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Música para o mundo Grupo Cultural AfroReggae Rio de Janeiro, RJ Beatriz de Araújo 15anos Beatriz de Araújo caminhava pelas ruas empoeiradas e mal traçadas de Parada de Lucas, periferia da zona norte do Rio de Janeiro, carregando nas costas um estojo de violino. Corria o ano de 2006 e a menina, então com 11 anos, havia conquistado recentemente o privilégio de levar o mais indispensável dos instrumentos de corda da orquestra para sua modesta casa, a fim de treinar durante a semana. Ela, que há poucos meses sequer conhecia um violino! Enquanto se dirigia a mais um ensaio da Orquestra de Cordas do AfroReggae, ouviu de uma desconhecida um comentário que lhe soou como desaforo: “Duvido que isso aí vá dar fruto. Vocês nunca vão sair da favela. Onde já se viu favelado tocar violino?”. Chocada, a menina conta ter sentido o estômago embrulhar. A sensação lhe serviu para desafiar não só aquela mulher, como também a vida que lhe foi destinada e o preconceito de toda a sociedade. “Desde esse dia, não tiro uma coisa da minha cabeça: vou provar a todos que vamos vencer na vida e que a nossa orquestra vai para qualquer lugar do mundo”. Desafio Filha única de uma costureira, Beatriz tem pouco contato com o pai e sempre morou em Parada de Lucas, uma das regiões mais violentas do Rio de Janeiro, com taxas de até 84 homicídios por 100 mil habitantes. Nos bairros de Ipanema e Leblon, na zona sul do Rio de Janeiro, a taxa é de seis mortes em cada 100 mil habitantes. Sua mãe recebe cerca de R$ 500,00 por mês da confecção onde trabalha, dentro da própria comunidade. Há meses em que recebe até menos. “Nunca passei fome, mas muitas vezes não temos como comprar o que precisamos”. Conviver com privações e com a violência faz parte da rotina de Beatriz e de seus colegas, que, com tão pouca idade, têm histórias chocantes para contar. “Teve um dia em que vi um cara ser morto do meu lado. A favela ficou toda em silêncio, fiquei apavorada”, lembra a adolescente,

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Música para o mundo

Grupo Cultural AfroReggaeRio de Janeiro, RJ

Beatriz de Araújo15anos

Beatriz de Araújo caminhava pelas ruas empoeiradas e mal traçadasde Parada de Lucas, periferia da zona norte do Rio de Janeiro, carregandonas costas um estojo de violino. Corria o ano de 2006 e a menina, entãocom 11 anos, havia conquistado recentemente o privilégio de levar omais indispensável dos instrumentos de corda da orquestra para suamodesta casa, a fim de treinar durante a semana. Ela, que há poucosmeses sequer conhecia um violino!

Enquanto se dirigia a mais um ensaio da Orquestra de Cordas doAfroReggae, ouviu de uma desconhecida um comentário que lhe sooucomo desaforo: “Duvido que isso aí vá dar fruto. Vocês nunca vão sairda favela. Onde já se viu favelado tocar violino?”. Chocada, a meninaconta ter sentido o estômago embrulhar. A sensação lhe serviu paradesafiar não só aquela mulher, como também a vida que lhe foidestinada e o preconceito de toda a sociedade. “Desde esse dia, não tirouma coisa da minha cabeça: vou provar a todos que vamos vencer navida e que a nossa orquestra vai para qualquer lugar do mundo”.

Desafio

Filha única de uma costureira, Beatriz tem pouco contato com o paie sempre morou em Parada de Lucas, uma das regiões mais violentasdo Rio de Janeiro, com taxas de até 84 homicídios por 100 mil habitantes.Nos bairros de Ipanema e Leblon, na zona sul do Rio de Janeiro, a taxa éde seis mortes em cada 100 mil habitantes. Sua mãe recebe cerca deR$ 500,00 por mês da confecção onde trabalha, dentro da própriacomunidade. Há meses em que recebe até menos. “Nunca passei fome,mas muitas vezes não temos como comprar o que precisamos”.Conviver com privações e com a violência faz parte da rotina de Beatrize de seus colegas, que, com tão pouca idade, têm histórias chocantespara contar. “Teve um dia em que vi um cara ser morto do meu lado. Afavela ficou toda em silêncio, fiquei apavorada”, lembra a adolescente,

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hoje com 15 anos. “Nessa área, a gente sempre tem que sair comum pé na frente e outro atrás. Nunca com os dois na frente. Pensoque eu vou, mas não sei se volto”.

