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Cadernos de Formação RBCE, p. 33-44, mar. 2014 33 ESTUDOS CULTURAIS EM AÇÃO: TEMATIZANDO O FUNK NA ESCOLA PÚBLICA MS. DANIEL BOCCHINI Mestre em Educação Física pela Universidade São Judas Tadeu Doutorando em Educação pela Universidade Nove de Julho Professor da Rede Municipal de Ensino de São Paulo MS. DANIEL TEIXEIRA MALDONADO Mestre em Educação Física pela Universidade São Judas Tadeu Doutorando em Educação Física pela Universidade São Judas Tadeu Professor da Rede Municipal d Ensino de São Paulo Resumo | Tendo como suporte os estudos culturais, que buscam uma compre- ensão democrática e procuram reconhecer os conhecimentos e experiências da cultura popular, isto é, dos grupos desprivilegiados, o presente trabalho tem o objetivo de relatar uma experiência sobre a tematização do funk nas aulas de Educação Física em uma escola do município de São Paulo. Através de um mapeamento inicial foi diagnosticado que os discentes possuiam uma imagem muito preconceituosa sobre esse gênero musical. Com essas informações, planejamos ações pedagógicas que buscaram analisar melhor essa prática. Concluimos que foi possível contribuir para a desmistificação da imagem do funk, como também para dar vozes a uma minoria que sofre preconceito, além de valorizar essa manifestação da cultura popular negra. Palavras-chave | Educação Física Escolar; Estudos Culturais; Funk. INTRODUÇÃO A atual configuração social possibilita o encontro de diferentes pessoas, logo, os ambientes como clubes, igrejas, shoppings, ciber-espaços e a escola, acabam sendo espaços mais sensíveis a embates na tentativa de todas as diferenças se constituírem como um único caminho a ser valorizado. Segundo Hall (2006) esses questionamentos estão fortemente

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    ESTUDOS CULTURAIS EM AO: TEMATIzANDO O FUNK NA ESCOLA pBLICA

    Ms. daniel BocchiniMestre em educao fsica pela Universidade so judas Tadeu

    doutorando em educao pela Universidade nove de julho

    Professor da Rede Municipal de ensino de so Paulo

    Ms. daniel TeixeiRa MaldonadoMestre em educao fsica pela Universidade so judas Tadeu

    doutorando em educao fsica pela Universidade so judas Tadeu

    Professor da Rede Municipal d ensino de so Paulo

    Resumo | Tendo como suporte os estudos culturais, que buscam uma compre-enso democrtica e procuram reconhecer os conhecimentos e experincias da cultura popular, isto , dos grupos desprivilegiados, o presente trabalho tem o objetivo de relatar uma experincia sobre a tematizao do funk nas aulas de Educao Fsica em uma escola do municpio de So Paulo. Atravs de um mapeamento inicial foi diagnosticado que os discentes possuiam uma imagem muito preconceituosa sobre esse gnero musical. Com essas informaes, planejamos aes pedaggicas que buscaram analisar melhor essa prtica. Concluimos que foi possvel contribuir para a desmistificao da imagem do funk, como tambm para dar vozes a uma minoria que sofre preconceito, alm de valorizar essa manifestao da cultura popular negra.

    palavras-chave | Educao Fsica Escolar; Estudos Culturais; Funk.

    INTRODUO

    A atual configurao social possibilita o encontro de diferentes pessoas, logo, os ambientes como clubes, igrejas, shoppings, ciber-espaos e a escola, acabam sendo espaos mais sensveis a embates na tentativa de todas as diferenas se constiturem como um nico caminho a ser valorizado. Segundo hall (2006) esses questionamentos esto fortemente

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    relacionados com as transformaes que a sociedade atual atravessa, essa mudana consiste no deslocamento das estruturas e referncias que an-coravam os indivduos no sistema social. Isto , devido em grande parte globalizao e aos avanos tecnolgicos, mais precisamente aos meios de comunicao (eletrnicos, escritos, etc). Somos cotidianamente bom-bardeados por infinita exposio de diversos modos e comportamentos, o que nos leva a compreender uma face plural e fragmentada do indivduo. Ainda, de acordo com o autor, esse novo formato de sociedade permitiu o desaparecimento das barreiras geogrficas, fato esse que contribuiu para uma aproximao de diversos grupos culturais e tem possibilitado um forte apelo homogeneizao, ou seja, uma padronizao da forma de ser e viver euro-americana, branca, letrada, masculina, heterossexual e crist, que est arraigado e estabelecido no imaginrio social e naturaliza-da no convvio cotidiano entre os indivduos. Grupos fora desse padro, os chamados grupos minoritrios, terminam por serem marcados pela discriminao, excluso e preconceito.

