1997 A História entre a modernidade e a pósmodernidade QUESTÕES E DEBATES.pdf

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A HISTÓRIA ENTRE A MODERNIDADE E A PÓS-MODERNIDADE . Quero sugerir rapidamente os tópicos mais importantes dessa cnse. No tocante à 4 2CÓtfõ!iiliJ, a modernização e a modernidade são sinônimos de um crescimento constante do bem-estar por meio do avanço da industrializa~ão. O pensamento pós-moderno reflete o fato de que esse crescimento continuado have~á de levar inevitavelmente a um~ástrofe ambiell1al, se continuarmos na modal idade moderna da exploração da natureza para produzir o bem- estar. No tocante %:.v-i~a sociedade moderna é uma sociedade c~ra~~.erizadapelo princípio da igualdade,i'! égal~é. Modernização slgmftca .umdesenvolvimento histórico que conduz a uma igualização progressiva das relações entre as pessoas. Mas a experiência pós- moderna relativamente à vida social afirma existir u1T!profund<L.@ismo L.~I~!!~e_~if~!·ent~s,grllpossociais, que resulta em aumento-'da desigualdade. Todos nós conhecemos o Conflito Norte-Sul, que estú assumindo formas cada vez mais acirradas. Também não podemos passar ao I_ar~odas d.esigualdades sociais qu~~ mentando em n.ossa.s propnas SOCiedades. No tocante ~ políti", modernização slgntllca democratizal;ão: a modernidade é uma forma democrática de organização do poder político. Mas nesse contexto a idéia d!Ll2Q.::i- moderllidade não s~ apresenta deJ'.lmmt tlíQníti,da como deveria. Assim. para citar lIlll cxe;llplo,~lca encontrei objeção de teóric~ pós-modernos à democracia enquanto sistema político dominante nas sociedades modernas. Apesar disso, existe uma tendência na evolução da pol ítica de nossos tempos, que se volta contra as formas predominantes da vida política. Penso aqui na t;di~~ia ~~~tra as grande~ estruturas como, por exemplo, os éstados-nação, caractenzados por seus mecanismos de coerção unificadora. Essa IcndL~ncia faz cOln que setorcs mcnores dayida humana ea 1~liciclade d~~sc;!llJurasclltrcm noj9KQ.2..olítico.Ao lado disso existe ainda uma outra experiência na vida pol'ft;ca, que aponta para lima crise da modernidade. A democratização em escala mundial vem acompanhada de~olaçõe~.crescent~s dº~princípios da o~·gL~I},t.z.aÇiio-denlOcrática do poder político, isto é, de viol~çõ~~dos L"relt,osdo hom~m e do cidadão. Como se pode conferir sempre nos relatonos anuais da Anistia Internacional, a modernização é um processo que conduz em todos os lugares do mundo a uma violação crescente dos direitos fundamentais da pessoa. Jorn Rüsen Professor de Teoria da História da Universidade de Boehum - Alemanha Tradução: Peter Naumann, Porto Alegre Revisão: Estevão de Rezende Martins, Universidade de Brasília o meu artigo se divide em sei~~p_a.rt~~.' A primeira se ocupa ." COlll os noVOScnl"oques da história como disciplina científica, queCÍ' conduziram à pSs~inoaernioadé. A segunda parte~é um excurso que traia da ~.a da história en.quanto di~ciPlin.ac.i'. e.ntífica. E.~~d ..... ~~~' mostrar por quê e como ela deve reagir a uma. cr.l~~de onenta~ em seu contexto cultural e social. N.ate~ceira p~rte ~prese~to algumas áJ concepções das etapas da moderl1lzaçao na hlstonografia. A quarta parte contém uma ~'ftica pós-moderna da ciêl~cia ~ist6r~~amooern~1@ A quinta sc ocupa com alguns eleme~tos dal11stonograha e da teona ét J histórica l2ós-modernas, e a sexta e últíma parte discuka questãock com2,sepoderia atingir um equilíbrio entre elementos modernistas e pó~-modernistas na ciência histórica e na historiografia atuais. (;-D As origens do pensamento pós-moderno estão no campo da arte, onde sempre encontramos uma aguda sensibilidade para novas demandas de orientação na vida humana. Posteriormente ele se l'SIl'ndeu por todo o âmbito das ciências humanas, especialmente da Ilistória. (~ considerado chiquc falar sobre ap~s-I,~<.!~lcrnidad~ enquanto tendência predominante em todas as <ireasda vida cultural nas sociedades altamente desenvolvidas. Essa atitude aponta para um sentimento geJ1erali:z.adodeque ocontexto da vida contemporânea sofr~odificaçÕes fundamentais. Ela expressa uma idéia de nosso próprio modo de 'lida, segundo a qual ele abandonou suas formas normais. tradicionais e familiares da auto-compreensão. A discussão sobre a cultura pós-moderna e as peculiaridades pós-modernas de nossa situação de vida é indício de uma~ofunda crise no processo, de ll1odernização.Jsso é uma trivialidade, mas deve ser dito. "----~-

