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  • REVISTA DE EDUCAO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Mar.-N 15, Vol III, 1999.

    XAMANISMO: algumas abordagens tericasXAMANISMO: algumas abordagens tericasXAMANISMO: algumas abordagens tericasXAMANISMO: algumas abordagens tericas

    ARNEIDE CEMINARNEIDE CEMINARNEIDE CEMINARNEIDE CEMIN

    RESUMO: O objetivo deste artigo enfocar algumas contribuies tericas relativas ao estudo do xamanismo. A importncia do empreendimento vem de sua atualidade, visto estarmos assistindo a um renascimento desta temtica, que, durante muito tempo, esteve restrita ao campo da etnografia indgena. O fenmeno agora se expande da tribo a urbes, chamando-nos a ateno para os efeitos de reversibilidade da dinmica social sobre a aceitao dos "conceitos". comum, que na academia, as discusses conceituais ocorram de formas abstratas, tomando de emprstimo noes forjadas em contextos muito diferenciados daqueles de sua apl i cao.

    PALAVRAS CHAVE: Dinmica Social, Etnografia Indgena, Fenmeno e Importncia.

    ABSTRACT: The objective of this paper is to focus on some theoretical contributions concerning the study of shamanism. The importance of the project comes from its actuality, because we are watching a revival of this theme, which has long been restricted to the field of indigenous Ethnography. The phenomenon now expands tribe to cities, calling us attention to the effects of reversibility of social dynamics on the acceptance of "concepts". Is common in academia, conceptual discussions occur of abstract shapes, borrowing notions forged in contexts very different from those of its application.

    KEYWORD: Indigenous Social Dynamics, Ethnography, Phenomenon and Importance.

    1. O Problema O objetivo deste artigo enfocar algumas contribuies tericas relativas

    ao estudo do xamanismo. A importncia do empreendimento vem de sua atualidade, visto estarmos assistindo a um renascimento desta temtica, que, durante muito tempo, esteve restrita ao campo da etnografia indgena. O fenmeno agora se expande da tribo a urbes, chamando-nos a ateno para os efeitos de reversibilidade da dinmica social sobre a aceitao dos "conceitos". comum, que na academia, as discusses conceituais ocorram de formas

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    abstratas, tomando de emprstimo noes forjadas em contextos muito diferenciados daqueles de sua apl icao. o que ocorre com as noes de xam e de xamanismo, por exemplo.

    Acreditamos que tomar o xamanismo abstratamente, mapeando suas funes anlise funcionalista ou sua cosmov iso, implica reduz- lo a epifenmeno do sagrado, mantendo-o margem dos "grandes temas", primo distante das religies histricas Judasmo, Cristianismo, Islamismo sem perceber que ele guarda elementos e desenvolvimentos similares s grandes religies citadas, no que tange ao fato de (re) fundar o sagrado enquanto realidade ontolgica, em contexto cultural especfico: a religiosidade indgena.

    Por isso, fazem-se necessrias pesquisas especficas a cada caso, pois seria ingenuidade ou m f a busca do xamanismo enquanto unidade indiv idualizada e "pura" desvinculada do contexto e das injunes histricas do meio. Por outro lado, tratando-se de conceito, categoria de anlise, portanto, diz respeito a correlaes de foras sociais e a escolhas pessoais que, embora efetivadas com respaldo em adequaes tericas e empricas, no deixam de ser como todo uso conceitual escolhas tambm polt icas, que objetivam, em nosso caso, reivindicar para o xaman is mo o lu gar q ue e le de fa to parece ocup ar : sua espec if ic idade fundan te remete para a f lores ta" , para o xamanismo indgena, detentor de cosmologias e ritos particulares de contatar o sagrado e afastar o mal, seja ele a escassez de alimentos, a doena, a morte, a angstia ou o invasor.

    Desde o incio da colonizao que o ndio e seu universo cultural vm sendo sistematicamente destrudos. No campo daqui lo que denominamos rel ig io, desde o sculo XVI os administradores e catequistas se es foravam por abol ir as " Sa n t id ades ' " , no me p e lo q u a l f i ca r a m c o nhec id as as manifestaes dos ritos Tupis, em confronto com o catolicismo imposto pela metrpole. Entre as "Santidades" a mais conhecida foi a de Jaguaripe, localizada no Sul do Recncavo Baiano, em funo da resistncia que ofereceu, em 1580, e, pelo teor de suas propostas: fim da escravido e morte aos brancos portugueses (Vainfas, 1995).

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    Durante todo o sculo XVIII, a inda era marcante a perseguio religiosa contra as chamadas "heresias" dos ndios. Cmara Cascudo (1959) local izou documentao sobre a perseguio aos adeptos da Jurema, datados de 1738. Em 1836, ocorreu a matana de Pedra Bonita, em Pernambuco, que tambm incidiu sobre os "juremeiros" (Sangirardi, 1989). Nas pequenas v ilas do interior do Bras il encontramos cultos religiosos organizados em torno do xamanismo desde pelo menos o sculo XVIII (Sangirardi, 1989 e Cascudo 1971). A historiografia registra o caso da Jurema no Nordeste do Brasil, cujos Mestres e adeptos, os juremeiros, v iajam durante os seus rituais para o mundo do alm, designado por eles como juremal" ou bosque sagrado da Jurema (Sangirardi , 1989) . E , mais recentemente, dcada de 30 em diante, as religies do "Santo Daime", da "Unio do Vegetal" e da "Barquinha".

    A Jurema planta circunscrita ao Nordeste do Brasil, onde utilizada pelos ndios, particularmente os Js e os Kariris, em rituais xamnicos. Em geral, a Jurema conjugada ao tabaco, outra planta largamente usada em cerimnias religiosas como era o caso daquelas efetivadas pela Santidade de Jaguaripe. O consumo da Jurema, contudo, no se expandiu para outras regies, muito embora dessa planta seja extrado um "v inho, que, possivelmente, poderia ser consumido algum tempo aps o seu preparo, a exemplo da ayahuasca. So utilizadas no Nordeste, pelo menos duas variedades de Jurema: a Jurema preta - Mimosa hostilis - e a Jurema branca - Phitecelobium diversifolium. Entre os ndios a Jurema era consumida em rituais secretos, desse modo, as descries de seu uso dizem respeito a cerimnias reelaboradas por no-ndios ou por ndios inseridos entre os brancos, de modo que todas as descries mais antigas dizem respeito ao Catimb, considerado mescla de Xamanismo. Espiritismo e Umbanda. Nos rituais de catimb so frequentes as misturas de Jurema e cachaa, dando origem ao "Cauim" (Sangirardi, 1989).

    Como referimos, existe no Nordeste brasileiro o "culto da Jurema", cuja represso foi documentada ainda no sculo XVIII, mais precisamente em 1758 (Cascudo apud Sangirardi, 1989). A jurema era a planta sagrada dos grupos indgenas que habitavam o Nordeste brasileiro: js e tapuias, tambm conhecidos

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    por Kariris (Sangirardi, 1989). Visando situar a jurema no campo das religies populares, o autor indica que dos ndios, os brancos e mestios receberam os ensinamentos sobre a pajelana ou xamanismo, que, desse modo, configurou o catimb. Ao mesmo tempo, a pajelana e o catimb eram influenciados por elementos do "... espiritismo, da feitiaria europia (...) oraes e imagens de Santos do catolicismo". (1989:141). H nesse processo, portanto, efeitos de reversib i l idade, havendo casos de paj t raba lharem com "encantados- e espritos de Mestres do Catimb. Nesse ponto, Sangirardi cita Nunes Pereira, que contatou um paj do Alto Rio Negro que "recebia- o esprito de um dos Mestres do Catimb, o Mestre Roldo de Oliveira. (1989:141). Apesar disso o autor adverte: no h registro do uso de jurema na pajelana amaznica: "A jurema tem no Nordeste o seu habitat e s no Nordeste usada como planta mgica (Catimbs e alguns Xangs) e na medicina popular" (Sangirardi, 1989:141).

