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    HISTRIA, IMPRENSA EREDES DE COMUNICAO*

    Marta Emisia Jacinto Barbosa**

    Jorge Luiz Ferreira Lima***

    RESUMO:A investigao a respeito da constituio de redes decomunicao na regio norte do Cear prope desvendar a ma-terialidade destas, dar visibilidade aos sujeitos sociais e s experin-cias que as constituem. O trabalho explora percursos de produoe difuso de materiais impressos, pequenos fragmentos que, reu-nidos, possibilitam pensar em sistemas de troca de informaes,constituio de relaes sociais na organizao da instruo, noaprendizado da leitura e da escrita, bem como na definio do que importante conhecer, aprender, nas pequenas cidades do serto.PALAVRAS-CHAVE: Histria e Cultura. Imprensa. Redes de Co-municao.

    ABSTRACT: The research concerning the establishment of com-munication networks in the North of Cear proposes reveals itsmateriality, as well as to give visibility to social subjects and expe-riences that constitute it. The work explores pathways for the pro-duction and dissemination of printed materials, small pieces that,together, allow us to think on information exchange systems, crea-tion of social relations in the instruction organization of the learningof reading and writing, as well as it helps in the definition of what itis important to know, learn, in small cities of the Serto.

    * Este artigo apresenta questes trabalhadas a partir do projeto de pesquisaImprensa e vida urbana: redes de comunicao na regio norte do estado doCear, desenvolvido com apoio da Fundao Cearense de Apoio ao Desen-volvimento Cientfico e Tecnolgico FUNCAP.

    ** Professora do Instituto de Histria da Universidade Federal de Uberlndia. Dou-tora em Histria Social.

    ***Professor da rede pblica de ensino do Cear. Licenciado em Histria.

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    1 BEZERRA, Antonio. Notas de viagem. Fortaleza: Imprensa Universitria doCear, 1935, p. 71. Sua primeira edio data do ano de 1899, publicada pelaTip. Econmica, com o ttulo Provncia do Cear Notas de viagem (ParteNorte). Para o historiador Raimundo Giro, Bezerra foi um jornalista que este-ve envolvido na fundao de jornais, colaborando intensamente com sua pro-duo.

    KEYWORDS: History and Culture. Press. CommunicationNetworks.

    Antonio Bezerra afirmava que uma cidade sem jornal comoa fonte sem gua. Para ele, o jornal o livro do povo, e onde opovo no l no se instrui, a ignorncia alimenta as paixes, avul-

    ta a estatstica dos crimes. Estes comentrios foram feitos peloautor no livro Notas de viagem, que relata sua viagem, em comis-so, pelo serto do Cear no final do sculo XIX. Bezerra, naquelemomento, acenava para uma preocupao: observar um sertoque l, um serto dos livros, dos jornais, da escrita e da leitura.1

    Nos caminhos pelos quais passava, aquele viajante anotavao que via e reunia novas informaes a suas lembranas, de talmaneira que parecia inevitvel comparar cada recanto atravessa-do com um outro que se avistava frente. Em seu livro, coubelugar para revelar surpresas que o serto guardava; entre elas, apresena de jornais a circular por entre os caminhos dos sertescearenses.

    A definio usada por Bezerra, quando se refere ao jornalenquanto livro do povo, merece a nossa ateno para pensarnos significados de uma prtica: a produo de folhas, jornais,nesses espaos, mas, especialmente, a maneira como se dava oprocesso de difuso desses materiais que, podemos dizer, com-punham redes de comunicaes que insinuavam novas relaessociais a se constiturem no serto. As passagens de Bezerra pro-vocam uma associao com o que diz Natalie Davis, em seu textoO povo e a palavra impressa, a respeito de como a palavra im-pressa entrou na vida popular no sculo XVI e criou novas redes

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    de comunicao, provocou a abertura de novas opes para opovo e tambm ofereceu, segundo a autora, novas formas decontrol-lo.2

    A esta idia discutida por Davis, segue-se um conjunto deperguntas que desenha um campo de investigao para o histori-ador atento a novas relaes que podem ser pensadas e que apon-tam para entendermos outras experincias na histria. Entre as

    indagaes da autora, uma nos perseguir: ser que a palavraimpressa tinha tal importnciapara o povonum perodo em que osalfabetizados ainda eram to poucos?.

    As observaes de Bezerra sobre a presena de livros e dejornais no serto cearense do sculo XIX sugerem de imediatopensar sobre como se constituiu um circuito de materiais de escri-ta e leitura naqueles espaos distantes. Ao mesmo tempo em quenos instiga investigar o que constituiu esta experincia, quais eramos sujeitos envolvidos, suas formas de acesso a diversos materi-ais, enfim, a rede que a compunha.

    Baro de Studart e Geraldo Nobre, escrevendo sobre a im-prensa no Cear, destacam que a primeira metade do sculo XXfoi um perodo de crescimento da imprensa cearense, quando severifica um aumento na quantidade de ttulos e uma intensificaodas atividades nas tipografias, tanto em Fortaleza, quanto, segun-do os autores, no interior do estado. A presena de escolas, doLiceu, da Faculdade de Direito, por exemplo, movimentou novaspublicaes, ao mesmo tempo em que se organizavam grupos li-terrios e grupos de trabalhadores, como o dos telegrafistas. Aocomentar a existncia de um jornal chamado O Cear Telegrfico,como o primeiro a marcar a presena dos telegrafistas no jornalis-mo cearense, Geraldo Nobre o qualifica como importante espaode formao de jornalistas.3

    2 DAVIS, Natalie Zemon. O povo e a palavra impressa. In: Culturas do povo:sociedade e cultura no incio da Frana Moderna. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1990, p. 157-186.