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  • A HISTRIA ENTRE A MODERNIDADE E APS-MODERNIDADE

    . Quero sugerir rapidamente os tpicos mais importantes dessacnse. No tocante

    42Ctf!iiliJ, a modernizao e a modernidade so

    sinnimos de um crescimento constante do bem-estar por meio doavano da industrializa~o. O pensamento ps-moderno reflete ofato de que esse crescimento continuado have~ de levarinevitavelmente a um~strofe ambiell1al, se continuarmos namodal idade moderna da explorao da natureza para produzir o bem-estar. No tocante %:.v-i~a sociedade moderna uma sociedadec~ra~~.erizadapelo princpio da igualdade,i'! gal~. Modernizaoslgmftca .umdesenvolvimento histrico que conduz a uma igualizaoprogressiva das relaes entre as pessoas. Mas a experincia ps-moderna relativamente vida social afirma existir u1T!profund

  • Por fim - e creio que esse um dos it~ns ~ai: i~~o~tantesna discusso das ui..nciashumana~:)(1 modermzaao e slOommo de

    - 'd d d' r que o homem desenvolveu aracionalizaao. Moderm a e quer Ize .c-;p:lcidade de organizar a vida humana confo~e co~he~l~entos edescobertas devidas racionalidade e pesqUlsa clentlftca. Essacapacidade foi combinada com as promessas dos gran~e.spensa~oresdo incio da Idade Moderna: com a promessa de ~r~g1fpor via daracionalizao o imprio do homem (regnum hommls). Ocorre que

    . . d l' A oQosto Temos aentrementes estamos vlvenctan o um ~2.meno -'". .sensao de estar perdendo progressivamente as fontes do ~ent1~oe(i~I'~Tg~ificnCiade nossa prpria vida. As fontes do sentido e do.signiricado na vida cultural esto secando.

    . . Esses quatro aspectos da crise da modernizao P?dem serresumidos nos seguintes termos: na opinio dos intelectUaiS, a.atua~crise da conscincia de si das sociedades altamente desenvolvldas.ecaracterizada por uma ~ da noo do.pmgress_o ..Jean-FranOls

    . - h . . "grandesLyotard caracterizou-a ao dizer que nao avena ~als as .narrativas" que pudessem formar a autocom~reen.sao das socled.ade~

    I, .. , Um'l "grande narrativa" uma hlstna que se basem naml)(elndS. c categoria fundamental do progresso. O indcio mai~ claro ~essa cr~sedo pensamento centrado na noo do progresso e ~t~~E.~~_c!2J:~s-histria, que parte de um fim da histria; de acor~o com el~J~ e.stam,osvTy-~~d~alm das estruturas temporais que constItuem a hlston.a. ~o~-histria no a mesma coisa que ps-modernidade, mas o mdlclOmais radical da crise do pensamento centrado na idia do progress_o,que encarna o problema decisivo de nossa auto-compreensaohislricl. Concordo completamente com Jrgen Ha~erm.as qu~, em19H5, ralou da "'!:Q.YJ..o.pacidade"(neue UnherSlchtllchkelt)dJ!situ'-!.ode noss vida....-' - A pergunta, que quero formular e qual quero re~p?.!!d~agora, se a histria e a historiografia podem enfrentar ess cnse de

    orientao)

    Essa pergunta me leva segunda parte do meu artigo. Ainda /h.;J'y'me parece necessrio enfatizar o fato de que .QLhistoriadores se A(\(, ,ocupam sobretudo com a vida do preset1~e com ~fut~?yl~-o co~ Jf "o passado. Os professores de histria contam a setfS aTnos, assim ~" ,j \,'"'como os catedrticos universitrios de histria contam a seus "j . 'IAiestudantes, que o objeto da histria seria o passado. Mas isso no 'r

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    que influenciou muitas interpretaes da ~istria mode~~ um bomexemplo de um tal direcionamento onentador da vlsao sobre a

    experincia do passado.