    Desse modo, no Nordeste, temos o complexo da jurema e no Norte o complexo da ayahuasca. Em ambas, inclusive, h ocorrncia de um mesmo princpio ativo, o alcalide: N.Ndimetiltriptamina (D.M.T.), segundo Sangirardi (1989:149). Alm da semelhana qumica, h notvel similaridade nos efeitos rituais pretendidos e alcanadas atravs da jurema, tambm chamada "jurubari" (1989:141). Considerada planta de poder, talism e proteo contra maus espritos e mau-olhado. Falando de seu efeito. Sangirardi assinala que proporciona sentimento de alegria, paz e empat ia com todos os seres . Seu uso pelos ndios fazia-se acompanhar com o fumo do tabaco, o marac e os cnticos em sesses destinadas a previses, aconselhamento e cura. Dos aldeamentos indgenas o autor assinala o trnsito da jurema para as "mesas" e terreiros das religies populares. Informa ainda, que ... Os trs aspectos - bebida, fitolatria, regio do astral - resumem o caminho percorrido pela jurema..." (1989:149). Vem do complexo da jurema, a tradio dos Mestres e Mestras, evocados pelas "linhas" que Sangirardi define como canes. As mesmas que chamam a presena dos Mestres nas sesses. Circunscrito ao Nordeste, perseguido, mantido em segredo pelos ndios e reelaborado pelos brancos, o culto da Jurema tem uma presena bastante marginal no cenrio religioso brasileiro. O xamanismo, tambm conhecido por

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    pajelana, no considerado entidade autnoma e discernvel. Tanto quanto aos ndios, proclama-se sempre, como dissemos, o seu desaparecimento, quer pela ausncia da temtica ou pela assimilao apressada de suas caractersticas singulares aos componentes externos ao seu universo, atravs do recurso fcil noo de "sincretismo".

    Recentemente, dado os efeitos de reversibilidade de que fa lamos . a expanso das re l ig ies ayahuasqueras vm contribuindo para o reflorescimento dos estudos sobre o xamanismo e, consequentemente sobre o culto da Jurema, a exemplo do artigo de Mota (1996) intitulado "Sob as ordens da Jurema: o xam Kariri-Xoc", sobre os Kariri-Xoc, que vivem s Margens do Rio So Francisco, no estado de Alagoas.

    Declaradas extintas, assim como os camponeses e os ndios pelo determinismo de tipo evolucionista, as relaes xamnicas no desapareceram, ao contrrio, vm mostrando forte presena como elemento construtor de identidade de ndios e outros povos da floresta em diferentes processos de contato com a sociedade urbana. O tema xamanismo irrompeu outra vez no panorama religioso como resultado de um novo avano dos brancos sobre territrios ndios, desta vez, na regio Amaznica. Falamos da frente de expanso que adentrou a floresta em busca do ltex da seringueira e do caucho. J no tini do sculo XIX, artefatos de borracha entraram na lista de exportao como objetos curiosos que, paulatinamente, foram revelando suas mltiplas aplicaes, destacando-se o seu emprego na confeco de pneus para os automveis. As duas grandes Guerras Mundiais intensificaram o emprego do ltex em variados produtos e marcaram em definitivo a presena branca na terra dos ndios localizados na Amaznia. Duas correntes migratrias se entrecruzaram poca naquele espao: nordestinos e ndios. Entre os ltimos, alguns povos j se encontravam em territrio brasileiro, ou naquilo que viria a s-lo como o caso do Estado do Acre; outros desceram dos Andes s Plancies e vales Amaznicos, extraindo seringa e, particularmente, o caucho.

    O tipo de xamanismo que ganhou visibilidade no cenrio religioso brasileiro, a partir de 1930, o que denominamos de "xamanismo ayahuasquero" (Cemin, 1998), pois ele remonta a grande tradio de consumo ritual de ayahuasca

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    praticado por inmeras tribos do Peru, da Bolvia, da Colmbia e da Venezuela. O encontro entre ndios e seringueiros, na faina de extrao do ltex, resultou na assimilao, pelos primeiros, de elementos bsicos da cosmologia indgena, entre eles, o uso de psicoativos como propiciadores das experincias de contato com o sagrado: o ch denominado ayahuasca obtido a partir da decoco conjunta de uni c ip (Banisteriopsis caapi) e a folha de um arbusto (Psicotria viridis), cujos princpios ativos so a harmina e a harmalina

    Trs vertentes prolongam o xamanismo ayahuasquero deslocando-o rumo ao espao urbano brasileiro: o Santo Daime, a Barquinha e a Unio do Vegetal. As duas primeiras vertentes foram fundadas em Rio Branco, a primeira teve origem nas hierofanias v iv idas por Raimundo Irineu Serra, migrante maranhense que teve contato com a ayahauasca por ocasio de sua chegada no ento territrio federal do Acre, em 1912, e, a partir de 1930, dedicou-se organizao do culto e sua trajetria de "curador". A Barquinha foi criada em 1945, por Daniel Pereira de Matos que, embora tenha sido iniciado no consumo ritual de Daime, por Irineu, teve sua prpria hierofania da qual derivou sua organizao religiosa. A Unio do vegetal foi fundada por Gabriel da Costa, em Porto velho, Rondnia, no incio da dcada de 1960. Antes de fixar residncia em Porto velho, Gabriel percorreu outras reas da Amaznia (brasileira, boliviana e peruana) exercendo a funo de seringueiro e nesse contexto foi iniciado ao consumo ritual de ayahuasca. A complexidade do intercruzamento de culturas que se encontram no xamanismo ayahuasquero, tal como praticado pelas vertentes a que nos referimos, coloca o difcil problema de definir o tipo de religiosidade que ele comporta: se xamanismo ou catolicismo popular, Espiritismo ou Umbanda. A diversidade institucional que demarcam as trs vertentes referidas e, ainda, o fato de que cada uma delas passou por processos de rupturas e/ou desdobramentos, dando origem a grupos mais ou menos diferenciados, acrescenta desafios ao empreendimento.

    O uso da ayahuasca como tcnica xamnica faz parte do complexo mtico religioso dos ndios localizados na Amaznia brasileira, boliviana e peruana, cujas prticas de xamanismo envolvem complexos rituais assentados em slido conhecimento de plantas mgico-medicinais, em tcnicas de contato

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    com os espritos dos mortos e com os espritos da natureza, retirando desse conjunto de conhecimentos um saber capaz de auxiliar na cura e na resoluo de problemas pessoais e coletivos (Galvo, 1979).

    Desse modo, o consumo de ayahuasca, para fins religiosos e teraputicos parece haver se propagado de um centro cultural, cuja disseminao abrange particularmente a Amaznia atravs das trocas culturais ali estabelecidas. A classificao mais ampla indica como centro de irradiao a Amrica Central, o Noroeste e o Nordeste da Amrica do Sul, a exemplo da Colmbia, Equador, Venezuela, Peru e Bolv ia. Em seu liv ro sobre mito logia brasi le ira, Slv ia Carvalho (1979), focal izando a "regio mitolgica" do Alto Rio Negro, afirma: "... acreditamos que sempre houve contato entre os Andes e a Amaznia, e deve ter sido intensificado durante a expanso Inca, provocando novos deslocamentos... (1979: 62).

    Essa referncia s culturas andinas coerente com a memria social dos adeptos da ayahuasca, entre as vertentes principais que instituem o culto no Brasil: "Santo Daime" e "Unio do Vegetal". A "Unio do Vegetal" mantm a tradio de um mito que relata a origem do cip, Jagube para os daimistas e Mariri para a "Unio do Vegetal"; e da folha, chamada de Rainha ou chacrona pelos daimistas, e de Oaska pela Unio do Vegetal, situando os heris doadores da planta no imprio "Inka" (sic.). A folha pode ser referida na Unio do Vegetal por Chacrona, assim como o cip pode ser citado pelo nome de Jagube. Entretanto, os nomes mais especficos aos quais eles em geral se referem, so os acima citados. Este ponto importante porque os nomes so " gu ard i es de mi s t r ios " e m a mbas as ins t i tu i es . Particularmente, a Unio do Vegetal, atribui muita importncia palavra como fora criadora. Do mesmo modo os daimistas, com a diferena que enfatizam mais o ato de pensamento. Entre os daimistas, existe a figura de Pizango, "ndio peruano" que teria ensinado a Irineu os "segredos da bebida". Em alguns relatos, Pizango aparece como homem histrico, contemporneo de Irineu; em outros, ele referido, como "esprito da ayahuasca", entidade sobrenatural.