    3 NOBRE, Geraldo Introduo histria do jornalismo cearense. Fortaleza: Gr-fica Editorial Cearense, 1974, p. 92.

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    A chegada de algumas tipografias no interior da provncia,nas primeiras dcadas do sculo XIX, principiou o que aquele au-tor denominou como o jornalismo sertanejo, os primeiros jornaisimpressos do interior. Em Fortaleza, o nmero de tipografias liga-das s atividades jornalsticas crescia: ao passo em que algumasno sobreviveriam s dificuldades financeiras, outras permanece-riam imprimindo para distintos grupos, chegando a imprimir para

    mais de um jornal.4

    O final do sculo XIX assinalou, para a impren-sa cearense, um momento de importante definio. O surgimentode jornais de cunho mais informativo comeou a expor vrias difi-culdades vividas pela populao pobre da capital e do interior.Indivduos e grupos nas pequenas cidades do interior consumiamjornais, revistas e criavam um circuito de leitura.

    Nobre caracteriza esta intensa atividade da imprensa cearensecomo concernente a um universo de pequenas publicaes emque a maioria se caracteriza como jornais e revistas de pequenoformato e de reduzido nmero de pginas, predominando as lite-rrias, as noticiosas, as estudantis, as de instruo ou propagan-da religiosa, os rgos de associaes e, ainda, os pasquins,geralmente apcrifos e escritos em linguagem licenciosa.5

    A partir desses estudos, possvel indicar a existncia devrios jornais surgindo no interior do estado e observar que al-guns podiam at contar com oficinas prprias, onde se fazia tam-bm a publicao de folhas de outras localidades. De carter quin-zenal ou semanal, esses jornais circulavam por algum tempo, emSobral, Baturit, Granja, Camocim, Crato, Maranguape e outrascidades, que possuam mais de um ttulo pelos arredores. As indi-caes fornecidas pelos autores so importantes para formularuma viso mais ampla do processo de produo de uma rede comramificaes que podem dar visibilidade experincia do viver e

    do fazer a palavra impressa.

    4 As principais tipografias pertenciam aos jornais O Cearense, ConstituioePedro II. Outras, porm, exerceram atividades na provncia: Brasileira,Ameri-cana, Industrial, Imparcial, Unio, Popular, do Comrcio, etc. Idem, ibidem.

    5 Ibidem, p. 128.

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    As pequenas folhas semanais e quinzenais dedicavam-se ainformaes gerais sobre poltica, literatura, economia, algumasao humor, e viviam, muitas vezes, nos limites de recursos tcni-cos. Mas, entre suas linhas e pginas, indiciavam a presena dediferentes produtores desses materiais. Nobre lembra que grandeparte dos redatores, colaboradores e reprteres dos jornais dacapital, Fortaleza, teria vindo do interior do Cear. Compondo esse

    quadro de fazedores da imprensa local, era possvel perceber apresena de padres, bacharis, estudantes do Liceu.6

    No longo relato de Antonio Bezerra, em que se ressaltava asurpresa com a descoberta de um serto que l, que produz jor-nal, verificam-se fragmentos da existncia de leitura e de leitores.Ao chegar em Santana, por exemplo, cidade da regio norte doCear, suas anotaes ponderavam sobre a falta de instruo noserto e sobre a escassez de escolas. Esta preocupao continu-aria por toda sua longa viagem, quando se referia aos sertanejospobres que viviam mergulhados na ingenuidade do serto. Taistraos no movimento destas notas sugerem que, entre o livrodo povo e a ingenuidade do serto, existia um filtro por onde asinformaes circulavam e eram transformadas. Marcado por umaviso de mundo que dividia a sociedade entre o atraso e o pro-gresso, Bezerra apresentava o serto em seus defeitos, decor-rentes de uma situao de atraso, e tambm no que de extraor-dinrio podia existir, como um alento diante da ignorncia que co-bria os mais distantes lugares:

    Apesar dstes e outros defeitos que denunciam ainda a falta deeducao nas classes inferiores de nossa sociedade, no possono entanto deixar de assinalar aqui um melhoramento na cidade deSantana que, se ainda no teve a devida amplitude, em todo caso

    concorre heroicamente para dissipar essa ignorncia com a pro-pagao de idias novas, conhecimentos teis e experincias davida.

    6 Ibidem,p. 19.

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    Falo dos jornais que se publicam hebdomadriamente, e que soredigidos por penas hbeis.Acontecendo ir uma ocasio agncia do Correio, surpreendeu-me ver diversos jornais da Europa com endereo ao Municpio deSantana, que conta atualmente quatro anos de existncia e tem oseu escritrio na rua do Coronel Menescal, n.2.Mais uma vez me convenci da importncia desta via do progresso,

    que transmite por todos os ngulos do universo seus pensamentose recebe em franca intimidade os dos outros que tm o mesmo fim,o mesmo destino, presos mesma idia que a aspirao perfectibilidade humana em cujo trabalho representa cada um o elode uma grande cadeia, com a mesma simpatia com que o fluidoeltrico se transporta de um a outro ponto, a comunicar, a difundir,a vulgarizar o aperfeioamento das artes, das letras, das cincias,da indstria, do comrcio e da poltica.7

    As observaes registradas pelo autor nos advertem na ne-cessidade de investigar sobre quem eram os sujeitos leitores doserto, sobre quem importava e distribua os jornais, sobre o pro-cesso que tornou possvel essa circulao. A constatao de quenaqueles locais sem fim a palavra impressa era alvo de atenofornece pistas para perseguir os sujeitos, os grupos, que habitamum serto; e mais, pistas de que a alfabetizao, a biblioteca, osgrupos de leitura podem ter sido uma experincia significativa nacomposio de uma vida urbana no serto; pistas importantes paracompreender a histria das cidades do interior, para captar suadinmica prpria, suas relaes de fora em meio a modos devida diversos.

