mudana do sentido de verdade e, junto com
ela, a mudana de sentido do ser, com os gregos, em sua fase tardia, que se
inicia aps a plenitude daquele pensar originrio que se deu com Anaximandro,
Pitgoras, Herclito e Parmnides. Esse perodo tardio que, como Nietzsche19
,
Heidegger identifica como o perodo de decadncia do pensar grego e incio da
decadncia do pensar ocidental. Esse o perodo dos grandes filsofos,
Scrates, Plato e Aristteles. A mudana no sentido da verdade, assim como,
a histria do esquecimento do ser pelo ente, tem seu incio j em Plato,
sofrendo novamente uma mudana de paradigma com Aristteles, nos escritos
de lgica e de metafsica, e com os latinos, em suas tradues e interpretaes
da filosofia grega, aquilo que de forma latente ainda pensava o sentido anterior
de verdade e ser, transformado em outro pensar, e assim, esquecido. Assim
o que era fundamental ao pensamento grego, a questo do ser e da verdade
decai na questo do ente e da adequao. Vejamos essa passagem do Ser e
Tempo, onde Heidegger nos diz sobre esse decair do filosofar grego:
Embora nosso tempo se arrogue o progresso de afirmar novamente a
metafsica, a questo aqui evocada caiu no esquecimento. (...) A questo referida no , na verdade, uma questo qualquer. Foi ela que deu flego s pesquisas de Plato e Aristteles para depois
18
A essncia da verdade, pp. 190-191. 19
Cf. NIETZSCHE, Friedrich. A filosofia na poca trgica dos gregos. In: Coleo os pensadores vol. XXXII Obras incompletas. Trad. br. Rodrigo Torres Filho. So Paulo: Abril
Cultural, 1974. pp. 37-51.
-
25
emudecer como questo temtica de uma real investigao. (...) o que outrora se arrancou, num supremo esforo de pensamento, ainda
que de modo fragmentado e tateante aos fenmenos, encontra-se, de h muito, trivializado
20.
Vejamos como Heidegger l essa histria do esquecimento e das
seguidas mudanas de sentido da questo da verdade. Heidegger, em seu
polmico ensaio A teoria platnica da verdade [1931/1932, 1940], prope que o
desvio de sentido j se deu com Plato ao introduzir a noo de , de
um olhar reto. Para no adentrar em uma discusso mais aprofundada acerca
do ensaio citado e do polmico posicionamento heideggeriano sobre o pensar
platnico da verdade, ressaltaremos aqui, apenas aquilo que o autor indica
como o incio da transformao da essncia da verdade. Leiamos uma
passagem deste ensaio:
Se no geral, em toda e qualquer postura frente ao ente, est em questo o da , a visualizao do aspecto, ento todo
esforo deve concentrar-se antes de tudo em procurar possibilitar uma tal visualizao. Para isso, necessrio um olhar reto. (...) em
consequncia dessa adequao do notar como um , d-se uma , uma concordncia do conhecimento com a coisa mesma. Assim, da primazia da e do frente a i d-se
uma transformao da essncia da verdade. Verdade torna-se , retido do notar e enunciar
21.
Apresenta-se a, o primeiro passo da transformao da essncia da
verdade uma transformao, que para ns, parece ocorrer de forma to sucinta
que torna difcil a compreenso do polmico texto de Heidegger.
que em Plato e Aristteles ainda se deu como passagem, segundo
Heidegger, ali, onde o pensamento grego ainda era vigoroso, mesmo que j
tornado sistemtico, escolar, foi abandonado e, por conseguinte, esquecido
pela tradio. Segundo Heidegger, a leitura latina do pensar grego diluiu o vigor
desse filosofar. Na traduo de i para veritas como uma adequatio, d-
se o passo decisivo do que vinha mudando de sentido. Nessa mudana de
sentido podemos perceber os passos da transformao do conceito de
verdade. Da verdade do ser (ontolgica), a verdade do ente (ntica) e, por fim,
20
Ser e Tempo, p. 37. 21
HEIDEGGER, Martin. A teoria platnica da verdade. In: Marcas do caminho. Trad. br. Ernildo
Stein e Enio Paulo Giachini. Petrpolis: Editora Vozes, 2008. p. 242.
-
26
a verdade da proposio (proposicional). Cada vez de forma mais decadente,
mais superficial. Cada vez menos originria, a verdade vai se transformando no
exato, no correto.
Assim, na Escolstica podemos ver fortemente os ecos determinantes
da filosofia aristotlica. De um pensar lgico e argumentativo, palavras e
expresses usadas por Aristteles referentes questo da verdade no
apresentam mais o vigor do mundo grego e seu pensar, no pulsa mais o
modo grego de pr-se no mundo. O mundo grego se desvaneceu. S restaram
tradues e reflexos do que outrora se pensou.
Assim, pelo exposto, podemos vislumbrar o desvio, ou mesmo o envio,
do sentido originrio de verdade entendida como i, des-velamento,
passando pela , o olhar reto, , a semelhana e a adequatio,
entendida como base da filosofia escolstica por adequao da coisa a
proposio, tornando-se assim, simplesmente em veritas, verdade, ao
entendimento atual de adequao.
Onde nos perdemos? Questionamos a tcnica e agora encontramo-nos
diante da verdade e suas variadas determinaes e sentidos. O que tem a ver
a essncia da tcnica com a essncia da verdade? A resposta que Heidegger
nos d : Tudo. A essncia da tcnica e da verdade tem tudo a ver. Tcnica
em grego se dizia , o mesmo termo era usado tambm para a arte.
Tcnica e arte eram modos de deixar viger o ainda no vigente. Deixa-viger
aqueles que, diferente dos entes da , no possuam o eclodir em si
mesmos. E como um deixar viger, ambos estariam intrinsecamente
relacionados com a verdade, pensados como i, desvelamento. Ambas
so pro-duo e como podemos ler na passagem citada por Heidegger, do
dilogo Banquete de Plato: Todo deixar-viger o que passa e procede do no
vigente para a vigncia , pro-duo22
. A tcnica pro-duo e,
enquanto pro-duo, , poesis desvelamento. Pensando assim, a
tcnica no se resume a um simples meio, sua essncia est para alm disso.
