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Cadernos Imbondeiro. João Pessoa, v.2, n.1, 2012. 1 O QUE É SER NEGRO NO BRASIL? – Uma reflexão sobre o processo de construção da identidade do povo brasileiro Silvia Karla B. M. M. dos Santos Graduanda em Pedagogia - UFPB [email protected] Introdução Quem são os negros no Brasil? O que é ser negro? O que é identidade? Essas questões fazem parte das discussões sobre relações raciais no nosso país, onde a discriminação dos afrodescendentes está presente e o conceito de miscigenação promove alguns debates, no que se refere a ser mais uma forma de reafirmar o mito da democracia racial, uma corrente ideológica que denota a crença de que no Brasil não há discriminação racial entre negros e brancos, como existe em outros países. Assim, tomando como referência, alguns autores que tratam da temática das relações étnicas, além de uma breve pesquisa realizada em uma escola municipal da cidade de João Pessoa – PB, com o objetivo de compreender como um grupo de adolescentes se reconhece no contexto étnico/racial, apresentaremos uma reflexão acerca da construção da identidade (negra e não negra) no Brasil. Entendendo a identidade como um processo de construção dialética e social, e considerando que buscamos sempre ser aceitos, não querendo ser excluídos por sermos diferentes, trazemos alguns conceitos sobre o processo de construção da identidade da população negra através da autoafirmação, além de uma abordagem geral sobre história, diferenças e padrões instituídos na sociedade. Falaremos também sobre o processo de “autoafirmação” como ressignificação da identidade em nossa sociedade mestiça. Considerando que esse processo requer ainda muitas reflexões, pois, para Ferreira (2000) é muito comum a pessoa, principalmente no caso do mestiço, com características “negroides” leves e com posição social elevada, ser considerado branco. Porém, em sua totalidade, não é objetivo deste trabalho, colocar-se a favor do “embranquecimento” da população brasileira, mas articular de um modo geral, uma discussão na qual a identidade negra possa (re) afirmada através do contato e da mistura das raças.

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  • Cadernos Imbondeiro. Joo Pessoa, v.2, n.1, 2012.

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    O QUE SER NEGRO NO BRASIL? Uma reflexo sobre o processo de construo da identidade do povo brasileiro

    Silvia Karla B. M. M. dos Santos Graduanda em Pedagogia - UFPB

    [email protected]

    Introduo

    Quem so os negros no Brasil? O que ser negro? O que identidade? Essas questes fazem parte das discusses sobre relaes raciais no nosso pas, onde a discriminao dos afrodescendentes est presente e o conceito de miscigenao promove alguns debates, no que se refere a ser mais uma forma de reafirmar o mito da democracia racial, uma corrente ideolgica que denota a crena de que no Brasil no h discriminao racial entre negros e brancos, como existe em outros pases.

    Assim, tomando como referncia, alguns autores que tratam da temtica das relaes tnicas, alm de uma breve pesquisa realizada em uma escola municipal da cidade de Joo Pessoa PB, com o objetivo de compreender como um grupo de adolescentes se reconhece no contexto tnico/racial, apresentaremos uma reflexo acerca da construo da identidade (negra e no negra) no Brasil.

    Entendendo a identidade como um processo de construo dialtica e social, e considerando que buscamos sempre ser aceitos, no querendo ser excludos por sermos diferentes, trazemos alguns conceitos sobre o processo de construo da identidade da populao negra atravs da autoafirmao, alm de uma abordagem geral sobre histria, diferenas e padres institudos na sociedade.

    Falaremos tambm sobre o processo de autoafirmao como ressignificao da identidade em nossa sociedade mestia. Considerando que esse processo requer ainda muitas reflexes, pois, para Ferreira (2000) muito comum a pessoa, principalmente no caso do mestio, com caractersticas negroides leves e com posio social elevada, ser considerado branco.