    Nesse sentido, percebemos no ambiente escolar que o encontro de diferentes pessoas, seja por meio de seus valores, hbitos, costumes, raas, classes sociais, grupos tnicos, gneros etc, tem provocado nos discentes uma enorme luta para que certas prticas, comportamentos e gostos tenham mais valor do que Outros1. No podemos desprezar tambm que a organizao, estrutura e o currculo escolar, bem como as prticas pedaggicas, muitas vezes na tentativa de igualar essas diferenas, contribuem para cada vez mais aumentar a segregao entre os alunos, pois na medida em que fingimos que a diversidade presente na escola no existe ou pelo menos no considerada, contribuimos para que essas questes continuem sendo esquecidas.

    Como componente curricular e no alheia a esse processo, a Edu-cao Fsica, desde os anos 1980, tambm tem se preocupado com esse tema e tem denunciado o papel acrtico que desempenha nas aulas no

    1. De acordo com os Estudos Culturais, utilizamos a expresso outros com a primeira letra maiscula e entres aspas a fim de definir o papel da diferena.

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    ambiente escolar, em que muitas vezes prioriza apenas gestos tcnicos, o alto-desempenho, a educao do corpo etc, contribuindo cada vez mais para robustecer os fundamentos capitalistas e neoliberais que pregam o individualismo, interesses econmicos e de mercado, competitividade e consumismo. Dalio (2005) reafirma a importncia de se pensar a atual Educao Fsica como uma prtica cultural, a fim de considerarmos a diversidade cultural e reconsiderar o Outro no apenas como um ob-jeto de interveno, mas como um sujeito da relao. Ainda segundo o autor, uma rea acadmica que tem a pretenso de ser ativa e dinmica no pode ficar calada frente a esse problema.

    Portanto, no sentido de reverter esse quadro, Prez Gmes (2000) nos mostra que a sala de aula pode se transformar num espao de cons-truo, reconstruo e compartilhamento de culturas. Pautando-se na pedagogia crtica, a qual busca uma intrnseca relao com os contedos relacionados vida social, o professor torna-se um mediador entre os alunos e as prticas sociais, objetivando o ressignificar; trazendo mais informaes; propondo situaes problema que favoream um ambiente mais democrtico. Tendo como princpio norteador a deciso coletiva compartilhada com a comunidade escolar, essa prtica torna o aprendiza-do muito mais significativo por possuir uma forte relao com o contexto vivido. Isso demonstra que no podemos desvalorizar as experincias, as histrias de vida e o contexto social-histrico dos alunos (NEIRA, 2010).

    Percebemos que as prticas cotidianas e o currculo esto ex-trinsecamente relacionados a essas temticas, pois na medida em que trazemos aos alunos e alunas apenas determinados contedos (pre-dominantemente, nas aulas de Educao Fsica, os esportes oriundos da cultura europia, masculina e branca) no analisamos criticamente os fenmenos estudados, fornecendo apenas uma possibilidade de ler a realidade, contribuindo para que possuam uma viso limitada e, portan-to, no generalizada. Consequentemente, perpetuamos o preconceito a certas prticas, etnias, gneros e grupos, e fortalecemos cada vez mais as mesmas prticas, etnias, gnero e grupos hegemnicos.