Ela um modo de verdade, de desvelamento. Mas, ser que esse modo de
pensar a tcnica vlido tambm para a tcnica moderna? Ou ela pertence
apenas ao mbito do pensamento grego? Ser que a tcnica das usinas,
22
A questo da tcnica, p. 16.
-
27
indstrias, da fsica moderna tambm pro-duo, ? Heidegger levanta
essa indagao da seguinte forma:
Tcnica uma forma de desencobrimento. A tcnica vige e vigora no mbito onde se d descobrimento e ds-encobrimento, onde
acontece i, verdade. Contra essa determinao do mbito da essncia da tcnica pode-se objetar e dizer que ela vale para o
pensamento grego e, no melhor dos casos, pode servir para a tcnica artesanal, mas no alcana a tcnica moderna caracterizada pela mquina e aparelhagens. E justamente esta e somente esta que
constitui o sufoco que nos leva a questionar a tcnica23
.
diante esta indagao que somos levados ao caminho do pensar a
tcnica grega em confronto com a tcnica moderna. Portanto, como pensar a
grega e sua relao com a e sua transformao na tcnica
moderna? a tcnica moderna tambm um modo de i, desvelamento?
Caso seja, do tipo poitico, no sentido de uma pro-duo que deixa-viger? Ou
o que lhe caracteriza, o que lhe domina outro tipo de desvelamento? So
esses traos que sero investigados nos passos seguintes.
2.3 Tcnica grega e moderna: Da poesis explorao
Em que sentido podemos pensar, com Heidegger, sua indicao de que o
que preocupa exatamente o sentido de pro-duo enquanto , no
poder mais ser aplicado tcnica moderna? Que sentido tem essa pro-duo
para os gregos? Se no mais a poesis que determina a tcnica moderna, o
que ? Por que esta outra determinao, a saber, a explorao e o
armazenamento ameaam tanto o homem atual? Sero estas indagaes, e as
que surgirem no caminho, nas quais nos deteremos, com o cuidado
necessrio, para que, passo por passo, trilhemos o caminho no qual
adentramos.
Se pensarmos em um antigo moinho de vento grego e em uma usina
hidroeltrica moderna, podemos dizer que ambos so um meio de produo de
energia. Se pensarmos no agricultor ao lavrar sua terra ou em uma indstria de
23
Idem, p.18.
-
28
agronegcio, podemos novamente dizer que ambas tm como finalidade a
produo de alimentos. O que os diferenciam? No so ambos meio e
finalidade de produo? Sim e no. Os dois extraem algo da terra, porm, o
primeiro em cada um dos casos, com cuidado, deixa que a terra lhe doe o que
lhe necessrio manuteno de sua vida, enquanto que no segundo, de
forma abrupta, retira da terra, como de um reservatrio, mais do que o
necessrio, com o fim de estocar e armazenar, e depois disso, fazer um
negcio. O primeiro recebe uma doao como presente, ao seu presente. O
segundo arranca matria-prima, que ficar disponvel, para um uso posterior. A
relao, esta proximidade que o antigo tem com a Terra, aquela que ele chama
de Me, Terra de amplo seio, de todos, sede irresvalvel sempre24
, ,
multinutriz, como nos conta, nos canta Hesodo, transforma-se, para o
segundo, em uma relao de explorao, forando a terra a fornecer matria-
prima, no mais como uma vaca que pro-duz leite para alimentar a cria. Mas
como uma vaca leiteira que, em uma indstria, forada, recebendo
hormnios, produo de muitos litros de leite por dia, que sero tratados,
transformados, encaixotados, armazenados para estarem disponveis venda.
Leiamos as palavras de Heidegger:
O subsolo passa a se desencobrir, como reservatrio de carvo, o cho, como jazidas de minrio. Era diferente o campo que o campons outrora lavrava, quando lavrar ainda significava cuidar e
tratar. O trabalho campons no provocava e desafiava o solo agrcola. (...) A terra se desencobre, nesse caso, depsito de carvo
e o solo, jazida de minerais25
.
drstica a mudana no relacionar-se com a natureza entre os antigos e
os modernos. A pro-duo grega outra completamente diferente dessa
explorao moderna, mas para percebermos esta drstica mudana iremos
nos deter ainda mais no que seja essa pro-duo, que entre os gregos tinham
esse sentido de . Aps esta investigao estaremos em melhores
condies de adentrar ainda mais na tcnica moderna, em busca de sua
essncia, pois, s em uma verdadeira relao com essa essncia, poderemos
buscar um caminho de enfrentamento a essa situao crtica, da qual o homem
24
HESODO. Teogonia: a origem dos deuses. Trad. br. Jaa Torrano. So Paulo: Editora Ilumiuras, 1995. p. 91. 25
A questo da tcnica, p. 19.
-
29
atual se encontra imerso, submerso. Tudo agora depende de se pensar a pro-
duo e o pro-duzir em toda sua amplitude e, ao mesmo tempo, no sentido dos
gregos26
.
Como na passagem citada do Banquete de Plato, pro-duo, no sentido
de , todo deixar-viger. O que leva da no-vigncia a vigncia, todo o
pr no sentido de um deixar emergir. A prpria , nesse sentido, uma
, uma pro-duo. Ela at a mxima , aquela que se d a partir
de si mesma. Aqueles que no se pro-duzem por si mesmos so os ,
os artefatos, os entes criados, produzidos pela arte, pela . Estes se
contrapem, e nesse sentido se aproximam, dos seres da natureza, da ,
daqueles que se pem por si mesmos, dos . Enquanto os primeiros
tm sua fora de ecloso em outro, , os seres da natureza possuem o
eclodir em si mesmos, . Contudo, ambos, enquanto um vir vigncia,
so . Os artefatos, que no possuem o eclodir em si, dependem dos
, dos arquitetos, no no sentido atual de arquiteto, mas como
aqueles que tm a como . E, assim, diz Heidegger:
Nos artefatos, portanto a de sua mobilidade e, assim, de seu repouso, de estar pronto e estar terminado, no est neles mesmos,
mas em um outro, no , naquele que dispe da enquanto . Com isso teria sido feito a distino frente aos
, que se chamam desse modo precisamente porque no tem a de sua mobilidade em um outro ente, mas no ente que ele prprios so (e enquanto so esse ente)
27.