    O terceiro princpio da histria constitui sua ~!.~.!.~za

    !.'....~j acadmica d(_L~n'cTaempn9l (no sentido mais amplo do termo).j EJ~p~in~pio do !!!.~t()d_o.~~~ttiso enqua~to conjunto de. reg~as

    que orienta o trabalho de pesquisa do histon~dor., A. pesqU1s~.e omodo pelo qual os historiadores introduzem os d~~gnostl.cos empm~osdo passado na perspectiva, na qual oJ?l'lssado e Investido do carater

    de uma ~istria dotada de sentido.

    Muitos historiadores acreditam que o processo doconhecimento histrico est concludo contanto que ten~am retin~doas informaes do material das fontes e colocado essas Informaoesem uma perspectiva que interliga presente e passaao. Esquecem-.se,todavia, do fato de que ainda precisam apresentar a, per~pe~t.lvahistrica empiricamente concretizada em forma tambem hlstonca,isto , como um texto. Na produo dessa forma ele~ recorrem aprincpios de~if;!,ni!)cncil e sig'l!f!cad~~ ~u~ no coincl.d~m c~~ as;;;i1Cefles tericas de perspectivas hlstoncas e com as r~gr

  • d~stria soci~~(s vezes denominada ~9.!a..de Bielefeld). O novoclem~d~ r~cionalidade da histria, que caracteriza os trsparadigmas em diferentes formas de manifestao, a utilj~a.iio deconstrues tericas como meios da interpretao histrica. MaxWCber-i1t~~p~~tou esses elementos tericos da interpretao histricacomo tipos ideais, como recursos conceituais auxiliares, teoricamenteelaborados, para a interpretao das informaes providenciadas pelomaterial das fontes.

    representao idealista da histria, prpria do historicismo elas~ompreendem a .histria como constituda por uma relao ~1Uitocomplexa entre foras materiais e espirituais.

    O seg~~_d~~r~? ~i~tiI1tivo essencial a()pe_l}..anl~I1~2_bistQrjo,/7)COI11~lmatcras s~a~~amfYJ>J.a.5~s_T1jJ~()c_es~.?da modernizao, ~.2~~J.2_i2.:_.Os hlstonadores universitrios esto mais' ou- mensconvl,c~os da ~xistncia ~e ~m mtodo racional que lhes permiteco~statar por via da pesqUisa como as coisas efetivamente se deram"(wle es eigen~lich gewesen) - para citar as clebres palavras de!:

  • ... 't.J.I':'P.G.. B1nLlCrrECI\ CENTfU\L;

    Hl~l\1EI{OTECA88moderno. A crtica ps-moderna do process.o de mod~rniza~o da

    . I' - o no nenhuma inveno dos mtelectuals do fmal doracIOna Izaa .r d ' . , s-modernasculo XX. Alguns elementos fundamenta,l.> a critica P~L... : , .da racionalizaao Tseencontram.no fim d.oscul.oXVIII,e no mlclolia sculo XIX. \Lrna crtica similar surgIU no f1m ?? sec~lo XIX.~firmar, portanto, que uma postura cntlca dJa~te damodern idade foi desde o princpio parte int~grante do cles~~v

  • o que nos prope, ento, a concepo p,s-r~lO~er~~d:histria ~ toqmt.e aJUnooJien.tr_.~~IhJ.strico? Qual esua alternativa de dar vida uma orientao para a mudana e paraa transformao, que pudesse ser aplicada na vida cotidiana e noagir privado? A resposta: orientao por meio da imaginao. Comose nega uma-entidade real chamada "a histria", ~ssa ima~in~~ohistrica constituda por elementos
  • 92apresentados por Carlo Ginzburg, Emmanuel LeR~y ~adurie ~ outros.Conhecemos a viso de mundo do moleiro MenoqUl~ ~a vuada dosculo XVI para o sculo XVII como universo contrano ~o nosso.Ginzburg explicou - e isso evidencia a postura essencmlmenteantimoderna nesse livro famoso - que ns, os europe~s cultos, dever-nos-amos sentir culturalmente mutilados ao aprecIar e~sa cult~raespecfica do passado, encarnada por Menqui~, e que tenamos sIdodestrudos pelas foras culturais que produzua~n no~sas formasmodernas de vida (Ginzburg, 1983:21). Tal histonografla apresen!auma contra-imagem; ela cria uma conscincia do que perdemos. Nao por acaso que a maioria das contra-imagens ps-modernas .foramextradas dos primrdios da Idade Moderna e refletem a VI?a naEuropa pouco antes do incio da modernizao. Pens~m tambem ~apequena aldeia de Montaillou nos Pireneus, no dest~n~ de Martll1Guerre e em uma srie de outras pessoas ou grupos SOCIaISpequenos,que nos fascinam tanto por pertencerem a nossa cultura e serem ~omesmo tempo completamente diferentes de ns (v. LeRoy Ladune,1982; Davis, 1984).