    O co n j un to a ya h uasq uer o es t con t id o e m o u t r o, de f i n ido como "xamanismo", cujas prticas foram identificadas na sia, nas Amricas do Norte e Central8, bem como, na Amrica do Sul, incluindo o Brasil, como bem

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    atesta Melatti (1970), e ainda Galvo (1979), que assinala a presena do xamanismo para quase todas as reas culturais por ele arroladas em seu estudo de classif icao das reas culturais indgenas. nesse estudo inclusive, e no de Charles Wagley, que Baldus, extensamente citado por ns, encontra respaldo para considerar a existncia de xamanismo entre os ndios do Brasil.

    Estamos, portanto, diante de um vasto complexo de crena indgena quanto a possibilidade de contatar o sagrado, atravs da ingesto de substncia psicoativa, que se atualiza atravs de prticas diversas. A nosso ver, esse complexo diz respeito ao xamanismo. Declarado extinto ou em vias de extino, seu ressurgimento decorre dos efeitos de reversibilidade que resultam dos encontros culturais provocados pelas frentes de expanso da sociedade nacional, em mais um fluxo de populaes que, partindo do litoral Sul e sudeste, avana pelo interior do pas.

    2. As teorias

    Do ponto de vista terico, os estudos hoje clssicos sobre a etnografia do xamanismo na Amrica do Sul, remontam ao final das dcadas de 40, 50, e, aos anos 60, a exemplo dos estudos de Mtraux (1976), Baldus (1965/66) e Eliade (1976). Este ltimo teve seu estudo sobre xamanismo publicado em 1949, em lngua francesa, foi traduzido para o espanhol em 1960 e, no Brasil, s agora em 1999, o leitor brasileiro contar com uma edio em lngua portuguesa.

    A discusso sobre a pertinncia de se considerar as prticas religiosas dos ndios da Amaznia, como sendo de carter xamnico no nova, e bom que permanea em aberto, unia vez que sua compreenso para ns decorrer do conhecimento que possamos ter das prticas religiosas indgenas, bem como das religies urbanas diretamente influenciadas por elas. Melatti precisou escrever uma "Nota Suplementar" ao seu artigo o "Mito e o xam", em decorrncia de objees que o mdico-feiticeiro Krah pudesse ser classificado como xam. Melatti esclareceu que, "... segundo a ampla perspectiva de Baldus, talvez seja possvel reconhec-lo como Xam. Vejamos a definio de

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    Baldus:

    O xamanismo uma instituio social cujos representantes atravs do xtase produzido segundo padres tribais, entram em contato com o sob ren atu ra l a f im de defender a comunidade de acordo com suas respectivas ideologias religiosas, seja por viagens a mundos do Alm, seja pela possesso por espritos. (Baldus. 1965/66: 1 87).

    A definio de Baldus destaca: a funo do xamanismo como defesa da comunidade, e sua forma - o xtase, que pode variar de duas maneiras: viagens e possesso. As determinantes dessa variabilidade so os padres tribais, a ideologia religiosa do grupo. Discutindo autores que abordaram o xamanismo em perspectiva terica, o autor adota as assertivas de um deles, Schroder, que concilia as vises, que ele considera parciais, de Eliade - xamanismo como "tcnica do xtase" - e Wilhelm Schmidt para quem o xamanismo se define pela "possesso exttica". Ambos, percebe Schroder, embora estabeleam o xtase como critr io para o xamanismo, no localizam " o p r inc p io es trutura l do xaman is mo na par t icu lar idade universalmente humana do xtase, mas numa forma especial de sua realizao histrica''. (Schroder apud Baldus, 1965/66:189).

    Para Schroder, segundo Baldus, possesso e xtase so "dois lados do mesmo fenmeno", considera-os, portanto, como "arte da transformao". Visto que para ele, o carter de transformao prprio ao xtase em ambos os casos". (1965/66:190). Para Schroder, o xtase o princpio estrutural do xamanismo, mas no reduz esse princpio a uma tcnica ou a um nico t ipo de estado - a possesso. Para ele, o x tase particularidade humana que, como a linguagem e outras formas de expresso, assumem especificidades histricas.

    Schroder entende por "arte" no apenas a dimenso tcnica, dado as objees que faz a Eliade. Ele entende "arte" como capacidade humana. No caso, capacidade humana para o xtase. Sendo capacidade humana, sua natureza biolgica como todas as outras capacidades humanas, culturalizada. Ou seja, apropriada por concepes e regras que regem sua realizao e usos. Obedecendo, portanto, a "padro de significados transmitido

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    historicamente atravs de smbolos". (Geertz, 1978:103). O xtase, entretanto, no apenas biolgico ou cultural, porque

    pressupe, segundo Baldus, a existncia da "Alma". Diz respeito, portanto, a uma esfera particular do humano: a dimenso religiosa. No entanto, prossegue o autor, o material etnogrfico disponvel no permite discutir o conceito de alma ou de Deus em termos gerais, porque seu grau de difuso acompanha sua diversidade. Sabemos, entretanto, que todas as religies visam a esfera do Alm, lugar da alma e de outros seres sobrenaturais. O que, em geral, leva a supor que o sobrenatural tudo aquilo que invisvel, inacessvel aos sentidos dos portadores da cultura em questo. Ou, acrescenta Baldus, o sobrenatural tudo aquilo que "acessvel apenas pela sua vivncia religiosa". O comum experincia religiosa a concepo do homem como ser dual. Esprito e matria. Por isso, Baldus (1965/66:194), respaldado em Schroder, conclui:

    O xtase baseia -se a final d e contas, nesta polaridade metafsica do homem: uni ser puramente espiri tual ou material que repousa em si mesmo, no capaz de cair em xtase.

    Baldus equaciona ento, o fenmeno do xtase, em fsico e psquico. No aspecto fsico, ocorre o afastamento do corpo da realidade material, o "afastamento do aqum". No processo psquico acontece o inverso, "proximidade do Alm". O exttico desliga-se de sua ambincia fsica. O autor segue afirmando que no xtase a alma perde o poder sobre o corpo e que a perda desse poder pode manifestar-se de maneira ativa ou passiva. Na forma passiva h diminuio das funes vitais e imobilidade corprea. Na forma ativa, manifestam-se agitaes e manifestaes visveis de poder sobre-humano. O processo psquico definido por Baldus, como "transformao do ser causado pela ligao da alma com o agente do Alm". Por isso, acrescenta:

    Quero falar em 'excorporao' quando este agente faz a alma entrar no mundo sobrenatural, isto , tornar-se ela mesma sobrenatural, conservando, porm, ainda o seu ego exttico; o corpo ento apresenta-se na forma passiva do xtase. Na 'incorporao', porm, o agente do Alm tenta absorver a Alma, podendo esta chegar a subsistir apenas nele; isto leva forma ativa do corpo em xtase." (1995/96:194)

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    Porm adverte, "... nas diversas culturas, tudo isso no funciona to esquematicamente como aqui esboado... ' ' . Entretanto, entendemos que o esquema til e revela sua adequao, permitindo-nos considerar o xtase xamnico no "subs is tema" que invest igamos, como sendo de carter extracorpreo. Porque mesmo o bailado, que a forma mais movimentada entre os rituais daimista, apresenta-se ao observador externo apenas como uma dana ritual. Nada diz sobre o contato com o alm. No h saltos, suspiros, convulses ou gestos fora da coreografia prevista. Apenas o vai-e-vem ininterrupto e ritmado do "bailado, em perfeita ordem quadriltero. Entretanto, as definies no so fceis, e a multiplicidade de nomes utilizados para indicar os mediadores do sagrado na etnografia dos indgenas da Amrica do Sul, dificulta ainda mais a caracterizao do fenmeno. Essa variabilidade foi inventariada por Viertler (1981) que relaciona os conceitos s teorias das quais derivam. Comeando pelo conceito "xam", apoia-se em Eliade para destacar como caracterstica especfica do xam o "vo mgico" e definir como xamanismo "stricto sensu", o xamanismo siberiano. Pois sistemas religiosos que contm traos xamansticos no implicam em caracteriz-los como xamnicos. Conclui que do ponto de vista de Eliade - que classifica como historiador das religies" - "... no se pode projetar o conceito xam para as sociedades tribais sul-americanas" ' (1981:309).