Leiamos uma passagem da Fsica de Aristteles, do livro , 1, analisada
na citao anterior, com a qual Heidegger ir confrontar seu conceito de
ao conceito aristotlico e grego de um modo mais geral:
Algumas coisas so por natureza, outras por outras causas. Por natureza, os animais e suas partes, as plantas e os corpos simples como a terra, o fogo, o ar e a gua pois dizemos que estas e outras
coisas semelhantes so por natureza. Todas estas coisas parecem diferenciar-se das coisas que no esto constitudas por natureza,
porque cada uma delas tem em si mesmo um princpio de movimento e de repouso, seja com respeito ao lugar, ao aumento, ou
diminuio, ou alterao. Pelo contrrio, uma cama, uma roupa ou qualquer outra coisa de gnero semelhante, como as significamos em
26
Idem, p.16. 27
HEIDEGGER, Martin. A essncia e o conceito de em Aristteles Fsica , 1 [1939]. In: Marcas do caminho. Trad. br. Ernildo Stein e Enio Paulo Giachini. Petrpolis: Editora Vozes,
2008. p. 264.
-
30
cada caso, por seu nome e enquanto isso so produtos da arte (), no tem em si mesmas nenhuma tendncia natural
mudana28
.
Estes entes que no tm o eclodir em si, necessitam de outro ente para
chegar vigncia, contudo, este vir vigncia no advm pela atividade
manual do artista, mas por meio de seu saber. Arte e tcnica so ditas pelos
gregos com a mesma palavra, . No por ambas terem em comum o fazer,
a atividade manual, mas por ambas terem em comum o pro-duzir no sentido de
, como um deixar vir vigncia em seu aspecto. Como um
conhecimento, algo relacionado verdade. aparece em Aristteles e
Plato ao lado de , epistme. Enquanto a o saber que se
relaciona com os , aqueles que emergem por si, os entes naturais, a
o saber a respeito dos , dos que no advm por si mesmos,
os artefatos. Assim, diz Aristteles em sua obra acerca da tica, em um
momento de uma meditao especial, ao tratar dos diversos tipos de
conhecimento:
So cinco as disposies em virtude das quais a alma alcana a
verdade (i) por meio da afirmao ou da negao: a arte a cincia, o discernimento a sabedoria filosfica e a inteligncia; (...) O
objeto do conhecimento cientfico, portanto, existe necessariamente. Ele consequentemente eterno, pois todas as coisas cuja existncia absolutamente necessria so eternos. (...) Toda arte se relaciona
com a criao, e dedicar-se a uma arte estudar uma maneira de fazer uma coisa que pode existir ou no, e cuja origem est em quem
faz, e no na coisa feita; de fato, a arte no trata de coisas que existem ou passam a existir necessariamente, nem de coisas que
existem ou passam a existir de conformidade com a natureza (estas coisas tm origens nelas mesmas). J que h diferena entre fazer e agir, a arte deve relacionar-se com a criao, e no com a ao
29.
Com base no exposto, Heidegger nos diz ser a tcnica, no pensamento
grego, um saber, um modo de desvelar, uma verdade, criao em oposio a
um fazer manual. Um saber que permite, cuida e protege. Protege o enviado, o
destinado pelo ser, do ocultamento ao des-ocultamento. Destinado ao cuidado
e guarda, na linguagem, do pensador, do artista. Bem diferente a tcnica
moderna, onde o a-guardar foi substitudo pela pressa do arrancar, onde o criar
28
ARISTTELES. Fsica. Traduo prpria feita da traduo espanhola de Guillermor R. de
Echandia. Madrid: Editorial Gredos, S.A., 1995. p. 45. 29
ARISTTELES. tica a Nicmacos. Trad. Br. Mrio de Gama Kury. Braslia: Editora UNB,
1992. pp. 115-116.
-
31
foi substitudo pelo en-formar, onde a co-pertena de identidade e diferena em
uma harmonia originria, foi substitudo pela mesmidade, pela uni-formizao
industrial, pelo negcio. Aquele saber que na plenitude do mundo grego, do
pensamento originrio, era a aproximao do homem natureza, decaiu em
um afastamento sugador, explorador. O mistrio do aguardar foi apagado pela
exatido do calcular. O filho que naquela manh de sol brincava livremente
com sua me natureza, tornou-se, na noite do mundo, o senhor da terra,
escravizado por seu prprio trabalho e conceitos. Esses senhores tornaram-
se cada vez mais escravos de seus instrumentos. Indigentes, cada vez mais
imersos na cotidianidade dos entes, explorando, armazenando e negociando,
como diz Heidegger:
justamente esse homem assim ameaado que se alardeia na figura de senhor da terra. Cresce a aparncia de que tudo que nos vm ao
encontro s existe medida que um feito do homem. Esta aparncia faz prosperar uma derradeira iluso, segundo a qual, em
toda parte, o homem s se encontra consigo mesmo. (...) Entretanto, hoje em dia, na verdade, o homem j no se encontra em parte
alguma, consigo mesmo, isto , com a sua essncia30
.
esse desvelamento explorador que de forma alguma um deixar-que-
advenha, que nada tem de . essa explorao que assusta. Pois, qual
o sentido desse explorar e armazenar sem fim? pensando no sentido de
suprir o necessrio? No, essa explorao e armazenamento tm a finalidade
do estar disponvel. essa dis-ponibilidade (Bestand) que preocupa. Nela o
prprio fruto, ou melhor, dizendo, acerca da modernidade, a prpria coisa, o
prprio objeto esvai-se. Em toda parte, se dispe a estar a postos e, assim,
estar a fim de tornar-se e vir a ser dis-ponvel para ulterior dis-posio31
. Cada
coisa passa a ser um dis-ponvel, que estando ali armazenado, espera por uma
negociao que o trans-ponha daqui para ali.