    Essas contra-imagens so apresentadas em f.or,mashistoriogrficas novas. Estamos acostumados a ~enomlOa-lasnarrativas. Essa expresso , porm, enga~os~,. pOIS c~d~ textohistoriogrfico narrativo. Alm desse slgmflcado 10~1~0 ouepistemolgico, a narrativa se refere a uma ~o~ma ~speclflca darepresentao historiogrfica, que pode ser ~IStI~~Ulda de outrasformas. "Narrativa" uma representao histonograflca que se ocupapreferencialmente com eventos e interaes. S~ comp~rarmos aIlist

  • inspirao da antropologia cultural e da etnologia. Com referncia funo orientadora da evocao histrica, a cincia da histria, doparadigma ps-moderno, revela um interesse crescente pelaqualidade esttica da experincia histrica. A histria deve elaborarum retrato, um quadro do passado que tenha qualidades estticas.

    A historiografia da modemidade produziu uma forma distintada apresentao do passado. Costumava descrev-lo em padres deao poltica e social, para assim poder estar altura de atividades eformas de identidade similares na vida atual. A historiografia ps-moderna apresenta o passado em uma qualidade esttica. O melhorexemplo desse trato do passado a obra de Jacob Burckhardt que,ncssc scntido, um historiador ps-moderno precoce.~

    se modificar qualitativamente - e essa transformao ser de naturezaessencialmente histrica.

    E no tocante lgica do pensamento histrico, parto dopressuposto de que os homens, enquanto forem homens, necessitaro,para sua prxis especfica de vida, de orientao em padrestemporais. Essa orientao especificamente cultural alcanada pelanarrativa histrica. A vida humana, no importa de que forma, nempode ser pensada por ns sem a necessidade de uma orientao namutao temporal por meio da narrao de histrias.

    Abstraindo dessa refutao da ps-histria, a crtica ps-moderna da concepo da histria deve ser levada muito a srio.Creio quc dcvemos aceitar essa crtica na medida em que apontapara uma general izao ideolgica de uma histria individual na direoda histria. Esse foi efetivamente o caso no decorrer da modernizao,do Iluminismo at nossos dias. Devemos admitir que s h umamultiplicidade de histrias, mas no a histria como entidade de fato.E no obstante - esse meu ponto de vista nessa argumentao,comprometido com o paradigma moderno - necessitamos de umarepresentao mental da unidade da experincia histrica. Docontrrio o pensamento histrico nos conduz ao relativismo total. Opreo a ser pago por esse relativismo seria demasiado alto. Aindanecessitamos de categorias histricas, por razes de ordem lgica:sem elas no saberamos pensar historicamente. Alm dissonecessitamos de uma concepo de histria que corresponda experincia atual do mundo uno, que se integra cada vez mais(enfatizar a micro-histria enquanto vivemos em meio a um processomacro-histrico soa como se quisssemos reprimir uma experinciaamcaadora, ao invs de enfrent-Ia com ajuda da interpretaohistrica).

    Como podemos produzir, contudo, uma concepo dauniversalidade da evoluo histrica e aceitar simultaneamente ques existe uma multiplicidade de histrias diferentes ou ummultiperspectivismo no pensamento histrico? Em meio multiplicidade das perspectivas histricas, uma unidade da histriasomente pode ser alcanada por meio de valores universais noprocedimento metdico da interpretao histrica. Com efeito

    Na parte final do meu artigo chego a uma concluso talvezprevisvel. Minha estratgia deve ter sido percebida: aps terapresentado as concepes moderna e ps-moderna da cincia dahistria de forma antinmica, devo fazer tentar estabelecer umamediao entre essas posies opostas. Nesse sentido, pergunto: comopodemos combinar os elementos modernos e ps-modernos da cinciada histria em uma sntese?

    Inicialmente quero refutar a concepo radicalmente ps-moderna da ps-histria. No pode existir um fim da histria. Essaarirlllao pode ser sustentada por razes lgicas e por dadoscmpricos. No tocante evidncia emprica, o sistema ocidental,centrado no valor da liberdade, no pode representar o fim da histria,que todos os outros pases do mundo se empenham em alcanar, pois impossvel generaliz-Io em sua estrutura atual para O mundo inteiro. certo que essa estrutura universal seria efetivamente o fim dahistria, mas no no sentido de Fukuyama (1992), mas em virtude dosimples fato de que sua aplicao em escala mundial resultaria emuma catstrofe ecolgica. O sistema ocidental gerou tenses entreos hemisfrios Norte e Sul (para no falar das novas tenses Leste-Oeste), que s podem ser solucionadas se o prprio sistema ocidental