    Porm, em sua totalidade, no objetivo deste trabalho, colocar-se a favor do embranquecimento da populao brasileira, mas articular de um modo geral, uma discusso na qual a identidade negra possa (re) afirmada atravs do contato e da mistura das raas.

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    Identidade, Diferena e Identidade Negra

    O conceito de identidade no pode ser entendido a partir de uma nica definio, pois sua construo est associada ao meio em que o indivduo est inserido, podendo basear-se em fatores culturais, econmicos, tnicos, polticos e geogrficos.

    Munanga (1994), ao falar sobre identidade destaca:

    (...) a identidade uma realidade sempre presente em todas as sociedades humanas. Qualquer grupo humano, atravs do seu sistema axiolgico sempre selecionou alguns aspectos

    pertinentes de sua cultura para definir-se em contraposio ao alheio. A definio de si (autodefinio) e a definio dos outros (identidade atribuda) tm funes conhecidas: a defesa da unidade do grupo, a proteo do territrio contra inimigos externos, as manipulaes ideolgicas por interesses econmicos, polticos, psicolgicos, etc. (MUNANGA 1994, p. 177-178)

    Novaes (1993) apud Gomes (2005) nos diz que ao analisar a identidade, a mesma s pode ser usada no plano do discurso e aparece como um recurso para a criao de um ns coletivo ns professores, ns mulheres, ns homossexuais, ns ndios, ns negros esse ns se refere a uma identidade, no sentido de uma igualdade, pois os indivduos agrupam-se a partir de elementos comuns e que os identificam com seus grupos, j que nenhuma identidade construda no isolamento, mas a partir das nossas relaes, da cultura que possumos, da histria que carregamos e dos lugares sociais e polticos que ocupamos, sendo assim formada ao longo de toda a vida.

    Deste modo, o conceito de identidade pode ser entendido como um conjunto de aspectos individuais, que caracterizam uma pessoa, mas tambm um aspecto plural, constitudo a partir das relaes sociais que so permanentemente mutveis como destaca Gomes (2005):

    A identidade no algo inato. Ela se refere a um modo de ser no mundo e com os outros. um fator importante na criao das redes de relaes e de referncias culturais dos grupos sociais. Indica traos culturais que se expressam atravs de prticas

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    lingusticas, festivas, rituais, comportamentos alimentares,

    tradies populares e referncias civilizatrias que marcam a condio humana. (GOMES, 2005, p. 41)

    Assim, entendemos que a identidade deriva da dialtica entre o indivduo e a sociedade, pressupondo uma interao, pois mesmo que o sujeito reconhea-se inserido em determinado grupo, necessrio uma resposta social a essa insero.

    Porm, ao falar em identidade, no podemos deixar de falar tambm em diferena, j que algumas relaes estabelecidas entre o eu e outro so conflituosas e, apesar de se falar cada vez mais sobre igualdade, na sociedade atual ainda se estabelece como modelo ideal, o homem branco, cristo, heterossexual, ocidental... Sendo ento a este modelo, que deveramos assemelhar-se. Entretanto reconhecer que somos diferentes para estabelecer a existncia de uma diversidade cultural no Brasil, no suficiente para combater os esteretipos e os estigmas que ainda marginalizam milhares de pessoas em nossa sociedade, como afirma Candau (2005):

    No se deve contrapor igualdade a diferena. De fato, a igualdade no est oposta diferena, e sim desigualdade, e diferena no se ope igualdade, e sim padronizao, produo em srie, uniformidade, a sempre o mesmo, mesmice. (CANDAU, 2005, p. 19).

    contra a padronizao, que alguns grupos que fogem a esse modelo, se dedicam em conquistar posies scio-polticas, que os levem a uma redefinio de suas relaes com os demais segmentos presentes na sociedade. E esse processo pode ser evidenciado quando nos referimos a populao negra.

