1987 EXPLICAÇÃO NARRATIVA A E O PROBLEMA DOS CONSTRUTOS TEÓRICOS DE NARRAÇÃO.pdf

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Revista da SBPH 093, São Paulo. 1986/87 EXPLICAÇÃO NARRATN A E O PROBLEMA OOS CONSfRUTOS TEÓRICOS DE NARRAÇÃO· COIno podemos definir a forma específica de explicação teórica para a Ciên- cia Histórica? Levando em consideração que o conhecimento histórico, diferente- mente de outros conhecimentos, se caracteriza por sua estreita ligação com a praxis da vida cotidiana, social e política, surge a pergunta, se não haveria exatamente na narração histórica um potencial explicativo do qual a ciência histórica se utiliza. Toda a nossa argumentação anterior nos conduz a esta conclusão. Mostramos até agora que a Ciência Histórica usa explicações nornológícas 'e intencionais e tam - bém teorias, sem considerar que um destes esquemas de explicação fosse especi- ficamente o esquema de uma explicação histórica. Olhando mais de peno perce- be-se que a explicação histórica Se dá na-forma de uma explicação narrativa. O que queremos dizer com ISSO? Na Ciência Histórica, encontramos expli- cações nomoíógicas e intencionais no contexto de histórias. As explicações fazem parte de uma sequéncía de afirmações narrativas. São "narradas" sequências no tempo como mudanças de situações e condições do mundo humano. Ou por ou- tras palavras, a-firmações da Ciência Histórica se referem à seqüência temporal de situações: dizem que num determinado momento (tI) algo era de um modo; num- segundo momento (t2) de um outro jeito; num terceiro momento (t3) novamen- te diferen te . Este algo - sujeito de referência de uma história (S) pode ser um homem (Brutus), um grupo social (o operariado), um conceito (a humanidade), um ali- mento (o arroz), um preço (o preço do trigo), um setor da economia (o artesa- nato), ou seja algo no horizonte de experiên-cia da vida cotidiana dos homens que pode assumir uma importância e um significado na orientação temporal da pra - xis da vida cotidiana. Histórias afirmam que com este algo (S) acontece algwna coisa no decorrer do tempo: Brutus mata César para salvar a república; o opera- riado constitui-se na Alemanha da segunda metade do século XIX numa organi- zação poh'tíca; o conceito de humanidade desempenha na segunda metade do século XVIII, no discurso ,do iluminismo alemão, wn papel emancípador e crí- uco! ; o arroz fol introduzido no sul da China por volta de 2_000 ou 2.150 A.C., LH. E. Bodeker, "Menschheit, Humanitât, H~ (Humanidade, Hurnanísmo), In: Gnchichliche Grundõqrifte. HistoTÚChel Le~ ZUT poIitisck - soWden SpriZdre i" ~tschland, (Conceitos fundamentais da História. Léxico histórico da linguagem polí- tico-social na Alemanha), vol. 3, Stuttgart, 1982, p. 1063/1128. • Rüsen, Jôrn, RelOll3trukdon der VI:1pllg~t. (Reconstrução do passado), Gõttíngen. Vandenboek/Rugnecht. 1986, p. 37-47. Tradução de Augu&tinWemet. -

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  • Revista da SBPH093, So Paulo. 1986/87

    EXPLICAO NARRATN A E O PROBLEMA OOS CONSfRUTOSTERICOS DE NARRAO

    COIno podemos definir a forma especfica de explicao terica para a Cin-cia Histrica? Levando em considerao que o conhecimento histrico, diferente-mente de outros conhecimentos, se caracteriza por sua estreita ligao com a praxisda vida cotidiana, social e poltica, surge a pergunta, se no haveria exatamente nanarrao histrica um potencial explicativo do qual a cincia histrica se utiliza.Toda a nossa argumentao anterior nos conduz a esta concluso. Mostramos atagora que a Cincia Histrica usa explicaes nornolgcas 'e intencionais e tam -bm teorias, sem considerar que um destes esquemas de explicao fosse especi-ficamente o esquema de uma explicao histrica. Olhando mais de peno perce-be-se que a explicao histrica Se d na-forma de uma explicao narrativa.