  • carecemos de um sistema orientador de valores, de um sistema devalores universais que reconhea as diferenas entre as culturas.Penso que existe um valor fundamental que pode ser introduzido emuma estratgia da interpretao histrica: um valor que universal ejustifica ao mesmo tempo a multiplicidade das perspectivas e adiferena. Penso no princpio normativo do reconhecimento recprocode diferenas na vida humana. Esse princpio pode ser elaborado emuma estrutura cognitiva, e essa estrutura pode produzir um novo acesso experincia histrica, que liga a unidade da humanidade e da evoluono tempo com a diferena das culturas, por um lado, e com suaITIultiplicidade, por outro lado.

    Com essa idia orientadora da interpretao histrica pode-se atingir uma sntese adicional de elementos modernos e ps-modernos do pensamento histrico, a sntese da micro e da macro-histria. Elas no se excluem. Muito pelo contrrio, dependem umada outra enquanto complementaes necessrias. Uma micro-histriaconvincente deve referir-se a condies macro-histricas, casocontrrio tender a deshistoricizar seu objeto. Precisamoscompreender que existe algo parecido com um processo contnuo eabrangente de modernizao, independentemente de os homens oterem ou no percebido ou aceito no passado. Mesmo no mbito donovo enfoque hermenutico do pensamento dos homens do passado,precisamos conscientizar-nos de que sabemos mais do que eles; noapreciamos devidamente a conscincia que os homens tm de seumundo nem sua autocompreenso, se nos fingirmos artificialmentede bobos.

    Mas COlllOas coisas se passam com a facticidade modernada histria? Penso que devemos conceder argumentao p6s-moderna que as possibilidades contrafactuais podem e deveriamdesempenhar um papel importante para a interpretao histrica.Isso vale em dois sentidos: ao organizarmos os fatos histricos emconcepes, outorgando evidncia emprica ao passado, e aoorganizarmos as perspectivas histricas em concepes, que atribuemao passado um sentido e significado para ns, no mundo de hoje.

    Quanto questo dos fatos histricos, precisamos ampliarnossa concepo da crtica das fontes. Precisamos considerar

    sistematicamente a percepo da realidade dos homens no passadoe deveramos precaver-nos de transferir-Ihes simplesmente nossaprpria compreenso da realidade da esfera humana. Assim, paracitar um exemplo, deveramos respeitar os sonhos e as manifestaesculturais de foras sobrenaturais como vises e experincias religiosascomo fatos histricos incontestes. E deveramos elaborar ascorrespondentes categorias histricas do inconsciente e da dimensoespiritual. Elas nos permitiriam ampliar nosso conhecimento derealidades passadas.

    No que diz respeito a nossa construo de perspectivashistricas interpretativas, dentro das quais as informaes obtidasdas fon[es ohtm a label de urna histria dotada de sentido e significado,deveramos aceitar e uti Iizar a idia das possibil idades contrafactuaiscorno potencial de significado e significncia. Ultrapassamos, comisso, o mbito da afirmao de que as formas de vida do passadoevoluram na direo das formas da vida do presente. Uma talconcepo reveste o passado de uma qualidade imanente por assimdizer utpica. Para expressar essa afirmao em termos filosficos:em cada instante do passado poderia estar um pedao do futuro, quea evocao ainda logra apreender. O passado deveria ser evocadocomo sendo, em princpio, irrealizado e irrealizvel. Essa perspectivapoderia ser uma possibilidade de reconhecer-lhe a dignidade, semseparar dela a vinculao temporal do que passou vida do presente.Um tal passado irrealizado poder ser representado peloshistoriadores, se eles ressaltarem os elementos contrafactuais da vidahumana no passado. Citemos um exemplo: nos relatos sobre osmilagres nos primrdios da Idade Moderna podemos descobrir umaforma l!lental de lidar com problemas quotidianos e de expressarpadres de vida humana, que perderam sua dimenso encantada porefeito da racionalizao. J() Uma evocao histrica dessa mentalidadepoderia ser mais do que a mera produo de contra-imagens daracional idade moderna, carregados da nostalgia de um mundo perdido.Potil'l'ia ser um desafio para a rememorao desenvolver as qualidadementais necessrias para superar os limites da racionalidadepromotora do desencanto e curar as feridas causadas por ela (e issoevidentemente sem uma regresso simples a estgios anteriores dodesenvolvimento intelectual). No quero dizer que deveramos

  • acreditar em milagres como faziam as pessoas do sculo XVII; masdeveramos pensar nas estratgias de que essas pessoas dispunhampara transcender a realidade e mobilizar foras espirituais e psquicas,a fim de nos conscientizarmos das chances da criatividade cultural.