    Gomes (2005) destaca que, assim como em outros processos identitrios, a identidade negra se constri gradativamente, num movimento que envolve inmeras variveis. Pois a identidade negra uma construo social, histrica e cultural, onde o sujeito se reconhece na conjuno do grupo tnico/racial a partir da sua histria, cultura e relaes estabelecidas com o outro.

    Mas, para compreender o processo de construo da identidade negra no Brasil, importante considerar no apenas sua dimenso subjetiva, mas, sobretudo o seu sentido poltico.

    Contudo, vale destacar que apesar da significativa presena demogrfica dos afro-descendentes no Brasil, um grande desafio construir uma identidade negra positiva em uma sociedade que vive no mito da democracia racial, negando a

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    desigualdade entre brancos e negros como fruto do racismo, e que em contra partida, desde cedo ensina aos indivduos que, para serem aceitos preciso afastarem-se das suas razes, incorporando os valores eurocntricos. Diante disso, no de se admirar que muitas pessoas que trazem os traos negros neguem tais caractersticas. Como

    aponta Ferreira (2000): (...) a identidade da pessoa negra, traz do passado a negao da tradio africana, a condio de escravo e o estigma de ser um objeto de uso como instrumento de trabalho. O afro-descendente enfrenta, no presente, a constante discriminao racial, de forma aberta ou encoberto e, mesmo sob tais circunstncias, tem a tarefa de construir um futuro promissor. (FERREIRA, 2000, p. 41)

    Ento, como as difuses ideolgicas das prticas racistas geram uma identidade de resistncia, que tem como exemplo, as estratgias desenvolvidas para escapar das posies predeterminadas para o negro pelas formas de identidade legitimadora, difundidas pelas instituies e classes dominantes, surge uma forma de percepo que traz o discurso da mistura racial e cultural como ponto importante na construo da identidade brasileira.

    Mestiagem como processo de ressignificao da Identidade

    O processo de construo da identidade tnico-racial na sociedade brasileira bastante complexo, pois os discursos relacionados mistura racial e cultural geram muitos paradigmas.

    A mistura racial ou mestiagem possui seu vis ideolgico, quando se refere s particularidades da nao brasileira. Porm, tal ideologia pode proporcionar o afastamento com uma identidade racial desprivilegiada, como o caso a identidade negra.

    O que no se pode negar que o Brasil um pas formado por diversas etnias, que se mostram tanto nas variaes dos tons de pele, quanto na pluralidade cultural, como relata Oliveira (2004)

    O Brasil um pas mestio, biolgica e culturalmente. A mestiagem biolgica , inegavelmente, o resultado das trocas genticas entre diferentes grupos populacionais catalogados

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    como raciais, que na vida social se revelam tambm nos hbitos e nos costumes (componentes culturais). (OLIVEIRA, 2004, p. 57)

    Deste modo, os discursos da mistura podem ser interpretados de maneira positiva, para serem utilizados nos processos de auto-identificao. Pois, buscar entender a mistura de forma mais dinmica, possibilita a construo de uma discusso, enfocando os paradigmas do racismo brasileiro.

    Entretanto, mesmo considerando o preconceito e a discriminao contra a etnia afro-brasileira, como uma herana histrica de nossa sociedade, Ribeiro (1995), faz uma abordagem sobre a questo da etnia, defendendo a tese da miscigenao como fator importante da diversidade social e cultural que caracterizam nosso pas, enquanto possuidor de uma particularidade nica e complexa, que nos diferencia de qualquer sociedade desse planeta. Ele diz que (...) surge como uma etnia nacional, diferenciada culturalmente de suas matrizes formadoras, fortemente mestiada, dinamizada por uma cultura sincrtica e singularizada pela redefinio de traos culturais dela oriundos. (RIBEIRO, 1995, p.19)

    Porm, Munanga (2004), faz uma observao em relao essa postura afirmando que:

    A mestiagem no pode ser concebida apenas como um fenmeno estritamente biolgico, isto , um fluxo de genes entre populaes originalmente diferentes. (...) A noo de mestiagem, cujo uso ao mesmo tempo cientfico e popular, est saturada de ideologia. Por isso, seria importante, antes de qualquer anlise, deixar claras as devidas conotaes. (MUNANGA, 2004, p.18)