    Para o conceito "paj" apoia-se em Mtraux (1967), a quem atribui a sugesto de utilizao do termo como forma de adaptao do conceito "xam" para a etnografia sulamericano. A inic iao do "paj" ou "piai" implica aquisio de poderes mgicos e aprendizado de tcnicas precedidas por cr ises caractersticas de "morte inic itica". Entretanto, prossegue a autora, seu padro cultural no integra dois traos tpicos do xam siberiano: o vo mgico e a possesso. Alm de distinguir-se deste por obter seu poder atravs da aquisio de substncia mgica que pode materializar-se, e inclusive originar no s a cura mas tambm doenas (1981:307). Viertler conclui que embora o conceito tenha sido formulado a partir do mtodo comparativo, pouco sistemtico.

    Referenciada em Munzer (1971), destaca o conceito "Medicine-man" mostrando suas implicaes com o mtodo comparativo aplicado s sociedades tribais do Novo Mundo. Os elementos do termo contm a idia de "posse de

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    remdios necessrios cura mgica" (1981:309). Os remdios so "... representados por objetos vistos como contendo potncias numerosas" (1981: 309). Outro conceito, o de "mdico-feiticeiro", segundo a autora, alm de emergir da "... linha comparativa sul-americana..." guarda ambigidade entre o bem e o mal. Pois o "mdico-feiticeiro", detentor de poderes mgicos, mata e cura. Analisando o conceito de "heri mtico", Viertler apoia-se principalmente na obra de Schaden (1959), que serve de referncia tambm, para suas consideraes acerca do conceito de "mdico-feiticeiro". No contexto da noo de "heri mtico", o "paj" orienta sua conduta pelo modelo do heri. "Os heris mticos ou heris culturais geram tanto a ordem social, o bem, a beleza ou a paz, quanto a desordem csmica, o mal ou o conflito ..." (1981:310). Destaca o uso posterior do conceito do ponto de vista funcionalista - Laraia (1970), Agostinho (1971, 1974) e Schaden, (1959) - e, estruturalista - Da Matta (1977). Bem como, sua associao aos conceitos "mdico-feiticeiro" ou "paj", citando como exemplo Mtraux (1967); ou "xam ", caso de Melatti (1974). Destaca sua utilidade para o estudo das relaes entre padres de comportamento e idias religiosas, principalmente quando analisados na perspectiva histrica, que possibil ite relacionar o conceito "heri mtico" aos de "profeta- ou "Messias" (1981:311).

    Viertler continua sua anlise averiguando o conceito de "Messias", destacando referenciada em Schaden (1959), que o "... mdico-feit iceiro representa um mess ias em potencia l..." (1981:311). Mdico-feiticeiro, lder carismtico e messias tm em comum o fato de adquirirem seus status atravs de comunicao com o sagrado. Entretanto, o messias tende a surgir em contextos de "... sociedades de horticultura mais desenvolvida... (1981:311)

    Assinala ainda, que apesar do messias relacionar-se com a divindade suprema e de restabelecer o equilbrio entre os homens e o mundo, "... existem conexes histricas e funcionais entre o mdico-feiticeiro e o messias..." (1981:311). De modo que a diferena bsica consiste no fato de movimentos conduzidos pelos messias acarretarem maior potencial de mobilizao social, a exemplo das migraes. Mesmo assim, a autora assinala a possibilidade de nuanas variadas para cada situao tpica. Tratando-se, porm, de processos histricos de maior dinamismo, pode ser pertinente fundir os

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    conceitos de messias e heri mtico (1981:312). A autora segue anal isando os conceitos de "chefe cerimonial", "feiticeiro" e "bruxo". Assinala que o primeiro se refere ao "chefe poltico", embora s vezes diga respeito ao curador em contextos de "dominao tradicional". Entretanto, um conceito "impreciso" e sem "conotaes tericas mais definidas" (1981:312). As noes de feiticeiro e bruxo mantm a caracterstica de ambigidade entre o bem e o mal relacionadas a "... controles de tenses, turbulncias e rupturas da ordem social" (1981:13).

    Conclui que o estudo dos fenmenos de intermediao entre o mundo humano e o mundo sobrenatural pode assumir nveis de abstrao diversos. Prope ento, que os estudiosos explicitem os critr ios pelos quais identificam o fenmeno (1981:314).

    Langdon (1996) amplia o debate estabelecido por Viertler, argumentando que o "... xamanismo no conhece fronteiras, nem nacionais, nem tribais" (1996:12). Embora o artigo de Langdon tenha sido publicado quando nossa tese se encontrava em estgio final de elaborao, ele pde ser til por concordar com as linhas gerais de desenvolvimento do nosso estudo, ao considerar o xamanismo como instituio cultural, levando em conta, portanto, seus aspectos dinmicos. Alm disso, sua abordagem preocupa-se menos com a definio de xam, deslocando o enfoque da discusso para o desenvolvimento das teorias interpretativas sobre o xamanismo, abordando-o em relao com a histr ia da antropologia a partir das discusses acerca de religio e magia.

    Langdon fala das "novas perspectivas sobre o xamanismo no Bras il", destacando que recentemente o xamanismo entendido como um complexo scio-cultural. E esclarece: cultural, porque referido a um sistema simblico; e social porque "gera papis, grupos e atividades sociais. Sendo complexo scio-cultural precisa ser considerado em dimenso coletiva, como "sistema de representaes compartilhadas". Por isso, cita Brunelli (1996) ao indicar ser possvel "xamanismo sem xam". Visando desvencilhar a discusso sobre xamanismo das antigas questes com religio e magia, concorda com Hamayon (1982), e prope que o xamanismo seja abordado como um "sistema cosmolgico". Com isso, pretende indicar que ele semelhante a um sistema religioso", ao mesmo tempo em que o extrapola, visto

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    que xamanismo tambm. "...Poltica, medicina e organizao social e esttica (1996:26-7). A vantagem, diz a autora, manter o sentido de "sistema religioso", incluindo ao mesmo tempo, as outras funes pertinentes ao xamanismo, como as instncias de cura, de economia e de poltica.

    Entretanto, temos dvidas quanto plena utilidade da proposta. Primeiro porque usar o termo "sistema cosmolgico" no lugar de re lig io, no anula o fato de que as concepes cosmolgicas tambm afetam o mundo em suas dimenses econmicas e polticas; do mesmo modo que as religies, ao se institucionalizarem acentuam sua identificao com um sistema formal scio-poltico, para a sua prpria sobrevivncia. Alm do que, as religies j nascem como resultantes de um conjunto de foras materia is e espir ituais. Mais importante ainda, a existncia de sistema cosmolgico" de carter estritamente cientfico como o caso da cosmologia proposta pela moderna c inc ia oc idental . Teramos ento, para o caso do xamanismo, de voltar a adjetivar seu sistema cosmolgico com os termos mgicos e religiosos. Retornando assim, a velha discusso que a autora pretende evitar, ao propor a substituio da idia de xamanismo como sistema religioso, para xamanismo enquanto sistema cosmolgico.

    Propondo-se a refletir sobre o xamanismo no mbito da etnologia brasileira, e considerando que apesar das diferenas existem aspectos comuns para o xamanismo nas terras baixas da Amr ica do Sul, sugere algumas carac ter st icas a serem consideradas para uma "nova perspectiva na definio do xamanismo". Langdon seleciona seis caractersticas que reunimos em trs grupos e citamos resumidamente: Cosmologia: mundos visvel/invisvel; um princpio geral de energia que unifica o universo: um conceito nativo de poder xamnico ligado ao sistema de energia global; um princpio de transformao pelo qual espritos e xams podem assumir formas diversas.

    Pape l do xam: o xam como med iador que age principalmente em benefcio de seu povo.

    Tcnica exttica (como base do poder xamnico"): vrias. Tabaco, plantas psicoativas (inclusive ayahuasca), sonhos, dana, canto e outras, em conjunto ou em separado.