    Silva (2011) entende que o currculo constri identidades, sendo com-preendido como um espao de embate na tentativa de consolidar diferentes

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    formas de ser. Com a perspectiva de trazer solues a essa realidade que a perspectiva cultural comea a ser estudada na dcada de 1960 (no cha-mado perodo ps Guerra), na Universidade de Birmingham (Inglaterra) no Centro de Estudos Culturais Contemporneos. O principal objetivo dos Estudos Culturais intervir na construo de novos significados e valores mais democrticos, considerando os meios de comunicao em massa e sua busca pela homogeneizao oriunda dos setores privilegiados da so-ciedade, influenciados por diversos movimentos sociais, que buscam uma participao equitativa. Os Estudos Culturais pregam uma educao onde esses grupos em desvantagens possam ter seus conhecimentos validados e seus interesses contemplados, mesmo num mundo onde os gostos, com-portamentos, a moral, o conhecimento e a linguagem so controlados por grupos elitizados que apenas separam as pessoas (NEIRA e NUNES, 2011).

    Do intuito de discutir essas questes nasce o desejo de construir, no ambiente escolar, pontes que possam suscitar nos alunos o dilogo e reflexes, ou seja, a partir das relaes que so estabelecidas no contexto educacional que o docente, como mediador, pode levantar questes re-flexivas pautadas nas relaes entre os indivduos. Assim, corroboramos com a posio de Daolio (2005) quando diz que para buscarmos uma Educao Fsica com intenes transformadoras, no se deve organizar uma proposta rgida ou engessada, mas sim promover discusses, anli-ses, pesquisas e posicionamentos, podendo ser mais eficaz na medida em que se conseguir penetrar o universo cotidiano de representaes que os professores de Educao Fsica possuem, decifrando os significados de sua prtica e entendendo a mediao com os fatores poltico-institucionais (p.224). Nesse sentido, propusemos a realizao desse projeto na escola com um tema que no possui a preferncia da maioria e que muitas pes-soas tm preconceito, inclusive o corpo docente, o corpo gestor e muitos dos atores que compem o cotidiano escolar.

    Em nosso relato utilizamos o termo tematizar, que seguindo os passos de Sandra Corazza (2003) significa:

    ...abordar algumas das infinitas possibilidades que podem emergir das leituras e interpretaes da prtica social de cada manifestao. Tematizar implica procurar

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    o maior compromisso possvel do objeto de estudo em uma realidade de fato, so-cial, cultural e poltica. O que se pretende com a tematizao uma compreenso profunda da realidade em foco e a capacidade crtica dos alunos como sujeitos do conhecimento, desafiados pelo objeto a ser conhecido (p. 261).

    Portanto, a partir desse referencial terico, essa pesquisa tem o objetivo de relatar uma experincia sobre a tematizao do funk nas aulas de educao fsica em uma escola pblica do municpio de So Paulo. Atravs desse relato procuramos compartilhar com nossos colegas uma educao pautada numa racionalidade contra-hegemnica e que vislumbre nas aulas um espao democrtico possibilitando a construo de um aluno crtico. Com essa ideia, Delmanto e Faustinoni (2009) nos explicam o que e qual a importncia dos relatos de prticas docentes:

    so registros de atividades realizadas com os alunos, com o objetivo de construir conhecimentos. Neles deve transparecer a inteno do professor em cada atividade planejada, suas reflexes e observaes ao longo do desenvolvimento da experincia. O caminho para alcanar cada objetivo precisa estar claramente expresso, para que os leitores, provavelmente outros professores, possam compreender o trabalho por inteiro. Os resultados alcanados e o modo como cada procedimento foi avaliado, retomado, revisto, refeito tambm precisam estar explcitos, de modo a propiciar elementos de anlise para posterior reflexo e busca de caminhos, na perspectiva da melhoria contnua da educao oferecida na escola (p. 9).

    Dessa forma, o projeto foi realizado numa escola municipal de So Paulo, localizada na zona norte, distrito de Brasilndia. A escola foi inaugurada em 2008, e hoje atende cerca de 1.200 alunos matriculados do 1 ao 9 ano. Por estar inserida na regio perifrica da cidade, o perfil socioeconmico dos alunos da classe menos abastada da sociedade, sendo a maioria classificada, segundo a composio tnica, de negros ou pardos.