Uma nova meditao se pe em nosso caminhar. Que desencobrimento
se apropria do que surge e aparece no pr da explorao32
? Como podemos
pensar mais propriamente sobre esta disponibilidade? Qual a essncia da
tcnica moderna que leva o homem a um desvelar explorador onde tudo se
30
A questo da tcnica, pp. 29-30. 31
Idem, p.20. 32
Ibidem.
-
32
apresenta como mera disponibilidade? De onde provm essa essncia da
tcnica moderna? D-se por conta da negligncia do homem, ou mera
fatalidade do perodo, ou ainda outra a situao? Sobre estes
questionamentos nos deteremos nos prximos passos.
2.4 Dis-ponibilidade e Com-posio: Acerca do desvelamento explorador
da tcnica moderna
A disponibilidade (Bestand) se pe em nosso caminho. Essa palavra
assume aqui um sentido muito mais essencial do que mera proviso: a palavra
disponibilidade se faz agora o nome de uma categoria, designa o modo em
que vige e vigora tudo o que o descobrimento explorador atingiu33
. Chegamos
com este passo, ao ponto alto, aquele que surge diante do profundo do que
agora buscamos proximidade, desse nosso percurso. Estamos para
experienciar o originrio que advm das profundezas da essncia da tcnica
moderna. Esse extra-ordinrio que permite que nos elevemos quela relao
livre entre nossa presena (Dasein) e a essncia da tcnica, portanto, nesse
caminho in-habitual, nos faz recuar lentamente alguns passos, como quem se
prepara para pegar o impulso necessrio ao salto-mortal no abismo (Abgrund).
Retornemos ento alguns passos.
Como pensarmos essa disponibilidade, que nos passos anteriores vimos
como o preocupante acerca da tcnica moderna? O que rege, como apelo,
essa disponibilidade? Ela regida por uma inadimplncia do homem, por fruto
da ganncia de sua vontade, ou ela regida por algo mais originrio? Se a
tcnica moderna no se resume a um mero fazer do homem, (...) temos de
encarar, em sua propriedade, o desafio que pe o homem a dispor do real,
como dis-ponibilidade34
. Heidegger, como quem lana o olhar ao outro lado do
abismo, sobre o qual se prepara para saltar, chama a esse apelo de
explorao que rene o homem a dis-por do que se des-encobre como dis-
ponibilidade35
de Ge-stell, com-posio. Sobre o uso inusitado dessa palavra,
33
Ibidem. 34
Idem, pp.22-23. 35
Idem, p.23.
-
33
sobre seu sentido e lugar nesse percurso, nos deteremos mais frente. Aqui o
indicamos, apenas como um caminho a ser percorrido.
Questionamos a tcnica ao nos depararmos com o perigo desta escapar ao
nosso domnio. Criamos teorias e conceitos com o fim de assegurar domnio.
Construmos escolas com o intuito de dominar o saber e agora vemos as
criaes fazendo um papel oposto ao intuito pensado em uma cadeia de
eventos onde o ser foi perdendo lugar ao domnio do ente.
A usina hidroeltrica instalada no Reno, como nos fala o filsofo, no est
mais a como o velho moinho de vento. Ela est ali, ou podemos at dizer o
contrrio, o rio est ali instalado na usina, a fim de se explorar a fora de
movimento das correntes de suas guas, a dispor energia. Esta energia ser
armazenada, para em seguida, estar disposio de uma indstria, que usar
este disponvel para gerar instrumentos de trabalho ao homem, que tambm
estar ali disposio para algum servio, para ser meio, de alguma finalidade.
Se que podemos ainda chamar isso de finalidade, essa cadeia de disposio,
onde cada qual destes constituintes, no tem sentido algum pelo que . Usina,
rio, indstria, homem, negcio, natureza, o tempo, esto todos a apenas como
disposio. Caiu, com isso, tudo na indiferena, na mesmidade da
disponibilidade. Vejamos uma passagem em Heidegger acerca do que
dissemos:
A energia escondida na natureza extrada, o extrado v-se transformado, o transformado, estocado, o estocado, distribudo, o distribudo, reprocessado. Extrair, transformar, estocar, distribuir,
reprocessar so todos modos de desencobrimento. Todavia, este desencobrimento no se d simplesmente. Tampouco perde-se no
indeterminado. (...) por toda parte, assegura-se o controle. Pois o controle e segurana constituem at marcas fundamentais do descobrimento explorador
36.
O prprio homem encontra-se preso, sem-sada nessa cadeia de
disponibilidade. Ele encontra-se conectado a essa amarrao, a esse
esqueleto, a essa teia, nessa com-posio que a tudo abarca. nesse sentido
de amarrao, palavra que em alemo se diz por Gestell, que Heidegger usa o
termo essencial com-posio. Em Ge-Stell, o Ge tem o sentido de fora
originria de reunio e Stell com o sentido de pr, de colocar junto, de lugar.
36
Idem, p.20.
-
34
Assim, por meio de uma escuta cuidadosa, Ge-Stell pensado como com-
posio, fora originria que rene em um ponto, em um lugar. Como no termo
sntese, onde sin tem o sentido de reunio e tese com o sentido de posio,
posto junto a, sn-tese ento o incio da histria do desenvolvimento dessa
essncia da tcnica moderna. Sn-tese esta cadeia de amarrao que rene
todo o disposto em uma cadeia sem-escape. Sn-tese Ge-stell, com-
posio. Bestand e Gestell, como disponibilidade e composio usados para
indicar o extra-ordinrio do pensar heideggeriano, podem, ao leitor menos
atento parecer um abuso de linguagem, porm, sempre como extravagncia
que se pe o pensar em profundidade. Extravagante como o salto mortal.
