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Cenários da Comunicação, São Paulo, v. 6, n. 1, p. 89-95, 2007. Cenários da Comunicação 89 Humberto Pereira da Silva Professor de Filosofia da Educação na Fintec, Faculdade Interlagos, em São Paulo. Osasco – SP [Brasil] [email protected] Apontamento sobre a moral subsumida em As mãos sujas A filosofia sartriana e o existencialismo influencia- ram significativamente o pensamento no século passado. Além de filósofo, Sartre também foi um grande escritor. Em sua peça As mãos sujas, pode-se perceber o reflexo de muitas de suas idéias. Neste artigo, procura-se apontar a questão moral, portan- to, o problema da liberdade, presente nessa peça es- pecífica do conjunto da obra literária de Sartre. O tema central de As mãos sujas é a liberdade de esco- lha, quando os personagens estão inseridos numa “situação-limite”, que, para Sartre, é o momento de afirmação da liberdade. O objetivo do texto não é abrir polêmica em torno de conceitos como o de “si- tuação-limite” ou de liberdade, em Sartre, mas, sim, exibir, indicar como esses conceitos estão aplicados nessa peça. Palavras-chave: Acaso. Liberdade. Problema moral. Situação-limite.

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  • Cenrios da Comunicao, So Paulo, v. 6, n. 1, p. 89-95, 2007.

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    Humberto Pereira da Silva Professor de Filosofia da Educao na Fintec, Faculdade Interlagos, em So Paulo.

    Osasco SP [Brasil][email protected]

    Apontamento sobre a moral subsumida em As mos sujas

    A filosofia sartriana e o existencialismo influencia-ram significativamente o pensamento no sculo passado. Alm de filsofo, Sartre tambm foi um grande escritor. Em sua pea As mos sujas, pode-se perceber o reflexo de muitas de suas idias. Neste artigo, procura-se apontar a questo moral, portan-to, o problema da liberdade, presente nessa pea es-pecfica do conjunto da obra literria de Sartre. O tema central de As mos sujas a liberdade de esco-lha, quando os personagens esto inseridos numa situao-limite, que, para Sartre, o momento de afirmao da liberdade. O objetivo do texto no abrir polmica em torno de conceitos como o de si-tuao-limite ou de liberdade, em Sartre, mas, sim, exibir, indicar como esses conceitos esto aplicados nessa pea.

    Palavras-chave: Acaso. Liberdade. Problema moral. Situao-limite.

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    Se verdade que o homem livre em uma

    situao dada e que se escolhe livre nesta e por

    esta situao, ento preciso mostrar no tea-

    tro situaes simples e humanas e liberdades

    que se escolhem nestas e por estas situaes.

    Jean-Paul Sartre

    1 Sartre: uma moral provisria expressa em As mos sujas Neste artigo, apresenta-se um apontamento,

    uma indicao reduzida de como a moral est con-tida em uma obra especfica de Sartre (1905-1980). Esse alerta necessrio, porque a moral, para os comentadores desse autor (em especial, Francis Jeanson, em Le problme moral et la pense de Sartre, e Jeannette Colombel, em Sartre ou le parti de vivre), ocupa um lugar controverso no conjunto da obra sartriana. Isso ocorre porque Sartre no escreveu uma moral, mas apenas a anunciou na concluso de O ser e o nada:

    A ontologia no pode formular ela prpria

    prescries morais. Consagra-se unicamente

    quilo que , e no possvel derivar impe-

    rativos de seus indicativos. Deixa entrever,

    todavia, o que seria uma tica que assumisse

    suas responsabilidades em face de uma reali-

    dade em situao. (SARTRE, 2000, p. 763),

    No obstante, ainda que em O ser e o nada seu livro mais famoso e influente naquilo que passou a ser conhecido como a filosofia existencialista tenha feito apenas indicao de que a ontologia deixa entrever o que seria uma tica que assumisse suas responsabilidades, quando diante de uma realidade em situao, Sartre acabou esboando um projeto para a escrita de uma moral (as notas desse projeto foram publicadas pela Gallimard sob o ttulo Cahiers pour une morale, aps a morte de Sartre). Alm desse projeto, pode-se ponderar que h algo como uma moral provisria em Sartre, quando se lem seus romances, contos e peas. A sugesto de que h apenas uma moral provisria em Sartre, expressa em sua obra literria, reforada quando se observa que proposies enunciadas em O ser e o nada, que entreveriam uma moral sar-triana, so contraditas em O existencialismo um humanismo. Em O ser e o nada, Sartre expressa que nunca conseguiremos, na relao com o prximo, o reconhecimento mtuo da liberdade do outro: Todavia, a existncia do Outro traz um limite de