    Participaram do estudo alunos de duas salas de 7 ano, com cerca de trinta e cinco alunos por sala, uma idade mdia de 13 anos, sendo a maioria garotas. Na prefeitura de So Paulo, as sries do fundamental II possuem trs aulas de educao fsica por semana, com durao de quarenta e cinco minutos. Assim, para esse projeto, planejamos cerca de trinta e seis aulas, aproximadamente trs meses, sendo desenvolvido no primeiro semestre de 2012.

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    RELATANDO A ExpERINCIA

    A escolha desse tema perpassa dois motivos. O primeiro, como lecionamos nessa escola h cerca de quatro anos, percebemos h algum tempo, nos momentos em que estamos chegando escola, ou quando visitamos os intervalos, e at mesmo no horrio de sada, que grande parte dos alunos ouvem funk em seus celulares. Logo, constatamos que esse estilo musical faz parte da realidade dos educandos. O segundo motivo se deve reunio que todos os professores da unidade escolar participaram, no incio de 2012, onde foi definido que o tema do PEA Projeto Especial de Ao2 da escola trataria das manifestaes da cultura.

    A escolha do funk como contedo a ser desenvolvido nos fez mer-gulhar numa profunda reflexo e angstia. Reflexo porque para abordar essa temtica com os alunos precisvamos, primeiramente, nos livrar de todos os preconceitos que existiam em ns, e angstia por no termos nenhum conhecimento sobre esse assunto.

    Seguindo as orientaes curriculares (So Paulo. Secretaria Muni-cipal de Ensino, 2007) inicialmente realizamos um mapeamento a fim de diagnosticar qual conhecimento os alunos tinham sobre essa temtica. Na primeira aula, quando apresentamos a proposta, foi muito curioso, pois todos nos olharam com cara de espanto, como se pensassem que a escola no seria lugar para se discutir uma prtica que traz tanta polmica por conta das letras de msicas, o estilo da dana etc. Interessante ressaltar tambm que apesar da maioria dos alunos ouvirem funk, frequentar bailes funk e conhecer diversos Mcs que vivem na comunidade, verificou-se a existncia de uma imagem muito preconceituosa e discriminatria sobre as pessoas que se identificavam com tal msica, consequentemente, so-bre a prtica que eles mesmos faziam, pois diziam que s os bandidos, traficantes e vagabundas ouviam. Alm disso, percebeu-se que para

    2. So instrumentos de trabalho elaborados pelas Unidades Educacionais, que expressam as prioridades estabelecidas no Projeto Pedaggico, voltadas essencialmente s necessidades dos educandos, definindo as aes a serem desencadeadas, as responsabilidades na sua execuo e avaliao, visando ao aprimoramento das prticas educativas e conseqente melhoria da qualidade de ensino (SO PAULO, 2008).

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    os alunos, as composies das letras das msicas limitavam-se a fazer referncias a drogas, sexo, criminalidade, etc.

    Para tanto, planejamos diversas aes pedaggicas que buscaram compreender e analisar melhor essa prtica pertencente cultura corpo-ral, na medida em que suas gestualidades expressam formas de linguagem, por meio da dana, vestimenta, grias etc. Ento, para iniciar, propusemos que os alunos mencionassem os tipos de funk conhecidos por eles: melo-dy3, gospel4, ertico5 e ostentao6. Na aula seguinte os alunos trouxeram msicas, em Cds e no prprio celular. Quando solicitamos para que nos mostrassem, alguns no queriam dizendo que falava muito palavro e que no sabiam se poderiam usar o celular na aula. Reforamos que no havia problema e uma aluna nos indagou: Mas e se a coordenadora en-trar aqui na sala?. Dissemos para no se preocuparem, pois estvamos num momento de aula, e tanto o uso do celular quanto as msicas com palavro faziam parte do contexto da mesma. Alm disso, a coordena-dora j tinha sido avisada do projeto. Essa passagem mostrou a imagem de blindagem que a escola tem para os alunos, no sendo o espao para certas prticas ou discusses. Outra aluna nos chamou e disse que era evanglica e no poderia ouvir essas msicas, ento perguntamos se ela conhecia o funk gospel, e ela disse: Ah professor, funk gospel nem existe!. Ficou surpresa quando conheceu tal gnero musical e a partir da comeou a participar da aula. Nessa mesma ocasio, ao observamos os comentrios que afirmavam que o funk melody (que fala de amor) e o gospel (que fala de Deus) eram melhores que o ertico e o proibido, interviemos dizendo que cada um tem direito de ouvir o tipo de funk que mais lhe agrada, e que nosso objetivo no era definir apenas um, mas ampliar nossa viso sobre esse estilo musical.