Assim, Heidegger defende o uso destes termos dizendo o seguinte:
Ser possvel extravagncia maior ainda? Certamente que no! S que esta extravagncia um antigo costume do pensamento. E os
grandes pensadores tornaram-se extravagantes precisamente quando tm de pensar o mais elevado. (...) o fato de Plato usar a
palavra , para dizer a essncia de tudo e de cada coisa. Pois, na linguagem de todo dia, diz a viso que uma coisa visvel nos
apresenta percepo sensvel...37
Contudo, perguntamos: esta Ge-stell, com-posio, que teve seu
nascimento no pensar grego como sn-tese, este pr-junto-em-relao-a, se
deu por negligncia do pensar, do homem? Deu-se por um descuido, um des-
vio? fruto da liberdade do homem, de seu arbtrio? Heidegger nos diz que
no. A com-posio, enquanto um modo essencial de des-velamento, no um
des-vio, mas sim um envio do ser, um destino do desencobrimento pelo ser,
portanto, um acontecimento-histrico. Ento, ao contrrio do que havamos
questionado, a com-posio como destino no advm da liberdade do homem,
mas de um escravo da fatalidade do destino, de um escravo de seu tempo?
Tambm no, o que se d algo diverso. Sendo fruto do destino, a
composio, acontece pela liberdade. Parece que nos encontramos em uma
confuso, em um emaranhado onde palavras contraditrias se imbricam. Esta
confuso se instaura se pensarmos destino e liberdade como entende a
tradio. O que Heidegger pensa com essas palavras? Algo bem diferente da
37
Idem, p.23.
-
35
fatalidade e do arbtrio. Destino pensado como um pr a caminho, um envio
da silenciosa fonte originria. Em suas palavras:
Pr a caminho significa: destinar. Por isso, denominamos de destino a fora de reunio encaminhadora que pe o homem a caminho de
um desencobrimento. pelo destino que se determina a essncia de toda histria. A histria no um mero elemento da historiografia
nem somente o exerccio da atividade humana. A ao humana s histrica quando enviada por um destino
38.
No caso da liberdade, Heidegger no a pensa como vontade, como
arbtrio, ou como uma liberdade de movimento, mas sim, como um deixar-ser.
Como um permitir, uma escuta onde o ente se des-vela pelo envio do ser. Este
deixar-ser se d como um entregar-se ao ente... ente. Como um acolhimento
do e pelo ente, como cuidado e proteo. Entretanto este deixar-ser poderia
ser pensado no sentido negativo de desviar a ateno de algo, ou de uma
renncia , onde se exprime uma indiferena ou uma omisso, mas, como foi
dito, este deixar-ser tem um sentido contrrio ao de omisso, sendo at a
mxima ateno e presena diante o vigente, como escuta e abrigo, esta
liberdade acontece em seu parentesco com a verdade pensada como i.
Pois, ao que se desvela que deixa-ser o ente que se . O que pelo mistrio,
como mistrio enviado ao desvelamento abrigado mesmo ao se esconder
por este deixar-ser da liberdade. Verdade, mistrio e liberdade se emaranham
em sua co-pertena ao acontecer potico-apropriante do ser (Ereignis).
Mistrio aqui pensado como este que libera. O encoberto que sempre se
encobre e cobre, o fechado que abriga o eclodir.
Este entregar-se ao carter de desvelado do ente, como nos diz
Heidegger, no um perder-se nele, mas um recuo diante do ente, afim que
este se manifeste naquilo que e como 39
. Pensando deste modo que
podemos ver a copertena entre destino e liberdade, onde estes no vo de
encontro um ao outro, mas pelo contrrio, vo ao encontro um do outro. O que
o destino envia, a liberdade permite. O que doado pelo mistrio, protegido
no des-velo pelo livre deixar-ser. Leiamos o que diz Heidegger acerca desta
relao entre destino e liberdade:
38
Idem, p.27. 39
A essncia da verdade, p.201.
-
36
O destino do desencobrimento sempre rege o homem em todo o seu ser, mas nunca a fatalidade de uma coao. Pois o homem s se
torna livre num envio, fazendo-se ouvinte e no escravo do destino. A essncia da liberdade no pertence originariamente vontade e nem to pouco se reduz causalidade do querer humano.
A liberdade rege o aberto, no sentido do aclarado, isto , do des-encoberto. (...) A liberdade o reino do destino que pe o
desencobrimento em seu prprio caminho40
.
Assim, respondemos ao questionamento sobre o acontecimento
histrico da tcnica como com-posio, se ele fruto de uma inadvertncia ou
se ele uma fatalidade de nossa poca. No sendo nem um nem outro, mas o
fruto de um envio proveniente do mistrio do ser. Ao pensarmos assim, nos
mantemos no espao livre com a essncia da tcnica, ao qual buscamos estar
nesse percurso de nosso trilhar o pensamento heideggeriano. Abre-se com
este pensar caminhos novos de enfrentamento situao de crise, que se
apresenta sobre o modo da tcnica. Nesse extra-ordinrio, onde se abre para a
essncia da tcnica, somos tomados por um apelo de libertao. Diz
Heidegger:
A essncia da tcnica moderna repousa na com-posio. A com-
posio pertence ao destino do descobrimento. Estas afirmaes dizem algo muito diferente do que a frase tantas vezes repetida: a
tcnica a fatalidade de nossa poca, onde fatalidade significa o inevitvel de um processo inexorvel e incontornvel. (...) quando
pensamos, porm, a essncia da tcnica, fazemos a experincia da com-posio, como destino de um desencobrimento. Assim j nos mantemos no espao livre do destino. Este no nos tranca numa
coao obtusa, que nos foraria uma entrega cega tcnica, ou o que d no mesmo, a arremeter desesperadamente contra a tcnica e
conden-la, como obra do diabo. Ao contrrio, abrindo-nos para a essncia da tcnica, encontramo-nos, de repente, tomados por um apelo de libertao
41.
nesse passo que se encontra o perigo. Pois, se a liberdade
entendida como um deixar-ser o que nos destinado, o homem histrico
tambm pode, deixando que o ente seja, no deix-lo-ser naquilo que ele e
assim como . O ente ento encobre-se e dissimulado42
. Este no-deixar-ser
naquilo que , se apresenta, no homem moderno, como esse pensamento que
calcula, nesta com-posio dominante que tudo explora e torna disponvel.