    A essa descoberta alia-se um expressivo componente na tra-jetria da difuso: as agncias do correio como pontos de cone-

    xo. O que sugere pensar na materialidade do processo de distri-buio e difuso dos materiais impressos como relao que cons-titui uma prtica, uma maneira de se relacionar e de transformarmaneiras de viver.

    7 BEZERRA, Antonio. Notas de viagem. Op. cit., p. 71.

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    Embora fosse reconhecido como via do progresso que po-dia dissipar ignorncia, propagar idias novas, alm de levarconhecimentos teis a experincias da vida, um meio com gran-de poder de expanso, o jornal divulgou um Cear quase sempremiservel mergulhado na ignorncia. O progresso, para o autor,ainda estava longe.

    Mesmo ao discorrer sobre um caso excepcional, que ainda

    no teve a devida amplitude, por alguns momentos, na escrita deBezerra, a imagem do serto isolado se inverte e aparece um ser-to que se comunica. Suas reflexes indicam a organizao deuma grande cadeia que comunica, difunde, vulgariza um univer-so de conhecimentos, de informaes, que estimula o aperfeioa-mento das artes, das letras, das cincias, da indstria, do comrcioe da poltica. O desdobramento da comunicao em muitas facetasda vida de cidades, apontado pelo autor, agrega para essas rela-es sujeitos que esto em diferentes pontos da vida social: ocomerciante, o poltico, o mdico, o professor, os importadores, ostropeiros e tantos que fazem parte da formulao dessa cadeia.

    Em 1903, na passagem do sculo XIX para o sculo XX, ob-servam-se sinais de recorrncias daquilo que Bezerra j havia ates-tado. Em um pequeno jornal do Crato, sul do Cear, v-se publi-car em coluna de editorial, na primeira pgina, um texto com ottulo A Imprensa:

    Ningum poder contestar que a imprensa tem sido e ser sempre omais poderoso factor do progresso instruindo os povos e combaten-do abusos e preconceitos [...]. Tudo elle procura desvendar e revestirda verdade levando com felicidade e presteza os teis resultados obti-dos, ao conhecimento do mundo civilisado por meio do jornal e do livro.8

    8 A IMPRENSA.A Lia, Crato, 23 de setembro de 1903, p. 1. Jornal litterrio enoticioso orgam do Club Romeiros do Porvir. Compunha-se por quatro p-ginas e trs colunas, saa s quartas-feiras, informava aos leitores que eraredigido por uma turma de clubistas e contava com a colaborao de mo-os do nosso meio. Afirmava sempre em sua primeira pgina: Tudo pelaptria.....

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    As associaes entre imprensa e progresso, livro e jornal, mun-do civilizado e no-civilizado continuavam vivas entre aqueles queproduziam jornal no interior do Cear e em Fortaleza. A nfasedada imprensa enquanto defensora e guia do povo persistia eatravessava o sculo, com as disputas entre os jornais, sobre quemmais advogava a causa do povo. Um povo que continuava a apa-recer imerso numa abstrao, um ser genrico, mas que assumia,

    por vezes, contornos concretos em convenientes matrias, comoEm favor dos pobres, Pelos pobres, quando se podia inferirmais claramente sobre a quais sujeitos a imprensa se referia.

    Acompanhar os caminhos de Bezerra, naquele momento des-vendando o serto, tornou instigante a pesquisa e a reflexo arespeito da maneira pela qual se constituiu, na regio norte doCear, uma rede de comunicao no perodo compreendido entrea ltima dcada do sculo XIX e as primeiras dcadas do sculoXX. Nas pistas deixadas por Bezerra, podemos considerar um es-boo de uma trajetria social que se desenhava j no final dosculo XIX e que hoje, com as novas e complexas configuraesde comunicao, merece investigao.

    A formao de redes de comunicao aqui destacadas temsentido na definio anotada por Robert Darnton: rede de comu-nicao composta por artrias, veias e capilares e que leva emconta todos os estgios do processo de produo e distribuio.9

    Essa perspectiva apontada por Darnton coloca a relao entrehistria e imprensa em um campo onde possamos consider-lacomo objeto e no apenas como fonte fornecedora de informa-es. Nesse sentido, importa indagar sobre a constituio materi-al dos percursos e dos materiais impressos, considerando o pro-cesso de constituio da imprensa no campo da histria social; oque implica no reconhecimento da imprensa como prtica social,

    momento em que se forjam modos de viver e pensar.Os procedimentos investigativos, definidos ao longo da pes-

    quisa, so etapas que expem o universo de dificuldades por que

    9 Ver DARNTON, Robert. Os best-sellers proibidos da Frana pr-revolucion-ria. So Paulo: Companhia das Letras, 1998.

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    passa o historiador. Investigar pequenos rastros de experincias,fragmentadas, registradas nos diversos espaos, coloca o pes-quisador sempre numa zona de testes, de experimentaes cons-tantes. Para enfrentar esse universo, a pesquisa procurou mapearacervos de livros, jornais, cartas comerciais e particulares, revis-tas e demais materiais impressos que circularam naquela regiodurante o perodo.