    O que queremos dizer com ISSO? Na Cincia Histrica, encontramos expli-caes nomogicas e intencionais no contexto de histrias. As explicaes fazemparte de uma sequnca de afirmaes narrativas. So "narradas" sequncias notempo como mudanas de situaes e condies do mundo humano. Ou por ou-tras palavras, a-firmaes da Cincia Histrica se referem seqncia temporal desituaes: dizem que num determinado momento (tI) algo era de um modo; num-segundo momento (t2) de um outro jeito; num terceiro momento (t3) novamen-te diferen te .

    Este algo - sujeito de referncia de uma histria (S) pode ser um homem(Brutus), um grupo social (o operariado), um conceito (a humanidade), um ali-mento (o arroz), um preo (o preo do trigo), um setor da economia (o artesa-nato), ou seja algo no horizonte de experin-cia da vida cotidiana dos homens quepode assumir uma importncia e um significado na orientao temporal da pra -xis da vida cotidiana. Histrias afirmam que com este algo (S) acontece algwnacoisa no decorrer do tempo: Brutus mata Csar para salvar a repblica; o opera-riado constitui-se na Alemanha da segunda metade do sculo XIX numa organi-zao poh'tca; o conceito de humanidade desempenha na segunda metade dosculo XVIII, no discurso ,do iluminismo alemo, wn papel emancpador e cr-uco! ; o arroz fol introduzido no sul da China por volta de 2_000 ou 2.150 A.C.,

    LH. E. Bodeker, "Menschheit, Humanitt, H~ (Humanidade, Hurnansmo), In:Gnchichliche Grundqrifte. HistoTChel Le~ ZUT poIitisck - soWden SpriZdre i"~tschland, (Conceitos fundamentais da Histria. Lxico histrico da linguagem pol-tico-social na Alemanha), vol. 3, Stuttgart, 1982, p. 1063/1128.

    Rsen, Jrn, RelOll3trukdon der VI:1pllg~t. (Reconstruo do passado), Gttngen.Vandenboek/Rugnecht. 1986, p. 37-47. Traduo de Augu&tinWemet. -

    ThiagoCaixa de textoRSEN, Jrn. Explicao narrativa e o problema dos construtos tericos de narrao. Revista da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histrica, So Paulo, n. 3, p. 97-104, 1987

  • aperfeioa-se pelo cultivo naquela regrao para a forma atual e modifica a vidachinesa de maneira decisivas ; na Europa Central. o preo do trigo caiu entre os anos1817 e 1825 e em seguida subiu novamen te 3.

    Esquematicamente podemos representar tais fenmenos comosimples sequn-cas temporais de diferentes situaes de S:

    SI 82 Sn

    A Cincia Histrica no apenas narra tais acontecimentos e processos como umasucesso de situaes, mas' tambm pretende explc-los. Mostra por que SI evo-luiu para S2 e, passan40 por algumas fases intermedirias, para Sn. Dependendo daquesto "o que" deve ser explicado, usa a Cincia Histrica diversas formas de ex-plicao e diferentes teorias. Pode proceder desta maneira sem incorrer em errosde lgica porque explicaes nomolgicas e explicaes intencionais no se contra-dizem. Elas so complementares. Investigando minuciosamente os passos da argu-mentao explcatva de uma histria, percebe-se que a explicao como SI levoua S2 nunca est completa, nem no esquema nomolgico, nem no intencional. Elanunca satisfaz inteiramente as exigncias de uma explicao terica (a passagemde SI para S2 no aparece como um caso singular de uma regra geral, como apli-cao de uma lei geral ou como execuo de uma ao intencional).