    Em seguida, propusemos a realizao de uma pesquisa sobre a ori-gem e as transformaes que ocorreram com o funk at os dias de hoje, ento os alunos foram divididos em grupos, e conforme o agendamento

    3. Funk que possui batidas ritmadas e letras mais romnticas.4. Funk que possui letras cujo objetivo louvar a Deus.5. Funk que possui uma batida repetitiva e com letras erticas e de duplos sentidos.6. Funk que possui letras que se referem ao consumo e a ostentao.

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    apresentaram o que tinham encontrado. Para auxili-los, realizamos uma pesquisa prvia e orientamos os sites que poderiam encontrar os assuntos relacionados com cada tema. Os discentes ficaram surpresos quando desco-briram que o funk nasceu nos Estados Unidos nas igrejas evanglicas. Um fato curioso que em diversos momentos ouvimos de colegas professores da escola, que no adianta pedir aos alunos para realizarem trabalhos para casa, porque nunca os faziam. Mesmo assim insistimos e tivemos uma grata surpresa, vrios grupos entregaram os trabalhos antes do prazo combinado, e percebemos que estavam empolgados com o projeto.

    Para a prxima etapa pesquisamos em sites algumas reportagens sobre o funk na tentativa de verificar como que a mdia o compreende e divulga. Acabamos encontrando duas reportagens, uma da TV Globo e outra da TV Record, assistimos e discutimos que essas reportagens possuiam uma viso muito preconceituosa, pois s reforavam que nos bailes morriam pessoas, havia prostituio, uso de drogas etc. Tambm aproveitamos para discutir sobre o preconceito e apologia. Pergunta-mos aos alunos se realmente o funk era o nico culpado pelas pessoas utilizarem drogas ilcitas, ter relao sexual sem proteo e promiscua-mente, ou entrarem para o mundo do crime, pois diversos outros meios de comunicao como revistas, novelas, filmes, outros estilos musicais como pagode e mpb tambm abordam essas questes, porm no sofrem preconceito e no so rotulados como o funk.

    Figura 1 Alunos assistindo vdeos sobre o histrico, reportagens e os passos do funk.

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    Outro momento do projeto era a realizao de uma coreografia, ento perguntamos se sabiam danar e se conheciam o nome de algum passo, e obtivemos respostas positivas. Trouxemos tambm um vdeo de uma batalha de passinho7 do funk. Aps, solicitamos que os alunos se dividissem em grupos e a partir do vdeo assistido e do conhecimento que possuiam sobre a dana, realizassem uma coreografia. Porm, a vergonha tomou conta dos alunos e ningum quis demonstrar qualquer passo. Percebemos que os alunos ficavam cobrando uns dos outros para danar, criando-se um ambiente um pouco hostil. Avisamos ento que essa no era a proposta, e se ningum quisesse danar, no haveria problemas e daramos andamento ao projeto.

    Analisamos ainda diversas letras de msicas e pedimos para os alu-nos realizarem uma pardia ou compor a sua prpria letra de msica. Para concluir o projeto, gravamos um CD, numa rdio comunitria prxima escola. As visitas ocorreram em grupos pequenos que puderam conhecer todo o funcionamento de uma rdio, alm de realizar um momento de debate, em que os alunos relataram o que pensavam sobre esse estilo musical e sobre as experincias vivenciadas nas aulas. Ao final escolhiam uma msica de funk para tocar na rdio.