    Descobrir acervos, construir acessos e identific-los umatrajetria necessria para comear a desvendar a existncia defios que podem nos conduzir para uma intrincada rede de conta-tos, de sociabilidades, de informaes, cuja configurao tornoupossvel visualizar ligaes entre o litoral, a partir da cidade deCamocim e seu porto, e o interior Vale do Acara e Serra da Ibia-paba , chegando at o estado do Piau, atravs da Estrada deFerro de Sobral.

    A configurao desse circuito leva considerao de que nossertes do norte do Cear e na regio da Serra da Ibiapaba, espe-cialmente no final do sculo XIX, no havia uma populao rude,incivilizada e distante do progresso, caractersticas difundidas noperodo. possvel caracterizar esses espaos como campos deuma cultura letrada se fazendo pouco a pouco, onde se nota omovimento da alfabetizao, a constituio da instruo nas pri-meiras letras e, por que no dizer, atravs da implantao de insti-tuies de leitura e escrita, cujo exemplo mais comum eram osgabinetes de leitura e a produo e circulao de jornais.

    A descoberta de jornais, de homens que escreviam para aimprensa, tanto local quanto de outras regies do pas, e de gabi-netes de leitura na regio provocou a necessidade de pensar so-bre os significados da presena de idias recorrentes no perodo:civilizao, letramento e conquista do progresso com nfase no

    campo da educao. Em contraponto existncia do esteretipoque define o norte-cearense, nesse perodo, como espao do ho-mem inculto, analfabeto e estranho s letras, passa a surgir apossibilidade o talvez a respeito do homem que preza a leitu-ra e a escrita; universo pouco considerado sobre aqueles que ha-bitavam os sertes.

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    nas duas ltimas dcadas do sculo XIX que se configura oespao que chamamos aqui de regio norte do Cear. Contribuiusobremaneira para traar o perfil dessa regio, e da rede de co-municao que a se constituiu, seguir alguns percursos, como aconstruo da ferrovia: em 1894, foi inaugurada a Estao da Es-trada de Ferro de Sobral na recm-criada cidade de Ipu, que seconstituiu como o ponto mais ao sul dentro do traado que confi-

    guramos. Com a ferrovia, definia-se uma ligao entre o litoral e ointerior, partindo de uma cidade que tambm abrigava um porto,como a cidade de Camocim, e chegando a Ipu, passando porSobral. De tal maneira que a presena do trem concretizou umaponte fundamental entre o litoral e o serto, a envolver importan-tes lugares, como Sobral, significativo plo de consumo e de pro-duo da informao impressa, com um expressivo nmero dejornais publicados. Ao permitir o trnsito de variadas mercadorias,entre tantas, como o algodo, esta ponte tambm colocou em cir-culao os materiais impressos.

    Entre as cidades localizadas ao longo da via frrea, Granjadesempenhava papel estratgico no traado da regio norte, cons-titua-se em um dos principais entrepostos na circulao de mer-cadorias, ao contar com a presena de importantes firmas comer-ciais, que compravam parte da produo de produtos primrios dorestante da regio, como algodo, couros, cera de carnaba, etc.,e as repassavam para Fortaleza, Recife, Rio de Janeiro e para aInglaterra, como era o caso do algodo. Uma firma que se desta-cava era a Ignacio Xavier & Cia, em cujos livros copiadores decarta pode-se verificar uma grande quantidade de cpias de car-tas comerciais, a maioria dirigida s cidades da regio norte doCear, como Sobral, Camocim, Massap, Carir, Ipu, S. Cruz, Vi-osa do Cear, Barroco (atual Tiangu), Palma (atual Coreu);

    havendo tambm para cidades de outros estados, como Parnabae Oeiras (Piau), Recife (Pernambuco), Rio de Janeiro; e de ou-tros pases, como Manchester e Liverpool (Inglaterra).

    Mais para o interior, outra cidade de destaque no serto, de-pois de Sobral, era o Ipu, na Serra da Ibiapaba, cuja estao ferro-viria era o centro da economia da cidade, pois, para o trem con-

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    vergia a considervel produo de algodo que ali se verificava.Tambm em Ipu se constituiu um grupo de intelectuais e homensde letras que se dedicaram, entre outras coisas, publicao dejornais, almanaques e revistas, alm de publicarem suas poesiasem jornais de outras cidades, at mesmo do Sul do pas.10

    Assim como o Ipu, a cidade de Viosa do Cear tornou-se umdos principais pontos de convergncia na circulao de jornais

    publicados em outras regies, plo consumidor da informao im-pressa, onde tambm se identificava a publicao de jornais e aemergncia de um gabinete de leitura.

    A investigao a respeito da existncia de gabinetes de leitu-ra na regio pesquisada se mostrou caminho frtil por sinalizar aformao de espaos de leitura e de grupos de letrados. Tal cami-nho da pesquisa propiciou a descoberta de associaes e clubesque mantinham relaes com os gabinetes, o que sugere o trajetoseguido por muitos: seus membros e outros grupos, como livrei-ros, encadernadores, tipgrafos, estafetas, enfim, todos aquelesque constitussem ramificaes do circuito.