    No lugar disso passa-se de SI para S2 num procedimento narrativo. Durantea narrao da-se as explicaes, mas no em todos os seus passos e todas as suasfases. O que quer isso dizer? Como se d isso? Exemplificando (por motivos desimplificao) apenas com explicaes nomolgcas, podemos caracterizar estespassos a estas fases da seguinte maneira. Explica-se apenas parcialmente o S2, por-tanto apenas como 82', como resultante da condio antecedente (ou precedente)S1 juntamente com leis gerais. Exemplo: uma determinada crise econmica expli-ca-se com a condio precedente. da desvalorizao da moeda e com a "lei de Gres-ham"; neste caso no se explica a crise econmica. mas apenas a inflao que,obviamente, uma parte da crise econmica. mas para explicar suficientementeque 82 seria a sequnc temporal necessria e suficiente de SI, fornecem-se infor-maes adicionais (D2) que no possuem uma relao nomolgica com 52. Destar-te 52 recebe um carter de plausibilidade atravs de S2' e D2. Exemplo: apresenta-se a plausibilidade de ser a crise econmica o resultado, da inflao e de outros fa-tores como guerras que antecederam, desemprego, etc. Um passo explicativo naCincia Histrica pode, portanto, ser representado da seguinte maneira:

    82'Sl S2

    D2

    o mesmo esquema tem tambm a sua validade nas explicaes intencionais. ACincia Histrica trata de situaes (S2) que, por seu maior grau.de complexidade,no podem ser explicadas como resultado apenas de aes intencionais. Exemplo:

    2. F. Braudel, Geschichie der Zivilzoon: 15. bis 18. Iahrhundert, (Histria da Civilizao:sculo XV ao XVIII), Munique, 1971, p. 152.

    3.w. Abel, Agrarkrisen und Agrarkonjunktur. Eine Geschichte der Land --14M Emiih1'U1lgfwirts-elulil Mirteleuropos se/t dem hohen Mitrelalrer. (Crises agrrias e conjunturas agrrias.Uma histria de agricultura e economia desde os fins da Idade Mdia), Hamburgo, 1966,p.210.

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  • uma determinada situao da repblica romana, que essencialmente contribuiupara a morte de Csar, mas no pode ser explicada suficientemente por seu assas-snio por Brutus, precisa, portanto, ainda de outras explicaes, como por exem-plo, as de carter institucional e constitucional. Intencionalmente explica-se apenasuma ao (S2') que um dos fatores deterrninantes da situao S2, mas no a situao S2 como tal. Alm do "explauans" (motivos da ao) precisa-se de outrosfatos cxplicativos (D2) (circunstncias da ao e seus condicionamentos que noaparecem, ou apenas aparecem sob outras circunstncias nas avaliaes de situa-es que motivaram a ao).

    Podemos representar esquernaticamente a corrente narrativa de afirmaesexplicativas na Cincia Histrica da seguinte maneira" :Esquema de argumentao histrica (conforme Hempel e Stegmller)

    S2' S3' S'nSI S2 S3 . S n-I Sn

    D2 D3 Dn

    Estes passos explcativos meio esquisitos, comparando-os com os esquemas da ex-plicao nomolgica e intencional, no assentam na fraca capacidade, ou incapaci-dade, da disciplina histrica que ainda no conseguiu descobrir leis gerais num sen-tido restrito que permitissem uma conexo causal de SI para Sn passando por v-rias fases intermedirias. No se trata, portanto, de explicaes pouco consistentes,devido enorme complexidade do setor epistemolgico da Histria, que ainda noteriam conseguido a construo de um esquema terico ou nomolgico alturade outras cincias. Pelo contrrio, somos de opinio que este carter incompletoda explicao histrica, esta falha de no conseguir passos explicativos rigorososna argumentao histrica, um sinal .da .madequao para a especificidade dopensamento histrico, para os seus interesses epistemolgcos constitutivos da te-mtica da Cincia Histrica, que no se, enquadra nos esquemas das explicaesnomolgicas nem nas das explicaes intencionais. Estes elementos adicionaisna explicao, denominados Dl , D2. Dn, so necessrios e exigidos a partir do ob-jeto em questo. Com este procedimento o pensamento histrico leva em conside-rao as necessidades de orientao de vida, necessidades consttutvas da prpriaCincia Histrica. Estas necessidades de orientao superam muito os esquemasexplicativos e esquemas de pensamento das explicaes nomolgicas e intencionais.No pensamento histrico trata-se, em resumo, da seguinte questo".