    A respeito das relaes histricas que traaram as relaes raciais a partir de conceitos de superioridade e inferioridade biolgica, Munanga (1988) ressalta que as mesmas,

    Visa alienar e inferiorizar os negros em todos os planos. Nesse processo, fez-se um paralelismo forado entre o cultural e o biolgico. Pelas diferenas biolgicas entre povos negros e brancos, tentou-se explicar as culturas e concluir-se por uma diminuio intelectual e moral dos primeiros. (MUNANGA, 1988, p. 5-6)

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    Munanga (2004) pensa que o conceito de mestio pode ser politicamente desarticulador, a partir do momento que se apresenta como um obstculo epistemolgico para a construo de uma identidade solidria entre negros e mestios, visto que ambos enfrentam a discriminao e o preconceito racial.

    Algumas vozes nacionais buscam atualmente reunir todas as identidades, brancos, negros, indgenas em torno da unidade mestia reunindo todos os brasileiros. Vejo nesta proposta uma nova sutileza ideolgica para recuperar a idia de unidade nacional no alcanada pelo fracasso do branqueamento fsico. Essa proposta de uma nova identidade mestia, nica, vai na contramo dos movimentos negros e outras chamadas minorias. (MUNANGA, 2004, p. 16)

    Porm, embora seja possvel admitir que o argumento da miscigenao, possa reafirmar o mito da democracia racial, e esconder em sua essncia a ideologia do branqueamento, necessrio que haja uma maior reflexo sobre o assunto, pois essa anlise mostra-se um tanto limitada frente realidade da formao do povo brasileiro, e ao pressuposto ideolgico que afirma que somos todos iguais.

    Assim, nesse sentido que destacamos o pensamento de Ribeiro (1995) O primeiro brasileiro consciente de si foi, talvez, o mameluco, esse brasilndio mestio na carne e no esprito, que no podendo identificar-se com os que foram seus ancestrais americanos - que ele desprezava -, nem com os europeus - que o desprezavam - e sendo objeto de mofa dos reinis e dos luso-nativos, via-se condenado pretenso de ser o que no era nem existia: o brasileiro (RIBEIRO, 1995, p.128).

    Assim, entendemos que, na complexa estrutura social em que vivemos, onde existe um mundo particularidades, no podemos deixar de admitir a presena da diversidade social e cultural entre os indivduos, de modo a haver uma mistura que mesmo estando relacionada a uma identidade especfica, tambm vo sendo caracterizadas por esse processo de miscigenao, como aponta Ribeiro (1995)

    (...) Todos ns, brasileiros, somos carne da carne daqueles negros e ndios supliciados. Todos ns brasileiros somos, por igual, a mo possessa que os supliciou. A doura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de ns,

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    sentida e sofrida que somos e a gente insensvel e brutal, que tambm somos. Como descendentes de escravos e de senhores de escravos seremos sempre servos da maldade destilada e instilada em ns, tanto pelo sentimento da dor intencionalmente produzida para doer mais, quanto pelo exerccio da brutalidade sobre homens, sobre mulheres, sobre crianas convertidas em pasto de nossa fria. (RIBEIRO, 1995, p. 120)

    importante destacar, que a abordagem da miscigenao como elemento relevante para se pensar o significado de raas no Brasil realizada neste artigo, no possui nenhuma pretenso de colocar as relaes raciais brasileiras de um modo mais agradvel. O racismo brasileiro to violento e presente, como qualquer outro princpio que fere as relaes sociais.