    O trabalho junto ao acervo do Gabinete de Leitura da cidadede Ipu nos permite entender que, ao pesquisar este universo dequestes, se faz necessrio estarmos atentos aos elementos apa-rentemente insignificantes. Sinais, como carimbos apostos nascapas ou pginas dos livros, contendo nomes, endereos de livra-rias, bem como anotaes feitas entre as pginas, seja por seusantigos proprietrios ou por leitores, reunidos, podem significardesenhos de trajetos da formao de grupos que liam, que ouvi-am, que formavam opinies, que instruam.

    No incio do sculo XX, os fundadores e colaboradores doGabinete Viosense de Leitura exaltavam sua existncia comoobra de valor e mrito. Entre os vrios discursos comemorativos

    do aniversrio deste Gabinete, v-se a insistncia na defesa daimportncia da instituio que mantinha aberta ao pblico sua bi-blioteca, assim como assegurava para os pobres aulas notur-

    10 Ver SOUZA, Eusbio de. Chronica do Ipu. Revista do Instituto do Cear, Forta-leza, t. XXIX, p. 157-243, 1915.

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    nas, curso com matrcula gratuita, alm de suas reunies em pro-moo, propaganda da cultura cvica. Afirmava Eduardo Fontelle,em discurso publicado no jornal Polyantha:

    Como comovedor o ver-se, no curso noturno, s horas das li-es, os bancos cheios de creancinhas pobres attenciosas e vi-das do saber, recurvadas sobre os livros, como que supplicando

    quellas letras grandes do ABC que lhes dem aquillo de que tantoprecisam a innstruco!11

    A instruo era tema recorrente entre os membros do Gabine-te, associada constantemente ao civismo como faceta fundamen-tal que definia a ao dos devotados ao culto das letras e sobre-tudo da Ptria. As grandes letras do ABC ganhavam fora e sen-tido na organizao da cidade, dos seus valores, comportamen-tos, de suas idias. Faz-se interessante assinalar idia desenvol-vida por Davis quando discute a relao entre a palavra impressae o povo e indica como possibilidade, como problematizao, con-siderarmos um livro impresso como fonte de idias, sim, mas, so-bretudo, como um mensageiro de relaes, em que seja possvelconjecturar sobre campos de fora, de atrito nas sociedades quese constituem, e envolvem diferentes sujeitos, instituies, hierar-quias.12

    A partir das cidades de Camocim, Granja, Sobral, Viosa doCear e Ipu, torna-se possvel examinar a configurao dessa redeatravs da qual a composio impressa circulava de forma din-mica, levando-se em considerao as condies do perodo noque se refere aos meios de transporte. O meio mais rpido de cir-culao de materiais impressos era, sem dvida, o trem. Por elecirculavam jornais e revistas a partir de Camocim, chegadas a

    atravs dos paquetes que navegavam pela costa entre Recife,Fortaleza, Acara, Camocim e Parnaba. Atravs deles, desem-

    11 13 DE FEVEREIRO. Polyantha, Viosa, Cear. 1916, p. 2.12 DAVIS, Natalie. Op. cit, p. 159.

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    barcavam no porto de Camocim jornais e revistas que eram reme-tidos aos assinantes da regio norte, ou seja, de Granja, Sobral,Viosa, Ipu, etc. A aquisio de jornais era uma prtica comumentre os grupos abastados das cidades, sendo que as quantiasdestinadas ao pagamento de assinaturas de jornais figuravam,inclusive, na contabilidade das firmas comerciais.

    As firmas comerciais exerciam, alm da atividade comercial

    propriamente dita, a funo de agentes financeiros, emprestandodinheiro para as mais diversas necessidades. Entre estas, figura-vam quantias destinadas ao pagamento de assinaturas de jornais,requeridas por clientes que, a partir dos registros contidos em li-vros contbeis, se revelam enquanto consumidores e proporcio-nam uma visualizao mais prxima da forma como era tratado oconsumo de jornal. Este se afigurava um artigo de luxo, tanto que,para sua aquisio, eram contrados emprstimos em dinheiro.Localizar operaes comerciais especficas ligadas cultura daimpresso, nessa perspectiva, tem um sentido necessrio que reconhecer, atravs de dados indiretos, o circuito de difuso daimprensa que o cruzamento de informaes pode proporcionar.

    Firmas como a Ignacio Xavier & Cia., que se apresentavacomo armazm de fazendas em grosso e a retalho e cuja especia-lidade era a compra de algodo, peles, couros, ceras e mais g-neros de exportao, emergiam como importante referncia nastransaes comerciais que envolviam desde cadernos, lpis, ca-netas a livros e jornais; alm de servios como o pagamento doordenado de professores que mensalmente aparecia nos livrosde contas. So dados reveladores das engrenagens pouco vis-veis ou imediatamente imperceptveis pelo pesquisador, exigindodo trabalho um processo de depurao, de desmontagem das tei-as, para reunir detalhes, perceber conexes, construir sentidos,

    que permitam entender os caminhos em que experincias espec-ficas foram realizadas. A documentao de uma firma, a priori,poderia ser rejeitada ou pouco valorizada, por se tratar, em suaapresentao, de um comrcio muito especfico, mas analisar cadalivro, cada linha, cada seo que compe o material faz com que ohistoriador proponha outra lgica de leitura para as fontes.