    Sobre o mtodo histrico gostaria de dizer o seguinte:precisamos aceitar as novas estratgias da hermenutica para lidarcom os modos de vida dos homens no passado. Deveramos aceitarpositi vamente o novo valor da subjetividade humana na interpretaodo passado. A hermenutica no sentido ps-moderno est localizadaem um plano mais profundo do que a hermenutica tradicional, quese refere preponderantemente a indivduos isolados, a suas intenese a sllas interrelaes comunicativas. Na concepo ps-moderna, ahermenutica constitui um fenmeno estrutural. A compreenso e ainterpretao de grupos, de classes e de pessoas simples produzirammuitas inovaes referentes ao mtodo da pesquisa histrica. Apesardisso devemos reconhecer que h uma tenso, uma descontinuidadeou um abismo entre a autoconscincia e a auto-interpretao dohomem e das circunstncias previamente dadas em sua vida; essaruptura deveria ser examinada e interpretada pelos historiadores.

    Isso me conduz ao postulado de uma "descrio densa".Enquanto estratgia de mtodo, no me parece convincente. Em cadadescrio densa oculta-se alguma teoria (ser que, por exemplo,qualquer descrio sem categorias explicitadas em teorias logicamente possvel?). Uma descrio que explicita suas linhasmestras tericas e seu quadro referencial muito melhor do quelima descrio que apenas alega dizer o que efetivamente ocorreu.Na 111inhaopinio, o novo acesso hermenutico histria deverganhar em plausibilidade se se valer dos recursos cognitivos daconstruo terica. Isso parece ser evidente com relao histriadas mentalidades. Muitos historiadores utilizam o termo mentalidade,mas constata-se uma confuso conceitual bastante grande quandose trata de explicar o que ele significa.

    A cincia da histria do paradigma moderno estcaracterizada medularmente por uma concepo de racionalidade,razo e mtodo. Freqentemente se abusou dessa idia da histriapara fins de legitimao da dominao e do poder. O pensamento

    99p~~-~o~ern~ rejeita uni:ocamente essa concepo, em benefcioda :l~dgll1.aao e da quahdade esttica da evocao histrica. Serposslvel lI1tegrar em uma sntese a razo e a l'm' -, r agmaao, aracI~na Idade ~ a narrativa, a orientao prtica e o fascnio esttico?L~g,lcament~ ISSO possvel. Para implementar essa integrao n~pl atIca, precIsamos analisar criticamente o significado instrumentalda palavra '~razo"e sua influncia na dominao por meio da~ompreensao e do conhecimento. Criticar esse significadoII1stru~ent.al da .razo n.o nos deve levar necessariamente a umnovo IrraclOn~h~~o, nsco presente em muitos enfoques ps-mode;nos da hlstona. Deveramos reformular os critrios da razodo I1lcl~)do,:la argumentao e - peo vnia para usar essa palavr~- ~iaraclona~lda~e C?~referncia estrutura narrati va e ao processo~a e~oc~ao hlstonca, assim como deveramos reformular a1~f1uencla da evocao histrica sobre a imaginao. Talvez issotIaga algum progresso para a concepo da razo na histri'l (R"1988: 105-114). < usen,

    . . 1 O texto se baseia em uma conferncia proferida em incrls naUnIv_ersldade de Helsinki, revisto e completado para fins de ubt' -Vers,o~~ anteriores foram publicadas na Finlndia (1992) na Espa~ha ~~~~;~.na Alrlca do Sul (1994) e na Romnia (1995) O', '.. , . , .. .. arllgo retoma cerlos,li gUlIlcntos .Ia utrllzados em dois artigos precedentes' "N d' , .hislori " I '1 d' ""H' . . . ew lrectlons tn, .~:Is u les e Istoncal cnlightenmenl in the light 01'postmodernism"v. J. Ruscn ( 1993). V. tambm Rsen (1991) e (1992). '.. . >,; Urna verso ampliada dessa coneepo encontra-se em: "Historik

    - ~he~ ~eo~~~e~ zur metath~oreti,schen Selbstauslegung und Interpretationdes 1.1ISl()llscl~.enDenkcns IIn Hlstorismus (lInd ausscrhalb)" in' Kttl'';()If,g,~ng,;. R~lscn: !orn; Schulin, Ernst (cdd.). GeschichISdi~ku'rs I: ~~Epoeile dei Hlstonslcrllng. Frankfurt/Main, 1996.