    fato minha liberdade. Com efeito, pelo surgi-mento do Outro, aparecem certas determinaes que eu sou sem t-las escolhido (SARTRE, 2000, p. 642); j em O existencialismo um humanismo, Sartre afirma que podemos, devemos e, realmente, temos de respeitar a liberdade dos outros:

    Sem dvida, a liberdade, enquanto defini-

    o do homem, no depende de outrem,

    mas, logo que existe um engajamento, sou

    forado a querer, simultaneamente, a minha

    liberdade e a dos outros; no posso ter como

    objetivo a minha liberdade a no ser que meu

    objetivo seja tambm a liberdade dos outros.

    (SARTRE, 1987, p. 19).

    Assim, a anlise do vnculo entre o problema moral e os pressupostos do pensamento sartriano requer um tratamento especializado; por isso, neste trabalho, limitamo-nos a apontar como Sartre, em As mos sujas (1948), escrita anos depois de O ser e o nada (1943) e de O existencialismo um humanismo (1946), engaja-se nas polmicas sobre o marxismo e molda as aes de personagens que esto imersos naquilo que caracterizado em suas diversas peas e romances como uma situao-limite: momento em que se obrigado a fazer uma escolha, ou seja, momento de afirmao da liberdade, entendida como problema de ordem moral, expressa por meio da idia de situao-limite, est presente tanto em As mos sujas quanto, com o mesmo desenvolvi-mento estrutural, em As moscas, Entre quatro paredes o inferno so os outros , O diabo e o bom Deus e na trilogia Os caminhos da liberdade. O objetivo aqui, no entanto, no analisar se as proposies morais enunciadas em As mos sujas esto ou no em contradio com o que est expresso em outras obras de Sartre, mas apenas apontar para a moral que lhe est subsumida. No se trata, portanto, de apresentar uma tese e focar a argumentao em sua defesa. Como o ttulo do texto sugere, o que se tem no horizonte a indicao da maneira como a moral subsumida na pea As mos sujas. Entende-se, portanto, que justamente porque uma moral no foi elaborada em sua obra filosfica, pode-se extrair uma moral provisria sartriana em sua obra liter-ria, como As mos sujas. Provisria porque o projeto de uma moral definitiva, anunciada em O ser e o nada, ficou apenas na inteno. O objetivo do texto, com isso, mostrar como a moral provisria em Sartre est subsumida em As mos sujas.

    A moral subsumida em As mos sujas tem como foco a transformao de um problema particular

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    da poltica (o conflito entre o secretrio do Partido Operrio da Ilria e os dirigentes de um grupo minoritrio desse partido, quando aquele julga legtimo aliar-se a outros partidos, mesmo contra-riando as linhas gerais do Partido Operrio) em um dos grandes dilemas morais da humanidade: se a ao (numa situao-limite) se fundamenta em princpios, seus efeitos podem ser trgicos, mas se ela for desconectada de princpios, a confiana ser eliminada do cenrio (a traio da confiana em si prprio ter como efeito aquilo que Sartre chama de m-conscincia) e seus efeitos podem, igualmente, no escapar tragdia. Esse dilema, que diz res-peito ao problema da articulao entre a liberdade e a moral, apresentado na pea pela contraposio entre um individualista, que afirma agir movido por princpios (Hugo), e um no-individualista, que no v como agir seno por meios obscuros, ou seja, sujando as mos (Hoederer, o secretrio do Partido Operrio). Hugo coloca as idias acima dos homens; enquanto Hoederer as coloca abaixo. Para Hugo, a ao no se pode apartar de princpios que a sustentem: no se pode mentir, pois a men-tira encerra a ruptura com a confiana (deve haver coerncia entre a fala e a ao); j para Hoederer, a ao no pode ser apartada da eficcia, mesmo que, para isso, se tenha de colocar as mos dans la merde et dans le sang: a coerncia entre a fala e a ao dispensvel, pois se pode solucionar cada problema pela apreciao das variveis presentes nas circuns-tncias especficas de cada momento.