A insegurança do dia a dia é apenas um dos desafios que osmais de 100 alunos da Orquestra de Cordas precisam driblar paraperseguir seus sonhos – armados de violinos, violas, contrabaixose violoncelos. Beatriz sabe que quem vive na comunidade enfrentapreconceito até mesmo dos próprios vizinhos, além da classemédia. “As pessoas podem até pensar que somos desleixados, quearranhamos e estragamos os instrumentos. Mas, para estarmosaqui, temos que ter responsabilidade, nos empenhar muito noestudo de música e ter boas notas na escola”.

Quando ensaiam, todos os sábados, meninos e meninas tambémaprendem a história da música, a vida e a obra de compositores,as influências nacionais e internacionais. Na sala em que as aulassão ministradas, um grafite ilustra Gilberto Gil de braços abertose, sobre a porta, um de seus famosos versos resume o que, paraos jovens músicos, aquela reunião semanal representa: “O melhorlugar do mundo é aqui e agora”. De vez em quando, o ensaio noCentro de Inteligência Coletiva Lorenzo Zanetti, cravado na comu-nidade, é substituído por programas culturais: os alunos já assis-tiram a concertos no Theatro Municipal do Rio de Janeiro e tocarampara autoridades no Palácio Guanabara. Parte do grupo está fazen-do uma capacitação na cidade de Vassouras, no estado do Rio.Ainda este ano, o AfroReggae pretende aumentar a turma, inserindona orquestra naipes de madeira, metais e percussão sinfônica.

União

Em abril de 2010, o projeto foi rebatizado como Orquestra deCordas Diego Frazão, numa homenagem a um dos alunos, mortode leucemia aos 12 anos. A perda do menino foi a segunda emseis meses: em outubro de 2009, o coordenador de projetossociais do AfroReggae, Evandro João da Silva, foi assassinadodurante um assalto, no Centro do Rio. No enterro, seus alunos ohomenagearam, e a imagem do rosto de Diego, chorando e to-cando seu violino, rodou o mundo, que, pela mídia, acompanhoumais um episódio de violência no Rio, envolvendo a polícia.

Pós-graduados em sofrimento, os integrantes da orquestratiram da própria música forças para continuar realizando seussonhos. “O que vale é que a lembrança de Evandro e Diego estásempre entre nós. Essa orquestra era o sonho deles, então vamoscom ela até o final”, explica Beatriz. Ela já aprendeu que, às vezes, odesafino na vida não tem lá muitas explicações.

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Priscila Frazão, de 14 anos, é a irmã mais velha de Diego. Em 2010, soube que a mãe tem câncer no cérebro.É começar a tocar e um largo sorriso ilumina seu rosto. “Eu podia desistir de tudo, mas tirei forças de Deus, damúsica e do AfroReggae. A orquestra foi um presente para mim: hoje sei que pode acontecer de tudo na minhavida, mas isso aqui eu não largo nunca mais”, conta ela, que sonha em ser musicista e pedagoga.

Batalhadores

No comando da batuta dessa turma guerreira – o próprio AfroReggae nasceu após uma chacina em que 23moradores da favela de Vigário Geral foram assassinados – está o flautista Guilherme Carvalho. Orgulhoso, eleacredita que a orquestra está salvando muitos meninos e meninas do envolvimento com o tráfico e a prostituição.“A expressão artística resulta do desejo. O que tento passar para os alunos é que desejem, tenham tesão, seentreguem, sem tabu, para a arte. Com isso, é possível superar qualquer dificuldade”.

Leandro Justino, de 28 anos, sabe disso. Nascido e criado na comunidade da Grota, em Niterói, envolveu-secom a música aos 10 anos, incentivado por uma mulher de classe média que resolveu dar uma nova perspectivapara as crianças do local. Hoje é um dos instrutores da Orquestra de Cordas. “A gente começa ajudando um, esseum ajuda outro, esse outro ajuda um terceiro. E, assim, conseguimos mudar essa violência toda por aí”.

Orquestra do AfroReggae ensaia em Parada de Lucas, Rio de Janeiro, onde a taxa de homicídios é 84 por 100 mil habitantes.No Leblon, zona sul, a taxa é seis óbitos por 100 mil.

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A Organização das Nações Unidas (ONU)

decretou o ano 2000 como o Ano Internacio-

nal da Cultura de Paz, trazendo o conceito da

tolerância fundamentado na diversidade e

no pluralismo. No mesmo ano, durante a As-

sembleia do Milênio das Nações Unidas,

foram lançados os Oito Objetivos de Desenvol-

vimento do Milênio, focados na melhoria das

condições de vida da população como um

todo, incluindo as crianças, os jovens e suas

famílias. No Brasil, a data coincidiu com as

comemorações dos dez anos do Estatuto da

Criança e do Adolescente (ECA).

Os Objetivos de Desenvolvimento do Mi-

lênio são: acabar com a fome e a miséria; edu-

cação básica de qualidade para todos; igualdade

entre sexos e valorização da mulher; reduzir a

mortalidade infantil; melhorar a saúde das

gestantes; combater a Aids, a malária e outras

doenças; qualidade de vida e respeito ao meio

ambiente; todo mundo trabalhando pelo de-

senvolvimento (PNUD).