    E. E'~' Cf. Jaeger, Friedrich; Rsen, Jom. Geschichte des Historismusme mfuhrung. Munique, 1992. .

  • 4 Ranke escreveu (1874: VII): "J se atribuiu histria o ofcio deajuizar o passado, de ensinar os contemporneos para beneficiar os anosvindouros: o presente ensaio no se arroga ofcios to elevados; pretendemostrar apenas como as coisas ocorreram efetivamente".

    .) Cf. as retlexes sobre esse termo em Ldtke (1993: 9 ss.)6 Ranke (1971: 59)7 Benjamin (1991: 691-704)8 Stane (1979:3-24)9 Cf. meu ensaio "Jacob Burckhardt: Political Standpoint and

    Histarical Insight on the Border ofPostmodernism", in: Rsen (1993: 147-160) (traduo alem em: H.-R. Guggisberg (ed.). Umgang mit JacobBurckhardt. Zw6lfStudien. Basilia, 1994, pp. 101-116)

    1() R. Hahermas (1991a) e (1991h: 165-183).

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  • ~e empr~gar as teorias marxistas e estruturalistas na pesquisa hist-nca. EnfIm, as inovaes ocorriam no enfoque da pesquisa, nos no-vos campos do conhecimento histrico, enquanto a teoria era relegadaa um segundo plano. A teoria ficava quase como adormecida tmidafrente s possibilidades, ao amplo leque de possibilidades ina~guradopela Nouvelle Histoire.

    A compartimentao entre teoria e metodologia tornava-seum problema quase insolvel no momento de realizar pesquisa. Ovelho marxism? no era capaz de fornecer subsdios tericos paratemas de pesquisa sobre religiosidade, relao de parentesco, culturapopula~, .vida cotidiana ... Para levar adiante essas abordagens serian~ce,s~ano esquecer o marxismo e a compreenso de um processohlstonco. Teramos ento que abraar Michel Foucault PierreBourdieu e Walter Benjamin. Muitos historiadores dessa ~eraooptar~m por uma via menos radical, rompendo em parte com omarxismo. E.H. Thompson e Cornelius Castoriadis trouxeram novaspossibilidades de pesquisa, sem contudo abandonar ou recusartotalme~te os princpios do marxismo. No meu caso particular, essaperspectIva era invivel, incompatvel com os estudos sobre a histriamoderna. Operrios, trabalhadores e sindicalistas, tal comoconceberam esses autores, ainda no haviam nascido no sculo deLus XlV.

    Ronald RaminelliProfessor Adjunto do Departamento de Histria da

    Universidade Federal FluminenseUFF

    O embate dos paradigmas modernos e ps-modernos nahistoriografia constitui um tema caro aos historiadores de minhagerao. A crtica idia de progresso estabeleceu-se na filosofiado ps-guerra e tev marcada influncia na historiografia da dcadade 1970. Os historiadores da Nouvelle Histoire contestavam as teoriase a prpria racionalidade do desenvolvimento histrico. Ao mesmotempo, valorizavam a narrativa histrica, narrativa que por vezes beiraa quase fico. Lembro do grande espanto e fascnio que me causouo livro de Le Roy Ladurie, Montaillou.1 Escrito em uma linguagempouco usual poca, Montaillou abordou o cotidiano de um povoadoao sul da Frana. Como um etngrafo do sculo XIX, Laduriedescreveu em detalhes os comportamentos sexuais, alimentcios ereligiosos de homens que viveram na Idade Mdia. A prpria estruturada obra era singular, pois, como um dicionrio, abordava de formaestanque os vrios temas, sem se importar como uma sntese, comuma anlise capaz de interligar e explicar os comportamentos. Oexotismo das atitudes e as curiosidades dos leitores estavam acimada cincia histrica. Essa prtica, no entanto, ganhou enormedimenso posteriormente. Hoje h historiadores franceses queescrevem trabalhos com destacado grau de subjetivismo, mesclandopesquisa documental muita imaginao.