    O que tentamos ressaltar foi problemtica da mistura racial e cultural na sociedade brasileira, pois o sujeito deve ter o direito de no identificar-se com nenhuma matriz tnica existente, sendo levado a construir seu processo identitrio a partir de elementos ou traos culturais que ressignifiquem essas matrizes tnicas, mas

    construindo outra identidade: a de brasileiro mestio, sem que com isso, caiamos na armadilha ideolgica do branqueamento e/ou do mito da democracia racial (j devidamente denunciada nesse trabalho), nem muito menos na presuno de que ruim ser negro, pois, ao compreender o processo de mistura de raas, na formao do povo brasileiro, compreendemos tambm que fazemos parte de um mesmo grupo.

    Assim, no contexto da mestiagem, ser negro possui vrios significados, e a formao de uma identidade negra resulta na compreenso da lgica das relaes raciais brasileiras, que tm em sua origem a ancestralidade africana (afrodescendentes), porm, ciente da existncia da mistura tnica, e com a conscientizao de ser negro antes de tudo uma posio poltica.

    Querer Ser como (Re) Construo da Identidade Negra

    A histria oficial do Brasil reservou ao negro um espao que comea e termina na escravido e sobre a civilizao negro-africana espalhou-se uma nuvem de preconceito, exotismo e esquecimento, que reproduzida at hoje quando ainda apontam-se as culturas africanas e indgenas como primitivas.

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    Assim, afirmar a identidade negra faz parte de um processo de ruptura com os estigmas histricos dessa populao que foi inferiorizada e subjugada diante de um ideal esttico-cultural eurocntrico, desde o Brasil colonial.

    No entanto, o processo de construo das identidades pessoais, social e tnico-racial algo bem dinmico, pois se faz no processo histrico. E caso da sociedade brasileira torna-se bastante confusa, devido a mistura das raas. Desta forma, com razo que o antroplogo Kabegele Munanga (2009) declara que: No fcil definir quem negro no pas, pois em um pas que se estruturou com a miscigenao tnico-

    cultural e desenvolveu o desejo de branqueamento para evitar a ascenso da populao negra, no fcil apresentar uma definio de quem negro ou no. Munanga afirma ainda, que os conceitos de negro e de branco tm um fundamento tnico-semntico, poltico e ideolgico, mas no um contedo biolgico. [...] Trata-se de uma deciso poltica (Munanga, 2004, p. 52). E por se tratar de um posicionamento poltico, identificar-se com determinado grupo tnico-racial, pressupe aceitar as caractersticas atribudas a ele, assim como compartilhar dessas caractersticas na sociedade.

    Para fins de estudos demogrficos, no Brasil, a atual classificao racial do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica) a que adotada como oficial desde 1991. Esta classificao tem como diretriz, essencialmente, o fato da coleta de dados basear-se na autodeclarao, ou seja, a pessoa escolhe, entre cinco itens (branco, preto, pardo, amarelo e indgena) qual deles se considera, ento para a classificao a populao negra, faz-se o somatrio de quem se autodeclara preto e pardo. Assim, mesmo que o entrevistador o identifique em determinado grupo, cabe ao entrevistado a sua classificao. Desta forma, possvel reafirmar que ser negro no Brasil , antes de tudo, um reconhecimento social e poltico.

    Mas declarar-se negro menos comum do que se espera, uma vez que a identidade negra aqui entendida, trata-se de um processo a ser construdo historicamente em uma sociedade que padece de um racismo disfarado, e assim destaca Souza (1990) apud Gomes (2002):

    (...) ser negro no Brasil tornar-se negro. Assim, para entender o tornar-se negro num clima de discriminao preciso considerar como essa identidade se constri no plano simblico. Refiro-me aos valores, s crenas, aos rituais, aos mitos,

    linguagem. (SOUZA 1990, p.77) apud (GOMES, 2002, p. 3)

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    Partindo do pressuposto de que a identidade um processo de construo social, verificamos assim, que a identidade negra recebeu uma carga de interpretao social negativa, ressaltando o lugar de subalternidade deste grupo social. Porm, esta identidade precisa ser trabalhada de forma positiva, visto que a solidificao da idia pejorativa e marginalizada, leva muitos afro-descendentes autonegao.