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    Se considerado do ponto

    Eliade (1976) aborda o xamanismo em sua totalidade na perspect iva de uma his tr ia geral das re l ig ies . Ut i l i za documentos procedentes de "... diversos xamanismos: siberiano, norte-americano, sul-americano, indonsio, ocenico, etc." (1976:9).

    Ao considerar a polivalncia do termo "histria", assinala que ele no implica necessariamente em perspectiva cronolgica, particularmente, quando aplicado aos fatos religiosos. Pois para Eliade a histria das religies vista sob a perspectiva do "tempo mtico", ou seja, tempo reversvel, portanto intemporal, uma vez que a "dialtica do sagrado" tende a repetir um nmero limitado de estruturas hierofnicas, pois a "... dialtica do sagrado permite todas as reversibi1idades..." (1976:13-15).

    Entretanto, apesar de o processo de sacralizao ser sempre o mesmo no que dizem respeito s hierofanias, as manifestaes do sagrado so sempre manifestaes concretas, condicionadas historicamente. A dialtica do sagrado sendo constituda por estruturas permanentes que se atualizam historicamente permite que as experincias msticas das sociedades arcaicas atinjam alto grau de coerncia independente do grau de civilizao. Porque a "histria", ou seja, a "tradio religiosa" intervm posteriormente ao submeter experincia de indivduos extticos aos cnones do grupo (1976:16).

    Portanto, dado o carter peculiar que Eliade atribui ao fenmeno religioso considerando-o reversvel, o que ele busca apreender a "estrutura" do xamanismo. Para tanto, utiliza-se do xamanismo siberiano como "exemplar tpico" por considerar que ali ele se "manifesta em sua forma mais completa" (1976:23) e integrada. Porm adverte que o "tipo" stricto senso escolhido por ele no um caso isolado e encontra paralelos em outras partes do mundo. Alm disso, mesmo na Sibria, o xamanismo no a nica religio da rea, e nem um "tipo puro" (1976:24). Pois no h poss ib i l idade de se achar no mundo ou na histr ia um fenmeno religioso "puro" e perfeitamente "originrio" (1976:27).

    As religies da sia ultrapassam o xamanismo da mesma forma que as religies em geral ultrapassam a experincia mstica de seus extticos privilegiados. Desse modo, o xamanismo no criado pelos xams, apesar

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    da grande influncia que eles exercem na mitologia e no ritualismo de suas religies. Os elementos ideolgicos, mticos e rituais "... o produto da experincia re l ig iosa geral , e no de unia determinada c lasse de seres priv i legiados: os ex tt icos" (1976 :25) . Pe lo contrr io , d iz e le, o que se v muitas vezes "... o esforo da experincia xamnica (isto , exttica) para expressar-se por meio de uma ideologia que nem sempre lhe favorvel" (1976:25).

    O xamanismo para Eliade, uma tcnica entre as tcnicas arcaicas do xtase. Apresenta-o em diferentes aspectos histricos e culturais, analisando a formao do xamanismo na sia Central e Setentrional. Investiga ao mesmo tempo sua ideologia, tcnicas, simbolismo e mitologia. Considera o xamanismo em geral e suas tcnicas como "universo mental vasto e movedio" (1976:16). Visando limitar o uso do vocbulo, adverte que o xam tambm mago, medicine-man, sacerdote, mstico e poeta, sem que o inverso seja necessariamente verdadeiro. O xamanismo tem "estrutura" especfica e "h istr ia". Localiza a "histr ia" do xamanismo stricto senso como fenmeno siberiano e central - asitico, por considerar que nessa regio a "... experincia exttica a experincia religiosa por excelncia. Baseado nesse dado ele formula a primeira definio: " o xamanismo a tcnica do xtase" (1976:22).

    Assinala que os mesmos fenmenos do xamanismo asitico foram observados e descritos na Amrica do Norte. Amrica do Sul, Indonsia. Oceania e em outras partes, advertindo que a p res ena de "c omp lex o xa m n ico ' n o in dic a , forosamente, que a v ida re l ig iosa em questo tenha se "cristalizado em torno do xamanismo". Admite que isso possa acontecer e c ita como exemplo determinadas regies da Indonsia". Destaca que o mais comum a "coexistncia do xamanismo com outras formas de magia e de religio" (1976:22).

    Portanto, cons idera importante que o conceito de xamanismo seja usado em sentido rigoroso, diferenciando o xam de outros intermedirios do sagrado, ao mesmo tempo em que a identificao de complexos xamnicos em diferentes religies torna-se possvel pela identificao de sua especialidade

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    mgica que se distingue de outras formas de xtase. Esta especialidade o "vo mgico". Isso permite a Eliade acrescentar mais um e le mento ao conce i to de xaman ismo, ao iden t i f i ca r a especif ic idade da sua tcnica de xtase: o xam " ... o especialista de um transe durante o qual, acredita-se, sua alma abandona o corpo para empreender ascenso ao cu ou descenso ao inferno" (1973:23).

    Outro elemento da especific idade exttica do xam, segundo Eliade, diz respeito a sua relao com os espritos. O xam se distingue do possesso. "O xam domina seus 'espritos', no sentido em que ele, que um ser humano, consegue comunicar-se com os mortos, os 'demnios' e os 'espritos da natureza', sem converter-se por isso em instrumento dos espritos" (1976:23). Considera que "xams possudos" so "excees aberrantes" (1976:23).

    Nesse ponto adianta algumas caractersticas do xam. Sua eleio pelo sagrado caracterizada por unia "crise religiosa". Isto , uma mstica na qual ele se v em comunicao direta e intensa com o sagrado. Por isso, o xamanismo ao mesmo tempo uma tcnica - exttica - e uma mstica que caracteriza a tcnica que lhe especfica - o vo mgico representando a comunicao com o sagrado sem a ocorrncia de possesso (1976:25).

    Destaca ainda, a imensa importncia do xam para as comunidades onde atua, uma vez que de sua fora exttica depende no s a vida material mas tambm espiritual, pois "... o xam o grande especialista da alma humana: s ele a 'v', porque conhece sua `forma' e seu destino" (1976:25). Para as questes da alma ele "indispensvel".

    Em seguida El iade traa os grandes contornos do xamanismo dos povos rticos, siberianos e central-asiticos. A economia desses povos baseia-se na caa, na pesca no pastoreio e na agropecuria. So nmades, e apesar das diferenas tnicas e lingsticas, suas religies so, segundo Eliade, essencialmente parecidas. Veneram um Deus Supremo, criador, cujo nome muitas vezes significa "cu". Os atributos de ambos designam o "Alto", o "elevado", "luminoso", "brilhante", "luz" e "Branca Luz". O Grande Deus celeste tambm designado por "Chefe", "Mestre", "Senhor" e "Pai".

    O Deus celes te habita o cu super ior e dispe de "mensageiros", tambm chamados de "filhos". A "misso" dos mensageiros proteger e ajudar os

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    homens. Tm uma concepo dual, onde o mal e o bem lutam eternamente entre si.

    Falando da aparente contradio entre a presena simultnea de um Grande Deus celeste, ritos de caa e culto aos antepassados, Eliade esclarece que no se trata de dois universos religiosos totalmente diferenciados. A distino, diz ele, no tanto de estrutura, mas de intensidade da experincia religiosa. A sesso xamnica mais intensa. Assinala ainda, que a experincia ex t t ic a a ex per i nc ia re l ig i osa ma is susce t ve l d e transformaes (1976:28).

    Depois de delinear os traos gerais do xamanismo siberiano, Eliade trata detalhadamente dos mtodos de aquisio dos poderes xamnicos (1976:29-35), das crises de iniciao e das experincias extticas (1976:45-69). do simbolismo (1976:130151), das relaes entre xamanismo e cosmologia (1976:213-226). E, do que nos interessa de modo particular: o xamanismo sul-americano.

    Comea dizendo que "O xam parece desempenhar um papel bastante importante nas tr ibos da Amrica do Sul" (1976:260). Fala de suas diferentes funes: cura, guia da alma dos mortos, intermediao entre os homens e os espritos, defesa da comunidade contra ataques malf icos , domnio sobre fenmenos atmosfricos, previso do futuro e, diz ele: "acredita-se que operam milagres de carter estritamente xamnico: vo mgico, ingesto de brasa, evidenciando domnio sobre o fogo, etc." (1976:260). Podem tambm, desempenhar o papel de feit iceiros, ou seja, preparar ataques mgicos e at morte. Entretanto, assinala, seu prestgio advm de sua capacidade exttica (1976:260).