    2 Dilemas e ambigidades dos personagens de As mos sujas: a liberdade de escolha como problema moral

    A liberdade de escolha entre uma ao que seja julgada como pura e uma a ser avaliada como impura fornece, esquematicamente, a silhueta moral dos dois personagens principais da pea. Contudo, as aes dessas personas inscrevem-se em ambigidades, de sorte que esse esquema no obs-tante expresse o dilema moral em que cada um est envolvido demasiado simples para comportar a complexidade da liberdade de escolha entre uma ao e outra em uma situao-limite. Na evoluo das situaes em que as personas se inserem na pea, vejamos como a questo da ambigidade se revela. O fato de Hoederer, com sua estratgia de composi-o, ferir os princpios do partido e pr em risco a causa faz com que integrantes do grupo minoritrio

    se vejam compelidos a tir-lo de cena, assassinando-o. Para realizar tal empreitada, convocado aquele que, para executar um ato dessa envergadura, daria prova inequvoca de comprometimento com os ideais de ruptura com sua classe de origem, ou seja, quem tem de mostrar compromisso com os princ-pios orientadores do partido Hugo, cuja origem pequeno-burguesa desperta desconfiana.

    Sartre coloca, ento, os dois personagens numa situao-limite: para no fugir aos princpios orien-tadores do partido, Hugo no pode esquivar-se tarefa que lhe fora confiada. Nessa situao-limite, revela-se que o esquema que ope pureza de aes e eficcia, para justificar o primado da liberdade, no pode ser compreendido, pois se desconhe-cem as nuances e os limites que qualquer situao comporta. Hugo, que simboliza o primado da ao em conformidade com os princpios, claudica, da mesma forma que Hoederer revela, ao fim, suas incertezas e indecises. De fato, se Hugo afirma agir movido por princpios, verdade tambm que ele se curva retrica de Hoederer, mesmo sabendo que suas aes so impuras. No instante em que Hugo vacila na ao a que fora destinado pelo par-tido assassinar Hoederer , o prprio Hoederer que tenta fazer com que ele assinta as razes que o levam a pr a eficcia acima dos princpios e se prope a ajud-lo:

    Hoederer Com certeza. Tu s um rapazi-

    nho, a quem custa bastante passar idade de

    homem, mas dars um homem muito acei-

    tvel se algum te facilitar a passagem. Se

    eu escapar aos petardos e s bombas que me

    esto destinados, farei que fiques aqui e hei de

    te ajudar. (SARTRE, 1972, p. 139).

    Hugo, num primeiro momento da situao-limite, falha e cede aos apelos de Hoederer. Entende que, de fato, no se encontra numa posio para avaliar o sentido mais profundo e os motivos de sua ao. A maneira com que Hoederer levanta a ques-to sugere que, ao agir de acordo com os interesses no to visveis do partido, Hugo seria um imbe-cil til. Hoederer faz Hugo entender que ele no est em condies de agir por princpios: aquilo que toma por princpios no passa de caprichos de um esprito ainda imberbe.

    No entanto, em seguida falha e numa situ-ao que escapava ao figurino dado pela oposio pureza/eficcia, Hugo flagra Hoederer em inti-midade com Jssica, sua companheira amorosa, e acaba por assassin-lo. O assassinato, que seria

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    motivado por razes polticas, acaba se realizando como defesa da honra: Hoederer seria indigno de viver, porque feria o cdigo moral que condena a partilha de companheiras. Aps passar dois anos na priso, Hugo libertado e confessa a Olga (inte-grante do partido que o acolhe quando ele completa a pena) que o assassinato fora obra do acaso, pois havia aceitado a ajuda proposta por Hoederer:

    Hugo Sei ao menos se o cometi realmente?

    No fui eu quem matou, foi o acaso. Se tivesse

    aberto a porta dois minutos mais cedo ou

    dois minutos mais tarde, no os tinha surpre-

    endido enlaados, no tinha disparado... Ia

    ter com ele para lhe dizer que aceitava a sua

    ajuda. (SARTRE, 1972, p. 147).