Neste sistema operativo e calculvel, que pe em fuga toda outra forma de
40
A questo da tcnica, pp. 27-28. 41
Idem, p. 28. 42
A essncia da verdade, p. 203.
-
37
pensar. aqui que mora o perigo. Nesse esforo de dominar com esprito a
tcnica, nessa produo exploradora esquece-se o mistrio, e com isso, tem-se
a fuga da possibilidade de um desvelar mais originrio. O pensamento
meditativo, potico, a pro-duo como ameaada de ser encoberta
por completo. O predomnio da com-posio arrasta consigo a possibilidade
ameaadora de se poder vetar ao homem voltar-se para um desencobrimento
mais originrio e fazer assim a experincia de uma verdade mais inaugural43
.
O grande perigo no se encontra, portanto, no perigo das armas, na
superficialidade dos novos meios de comunicao virtuais, na intoxicao por
remdios, nos transgnicos, agrotxicos ou qualquer outro elemento tcnico.
Seu perigo extremo est na fuga desta outra possibilidade, no completo
domnio da com-posio sobre a essncia do pensar do homem.
Entretanto, dificilmente abandona o que mora na proximidade do
originrio, o lugar. Com essas palavras do poema A peregrinao de Hlderlin,
palavras finais do ensaio A origem da obra de arte, feita a passagem do
perigo ao que salva. CITAO!!! A essncia mais essencial res-guardada
pela fora originria do mistrio. O domnio da composio no poder
deturpar todo o brilho da verdade44
. Ao se afastar de sua morada essencial, o
homem tomado por um apelo de retorno. O pensamento lgico, calculador
pe o homem, cada vez mais, diante aos entes em sua mera cotidianidade.
Decai, assim, na mesmidade do apenas dado. O homem histrico tomado por
um tdio profundo, que manifesta o ente em sua totalidade, onde tudo se
apresenta como indiferena. Outro humor, ento arrebata o homem, a
angstia. Nesta, o ente se pe em fuga, o nada se manifesta, como um apelo
da morada essencial, a experienciao do nada abre o pensar a outra
possibilidade. Para outro modo de ser, se abre como fonte. Abre como questo
e mistrio para um pensar que no seja mais um mero com-pr, mas um pr,
potico inaugural. Permitindo pela escuta cuidadosa, que venha vigncia,
como doao deste nada originrio. Esta questo sobre o nada, e os humores
de tdio e angstia ser tratada mais adiante com um maior aprofundamento.
Aqui, trata-se apenas de pensar o apelo silencioso.
43
A questo da tcnica, pp.30-31. 44
Idem, p.31.
-
38
Pensar a essncia da tcnica escutar a voz, o canto do destino, que
advm da fonte principial, colocar-se na histria de maneira autntica. Esta
escuta pe Heidegger a se deter na voz do poeta. Hlderlin, poeta dos poetas
doa, em seu dizer, muitas palavras que abrem o seu pensar. Diante deste
poeta o filsofo-pensador se detm em muitos momentos, com muito cuidado.
Assim diz o poeta: Ora, onde mora o perigo/ l que tambm cresce/ o que
salva. , portanto, no domnio da com-posio, como essncia da tcnica
moderna, que se mostra a outra possibilidade de um desocultar mais originrio.
Mas qual o sentido deste salvar? Que outra possibilidade de pensar se
presenteia nesse extra-ordinrio que se deu no confronto com o pensar
tcnico? esse outro pensar a salvao da ameaa, da crise? Esses so os
questionamentos derradeiros desta fase de nossa investigao. So sobre
estas questes que nos deteremos agora, como passo preparatrio para uma
nova questo, ou seja, a questo do confronto.
-
39
3 POETAS EM TEMPOS INDIGENTES: ACERCA DA ESSNCIA DA ARTE
Neste captulo pensaremos a questo da arte buscando avizinh-la do
originrio (Ursprung) e da essncia (Wesen), no sentido de encontrar a outra
possibilidade capaz de um confronto crise apontada pelo des-velar
explorador da tcnica moderna. Deixaremos que a essncia da arte se
apresente ao pensar. Nossa busca , portanto, a de saber se na arte guarda-se
a medrana daquilo que pode nos salvar deste tempo de indigncia, desta
noite do mundo. Para tal busca, faremos um momento que nos servir de
passagem da questo anterior da tcnica para a questo da arte que agora se
iniciar. Aps esse momento de passagem, adentraremos a questo da arte e
buscaremos pensar como a sua essncia se apresentou ao filsofo. Daqui,
seremos levados a pensar em conjunto a essncia da arte e a questo da crise
atual do entendimento tcnico.
3.1 Onde mora o perigo, cresce o que salva: Da pergunta pela Tcnica
pergunta pela Arte
Chegamos num ponto crucial de nossa investigao, passo derradeiro
acerca da pergunta pela tcnica, no , contudo, conclusivo, apenas um
preparo para um olhar em outro sentido. O ttulo deste ponto j nos indica para
onde vamos seguir. Passaremos da questo da tcnica questo da arte.
Porm, preciso ainda alguns passos para que essa mudana no se d de
forma brusca. Em que sentido se dar essa mudana? Alm desta indicao
A cincia pode classificar e nomear os rgos
de um sabi Mas no pode medir seus encantos.
A cincia no pode calcular quantos cavalos de fora existem nos encantos de um sabi.
Quem acumula muita informao perde o
condo de adivinhar: divinare. Os sabis divinam.
Manoel de Barros, Livro sobre nada.
Do fundo abismo nascem as altas montanhas
Mrcia de S.
O escuro me ilumina. Manoel de Barros.
-
40
de mudana de olhar, o ttulo tambm nos diz outra coisa: Onde mora o perigo
l tambm que cresce o que salva. Nessas palavras de Hlderlin, Heidegger
nos indica o fio condutor desta mudana. Contudo, precisamos esclarecer o
que se entende aqui por salvar. Como relacionar este salvar, que agora se ps
no caminho, com a pergunta inicial acerca da essncia da tcnica? Como a
arte se relaciona com a tcnica diante da pergunta pela essncia? Iremos nos
deter nestes questionamentos nos passos seguintes.