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    Entre as possibilidades construdas e aqui destacadas h aidentificao de jornais e revistas de variedades que tambm eramconsumidas na regio. Em meio a peles, couros e algodo, ras-treiam-se papis, cartilhas, folhas. Chegava cidade de Sobral,por exemplo, uma gama de revistas de carter nacional e interna-cional, entre as quais se verifica uma recorrncia de revistas cari-ocas e francesas. A descoberta desta circulao de revistas naci-

    onais, como O Malhoe Tico-Tico, Ilustrao Brasileirae Revistada Semana, que grassavam como produtos desvendados nos pa-pis do comrcio, efetuou-se no acompanhamento do movimentode negcios e clientes, perseguindo nomes e como13. Em 1907,na firma Ignacio Xavier & Cia., encontra-se, entre tantas transa-es comerciais, o dinheiro recebido referente ao pagamento deassinatura de Paiz, Malhoe Tico-Tico no valor de 75.500. Omesmo ocorre com jornais locais O Rebate, Jornal do Cear,Folha do Povo seguindo uma lista de nomes e de pagamentosde assinaturas.

    Nos livros de contas e livros caixa, verificam-se pagamentosreferentes a vrias assinaturas de jornais que mostram uma geo-grafia ampla de nomes de pessoas, de firmas e lugares por ondeas folhas passavam: quem as solicitava, quem as remetia, o queera enviado, a quantidade, os valores pagos, os perodos maisintensos de pedidos e os menos intensos.

    Os caminhos e os meios de transporte desses materiais im-pressos eram os mais diversos. Assim, os jornais que tinham comodestino as cidades e povoados localizados na regio do Vale doAcaru seguiam a partir de Camocim direto atravs da ferrovia,sendo desembarcados nas estaes. Ali eram recebidos pelosagentes postais ou pelo prprio assinante, que buscava suas en-comendas.

    Outro era o caminho percorrido para que se chegasse Ser-ra da Ibiapaba. Transportados de Camocim at Granja via trem,

    13 GINZBURG, Carlo. O nome e o como. Troca desigual e mercado historiogrfico.In:A micro-histria e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1991, p. 179-202.

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    jornais e revistas seguiam dali para Viosa do Cear e demaiscidades da Serra da Ibiapaba sob a guarda de estafetas, conduto-res de jumentos e burros que desciam as ladeiras em direo aGranja e Camocim e, dali, voltavam com seus animais carregadosde mercadorias, entre elas, jornais e revistas. O estafeta fazia aentrega ao agente do Correio em Viosa, o qual procedia a entre-ga ao destinatrio final.

    Os assinantes de jornal se dirigiam ao Correio em determina-do dia da semana para receber os seus jornais que, dadas ascondies j expostas, chegavam Serra com vrios dias de atra-so, se considerado o tempo gasto pelo paquete em viagem paraCamocim, pelo trem para Granja, e do estafeta que seguia a pladeira acima na direo de Viosa.

    As revistas estrangeiras parecem ter seguido caminho um tantomais complexo. primeira vista, podemos supor que chegassemao Brasil encomendadas por alguma livraria e, a partir desta, che-gavam aos leitores, o que nos faz prosseguir pensando nas livrari-as e livreiros como provveis intermedirios, indispensveis, en-tre os leitores e a editora ou o que pudesse compor este universo.A ausncia de carimbos e selos de livrarias brasileiras nas citadasrevistas dificulta parte do trabalho de identificao, mas, ao mes-mo tempo, pode apontar na direo de outra via de aquisio. Detodo modo, possvel aferir, a partir de anncios de jornal, quehavia uma prtica de consumir este tipo de impresso. Algumasrevistas estrangeiras eram citadas e comentadas nas redaes eseus artigos incorporados publicao do jornal, o que demons-tra um sentido de expanso de referncias que poderiam ir almdos autores locais.

    A incurso pela documentao esbarra em comerciantes vri-os, padres, professores, tipgrafos, estafetas, condutores de ani-

    mais, todos a dar movimento circulao de mercadorias impres-sas. Darnton destaca a importncia de se considerar a experin-cia dos intermedirios esquecidos - os tropeiros, fabricantes depapel, tipgrafos, carroceiros, livreiros e at leitores -, pessoasque fizeram funcionar um sistema que produzia e difundia livros.Esta idia desenvolvida por Darnton provoca a discusso sobre a

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    riqueza de composio do sistema de produo e difuso, abrindojanelas para pensar a respeito das diferentes historicidades e pro-cessos da comunicao14.

    A leitura do jornal Correio do Norte, hebdomadrio, impresso,pertencente cidade do Ipu, revela algumas pistas a respeito dacirculao de jornais, revistas e almanaques na regio norte doCear. Uma primeira observao diz respeito ao termo freqen-

    temente empregado pelos homens de letras daquele perodo, co-meo do sculo XX, para designar o que chamamos regio nor-te. Percebe-se o uso da expresso zona norte, demonstrandouma incorporao da maneira segundo a qual vendedores, nego-ciantes e representantes comerciais, que circulavam pela regiofazendo uso dos trens da Estrada de Ferro de Sobral, se referiamcomumente quela regio.