    O autor destaca ainda quanto ao papel do xam que, "Como em todas as partes, a funo essencial e rigorosamente pessoal do xam sul-amer icano cont inua sendo a cura" (1976:262). Os procedimentos de cura nem sempre so mgicos, pois eles conhecem as propriedades medicinais de substncias de origem vegetal e animal, alm do potencial teraputico das massagens. Fala ainda do tratamento estritamente espiritual, no qual a enfermidade vista em relao com a alma do doente. Nesses casos o tratamento diz respeito viagem do xam para o pas dos espritos em busca de resgatar a alma do enfermo.

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    Ao definir as caractersticas do xamanismo sul-americano Eliade apoia-se na obra de Mtraux (1944) e afirma: "Para chegar ao pas dos espritos o xam bebe uma infuso preparada com um cip (...) o transe xamnico parte da cura" (1976:263). Quanto possesso, ele indica que segundo Mtraux, ela pode ocorrer. Entretanto observa que "... muitas vezes para o xam a possesso consiste em dominar rgos msticos', que constituem, de certo modo, sua verdadeira e completa personalidade espiritual" (1976:263). E prossegue: "Na maior parte dos casos a 'possesso' se reduz em pr a disposio do xam seus espritos auxiliares, a experimentar sua 'presena efetiva', manifestada por todos os meios sensveis; e esta presena, invocada pelo xam, no leva ao transe', sim ao dilogo entre o xam e seus espritos auxiliares. A realidade , por outro lado, muito mais complexa: porque o xam pode transformar-se ele mesmo em distintos animais... (1976:263), no contexto de "... manifestao de sua verdadeira personalidade mstica" (1976:263). Eliade continua abordando a morfologia da cura xamnica na Amrica do Sul destacando ainda "... os cnticos secretos' revelados por Deus ou por animais, especialmente pelas aves" (1976:266), e conclui: " intil oferecer aqui um quadro comparativo de todos os casos em que se acha o mesmo conjunto" (1976:266). Citando ainda as semelhanas, afirma ser impossvel estabelecer se elas decorrem de "sobrevivncias" arcaicas ou "difuso". No tpico sobre "Antigidade do xamanismo no continente americano", indica que o "... problema da origem' do xamanismo nas duas Amricas est longe de ser concludo" (1976:266). Diante dos contatos prolongados entre a sia e a Amrica do Norte, considera possvel a "... solidariedade cultural entre Sibria e Amrica Ocidental..." (1976:267). "Achamos os grandes traos de um mesmo conjunto xamnico desde o Alasca at a Terra do Fogo" (1976:268). Portanto, no considera aceitvel a hiptese de que o xamanismo americano um fenmeno recente. Acredita que as possveis contribuies norte - asiticas ou asitico-ocenicas, fortaleceram ou modificaram detalhes de "... uma ideologia e uma tcnica xamnica j amplamente extensa nas duas Amricas e de certo modo naturalizadas" (1976:268).

    Na concluso de seu estudo Eliade discute "A formao do xamanismo norte-asitico", tratando da influncia que sobre ele exerceram o budismo, o lamasmo e

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    as religies meridionais, para reafirmar que a forma clssica de xamanismo no inclui a possesso ou incorporao por espr itos e sim o xtase de ascenso e descenso (1976:381).

    Assinala a antigidade dos ritos e dos smbolos xamnicos, bem como de sua ideologia e tcnicas, encontradas em culturas arcaicas de influncias paleo-orientais. Recorda as afinidades entre o xamanismo da sia, da Sibria, da Austrlia, da Malsia e das Amricas do Sul e do Norte; bem como, de outras regies. Acrescenta ainda que a Europa de 25 mil anos antes de Cristo, "oferece provas da ex istncia das formas mais antigas de xamanismo" (1976:383).

    Destaca dois elementos que devem ser considerados em sua discusso sobre a formao do xamanismo na sia Central e Setentrional: a experincia exttica e o meio histrico-religioso no qual esta experincia exttica se incorporou, levando em conta a ideologia que lhe forneceu validade (1976:384). Acreditamos que esses dois pontos destacados por Eliade na formulao de seu estudo, so vlidos tambm para o estudo de outras formas de xamanismo, que no o asitico. Cons idera a experinc ia ex tt ica como fenmeno "originrio" porque se inclina a consider-la como "... constitutiva da condio humana e, em conseqncia, conhecida pela humanidade arcaica em sua totalidade" (1976:384). No a caracteriza, portanto, como produto histrico de determinada c iv i l i zao . O que muda d iz e le , a "va lo r izao e a interpretao" que diferentes culturas e religies atribuem "experincia exttica". Por isso indaga "... qual era a situao histrico-religiosa na sia Central e Setentrional, nos lugares em que, posteriormente, o xamanismo cristalizou-se como um conjunto autnomo e especfico?(1976:384).

    Diz que em toda a regio havia a idia de um Deus Supremo e celeste do qual decorre o simbolismo de elevao. Esse Deus, embora conservando sua supremacia ceda espao para deuses mais "familiares", a exemplo dos deuses das tempestades, das almas dos mortos e Grandes Deusas (1976:384). A perda de atualidade dos Deuses Supremos cranianos assinalada nos mitos que aludem ao paraso primordial, no qual o homem comunicava-se diretamente com o Deus Supremo e criador. Um acontecimento

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    qualquer teria cortado essa comunicao direta, provocando a retirada desse Deus para as alturas celestes (1976:384).

    Entretanto, o simbolismo da ascenso permaneceu e desempenha um papel essencial na ideologia e nas tcnicas x amn icas . Nes te sen t ido, o x tase xamn ico ser ia a "sobrevivncia", embora modificada, desta ideologia religiosa arcaica, centrada na f em um Ser Supremo e celeste, e na comunicao direta entre o cu e a terra (1976:385). Por ser detentor de tcnicas que permitem essa comunicao direta, o xam considera-se e considerado um ser excepcional. Os mitos tambm referem essa possibilidade na figura de uni "Primeiro Xam" enviado pelo Ser Supremo para defender os homens de todos os males (1976:385). El iade observa, a par t ir do exemplo asi tico, que modificaes nas idias acerca do Ser Supremo alteram os significados da experincia exttica dos xams, incluindo relaes mais estreitas com os espr itos, a ponto de culminar em "incorporaes" ou "possesses". Assinala, entretanto, que isso diz respeito a inovaes s vezes recentes, que decorrem das transformaes que afetara o conjunto relig ioso em geral. Acrescenta como exemplo as influncias meridionais, budistas, lamastas, iranianas e mesopotmicas, que tanto afetaram a cosmologia, as mitologias e as tcnicas do xtase no xamanismo asitico.

    Entretanto, Eliade enfatiza que as modificaes no extinguiram a "... possibilidade do verdadeiro xtase xamnico, e temos encontrado aqui e ali exemplos de experincias msticas autnticas em forma de ascenso espiritual ao cu" (1976:386). Por isso, no eplogo de seu livro, Eliade diz no existir ruptura na histria das religies: "No h soluo de continuidade na histria da mstica" (1976:387), enfatiza. O xtase xamnico "nostalgia do paraso" tanto quanto a mstica cr ist. A " luz interna" desempenha papel essencial em ambas as metafsicas. Destaca que o xamanismo importante no s pelo lugar que ocupa na histria geral das religies, como tambm pelo papel do xam em defesa da vida da comunidade contra os males do corpo e do esprito. O xam defende o mundo da vida e da luz contra o mundo da morte e das trevas. Por isso a caracterstica fundamental e universal do xam sua luta contra os poderes do mal.