    A Cincia Histrica deve. pela lembrana, transmitir aquelas intenes dapraxis humana passada que superaram as circunstncias e os condicionamentosde ento, juntamente com as experincias da dimenso "tempo". Tudo isso deveser feito de tal maneira que a praxis vital na atualidade possa ser orientada na suadimenso temporal, isto , nas modificaes e/ou mudanas do mundo humanoatualmente experimentadas. Alis, o tomar presente a dimenso do tempo do passado, que tarefa da Cincia Histrica, no se consegue nem num esquema nomol-gico de explicao cennfa, nem num esquema hermenutico, Pretendo, na se-qunca, fundamentar melhor esta ltima aflrrnaco,

    4.Cf. W. Stegmliller, "Probleme und Resultare der Wissenschaftstheorie und analytischenPhlosophie" (Problemas e resultados da teoria cientfica e da filosofia analtica), vol. I,Wissenschaftliche Erk1hmg und Begrundung' (Explicao cientfica e fundamentaocientfica),Berlim/Heidelberg, 1969, p. 165/172.

    5.ldem, vol. I, p. 4955.

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  • Procedendo nomologicamente, o pensamento histrico faria um corte radi-cal entre o excesso de intenes da praxis concreta e real da atualidade e a experin-cia da dimenso "tempo" do passado, ligao essencial e fundamental! do pensarhistrico. Referente ao passado, o procedimento nornolgco poderia reconsttuir

    explicar somente aquelas sequncas na sucesso do tempo que se repetem, ouseja, aquelas circunstncias e condicionamentos do agir e sofrer atual que, at umcerto grau, so uma repetio das circunstncias e condicionamentos do agir esofrer do passado humano. Por causa da sua importncia em dimenso tcnica e prag-mtica do- agir humano, um tal conhecimento e saber insubstituivcl para o agirhumano na atualidade. Este saber, entretanto, insuficiente para a orien tao di!praxis concreta e real humana naqueles casos em que as intenes pretendem iralm e/ou superar estas circunstncias dadas e os condicionamentos dados. O pen-samento histrico recorre, por causa desta sua funo orientadora, a experinciasno tempo que foram deixadas de lado, sistemtica e intencionalmente, no pro-cedimento nomolgco. Tais experincias, por exemplo, so experincias de mu-danas que no conesponderam a uma regularidade esperada ou a uma lgica quaseinerente ao objeto em questo. Estas experincias, comparando-as com as que po-dem ser explicadas nomologcamente, possuem as caractersticas da "contingncia".Com as informaes adicionais (D2, D3, ... Dn) explica-se, no esquema de umaargumentao histrica, aqueles aspectos de 52, 53, ... Sn que, em comparaocom os que so acessveis a explicaes nomolgicas 82', 83' ... Sn', possuem umaspecto de "contingncia".