    DIFICULDADES ENCONTRADAS pARA REALIzAR O pROjETO

    As dificuldades comearam a acontecerer antes mesmo do projeto comear, a partir do momento que decidimos tematizar o funk, mesmo tendo todo o suporte referencial no livro de Orientaes Curriculares da prpria prefeitura de So Paulo (cujo objetivo subsidiar o professor na elaborao e organizao dos projetos, nas expectativas de aprendi-zagem, escolha de contedos, organizao das atividades e avaliao), a fim de evitar possveis problemas com relao reclamao de pais ou dos alunos, resolvemos marcar uma reunio com a coordenao para

    7. So competies, entre duas pessoas, ocorridas nos bailes funk, onde cada concorrente tem um minuto para mostrar suas habilidades utilizando os diferentes passos do funk.

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    explicar o porque dessa idia, como o projeto iria acontecer e o que iriamos abordar com relao a esse tema. Apesar de algum espanto da coordenao, recebemos o apoio necessrio.

    Logo no incio, quando avisamos aos alunos que iriamos tematizar o funk nas aulas, alguns se colocaram contra essa deciso, pois diziam que aula de Educao Fsica era para jogar futebol e no para ficar ouvindo essas msicas. Outros alunos questionaram o porqu tinham que estudar o funk e no outros gneros musicais como o rock, hip hop e pagode. Uma parte mais radical dos alunos disse que no iria participar se a aula fosse funk. Por fim, tentamos explicar a eles que antes de dizermos se gostamos ou no de alguma coisa, importante conhecermos, e esta era uma boa oportunidade de pesquisarmos esse gnero musical.

    Mais uma vez, relembramos a dificuldade encontrada na proposta da vivncia da dana por parte dos alunos, apesar de declararem que ti-nham conhecimento da dana e de determinados passos, tiveram receio em mostrar ao grupo. De fato essa situao no atrapalhou o andamento do projeto, porm, avaliamos, posteriormente, que se tivesse ocorrido conforme o planejamento inicial teria enriquecido bastante nossas dis-cusses com os alunos.

    CONSIDERAES FINAIS

    Ao final do projeto, percebemos que contribumos significativa-mente na desmistificao da imagem do funk, tentando-o colocar num nvel de igualdade com outros estilos musicais. Para exemplificar essa percepo, destacamos a fala de uma aluna:eu achei muito legal, porque nem todos os funks falam palavro e putaria, e eu conheci outros tipos.

    Ressaltamos que alm da importncia de ampliar o olhar sobre o funk, tivemos tambm o objetivo de discutir com os alunos que as questes ligadas sexualidade, apologias, uso de drogas e palavres no so encontradas exclusivamente no funk e, se analisarmos criticamente, encontraremos tambm em outros ritmos. Uma possvel explicao que podemos considerar para essa demonizao do funk, o fato de estar associada a uma origem negra e pobre.

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    Mesmo tendo dificuldades em relao prtica da dana pelos alunos devido ao receio de se exporem, concordamos com os resultados da pesquisa de Vilela (1998) que afirmam que as discusses das danas de rua so importantes para legitimar uma prtica oriunda da cultura popular, que historicamente vista como no vlida. Alm disso, tambm compreendemos a relevncia da formao crtica dos alunos a fim de que possam identificar e interpretar as diferentes representaes que carac-terizam essa manifestao da cultura coporal e encontram-se espalhadas pela sociedade, em especial a brasileira.

    Dessa maneira, atravs das diversas estratgias de ensino adotadas, conseguimos dar vozes, nas aulas, a uma minoria que sofre preconceito por se aproximar desse gnero musical, e consequentemente, procuramos valorizar essa manifestao da cultura popular negra.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    CORAZZA, S.M. Tema Gerador: concepes e prticas. Iju: Editora Uniju, 2003.

    DAOLIO, J. A Educao Fsica escolar como prtica cultural: tenses e riscos. Pensar a Prtica v. 8, n 2: 215-226, Jul./Dez. 2005.

    DELMANTO, D.; FAUSTINONI, L. E. Os relatos de prtica e sua importncia no processo de produo e socializao do conhecimento. In: GOIS. Secretaria de Estado da Educao. Reorientao curricular do 6 ao 9 ano: currculo em debate Relatos de Prticas Pedaggicas. Goinia: SEE/GO, 2009.

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    Recebido: 18 abril 2014Aprovado: 03 julho 2014

    Endereo para correspondncia:Daniel Teixeira Maldonado

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