    O papel do xam fundamenta-se no fato de que os homens crem, que

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    alguns dentre eles so capazes de ajud-los quando so atacados por foras invisveis. Algum capaz de comunicar-se de forma direta e precisa com o mundo sobrenatural. Alm da crena, o contexto ritual xamnico provoca um "segundo estado" de existncia. Por isso Eliade destaca o "carter dramtico da sesso xamnica" (1976:389), afirmando que os preparativos do drama e seu desenvolvimento so capazes de por si mesmos exercerem influncia benfica sobre o doente. Para alm do drama posto em cena, toda sesso xamnica assume o carter de um "espetculo" que a diferencia da experincia cotidiana porque revelam um mundo onde "... tudo parece possvel, onde os mortos voltam a vida e os vivos morrem para ressuscitar em seguida, onde se pode desaparecer e reaparecer instantaneamente, onde as `leis da natureza' so abolidas e onde unia certa liberdade' sobre-humana ilustrada e tornada presente de maneira explosiva" (1976:389). Conclui no ser difcil imaginarmos a repercusso de semelhante espetculo no esprito dos membros das comunidades estudadas. Nelas os milagres' xamnicos confirmam e fortalecem as estruturas da religio tradicional, e estimulam a imaginao fazendo desaparecer as linhas demarcatrias entre sonho e realidade imediata, permitindo acesso ao mundo dos espritos.

    Do exposto acerca do estudo de Eliade, gostaramos de reter tambm, alguns elementos presentes em sua obra, que a nosso ver o aproximam de Lvi-Strauss, alm da abordagem estruturalista. Para Eliade, o papel do xam fundamenta-se no fato de que os homens crem no poder do xam. A crena no xam, por sua vez, apoia-se na experincia religiosa mais geral, de crena na existncia do sobrenatural, e na possibilidade de comunicao direta com ele. Alm disso, Eliade ao tecer cons ideraes sobre possveis influncias de experincias xamnicas em certos tipos de produes culturais, a exemplo dos temas picos da literatura oral, da poesia lrica, das fbulas e da pr-histria dos espetculos dramticos, destaca a fora dramtica da sesso xamnica e seu carter de espetculo. Para Lv i-Strauss , em O feit iceiro e sua magia, a eficcia da magia implica em crena na magia. A crena na magia constituda por trs aspectos complementares: a crena do feiticeiro na eficcia de suas tcnicas, a crena do doente no poder do feiticeiro, e a confiana e as exigncias da opinio coletiva. Esses trs elementos indissociveis - o xam, o doente e o pblico - formam para Lvi-Strauss o "complexo xamanstico. Esse complexo

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    legitimado por uma trplice experincia. A do xam q u e e x p e r i me n t a " e s t a d o s e s p e c f i c o s d e n a t u re za psicossomtica", a vivncia do doente que "experimenta ou no uma melhora", e o pblico, que participando da cura, vivencia durante o seu processo, estados de "arrebatamento" e de "satisfao inte lec tual e afetiva". Os trs aspectos dessa experincia "determinam uma adeso coletiva que inaugura, ela prpria, um novo ciclo" (1975:207).

    Os trs elementos do complexo xamanstico" organizam-se em torno de dois plos: a experincia ntima do xam e o consenso coletivo. Do ponto de vista da experincia ntima do xam, ele acredita ser o portador de uma "misso". O xam chega a essa convico porque experimenta "estados especficos" indicadores de sua nova condio. A favor da existncia dos "estados especficos" vivenciados pelo xam. Lv i-Strauss acrescenta "argumentos lingsticos'', exemplificando com o caso do "d ia leto Wintu da Cal i frnia", que as "categor ias do conhecimento" se opem s de "conjecturas". Refere cinco "categorias do conhec imento": v iso, impresso corporal, inferncia, raciocnio e ouvir dizer. Assinala que as relaes com o mundo sobrenatural so verbalizadas pelas cinco categorias citadas. atravs delas que exprimem os modos de conhecimento com aquela realidade. Desse modo, o indgena que se torna xam aps uma crise espiritual" concebe sua experincia nos moldes gramaticais do seu grupo, atravs das "categorias do entendimento" formuladas coletivamente (1975:208).

    Quanto ao plo do "consensus coletivo" a questo fundamental diz respeito relao "entre certo tipo de indivduos e certas exigncias do grupo" (1975:209). Ora, segundo o nosso entendimento o tipo de indivduo que compe o pblico do xam pode ser considerado "xam em potencial". Pois de um lado, "um doente curado com sucesso por um xam est part icularmente apto para se tornar por sua vez, xam" (1975:208). Alm disso, vimos que para Lvi-Strauss a sintonia xam/pblico fundamental para a constituio do complexo xamanstico". O instrumento de mediao entre o xam e o grupo a "sesso xamnica" que segundo o autor um "espetculo" no qual o enredo "sempre o de uma repetio, pelo xam, do chamado' isto , a crise inicial que lhe forneceu a revelao de seu estado" (1975:209). No caso do Santo Daime a "repetio do chamado"

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    o hinrio de Ir ineu Serra, O Cruzeiro, conforme veremos no decorrer deste trabalho. Entretanto, Lvi-Strauss adverte que o espetculo no tem apenas o sentido de "representao", porque os acontecimentos so "revividos". Nesse sentido, trata-se daquilo que a psicanlise chama de "abreao" para designar "o momento decisivo da cura, quando o doente revive intensamente a situao inicial que est na origem de sua perturbao, antes de super-la definitivamente" (1975:209).

    A diferena entre a cura xamanstica e a cura psicanaltica que "na cura xamanstica, o feiticeiro fala, e faz abreao para o doente que se cala" (1975:211). Ele rememora para o doente o "mito social" que corresponde soluo que sua comunidade indica para o problema em causa. Por isso diz ele, "a magia readapta o grupo a problemas pr-definidos, por intermdio do doente" (1975:211) . Sendo claro que o inverso tambm verdadeiro. Ou seja, a cura mgica readapta o doente aos problemas que lhe afetam.

    No artigo citado, e em outro que o complementa, intitulado "A eficcia simblica", Lv i-Strauss usa indiferentemente os termos "xam" e "feiticeiro". Entretanto, no texto "O feiticeiro e sua magia" refere que o termo xam implica "um xtase ou unia passagem a um segundo estado" (1975:216). Se no primeiro artigo que abordamos, Lvi-Strauss evidencia que o contexto social determinante para as operaes mgicas do xam, seu objeto de estudo em "A eficcia simblica" uma sesso de cura xamnica analisada atravs de um tex to de encantamento, destinado a facilitar o parto, recolhido na Amrica do Sul, entre os ndios Cuna do Panam. O autor di ferencia trs t ipos de sesses para a cura xamnica, advertindo que elas no se excluem mutuamente. Em um tipo ocorre manipulao fsica, a exemplo da suco, em outro, h simulao do combate contra os espritos malficos. No terceiro tipo, o oficiante entoa encantamentos, podendo tambm prescrever operaes. O tipo de cura analisada pelo autor pertence ao terceiro tipo. Trata-se, portanto, do ritual de encantamento cuja medicao de carter puramente psicolgico porque no h contato fsico nem administrao de medicamentos. Entretanto, o encantamento explicita o estado patolgico do doente, alm de local iz-lo. Por isso af irma que o canto const i tu i uma manipulao psicolgica do rgo doente, e que a cura

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    esperada desta manipulao" (1975:221). A narrativa do encantamento oscila entre os temas mticos e os temas

    fisiolgicos "como se tratasse de abolir, no esprito da doente, a distino que os separa" (1975:23). A tcnica da narrativa tem por finalidade reconstituir a experincia real. Nessa reconstituio o mito substitui os protagonistas do drama. Desse modo, atravs do relato mtico expresso no encantamento, a doente pode reviver o drama e sentir os protagonistas. Nesse contexto, os protagonistas "... alumiam (...) para lhe tornar claro' e acessvel ao pensamento consciente a sede de sensaes inefveis e dolorosas..." (1975:225).

    Assim, o canto ou encantamento xamnico tm a funo de "... fornecer doente uma linguagem, na qual se podem exprimir (...) estados no-formulados, de outro modo informulveis" (p228). , portanto, a possibilidade de expresso verbal que produz a cura. No caso da cura xamnica o papel de orador cabe ao xam. Ele detm o papel de encantao, mas no apenas como orador, pois ele tambm o heri da encantao: "... ele quem penetra nos rgos ameaados frente do batalho sobrenatural dos espritos, e que liberta a alma cativa" (1975:229). Neste sentido, o xam atravs das "representaes induzidas no esprito da doente" pelo encantamento, torna-se "o protagonista real do conflito que esta experimenta a meio caminho entre o mundo orgnico e o mundo psquico" (1975:230). Desse modo, atravs da identificao com uni "'... xam miticamente transposto...". a doente pode superar desordens orgnicas ou psicolgicas.