    Com razo, nas recentes dicusses sobre o status terico da Cincia Histrica,atribuiu-se muitas vezes Histria a funo cultural de explicao e domnio dos fa-tores contingentes da Histria Humana, E com isso atribuiu-se Cincia Histri-ca um status especfico ao lado do das Cincias nomolgcass , Mas. a nosso ver,esta colocao problemtica por dois motivos. Em primeiro lugar, prprio pro-cedimento nomol6gico um meio, um mtodo para superar, explicar e dominaras situaes contingentes. Esta superao e explicao/dominao se faz pela des-coberta de regularidades, leis e conexes causais at ento desconhecidas. fazendocom que "experincias contingentes" at este momento no possuam mais, daquelemomento em diante, esta caracterstica. Se for assim, o pensamento histricoteria apenas uni funo de compensao. Apenas aquelas experincias no tempoque no so explicveis nomolgicamente seriam objeto da explicao histrica.Dependeria, portanto, das capacidades e limitaes epsternolgcas do procedi-mento nomolgico ou, por outras palavras, a Cincia Histrica deveria apenastratar de migalhas cadas 01) deixadas na mesa das Cincias Sociais que procedemnomolgicamente. Parece bvio que estas migalhas nunca vo faltar, mas. sem d-vida, resta como avaliar esta superao / soluo desses casos pela Histria, pen-sando na contnua e parcial superao I soluo pelas Cincias Sociais. Explicaohistrica explicao de segundo grau, acreditando que uma eliminao I domina-o / soluo das contingncias, via procedimento nomo16gico, seria a melhorsoluo; ou defende-se o ponto de vista de que uma explicao histrica suficiente,acreditando que h a necessidade de aceitar as contingncias. sem a insistnciana necessidade da sua eliminao / dominao / superao I soluo.

    Levando em considerao o fato de que h uma base comum entre o conhe-cimento histrico e o conhecimento nomo16gico no sentido em que ambos corres-ponderiam a necessidades de orientao da praxs humana,' a seguinte conclusoteria at um elevado grau de plausibilidade: o pensamento hstrco abre a nossa

    6.Cf.: H. Lbbe, Gnchichtsegrlff und Geschichr8intuesse. (Conceito de ~tria e interesse"histrico"), Baslela,1917. Do mesmo autor: Was Heisst: "Das kann man nur historlscherklaren"? (O que significa: "Isto somente pode ser explicado hUtoricamente"n:

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  • mente para o carter contingente das mudanas temporais do homem e do seu mun-do e, com isso, o pensamento histrico rompe o esquema das explicaes nomol-gcas destas mudanas, fazendo com que se entreveja possbildades de realizaodas intenes humanas que superam as circunstncias e os condicionamentos dados.

    Podemos denominar liberdade aquele "algo" que move os homens a elevar-seintencionalmente das circunstncias dadas e dos seus condicionamentos, na suapraxis vital de cada dia, e com este procedimento, engajar-se e participar ativamentenas mudanas do seu mundo. A liberdade, entendida neste sentido, a condiosine qua non para a experincia da contingncia. E o pensamento histrico insistena lembrana de situaes de contingncia no passado histrico da humanidade.A contingncia, portanto, vista e interpretada como condio de liberdade. Des-tarte , a contingncia apresenta-se como a "sombra emprica" da liberdade humana.

    o pensamento histrico supera f explica / domina as experincias de contin-gncia da atualidade, na medida em que este no as elimina por um procedimentonornolgico e generalizante, mas na medida em que o pensamento histrico as in-terpreta como espao e possibilidade de liberdade. O pensamento histrico realizaisso lembrando e revvendo sequncias temporais de carter contingente, de mu-danas histricas como histria de possibilidades de liberdade, como histria deaberturas, realizaes, fracassos, falhas expectativas. Resumidamente 'falando,a Cincia Histrica lembra de todas as formas em que a liberdade humana se podemanifestar - exprimir - demonstrar ...

    Admitindo a validade das explicaes intencionais, exclusivamente, as expe-rincias de praxis humana do passado conservariam os rastros da intencionalidade.Mas, tambm neste caso, iam-se perder as "contingncias", com cuja explicao Isuperao / soluo / domnio o conhecimento histrico est preocupado. A con-tingncia da execuo de aes intencionais consiste no fato de que estas aesdependem de circunstncias e condies que, na sua totalidade e em todas as suasdimenses, no foram devidamente calculadas pelos agentes. O pensamento hist-rico abre-se para um certo espao de irnponderabilidade dentro do qual se realizamaes intencionais. Com este procedimento, o pensamento histrico insiste na exis-tncia de um "supervit" ou de uma irnprevisibilidade no quadro da praxis daao humana a partir da intencionalidade humana, imprevisibilidade que partede real liberdade.