    Em uma pesquisa realizada com alunos entre 11 e 16 anos, de uma turma de 5 ano, com vinte e dois alunos, de uma escola municipal da cidade de Joo Pessoa PB foram apresentadas quatro categorias para a identificao tnica (branco, negro, amarelo e indgena) e um espao com a opo outro, para que os estudantes pudessem expor qualquer outra forma de identificao pessoal. O resultado foi interessante: apenas dois se declararam negros, seis se afirmaram brancos e catorze declararam-se outro, sendo que treze escreveram no espao ao lado, o termo moreno e um identificou-se como pardado. Ao ser questionado sobre o termo, a resposta foi imediata: Professora, eu no sei como o nome, mas eu no sou branco e tambm no quero ser negro, ento eu acho que sou pardado, num assim que se chama quem no branco nem preto?

    A partir desse contexto, podemos refletir como a formao que recebemos ao longo da vida fundamental no processo da construo da identidade, seja ela negra ou no. necessrio (re) conhecermos a importncia da contribuio africana na formao da nossa sociedade e o entender de que, independente das caractersticas fenotpicas, a populao brasileira produto da mistura das raas, principalmente os africanos que se apresentaram em grande nmero.

    Portanto, acreditamos que a identidade negra uma das configuraes que a pessoa pode assumir em diferentes e/ou permanentes momentos de sua vida. E, que quando se assume negro, torna-se negro no s pela pele, mas pelo o que se sofre na pele, fortalecendo um pertencimento tnico-racial, e a partir deste fortalecimento, o indivduo est mais propenso a contribuir consigo mesmo e com seu grupo. Sobre isso, Joaquim (2001) destaca:

    Uma das manifestaes de identidade social a identidade tnica, que permite apreender a prpria etnicidade e constitui a principal caracterstica do grupo tnico. () O principal significado emocional de pertinncia a um grupo tnico um princpio organizador e mobilizador de interesse de grupos especficos, com isto podendo possuir uma conotao positiva. Grupos tnicos so grupos cujos membros possuem uma

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    identidade distinta e atribuda e, ao mesmo tempo, tm, basicamente, cultura, origem e histria comuns (JOAQUIM, 2001, p. 52).

    Portanto, podemos dizer que a identidade, seja ela eurobrasileira, amerndia ou afro-brasileira, baseia-se na escolha poltica de cada sujeito social e histrico, principalmente, em um pas extremamente miscigenado como o nosso.

    Consideraes finais

    Compartilhamos ao longo do trabalho, definies e conceitos sobre identidade e mestiagem, que nos possibilitam refletir sobre a construo da identidade negra, e compreender que esta construo parte de um posicionamento poltico e histrico-cultural e no de uma questo esttica.

    Alm disso, ressaltamos tambm que a mestiagem, em nossa opinio, no nega possibilidades, mas permite aos sujeitos a oportunidade de ampliarem seu sentimento de pertena, permitindo-os transitar por entre as fronteiras.

    No entanto, compreendemos que abordar a questo da mestiagem como uma possibilidade de construo identitria, um assunto muito delicado, pois sabemos que nas relaes etinicorraciais no Brasil, ainda persistem o mito da democracia racial como forma invisibilizar o processo de aculturao, embasado no preconceito e na desvalorizao da cultura afrodescendente para a formao da sociedade brasileira.

    No obstante, consideramos fundamental uma educao voltada a desmistificar todo e qualquer estigma referente as razes afrodescendentes, e ainda reafirmamos necessidade de um posicionamento poltico-social, com a finalidade de legitimar a importncia da populao negra para a formao da sociedade brasileira.

    E assim, de ante do exposto, conclumos que ser negro muito mais que caractersticas fenotpicas, Ser Negro envolve cultura, antepassados, envolve atitude, coragem e acima de tudo se reconhecer como negro e ter conscincia e convico de sua contribuio na construo da nossa sociedade.

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