    O mesmo jornal aponta para uma prtica que parecia recor-rente no espao da redao a respeito da circulao de livros. Aredao ganhava livros, muitos enviados pelos autores em trocado reclame, da propaganda que era feita e publicada nas edi-es seguintes. Alguns autores chegavam a se deslocar para ascidades, com o objetivo de proferirem conferncias literrias e di-vulgarem o trabalho. O jornal tambm anunciava livros que seriamencontrados para a compra em tipografias, como o caso, porexemplo, da tipografia da revista O Campo, revista de divulgaomensal, que pertencia ao Sindicato Agrcola Ipuense. Do mesmomodo, os anncios de firmas comerciais publicados em jornal con-firmam a presena de livros escolares para a venda no comrcio,destacando-os como bons livros para presente.

    Quanto s revistas, h anncios constantes sobre recebimentode exemplares diversos. A repetio de ttulos e a frequncia comque apareciam expressam que a aquisio poderia ter sido uma

    prtica comum. So ttulos: Mundo Brazileiro, Cear Revista, Bo-letim da Unio Pan-Americana, O Aprendiz, Tico-Tico, O Malho,

    14 DARNTON, Robert. Os intermedirios esquecidos da literatura. In: O beijo deLamourette. Mdia, cultura e revoluo. So Paulo: Companhia das Letras, 1990,p. 132-145.

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    Para Todos, Leitura para Todos, Careta, Illustrao Brazileira, EuSei Tudo, Revista da Semana, Scena Muda, Reco-Reco(Camo-cim), Brazila Vivo(Fortaleza), O Norte, Revista Phenix(Fortaleza),O Beija Flr(infantil), Jandaia(Fortaleza), entre outras. Em al-guns casos, sublinha-se que a aquisio de revistas e al-manaquespoderia ser feita na prpria redao do jornal, com o tipgrafo,como aparece em anncios de venda dos ttulos O Malho, Tico-

    Tico, Para Todos, Leitura para Todose Illustrao Brazileira.A relao entre redao de jornal e comrcio de livros e revis-tas indicia uma prtica que parecia comum na regio norte doCear. Revela traos de uma dinmica das relaes sociais queconstri e interliga diferentes atividades e sujeitos, constituindoesta dimenso de viver a cidade e ao mesmo tempo fortalecendoa comunicao impressa.

    Na virada do sculo XIX para o sculo XX, vrios jornais depequeno formato, alguns manuscritos, surgiram na regio. No Ipu,por exemplo, apareceram cerca de dez jornais, entre os anos de1880 e 1900, a maioria manuscritos e alguns impressos, sendo oprimeiro deles O Ipuense, impresso na Tipografia dOrdem, emSobral. Recortando as cidades, Ipu, Sobral, Camocim, Massap eoutras que podem compor o quadro dos produtores de imprensano Cear neste perodo, observamos jornais e revistas que sedefinem como crticos, humorsticos, literrios, esportivos, de es-tudantes, ligados agricultura, instruo; com periodicidadesmensais, quinzenais, semanais; manuscritos, datilografados, im-pressos.

    Havia uma dinmica no uso dos espaos tipogrficos. Mesmoexistindo pequenas oficinas tipogrficas nas cidades, como Ipu,que, em 1918, publicou o jornal Correio do Norteimpresso emoficinas prprias, vrios servios de maior porte ou que contas-

    sem com maior recurso destinavam-se a cidades maiores paraque ali fossem realizados, o que promovia sociabilidade, troca deinformaes, laos de interesses comerciais.15

    15 IPU-CE. Prefeitura Municipal de Ipu.lbum comemorativo da passagem doprimeiro centenrio de Fundao.Fortaleza: Editora Tipografia Unio, 1940.

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    Quanto existncia de livros por entre essas cidades, obser-va-se uma quantidade expressiva editados em Portugal e na Fran-a, segundo levantamento realizado em acervos de bibliotecaspertencentes a gabinetes de leitura. Como chegavam at esseslugares? Quais os meios utilizados at chegarem s prateleiras?Alguns indcios apontam para uma trajetria composta por vriosmomentos. O primeiro momento possvel de chegada ao Brasil

    poderia ser em alguma livraria do Rio de Janeiro. Depois, eramconduzidos para o Nordeste, especialmente para livrarias de Re-cife e Fortaleza, como a Livraria Ribeiro, estabelecida no nmero198 da Praa do Ferreira, no centro de Fortaleza. Ainda em pa-quetes, aportavam em Camocim, provavelmente na bagagem dealgum bacharel, estudante, mdico, jornalista, padre ou qualqueroutro portador que se interessasse em comprar livros para si ousob encomenda de outrem. Existiam, tambm, livrarias de algu-mas capitais principalmente do Sul do pas que ofereciam apossibilidade de compra de exemplares de seus estoques pelocorreio mediante prvia encomenda.

    Livrarias eram estabelecimentos raros na regio norte do Ce-ar at a primeira dcada do sculo XX16. As firmas comerciaisexistentes nas cidades contavam em seus estoques com certavariedade de materiais para escrita, como livros em branco desti-nados escriturao comercial e cartorial, penas e tinteiros, lpis,canetas, material didtico como cartas de ABC, tabuadas, livrosde primeira leitura, livros de segunda leitura, livros de terceira lei-tura, livro Vida Prtica, cartilhas, catecismos e missais acompa-nhados de exemplares da clebre obraA imitao de Cristo, livrode aforismos cristos. A quantidade de pedidos e recebimentos

    16 Em 1918, o Gabinete de Leitura Ipuense recebeu de Ablio Martins, deputadona Assemblia Estadual pelo PRC, a doao de um exemplar do Petit coursde litterature franaise, o qual traz um carimbo da livraria M. Cialdini & Filho,de Sobral. Em todo o acervo, no foi encontrado mais nenhum livro com refe-rncia a livrarias de Sobral. Pela Agncia Philatelica O Globo, de Camocim,passou o exemplar deA sonata a Kreutzer, de Tolstoi, antes de chegar aoGabinete de Leitura Ipuense.