    Tambm neste sentido, a questo fundamental do pensamento histrico a dimenso de liberdade. Mas esta liberdade estar sempre delimitada a circuns-crita pelos fatores de condicionamentos, fatores que funcionam como elementosde estmulo de possibilidades de realizao.

    Se a argumentao explicativa da Cincia Histrica, em comparao com osesquemas nomolgcos e intencionais de explicao, ficam num status de imperfei-o, de "falha", surge a pergunta: h a possibilidade de elaborar um esquema ex-plicativo diferente destes dois esquemas conhecidos? Tal esquema de explicaoseria, obviamente, o esquema especfico de explicao histrica, Mas qual seriaesse esquema especfico de explicao histrica, tomando como ponto pacficoa opinio de que explicaes nomolgicas e hermenuticas seriam apenas modosauxiliares de uma explicao su generis?

    Para responder esta questo, devemos deixar claro, num primeiro momento.que "modelo de perguntas porqu" so "perguntas porqu histricas". Perguntasdeste tipo exigiriam uma resposta tipicamente histrica e uma explicao tipicamen-te hist6rica. Um I!JCplanandum historicum . uma mudana, no tempo, de algo.Um exemplo, modelo deste tipo de explicao, o fato de que o Conde de Buckn-gham at o ano de 1623 teve o plano de casar o prncipe Charles com a afanta

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  • Dona Maria, mas a partir deste mesmo ano deixou este plano de lado i> O explanans o fato que ele numa viagem com o herdeiro do trono, neste mesmo ano, para aEspanha mudou a sua opinio sobre a eventual ligao das casas dinsticas daInglaterra e da Espanha. A conexo lgica entre o explanandum e o explanans a de uma histria: incio e fim desta histria a mudana na histria a ser ex-plcada; no meio fica o processo que explica esta mudana. O NARRAR DA ms-TORiA E ELE MESMO UM PROCESSO DE EXPLlCARII. Explicaes especifi-camente histricas so, portanto, explicaes narrativas. Podemos explicitar eesquematizar o esquema destas explicaes narrativas da seguinte maneira.

    Os exemplos com os quais a literatura especfica apresenta a especificidadee particularidade das explicaes histricas como, por exemplo, a do Duque deBuckingham, compartilham de perigos de malentenddos. J que se trata quese queexclusivamente de histrias de acontecimentos nicos e singulares (mudanas deopinio de um duque, amassamento de um carro ... ), surge quase que forosamentea opinio' que explicaes narrativas referiam-se unicamente ao nvel de aconteci-mentos, mas no a nveis que tratam de conexes estruturais de eventos e de n-veis, portanto, nos quais aparecem, em primeiro lugar, agentes histricos. Mas estaopinio est errada: S pode ser um complicado sistema sco-econmico, como porexemplo o da Inglaterra, como tambm obviamente um duque, e F, H podemser sistemas complicados de caractersticas, como por exemplo o de uma sociedadeagrria de um determinado tipo, ou de uma sociedade industrial na sua fase pr-in-dustrial; tambm os processos G, 'que acontecem paralelamente a S, podem ser di-ferenciados, do' modo que se modifica de F para H. A histria correspondenteseria a da industrializao da Inglaterra.