Havamos dito que a essncia da tcnica moderna se apresentou, aps
nosso questionar, como com-posio. O desvelar explorador, que arrancou da
terra tudo como mera dis-ponibilidade regido por essa com-posio. Na
dominao deste explorar com-positor, o perigo que ameaa o de se trancar
ao homem a possibilidade de um outro desvelar, mais originrio, a saber, o
desvelar potico. Este, que enquanto , deixa que o ente seja, a cada
vez, o ente que . Sendo regida assim pela liberdade como um deixar-ser, essa
, deixa-pr. Esta ameaa, contudo, no se deu por conta de uma
negligncia do homem, nem por um capricho ou por uma veleidade. Ela fruto
de um destino, de uma doao. Sendo destino, advm de um acontecer
histrico do ser. S ao se perceber este sentido da essncia da tcnica
moderna, o homem pode receber essa doao aos cuidados e proteo de sua
guarda na linguagem. Sua guarda se d aos que escutam o apelo da silenciosa
fonte originria. Pensar sua essncia escutar esse apelo. S onde se d esse
pensar cuidadoso e esse poetar permissor que se pode dizer, com vigor,
essas palavras do poeta: onde mora o perigo, l tambm que cresce o que
salva. Portanto, no nos apressemos em dar respostas. Tentemos, com maior
esforo, nos manter nessa festa do pensar frente abertura do mistrio, frente
vereda. O que Heidegger pensa, em con-sonncia com o poeta por salvar?
ele um salvar a tempo, de uma destruio iminente, ou nos diz outra coisa a
voz do poeta? Continuemos no nosso lento caminhar.
Pensando com Hlderlin, Heidegger nos diz:
O que significa salvar? Geralmente, achamos que significa apenas retirar, a tempo, da destruio o que se acha ameaado em continuar
-
41
a ser o que vinha sendo. Ora, salvar diz muito mais. Salvar diz: chegar essncia, a fim de faz-la aparecer em seu prprio brilho
45.
Chegar essncia o sentido do salvar. Na ameaa cresce o que salva,
pois nessa ameaa que o apelo por um retorno ao lar se pe fortemente, de
forma mais decisiva. Pensemos a essncia, no de modo tradicional como
essentia, como aquilo que diz o que uma coisa , como quid. Essncia deve
ser pensada como colocamos de incio, logo nos primeiros passos do percurso.
Pensemos a essncia como o originrio, como fonte doadora, principial. No
como incio, daquilo que logo que se pe a caminhar deixado para trs, mas
como principial que dura e vigora a cada passo, que mesmo no afastar-se o
que sustem e envia. Da qual no permitido um abandono, ou um no ouvir
seu apelo. assim que Heidegger nos diz:
do verbo wesen, viger, que provm o substantivo vigncia. Wesen,
essncia, em sentido verbal de vigncia, o mesmo que whren, durar (...) Goethe chegou a usar no lugar de fortwhren, perdurar, a palavra misteriosa fortgewhren, continuar a conceder. Sua escuta
ouve, nessa palavra, uma harmonia implcita de continuidade entre
whren, durar, e gewhren, conceder46
.
Como um carvalho, que diante do perigo ao crescer, fortifica suas razes
nas profundezas da Terra, crescer significa abrir-se amplitude do cu e, ao
mesmo tempo, estar arraigado na obscuridade da Terra47
, pois so as razes
que salvam. Estas, como fontes doadoras de alimento, recebem da Me Terra,
multinutriz, a fora de salvaguardar o caminho, a fora de sustentao e de
contra-posio ao perigo da crise que ameaa. Em silncio e em seu tempo
se apresenta outra possibilidade. Juntamente com as palavras do poeta, outras
palavras so ditas: ...mas poeticamente que o homem habita esta Terra.
Como podemos sustentar as palavras do poeta se exatamente o perigo do
pensar lgico, calculador, cientfico, que ameaa o homem? Se o agir desse
homem reflete o seu pensar, ou sua fuga de pensar, logo cientificamente que
este constri suas casas, que este trabalha e que se coloca no mundo. Se o
que lhe rege a com-posio, o explorar e a dis-posio. Heidegger diz:
45
A questo da tcnica, p.31. 46
Idem, p. 33. 47
HEIDEGGER, Martin. O caminho do campo. In: La prensa. Traduo pessoal a partir da
traduo espanhola de Sobine Langenheim e Abel Posse. 1976. p. 2.
-
42
A composio um modo destinado de desencobrimento, a saber, o des-cobrimento da explorao e do desafio. Um e outro modo
destinado o desencobrimento da pro-duo, da . Esses modos no so, porm, espcies que, justapostas, fossem subsumidas no conceito de desencobrimento. O desencobrimento o
destino que, cada vez, de cofre e inexplicavelmente para o pensamento, se parte, ora num des-encobrir-se pro-dutor ora num
des-encobri-se ex-plorador e, assim se reparte ao homem48
.
o mistrio que rege essa proximidade e esse repartir. Estar atento a
este mistrio o grande passo no sentido da superao da ameaa. o passo
capaz de impulsionar o salto mortal no abismo. este mistrio que concede.
Sem ele no a arvore que se sustente, que dure e para viger preciso durar.
Somente dura aquilo que foi concedido. Dura o que se concede e doa com
fora inaugural, a partir das origens49
. Em um ensaio acerca da essncia da
poesia (Hlderlin e a essncia da poesia), Heidegger se detm em algumas
palavras de Hlderlin, dentre elas a seguinte: Mas o que dura, instauram os
poetas. O que dura instaurado pelos poetas. Ao falar do tcnico e de sua
essncia, constantemente surge o potico. Como podemos nos perder nesses
dois modos de pensar to distintos? Ou ser que a rota de duas estrelas que
passam ao longe uma da outra, guarda em si uma vizinhana essencial?
Escutemos estas palavras de Heidegger antes de continuarmos nosso
caminhar:
Outrora, no apenas a tcnica trazia o nome de .