    Ou seja, Hugo no s assente que Hoederer estaria correto ao lhe atribuir ingenuidade na assun-o de princpios etreos, mas tambm sustenta que o assassinato no teria ocorrido seno como fruto da mais absoluta coincidncia de encontros. Num sentido mais amplo, o que Sartre acaba expres-sando pela boca de Hugo o absurdo existencial, a angstia do ser-a, que configura a contingncia que envolve o fato de estar lanado no mundo:

    A ordem do vivido s visvel a posteriori:

    ento que escapamos do acaso. Isso signi-

    fica que no se pode verdadeiramente escapar

    do acaso. O acontecimento presente tem um

    peso que advm precisamente de que ele no

    est imediatamente inserido num curso de

    eventos. (SILVA, 2004, p. 83).

    Ao atribuir seu ato ao acaso, Hugo despe-se de princpios que o levaram a assassinar Hoederer e toma sua ao como algo do qual no tem razo de orgulhar-se: Hugo Achava-me novo demais; quis pendurar um crime ao pescoo como uma pedra. E receava que ele fosse muito pesado. Grande erro: leve, horrivelmente leve. No tem peso (SARTRE, 1972, p. 149). Hugo, com isso, revela a banalidade de seu gesto e, ainda, que Hoederer pode no ter sido outra coisa seno um meio para tentar dar sen-tido sua vida. O desastre que, por meio dessa atitude, se v apenas a ausncia de sentido, pois ele no sente o peso daquilo que fez: Hugo, simples-mente, no se ressente.

    De fato, s enquanto tem uma finalidade

    portanto finalidade para um sujeito o

    fato psquico significa alguma coisa, tem um

    sentido. Caso contrrio, mero efeito de uma

    causa, automaticamente; ocorre sem visar a

    um fim, apenas ocorre. (MOUTINHO, 1995,

    p. 56).

    Assim, no admite que a motivao de seu crime tenha sido poltica, nem tampouco t-lo cometido por motivo passional:

    Hugo Matei-o... matei-o porque tinha aberto

    a porta. tudo quanto sei. Se no tivesse

    aberto aquela porta... ele no meio da casa,

    com Jssica nos braos... tinha no queixo mar-

    cas de batom. Era uma cena trivial. E eu vivia,

    desde h muito, na tragdia. Foi para salvar a

    tragdia que disparei.

    Olga No tinhas cimes?

    Hugo Cimes? Talvez. Mas no da Jssica.

    (SARTRE, 1972, p. 147).

    A gratuidade do ato mostra como os princpios de fidelidade causa que defende podem ser colo-cados em suspenso. No primeiro momento que se ps diante de Hoederer para executar a tarefa da qual o incumbira o partido, poderia t-la realizado com a mesma justificativa: para salvar a tragdia. No entanto, como anunciamos, apenas superficial-mente que podemos traar a silhueta das personas na pea. o mesmo Hugo que se horroriza no final da pea quando Olga lhe diz que os meios utili-zados por Hoederer (sujar as mos em uma ao) no diferem daqueles que ela e o orbe no qual ele se inscreve tambm utilizam, ou seja, apenas Hugo acredita que, em uma situao-limite, possa haver pureza em uma ao.

    Hugo Deixa de palavras bombsticas, Olga.

    Houve-as a mais nesta histria e produziram

    pssimos resultados. (O automvel afasta-

    se). No o carro deles. Tenho tempo para

    te explicar. Escuta: eu no sei por que que

    matei Hoederer, mas sei por que que o devia

    ter morto: porque ele impunha uma poltica

    m, porque mentia aos camaradas e porque

    fazia o Partido correr o risco de apodrecer. Se

    eu tivesse tido coragem para disparar quando

    estava sozinho com ele no escritrio, era por

    essas razes que ele teria morrido, e eu poderia

    ento pensar em mim sem vergonha. Tenho

    vergonha de mim, porque o matei... depois.

    E vocs, vocs ento querem que eu tenha

    mais vergonha ainda e que decida que o matei

    sem razo. Olga, eu ainda penso o que pen-

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    sava sobre a poltica do Hoederer. Na priso,

    julgava que vocs estavam de acordo comigo,

    e isso dava-me foras; sei agora que ningum

    pensa como eu, mas no mudarei de opinio

    por causa disso. (SARTRE, 1972, p. 155).