    O xam atravs do encantamento fornece doente um "mito social". Na sesso xamnica "... o xam fala por sua doente. Ele a interroga e pem em sua boca rplicas que correspondem interpretao de seu estado, do qual ela deve se compenetrar" (1975:230). Ele fornece o mito e a doente executa as operaes (1975:232). Por isso Lvi-Strauss considera que a "noo de manipulao" essencial cura xamanstica. Indica que a noo de manipulao de rgos deve ser ampliada para incluir a de "manipulao de idias" (1975:231). Ambas operam com a ajuda de smbolos que no caso, so as representaes evocadas pelo xam. Por tanto, ". .. a eficcia s imblica que garante o paralelismo entre mito e operaes" (1975:232).

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    A e f icc ia s i mbl ica cons t ru da a trav s da man ipu lao de ges tos ou id ias que por sua carga s i mb l ica cons t i tue m ... operaes concretas, verdadeiros ritos que atravessam a tela da conscincia sem encontrar obstculo, para levar sua mensagem diretamente ao inconsciente (1975:231). Desse modo, atravs de gestos ou idias de forte carga simblica seria possvel induzir transformaes orgnicas. O rito seria portanto, esse elemento de reorganizao estrutural. Sua eficcia advm do fato de a estrutura ritual ser anloga, no nvel do psiquismo inconsciente, ao efeito que objetiva alcanar. A "ef icc ia s imbl ica" defin ida, por tanto, como "propriedade indutora" que se forma a partir do encontro de estruturas homlogas. Ou seja, quando as estruturas rituais se organizam de acordo com as estruturas inconscientes, permitindo de esse modo reorganizar os contedos no-formulados ou informulveis para o doente. Essas estruturas "formalmente homlogas" podem ser construdas "... com materiais diferentes, nos diferentes nveis do vivente: processos orgnicos, psiquismo inconsciente", pensamento refletido" (1975:233). Nesse contexto, Lvi-Strauss cita a metfora potica como exemplo de processo indutor.

    Acreditamos poder extrair do raciocnio de Lvi-Strauss que o ritual passvel de ser entendido como "processo indutor" que, por ser estruturado teria eficcia estruturante, na medida em que sua funo reorganizar os acontec imentos que surgem desarticulados em contextos psicolgicos, histricos e sociais. Essa reorganizao no caso do ritual xamnico feita de acordo com o "mito social". Ou seja, ela se constri atravs das funes elementares, dos tipos simples, dos modelos fornecidos pela histria, pela sociedade e pela cultura em questo.

    Segundo nosso entendimento, a homologia entre o ritual e o "mito social" possvel porque o "mito individual", concernente a histria do sujeito ele prprio, passvel de ser reduzido a alguns tipos simples. Ou seja, as mesmas leis estruturais so vlidas para ambos os mitos individuais e coletivos. Ao mesmo tempo, as leis que os rege so iguais as que regem o inconsciente. O inconsciente, para Lvi-Strauss constitudo pelas mesmas leis que estruturam a funo simblica. Desse modo, temos uma circularidade

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    que partindo da funo simblica estrutura o inconsciente e a cultura, estruturando, portanto, os indivduos e as coletividades, e consequentemente, o ritual de cura xamnica.

    2. Consideraes finais

    A procura de orientao no plano divino atravs da induo de Estados Alterados de Conscincia12 a principal caracterstica das prticas xamnicas, por isso identificada por Eliade (1960) como tcnica do xtase. Esse fenmeno parece ser amplo e profundamente enraizado no horizonte cultural da humanidade, permitindo que o xamanismo seja considerado como disposio especial do ser humano (Gallois, 1996). A forma especf ica que "tcnicas do x tase" assumem nos r ituais xamnicos, inclui a posse de poder por parte do xam, capaz de situ-lo num tipo de estado que Michael Harner (1989) chamou de "estado xamnico de conscincia", induzido por habilidades sob o controle do xam, que o colocam em contato com realidades ocultas, de onde retira conhecimento e poder para curar ou ferir, adquirir poder pessoal e bem-estar individual e coletivo.

    O fato de os juremeiros e alguns grupos do "sistema ayahuasquero", conjugar "Vo mgico" com "possesso", desqualifica-os para a incluso no conceito de xamanismo? Por no havermos realizado pesquisa em todos os grupos que compem o sistema daimista, achamo-nos impossibilitados de avanar nessa discusso, que, alis, demanda pesquisas muito amplas. Nosso interesse restringe-se a estabelecer que rios subsistemas que investigamos, a comunicao com o sagrado de carter estritamente xamnico, no sentido de Eliade, por realizar-se exclusivamente atravs do "vo mgico", no admitindo em nenhuma das instncias rituais, a possesso do xam pelos espritos. Pensamos que para uma adequada articulao da resposta, preciso considerar em primeiro lugar, a tcnica distintiva do xamanismo - o vo mgico - que o diferencia de qualquer outra tcnica do xtase formalizada pelos rituais catlicos, esprita, e afro-brasileiro. Depois, h que se levar em conta a dinmica do sistema. Nesse sentido, uma das possibilidades considerar em torno de qual

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    mstica cristalizou-se a estrutura religiosa em questo. No caso do Santo Daime, a tcnica e a mstica pelas quais a religio cristalizou-se, nos grupos que investigamos, caracteriza o vo mgico como estado de comunicao com o sagrado sem a ocorrncia de possesso. Essa tcnica e essa mstica so mantidas rigorosamente nos subgrupos que so objetos de nossa anlise: o centro originrio, fundado por Irineu, no Acre, e o Centro de Porto Velho criado inclusive juridicamente, como uma extenso do p r i me i r o ( Ce mi n , 1 98 8 ) . En t r e t a n t o , o s g r u p o s d a i mi s t a s n o atuam no vcuo, eles estabelecem comunicao com outros sistemas, podendo incorpor-los ou no. Ao mesmo tempo, do ponto de vista de uma formulao terica mais abrangente, os conceitos "xam" e "xamanismo" quando pertinentes, so teis por originarem-se de contribuies tericas frteis, a exemplo de Baldus, Eliade e Lvi-Strauss.

    Apesar de universal, o fenmeno , a cada vez, histrico, singular, alm de intrinsecamente relacionado com diferentes instituies sociais, ao ponto de sobreviver em sociedades indgenas em grande medida desestruturadas pelo contato com os brancos, como o caso dos Tors, de Rondnia, nos quais Brunelli (1996) constata a existncia de xamanismo sem xams; entretanto, o inverso no nos parece verdadeiro. Por isso, do ponto de vista de uma teoria da cultura, as referncias tericas de Eliade e Lvi Strauss nos parecem pertinentes por serem teorias que abordam o xamanismo relacionando-o aos seus dois plos constitutivos: o xam e a coletividade, ou seja, os homens e o contexto que lhe d significado e existncia.

    _____________________________

    8 Conforme atesta Mircea Eliade em "O xamanismo e as tcnica do xtase".

    9 - Veremos adiante, que ria verdade. Eliade inclina-se a considerar a experincia exttica como

    constitutiva da condio humana e no como produto histrico. 10

    -

    Verificaremos adiante, que Eliade considera as sociedades tribais sul-americanas como sociedades xarnansticas. 11

    - Lvi-Strauss distingue o inconsciente do subconsciente. Para ele o inconsciente o molde, sempre vazio, que se limita a "impor leis estruturais" que provm das pulses, representaes e recordaes. O subconsciente como um reservatrio de imagens acumuladas ao longo da vida. Ele um "simples aspecto da memria', que embora conservada, nem sempre encontra-se disponvel. As leis do inconsciente alm de serem as mesmas para todos. elas tambm so pouco numerosas. Por isso, " o mundo do simbolismo infinitamente diverso por seu contedo, mas sempre limitado por suas leis" (1975:235). 12

    -

    Plano de conscincia, no qual ocorrem estados de insight de verdades profundas no exploradas

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    pelo intelecto discursivo, mas que permite estabelecer relaes sensorial e consciente com o absoluto. JAMES. William (1961).

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