Outrora, chamava-se tambm de o desencobrimento que levava a verdade a fulgurar em seu prprio brilho. Outrora, chamava-se tambm de a pro-duo da verdade na
beleza. designava tambm a das belas-artes50
.
Ser que na arte poderemos encontrar o caminho do que salva? Se o
perigo que ameaa diz respeito ao modo de des-velar do real, ou seja, diz
respeito a verdade, pode a arte, estando em sua essncia relacionada com o
belo, dizer algo sobre esta? Ou, o que se d o contrrio, a essncia da arte
est mais prxima da verdade, como i, do que do belo? A essncia da
arte seria esta: o pr-se em obra da verdade do sendo, mas at agora a arte s
48
A questo da tcnica, p. 32. 49
Idem, p. 34. 50
Idem, p. 36.
-
43
tinha a ver com o belo e a beleza e no com a verdade51
. o potico que leva
a verdade ao esplendor superlativo. (...) O potico atravessa, com seu vigor,
toda arte, todo desencobrimento que vige na beleza52
. A arte se apresenta
aqui relacionada com a verdade. Aqui, o que est sendo dito, se d na forma
de indicao de uma mudana no sentido do caminho.
Ser ento que a arte a possibilidade que silenciosamente cresce na
Terra para a salvao da ameaa que se consuma na crise aqui indicada?
Deixemos Heidegger nos perguntar o mesmo:
Ser que as belas-artes so convocadas ao des-encobrir potico? Ser que o desencobrimento h de reivindic-las mais
originariamente para que fomentem, por sua parte, o crescimento do que salva, para que despertem e instaurem em nova forma, a viso e
a confiana no que se concede e outorga? Ningum poder saber se est reservada arte a suprema
possibilidade de sua essncia no meio do perigo extremo53
.
Se no podemos saber se na arte que se reserva a possibilidade do
que salva, deveremos ainda nos encaminhar nessa arriscada aventura, que a
da busca por sua essncia? Encaminhar na direo do que digno de ser
questionado no uma aventura, mas um retorno ao lar. Ainda no
pensamos o sentido quando estamos apenas na conscincia. Pensar o sentido
muito mais. a serenidade em face do que digno de ser questionado54
.
Como os pensadores e poetas, serenamente, nos arriscaremos nessa vereda.
Nos arriscaremos no sentido de termos em vista que, no fim dessa nova
caminhada possamos nos deparar diante uma aporia. Buscamos a essncia da
tcnica para abrir nossa presena a um livre relacionamento com sua essncia.
Esta se apresenta como um modo de des-velamento, o explorador que pe
tudo como dis-posio a uma com-posio. Essa busca nos levou, por fim,
questo da arte. Diz Heidegger:
No sendo nada de tcnico a essncia da tcnica, a considerao essencial do sentido da tcnica e a discusso decisiva com ela tm de dar-se no espao que, de um lado, seja consanguneo da essncia
da tcnica e, de outro lado, lhe seja fundamentalmente estranho.
51
A origem da obra de arte, p. 87. 52
A questo da tcnica, p. 37. 53
Ibidem. 54
Cincia e pensamento do sentido, p. 58.
-
44
A arte nos proporciona um espao assim. Mas somente se a considerao do sentido da arte no se fechar constelao da
verdade, que ns estamos a questionar55
.
Nossas consideraes acerca da tcnica apontaram para a ,
poesis, como um modo de des-velar, de verdade, como a essncia da tcnica
grega e para a Ge-stell, com-posio, tambm como um modo de verdade,
como a essncia da tcnica moderna. Ambas seriam modos de verdade, de
des-velamento. Assim, a essncia da tcnica se apresentou como verdade.
Porm, a razo de que em um dado momento se apresenta como des-
velamento e em outro se apresenta de um outro modo, para ns, permanece
um mistrio. O mistrio se instaurou. Esse mesmo, que oculto em sua
essncia, clareou ns a possibilidade de um outro caminho. O outro, como
diferena se apresentou, como inaugural, diante a identidade, a habitual do
mesmo. A arte tem em seu nascimento a aproximao com a tcnica, -lhe
consangunea. Hlderlin, pensando com Herclito, escreve em seu Hiprion: A
palavra grandiosa, de Herclito, s poderia ser encontrada
por um grego, pois essa a essncia da beleza e antes de encontr-la no
havia filosofia alguma56
, pois para ele a beleza o ser e para Herclito o ser
esse , o uno em si mesmo diverso. Herclito e Hlderlin
so, enquanto pensador e poeta, constantemente considerados por Heidegger.
O potico aqui relacionado para alm do belo, diz acerca do ser e da
verdade, o de Plato que sai a brilhar de forma superlativa.
Constantemente somos levados a pensar a arte em considerao com a
verdade.
Investigaremos a arte na busca da sua essncia considerando
continuamente a questo da verdade. Contudo, como foi dito, a questo da
verdade e a questo do ser, no pensamento heideggeriano, andam de mos
dadas. Assim, como se deu nesse percurso, a seguir re-colocaremos a questo
do ser e da verdade. S assim seremos capazes de dizer algo a respeito da
arte; se tem ela a medrana do que salva; se ela nos indica ainda outra
possibilidade, outro caminho ou se, por fim, devemos abandonar
definitivamente essa busca de um pensar em confronto crise.
55
A essncia da tcnica, p. 37. 56
HLDERLIN, Friedrich. Hiprion, ou, o eremita na Grcia. Trad. br. Mrcia de S Cavalcante.
Rio de Janeiro: Vozes, 1993. p. 99.
-
45
3.2 O originrio da obra de arte: O pr-em-obra da verdade
Nos passos anteriores, vimos como Heidegger passou da questo da
tcnica, entendida em sua essncia como um des-encobrimento, questo da
arte, tambm como um saber que des-encobre. Em sua origem grega ambos
eram pensados pela palavra . Tcne foi pensada, desde Homero, como
um saber. Arte e saber pertenciam a um mesmo mbito. Um saber que permitia
ao ser, ao divino, o seu advento ao que era por si prprio. Arte era um saber,
um modo de verdade, -, porm, mesmo ao pensar grego, esta