    Apesar de garantir, antes, que o assassinato fora obra do acaso e que assentara as razes de Hoederer numa espcie de espelho invertido, Hugo se descon-certa ao saber que ambos os lados se movem por razes alheias s dele, ou seja, ele se encontra s e essa revelao fatal.

    O que admirvel em Hoederer que ele sabe

    que paga um preo, e o que mesquinho e

    at odioso em Hugo que no h sequer um

    preo. intil dizer que Hugo guiado por

    um ideal abstrato de humanidade, ante o qual

    os homens como so no tm interesse para

    ele, e ao qual, impunemente, podem ser sacri-

    ficados. (DANTO, 1975, p. 119).

    Diante disso e acossado pelos asseclas de Hoederer que se encaminham para mat-lo, a deciso final de Hugo foi o suicdio. A pureza na relao entre princpios e ao, exibida na fala de Hugo, intil, na medida em que um jogo de palavras: seu ato final o suicdio no o honra, pois acaba sendo um capricho de um individualista burgus que nem sequer teve coragem de sujar as mos por amor causa que abraou. Na pea, h uma passagem em que Hugo nos mostra tanto o seu individualismo quanto o papel que atribui contingncia na sua deciso de entrar no partido: Hugo ... um fulano que no tem vontade de viver para alguma coisa deve servir, se o souberem apro-veitar (SARTRE, 1972, p. 30). Embora afirme, logo em seguida: Abandonei a minha famlia e a minha classe no dia em que compreendi o que era a opres-so (SARTRE, 1972, p. 33). O sentido da escolha de Hugo indica, primariamente, a satisfao de um capricho para preencher o vazio existencial. Se possvel dizer que, para ele, o suicdio obra do acaso (assim como o assassinato do Hoederer), tam-bm se pode afirmar que qualquer de suas escolhas anteriores obra do acaso. Portanto, no poss-vel dizer que, para Hugo, haja princpios rgidos que sustentam suas aes por acaso, ele entrou no partido, mas esse mesmo acaso poderia t-lo impul-sionado a fazer outra escolha.

    Da mesma forma que no se pode afirmar que as aes de Hugo so sempre impulsionadas por princpios rgidos, tambm no se pode afirmar

    que Hoederer age sempre tendo, por alvo, a eficcia, como se tivesse, constantemente, uma edio de O Prncipe em mos: Hoederer Todos os meios so bons quando so eficazes (SARTRE, 1972, p. 126). assim que Hoederer se pronuncia ao rebater um argumento de Hugo, para quem nunca se deve men-tir aos camaradas, pois a mentira prpria da classe a que pertence a burguesia:

    Hugo Hoederer, eu... eu sei melhor do que

    o senhor o que a mentira; em casa do meu

    pai todos mentiam uns aos outros e todos me

    mentiam a mim. S respirei desde que entrei

    para o Partido. Pela primeira vez via homens

    que no mentiam uns aos outros. Cada um

    podia ter confiana em todos e todos em qual-

    quer um [] (SARTRE, 1972, p. 125).

    Apesar da retrica da eficcia, Hoederer que dispensa a revista quando seus guarda-costas rece-bem a recusa de Hugo, no momento que aqueles se encaminham para revist-lo. O argumento apre-sentado por Hoederer para que seus guarda-costas respeitem a recusa da revista o de que Hugo no entrou no partido compelido pela misria.

    Hoederer Slick! No foste tu que me contaste

    que tinhas vergonha de ter fome? (Inclina-

    se para Slick e espera uma resposta que no

    vem) E que isso te enraivecia porque no te

    deixava pensar noutra coisa? E que um rapaz

    de vinte anos deve ter mais que fazer do que

    passar o tempo preocupado com o estmago?.

    (SARTRE, 1972, p. 59).

    Com isso, Hoederer entende que as razes de Hugo no derivam da carncia material: ele pode-ria desfrutar uma vida aprazvel como um bom burgus, mas abriu mo do conforto dessa vida e aderiu causa do povo para descobrir o respeito por si prprio: Hoederer Prova que tu querias o teu po e mais qualquer coisinha. A essa coisa chama este o respeito por si prprio. (SARTRE, 1972, p. 60). Ao opor Slick e Hugo, Hoederer pondera que Hugo se move exclusivamente por aquilo que Slick quer alm de po: ser respeitado. Para Hoederer, o impulso dado por Hugo f-lo entender que apenas o po no lhe basta, enquanto Slick pode muito bem ser levado por interesses imediatos.