A UNESCO, que liderou a mobilização

mundial em prol da cultura de paz, divulgou

o Manifesto 2000, redigido por um grupo

de ganhadores do Prêmio Nobel da Paz.

O objetivo foi colher cem milhões de assina-

turas em todo o planeta. Quem assinava o

documento comprometia-se a passar adiante

os valores da paz. Mais de 50 milhões de

pessoas aderiram. O Brasil foi o campeão

proporcional em coleta de assinaturas,

com quase 15 milhões de adesões. O ex-pre-

sidente Fernando Henrique Cardoso assinou

o documento publicamente.

2000

ECA completa uma década; ONU lança

os Oito Objetivos de Desenvolvimento

do Milênio (ODMs) no ano da Cultura de Paz

Criança Esperança bate a marca dos 4.570 projetos apoiados

em todo o país; esporte é tema do show

Desafio

O ECA fez aniversário, enfrentando o de-

safio de consolidar direitos adquiridos há uma

década. Nesse sentido, a Câmara dos Deputa-

dos aprovou o Orçamento Criança e Adoles-

cente, um projeto do Instituto de Estudos

Socioeconômicos que monitora e divulga a

execução orçamentária de programas pú-

blicos voltados para a infância. Ao mesmo

tempo, a Conferência Nacional dos Direitos

da Criança e do Adolescente estabeleceu metas

de criação dos conselhos tutelares em todo o

país.

O Brasil também ratificou a Convenção

182 da Organização Internacional do Tra-

balho, sobre as Piores Formas de Trabalho In-

fantil, e foi lançado o Dia Nacional de Combate

ao Abuso e à Exploração Sexual Infanto Juve-

nil: 18 de maio.

No mesmo ano, foi inserido no Plano Plu-

rianual do governo federal o Programa de

Combate ao Abuso e à Exploração Sexual con-

tra Crianças e Adolescentes – sua primeira

medida concreta foi a criação do Programa

Sentinela, um conjunto de ações voltadas ao

atendimento de crianças e adolescentes víti-

mas desse tipo de violência.

Abrindo Espaços

A violência letal que envolvia jovens se-

guia em um ritmo crescente. Como parte do

esforço para tentar reverter esse quadro, a

Representação da UNESCO no Brasil lançou o

Abrindo Espaços – programa que abre escolas

públicas nos fins de semana para os jovens

e suas comunidades. A ação começou em

parceria com os governos do Rio de Janeiro,

da Bahia e de Pernambuco. Por trás de uma

ideia aparentemente simples, o Abrindo Espa-

ços pretendia ser uma ferramenta na constru-

ção de uma cultura de paz e no combate às

desigualdades. No ambiente escolar, os jovens

– especificamente aqueles em situação de

vulnerabilidade social – são menos expostos

à violência e têm mais oportunidades de

acesso à educação, à cultura e ao lazer. Em

2004, o programa virou uma política pública

do Ministério da Educação, com o nome de

Escola Aberta.

Também neste ano, o IBGE lançou o Índice

de Desenvolvimento Infantil (IDI), chamando

a atenção para a importância dos primeiros

seis anos de vida para o desenvolvimento in-

tegral das crianças. O instrumento tornou-se

um importante aliado na formulação das po-

líticas públicas voltadas para a infância.

As Organizações Globo receberam do

Fundo das Nações Unidas para a Infância

(UNICEF) o diploma de reconhecimento pela

responsabilidade social do programa Criança

Esperança, que chegava à marca dos 4.570

projetos sociais apoiados em todo o país.

Tendo o esporte como tema, o especial Criança

Esperança foi apresentado no Ginásio do Ibi-

rapuera, em São Paulo, e contou com a presença

de atletas como Popó, Raí, Maureen Maggi e

Robson Caetano. Em homenagem a Ayrton

Senna, Viviane Senna, irmã do piloto, falou

sobre o Instituto que leva o nome do irmão,

morto em 1994, em acidente automobilístico.

CO

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“Nos 25 anos do Criança Esperança, é gratificante perceber que os projetos apoiados estimularam osurgimento de novas parcerias entre empresas privadas, organizações não governamentais e o setorpúblico, e contribuíram para o pleno exercício do conceito de responsabilidade social no Brasil.

Torço que para que essa parceria, UNESCO e TV GLOBO, se multiplique e continue fomentandooportunidades para milhares de crianças e jovens brasileiros, estimulando uma cultura de paz. Aí então,construiremos juntos mais do que um país. Construiremos uma nação”.

Foto

: Flá

vio

Mar

tin

Raphael Vandystadt Gerente de Projetos Sociais – CGCOM TV Globo

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