    ESQUEMA DE UMA EXPLICAO NARRATlVA(conforrne DANTO)

    (I)SFemtl(2) G acontece com S t2(3) S H em t3

    Explanandum; (J) e (3)Explanans: (2)

    S = Sujeito de uma histriaF = Estado ou fase inicialH = Estado ou fase finalG:: Devr - Acontecer

    O esquema de uma explicao narrativa, portanto, atinge o pensamentohistrico na sua totalidade. B to tpico para o modo de explicao da CinciaHistrica como o narrar histrico constitutivo para o conhecer histrico. Per-cebe-se com isso, claramente, que previses, no pensamento histrico, no tm pa-pel algum, sem que, com isso, se pretenda cortar a dimenso do futuro. Explica-es histricas, portanto, tm fundamentalmente o carter de reconstruo e, porisso, basicamente, no se referem a uma transposio temporal do explanandumparl\ o futuro com uma' previso. E assim porque o explanandum j contm a7.CL F. C. Dablmann, Geschichte der englischen Revolution. (Histria da Revoluo Inglesa),Leipzig, 1844, p. 15955.

    8.CL A. C. Danto, Analydsche Phllosophie der Geschichte. Frankfurt, 1974. {FilosofiaAnaltica da Histria).

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  • diferena de tempo o qual faz parte de previsao. A diferena de tempo entre t le t2 no est localizada, como no caso de uma explicao nomolgica, entre oexplanans e o explanandum, mas no prprio explanandum (na explicao nomo-lgica o coeficiente de tempo atribui-se aos dados antecedentes e ao explanandum].

    Obviamente possvel imaginar que o t3 localiza-se no futuro. Mas neste c-so ainda no h uma previso, apenas um decorrer histrico fictcio: procura-semostrar o que deve acontecer com S, que possui as caractersticas de G (agoraainda) para que no seja mais G mas H. Esta imaginao de um futuro histricofictcio aconte muitas vezes. At tiro certo grau faz parte de toda e qualquerconscincia histrica na forma de perspectivas e expectativas referentes ao futuroque se baseiam ou fundamentam em lembran~ do passado e ao mesmo temposo condicionados por intenes normatvas. A simetria entre explicao e pro-gnose I previso no esquema nomolgico, corresponde, no esquema narrativo de pen-sar, a simetria entre lembrana e expectativa, no segundo, a idia da existncia deuma abrangente continuidade. Mas expectativa no significa prognose como previ-so exata. Trata-se, neste caso, mais .de uma esperana fundada.

    Com o esquema da explicao narrativa podemos mostrar melhor aquiloque se trata nas discusses sobre teorias histricas. Num primeiro momento temosque lembrar que teorias (como por exemplo leis no esquema nomolgco) no sur-gem como elementos constituitvos de explicaes histricas conforme o esquemanarrativo. Fica, neste contexto, a pergunta se a Cincia Histrica precisa ou node teorias". O aqui idealizado esquema de explicaes narrativas elementarizao explicar histrico de maneira que no se entrev ou percebe mais a sua realiza-o especificamente cientfica. Como alis tambm no esquema de explicao

    herrnenutica no h teorias cientficas sobre a intencionalidade e tambm no es-quema de explicao nomolgica a forma das leis no detalhada de maneira es-pecfica para as teorias nomolgicas. Sentenas simples do tipo "se ... ento"ainda no so leis ou teorias. Mas isto no significa que algo como "teorias hst-ricas", enquanto elementos adicionais do esquema de explicao narrativa com assuas caractersticas constitutivas e essenciais, sejam introduzidas artificialmente emnome da cincia ou da centificdade. Pelo contrrio: a existncia, particularidade efuno das teorias histricas .deviam ter a sua origem nos elementos constitutivosda explicao histrica como tal, isto , deveriam ganhar plausibilidade no esquemada explicao histrica.