    Ao abrir um precedente para Hugo, no entanto, Hoederer leva em conta menos a fidelidade orienta-o do partido e mais o ideal que sustenta a escolha de Hugo. Por isso, apesar de agir quase sempre como

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    se tomasse O Prncipe por receita, Hoederer, em rela-o revista de Hugo, no est considerando, em primeiro plano, a mxima maquiavlica que diz:

    Nota-se que preciso tratar bem os homens ou

    ento aniquil-los. Eles se vingaro de peque-

    nas injrias, mas no podero vingar-se de

    agresses graves; s devemos injuriar algum

    se no tememos sua vingana. (MAQUIAVEL,

    1979, p. 78).

    Ou seja, Hoederer trata bem Hugo, no porque o teme (seria esse o caso se ele considerasse, em pri-meiro plano, a eficcia), mas por sua firmeza t-lo persuadido do desejo de apagar, por meio de uma escolha, sua origem burguesa. Embora Hugo seja um intelectual burgus que carrega consigo, caprichosa-mente, as fotos de sua infncia opulenta, Hoederer passa por cima da orientao do partido em razo de acreditar que ele age por princpios e que vale a pena ter algum assim nas fileiras do partido.

    Hoederer Ah! (Olha para ele) E se for eu a

    pedi-lo? (pausa) Estou a ver: uma pessoa de

    princpios. Tambm eu podia fazer disto uma

    questo de princpios, sabes? Mas os princ-

    pios e eu (pausa) Olha para mim! Trazes

    alguma arma?

    Hugo No.

    Hoederer E tua mulher tambm no?

    Hugo No.

    Hoederer Est bem. Confio em ti. Vocs

    podem-se ir embora.

    (SARTRE, 1972, p. 63).

    Hoederer afirma confiar em Hugo, isto , com essa afirmao, ele pe um valor moral acima da mesquinhez da eficcia poltica. Mais adiante, exprimir a positividade do valor da confiana: Hoederer (para Slick e Jorge) e tomem nota da lio: preciso confiar nas pessoas. Eu confio sempre. Em toda a gente (SARTRE, 1972, p. 64). A confiana, para Hoederer, assume, assim, a fei-o de um princpio: s confiando nas pessoas (mesmo nos inimigos) que se pode impedir que cem mil homens de uma penada sejam elimi-nados do mapa. Ao apontar suas aes na direo dos homens (Hugo o faz na direo das idias), Hoederer sustenta que s se pode modificar o mundo se houver confiana entre os homens, inde-pendentemente das idias que cada um defende. No momento mais tenso da pea, quando Hugo est na iminncia de cometer o assassinato, Hoederer

    ratifica a confiana que nele depositara, apesar de perceber, naquele instante, que fora encarregado de assassin-lo:

    Hugo Eu no fui feito para viver; no sei o

    que a vida nem tenho preciso de saber. Sou

    de mais, porque no tenho lugar no mundo e

    ando a estorvar toda a gente; ningum gosta

    de mim, ningum tem confiana em mim.

    Hoederer Tenho eu, Hugo. Tenho eu con-

    fiana em ti.

    (SARTRE, 1972, p. 139).

    O ponto a ser destacado na confiana que Hoederer deposita em Hugo o seguinte: ela se assemelha a um clculo, a uma aposta. Na pea, h um movimento que parece indicar isso, ou seja, as razes apresentadas por ele para entrar no par-tido bastavam. No instante em que fora alvejado por Hugo, porm, Hoederer deixa escapar que sua confiana, na verdade, reside em sua capacidade de convert-lo para seus propsitos e que a vanidade desse esforo decorre, no do malogro daquilo que intencionava, e sim de um equvoco que ps tudo abaixo: Hoederer Espera! Espera! No faas asneira. Por causa de uma mulher, no! (Hugo d trs tiros. Jssica pe-se a gritar. Slick e Jorge entram na sala) Imbecil! Estragaste tudo (SARTRE, 1972, p. 146). Em certo sentido, para acentuar a ambigidade em que ambos se movem, apenas superficialmente pode-se entender que Hoederer orienta-se em conformidade com os princpios de fidelidade em contraste com a eficcia.