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    denota a existncia de uma procura considervel por este livro ejustificava sua incluso no estoque das firmas comerciais, aindaque no diretamente dedicadas ao comrcio de livros.17

    No final do sculo XIX, o que poderia significar a reunio demateriais que abrangem desde livros de leitura a catecismos etantos outros livros religiosos na organizao da instruo no Ce-ar? Um inquietante caminho de reflexo proposto por Jean

    Hbrard, em seu texto A escolarizao dos saberes elementaresna poca moderna, quando afirma que seria muito difcil de pre-cisar, quando uma criana recita o Pai nossoem seu abecedrio,se se trata de uma lio de leitura ou de uma lio de religio;seja como for, sugere existir uma articulao entre ambas, quepodemos associar ao que o autor mesmo denomina como dispo-sitivos de instruo.18

    Todo o trajeto percorrido pelos livros, jornais, revistas e ou-tros materiais impressos, como cartas particulares e comerciais,configura uma rede que liga diferentes localidades do norte doCear entre si e tambm a outros pontos situados fora da regio.

    Internamente, o meio de comunicao impressa que circulavacom mais intensidade eram as cartas. necessrio destacar aimportncia das correspondncias comerciais nesse perodo, porserem representativas de um fluxo de informaes que podem tam-bm mostrar etapas do processo de aquisio e distribuio.19

    Todas as transaes entre as firmas comerciais eram realizadaspor meio de cartas comerciais e de telegramas, os quais trata-vam, principalmente, da cotao do preo do algodo, do couro,da cera de carnaba. Informavam sobre as operaes de trans-porte de mercadorias e valores por meio dos paquetes que na-vegavam entre Fortaleza, Acara, Camocim e Parnaba. E existia,ainda, um sem nmero de cartas com pedidos que fugiam s mer-

    17 IGNCIO Xavier e Cia. Livro de receitas, Granja-CE, 1898.18 HBRARD, Jean. A escolarizao dos saberes elementares na poca moder-

    na. Teoria & Educao, Porto Alegre, n. 2, p. 1, 1990.19 Ver DARNTON, Robert. A filosofia por baixo do pano. In: Revoluo impressa.

    A imprensa na Frana. 1775 1800. So Paulo: EDUSP, 1996, p. 49-76.

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    cadorias convencionais.Com a implantao da Estrada de Ferro de Sobral, o trem

    passou a ser o meio mais rpido de conduo de cartas para ointerior da regio. Verifica-se uma relao direta entre a velocida-de de conduo das cartas e o consumo de livros copiadores. Nafirma Ignacio Xavier & Cia, consumia-se um livro copiador a cadadois meses, aproximadamente. Considerando que cada livro con-

    tinha cerca de quinhentas folhas, e que, cada folha, servia para acpia de uma carta, s vezes duas, ocorria uma mdia de duzen-tas e cinquenta a trezentas cartas emitidas por ms. O mesmoacontecia com os telegramas. Os respectivos livros copiadorescontinham cerca de duzentas folhas e eram consumidos em umano e meio, aproximadamente. O que aponta para a emisso deuma mdia de vinte a trinta telegramas ao ms, visto que estes,por se constiturem de textos curtos, eram copiados sempre dedois a trs por folha.

    Pode-se considerar que tal quantidade de cartas apresentauma intensidade significativa no movimento de circulao de pedi-dos, entregas, emprstimos, situaes que levam formao decanais pelos quais passaram os materiais impressos na regio.Juntos, livros, revistas, jornais, cartas e telegramas constituam, apartir de sua circulao, uma rede de comunicao que ligava ascidades da regio entre si e a outros centros mais desenvolvidosde outras regies do pas. Para que essa circulao se realizasse,ou seja, para que essa rede tomasse forma, foi imprescindvel oconcurso do trem enquanto meio de transporte mais rpido domomento. Isso no inibiu a existncia de outro tipo de conduo.Na Serra da Ibiapaba, o trnsito da informao impressa era reali-zado de forma mais lenta, pois ainda contava com o transporte pormeio de animais de carga, atravessando ladeiras ngremes. Pelo

    trem ou em cargas transportadas por animais, de todo modo, osmateriais chegavam a seus destinos.

    20 Ver DARNTON, Robert. Primeiros passos para uma histria da leitura. In: Obeijo de Lamourette. Mdia, cultura e revoluo. Op. cit. p. 146-176.

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    Atravessar livros os mais diversos que trabalharam o tema daimprensa ou que indiciam a vida social das cidades; ler relatriosde presidentes de provncia que registram a presena dos jornais,a existncia de escolas, de bibliotecas, o comrcio; investigar do-cumentao que aponta o fluxo de mercadorias impressas; reu-nir jornais e revistas compe uma estratgia para despertar seme-lhanas e repeties, para descobrir campos de indcios fragmen-

    tados que podem nos levar a entender as dinmicas prprias daspequenas cidades do serto. Talvez as evidncias levantadas pos-sam nos ajudar a interrogar no s sobre a natureza das experin-cias de leitura, mas, sobretudo, da vida e das relaes sociaisconstrudas em determinados momentos.20

    Recebido em setembro de 2008Aprovado em dezembro de 2008