    Uma olhada nos outros esquemas de explicao poderia deixar mais claro oque est em questo com a discusso ao redor de "teorias". No esquema nornol-gico trata-se da formulao generalizante da conexes entre dados do tipo de condi-es iniciais e o explanamdum. Esta formulao cobre e protege com o seu graude generalidade a conexo particular dada entre as condies iniciais e Q respecti-vo explanandum (covering law). Esta mesma funo de cobrir e proteger em graude generalidade encontramos tambm nas explicaes herrnenuticas que formu-lam e explctam, pela explicao intencional, conexes entre os motivos (a moti-vao) e as aes; reduzindo ou explicando determinadas aes a ou com determina-dos motivos. Um tal conhecimento de carter genrico (elevado grau de generali-dade) usa-se tambm na explicao histrica. Cada historiador que explica as mu-danas havidas num grupo ou formao social pela narrao do processo de suatransformao do estado inicial para o posterior, usa ou trabalha com um conheci-mento que se assemelha a um conhecimento terico sobre a dinmica da mudanade grupos ou formaes sociais. Burckhardt diria "potencial" de mudanas. Neste

    9. H. Liibbe, "Wieso es keine Theore der Gescnchte Gbr", tn: KockatNpperdey (org.),Theorie und Eriiihlung in der geschichte. p. 6S{84 (Porque no h uma teoria na Histria,In: Teoria e RamJo da Htuna}.

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  • procedimento leva-se em conta, de maneira especfica, a dimenso temporal destasformaes/grupos. Teorias histricas, portanto, cobrem e protegem, de certa manei-ra, o espao ou diferena temporal entre TI e 12, e nele nela deixam visveis oumanifestas as situaes que devem ser conhecidas, se queremos saber como se deua passagem de F para H. Com a ajuda do conhecimento destas situaes podemos,em seguida, especificar e concretizar o dcvir temporal ou a passagem no tempoS(F) tI __ S (G) t2..,.. ~(H) t3. Destarte , por exemplo, a teoria do imperialismocobre o espao temporal do fim do sculo XIX e incio do XX e o caracterizacom os fatores predominantes na poltica externa em dependncia de determinadosdesenvolvimentos internos.

    Deveramos ainda explicitar e discutir detalhadamente a estrutura e a funode tais teorias e dos seus elementos constitutivos, os conceitos histricos, mas aquinos interessa apenas a sua caracterizao esquemtica, o seu status e a sua funona explicao histrica. Fica a pergunta: possvel, ou no, descrever de maneirasimples e elementar a forma especfica da "teoria" do conhecirnen to hstrcode acordo com o esquema narrativo? O esquema de uma explicao narrativa ao mesmo tempo o esquema elementar de uma histria (inicio, meio e fim de umaconexo temporal, de uma mudana de algo ou de um acontecer). A "forma deteoria" de urna histria, subjacente a tal esquema elementar, seria Sua trama: elaindica o incio e o fim e diz o que importante nos passos ou nas fases que levampela narrao e argumentao do incio ao fim 1o. Esta trama cobre e protegea histria assim como a lei estabelece li conexo entre os dados iniciais e o expla-nandum e assim como, na hermenutica, se estabelece a conexo entre os motivose as aes. Ela indica, de certa maneira, o fluxo do discurso do mesmo modo queo conhecimento terico (nomolgco ou hermenutico) indica 'ou determina a quedados iniciais e circunstncias antecedentes o explanandum deve se referir. f b-"10 que nestes procedimentos se precisa muitas vezes de argumentaes tericascomplexas, sobretudo em casos nos quais estas conexes no so to triviais comono caso do Duque de Buckingham com os seus planos de casamento. Esta comple-xidade certamente estar presente, se o historiador pretender explicar historica-mente o crescimento populaconal ou a industrializao da Europa.

    Analogamente trama, termo emprestado da literatura, pretendemos de-finir a especficidade e a funo de teorias histricas s provisoriamente. Elas so"construtos de histrias", andaimes de narrao, planos de construo (metafo-ricamente falando). Elas servem para dar s explicaes histricas uma certa trans-parncia tambm naqueles casos em que se Usa no somente conhecimento nomo-lgico e herrnenuticc, de maneira subsidiria, com os seus elementos tericos,mas tambm a prpria apresentao narrativa de um dever temporal possui funoexplicativa.

    l.Referente trama veja-se: P. Ricoeur, "Warrative Time", In: Critical Inquiry, 1"981, p.169-190.

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