    Tanto o suicdio de Hugo quanto a aposta de Hoederer so inteis, pois, em ambas as situaes, um pequeno acontecimento, uma informao qual-quer frustrou todos os bons propsitos que ambos tinham em vista. Assim, as escolhas de um e de outro poderiam ser contrrias: bastava Hugo no afirmar que agia por princpios e que Hoederer no punha as mos na lama quando agia, isto , para Sartre, em As mos sujas, a liberdade de escolha no nos torna mais ou menos puros, ela apenas nos coloca em um ou outro quadro de um cenrio: a liberdade de agir no nos liga ao xito ou ao fracasso. Todos ns somos livres para escolher entre uma ou outra situa-o; apenas isso. Assim, o quadro inicial que opunha um individualista idealista e um no-individualista movido pela eficcia no capaz de dimensionar a complexidade em que cada um se encontra inserido.

    Parece ser essa a nica maneira de entender o

    mundo, de situar as coisas e de situar-se. Pois

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    as coisas j no obedecem mais s relaes

    que o sujeito quer instituir entre elas, no se

    subordinam mais a esse regime de necessida-

    des montado por via das situaes recprocas

    pelas quais consideramos as coisas elementos

    variveis de um conjunto relacional. Elas, na

    medida em que existem, recusam-se a entrar

    nesse esquema. Mas desesperador []

    (SILVA, 2004, p. 88).

    3 Consideraes finais Para concluir este apontamento, uma nota final:

    a moral subsumida em As mos sujas , em uma situ-ao-limite, qualquer ao realizada que resulta da escolha entre duas proposies dilemticas.

    Ou seja, nessa pea, a pedra de toque da moral o dilema. Ao se considerar o nexo entre princpios e ao (Hugo e o partido), a confiana faz parte do cenrio e os efeitos da ao na pea so trgicos. Quando se considera a desconexo entre princpios e ao (Hoederer e o partido), a confiana sai de cena, mas as conseqncias do agir se revelam igualmente trgicas. Uma situa-o exclui a outra; no entanto, ambas implicam o mesmo resultado: o fim trgico dos dois protago-nistas da pea. Segue-se, ento, que, para Sartre, se sou aquilo que fao de mim com minhas esco-lhas, tambm certo que deles no posso esperar nada alm da responsabilidade por ter escolhido uma ao e no outra.

    Moral subsumida em As mos sujas: a liberdade pesa quando escolhemos, pois, qualquer que seja a escolha, e no nos podemos desviar dela, abre-se caminho, para um desenlace trgico, para o absurdo, a angstia existencial temas para um estudo mais ambicioso do conjunto da obra sartriana.

    Referncias DANTO, A. C. As idias de Sartre. So Paulo: Cultrix, 1975.

    MAQUIAVEL, N. O Prncipe. Braslia: UnB, 1979.

    MOUTINHO, L. D. S. Sartre: existencialismo e liberdade. So Paulo: Moderna, 1995.

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    SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo um humanismo. So Paulo: Abril Cultural, 1987.

    SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. Rio de Janeiro: Vozes, 2000.

    SILVA, F. L. e. tica e literatura em Sartre. So Paulo: UNESP, 2004.

    Note about the morals conceived in Dirty hands

    Sartres philosophy and the existentialism were very important to the thought in the last centu-ry. Besides being a philosopher, Sartre was also a great writer and, in his play, Dirty hands, one can see many of his ideas. This paper indicates the moral question, thus, the problem of liberty, presented in this Sartres specific work. The mat-ter of Dirty hands, when the characters are inside of the border-situation, is the liberty of choice. This is the moment of affirmation of liberty, to Sartre. In this paper it is not the objective to con-test Sartres concepts, as the one about border-situation or the other about liberty, because the purpose is only to show as Sartre use them in the play Dirty hands.

    Key words: Border-situation. Chance. Liberty. Moral problem.

    recebido em 30 out. 2006 / aprovado em 13 mar. 2007

    Para referenciar este texto:SILVA, H. P. da. Apontamento sobre a moral subsumida em As mos sujas. Cenrios da Comunicao, So Paulo, v. 6, n. 1, p. 89-95, 2007.