    Minha gerao descobriu essa literatura, mas teve uma nti-da formao marxista. Os conceitos marxistas eram estudados edebatidos em profundidade. Assim, a discusso terica era influenci-ada pelo pensamento marxista, enquanto os novos temas de pesqui-sas rumavam para outra direo. A grande contribuio de Le RoyLadurie, Jacques Le Goff e Carlo Ginzburg era introduzir temas no-vos, perspectivas muito inovadoras no campo da pesquisa. Em rarasocasies referiam-se crise dos grandes paradigmas e aos entraves

    Para ns que nos dedicamos anos de estudo aos escritos deMarx e historiografia marxista era muito difcil seguir os modismos enos tornar foucaultianos ou adeptos da descrio densa de Cliffo~dGeertz. Era impensvel conceber uma histria da cultura descoladada soci~dade. Cultura e sociedade so complementares, nonecessanamente determinantes, mas parte de um todo indivisve1.Foucault e Geertz, por vezes, hiperdimensionam os fatos culturaisdando-lhes significados que esto mais prximos contemporaneidad~dos autores do que aos objetos estudados. A temporal idade era, nave~da~e, um ponto de discrdia na histria que envolvia tambm opro~no pensamento marxista. A histria um estudo do passador~allzado P?r ho~ens do presente, mas que no devem perder devista as partlculandades, as idiossincrasias do passado. Caso contrrioperde-se a dimenso do presente e do passado. '

  • Em Montaillou, Ladurie relatou mais do que analisou; anarrati va se sobreps a crtica dos dados provenientes da Inquisio.

    A narrativa histrica possui suas vantagens, mas a mera descriodos acontecimentos nos faz remontar aos historiadores do sculosXIX, dedicados a reunir em uma ordem cronolgica os fatos marcantesda formao nacional. Entre os historiadores franceses ligados revista Annales, recorrente a simples descrio de fatos ecomportamentos pitorescos. Nesse momento, no so os fatospolticos o objeto de estudo, mas os fatos culturais. As transformaesmentais tornaram-se alvo dos historiadores, que se lanaram a tarefade orden-Ias segundo uma cronologia. O simples ordenamento dasvariaes comportamentais era sinal da precariedade terica, daaverso pelas snteses e pelas generalizaes.

    A narrativa e o subjetivismo tornam-se, ento, recursos paracontornar a crise de paradigmas e a falta informaes para reconstruiro passado. A narrativa e o subjetivismo aproximavam a histria daliteratura e abria um campo promissor no mercado editorial. A histriahermtica e acadmica dava lugar uma narrativa capaz de encantare divertir leitores das mais diferentes origens. Seguindo essa linha, osescritos de Ladurie, Ginzburg, Vovelle, entre outros, alcanaram umsurpreendente sucesso editorial. A viso pitoresca do passado passoua freqentar as listas de livros mais vendidos, dividindo espao comobras ficcionais. Nelas no havia, portanto, a idia de processohistrico, a crtica rigorosa dos testemunhos e o rigor terico presentena historiografia de influncia marxista e mesmo weberiana. Porvezes, empregavam sem esmero uma mescla de antropologia epsicologia e se jactavam historiadores preocupados com ainterdisciplinaridade. Stuart Clark, historiador ingls, indicou com muitapreciso as imperfeies e o descaso terico entre os estudos sobreas mentalidades realizados pelo grupo dos Annales. Clark postulavaque a antropologia empregada por Lucien Febvre, Robert Mandroue Robert Muchambled era evolucionista, completamente superadapela antropologia. .

    Enfim, para minha gerao as perspectivas para a pesquisahistrica no eram satisfatrias. Havia problemas quase insolveis.A Nouvelle Histoire abriu um campo infinito de possibilidade depesquisa. Somente em raras ocasies, porm, viabilizava uma anlisepreocupada em ir alm da mera descrio de fatos pitorescos.

    Nesse sentido, a histria antropolgica ou antropologiahistrica de Jacques Le Goff e Keith Thomas eram propostassedutoras, propiciando uma anlise da religiosidade e da vida cotidianado passado por intermdio da antropologia. Depois de muito refletir eexperimentar esses modelos tericos da antropologia estrutural e daantropologia cultural americana, dois entraves tomaram-se evidentes.Seria produtivo empregar os modelos concebidos por antroplogospara entender a cultura dos homens do passado? Vale lembrar queos antroplogos realizaram suas pesquisas a partir de trabalhos campojunto a comunidades africanas, australianas e americanas. As"sociedades primitivas" seriam semelhantes s sociedades dopassado? Ao acreditar em feitiaria, um habitante da Inglaterra dosculo XVI possuiria uma lgica semelhante aos africanos do Sudo?

    Para alm do problema das particularidades, os modelos daantropologia pressupunham uma gama de informaes incompatvelcom os parcos registros deixados pelo passado. Desse modo, oshistoriadores da vida cotidiana e da religiosidade ficavam merc decrticas por parte dos antroplogos devido inconsistncia da pesquisae pela incapacidade de adaptar as teorias antropolgicas aos estudoshistricos. No final das contas, a promessa de um referencial tericoproveniente da antropologia tornou-se um malogro. Ao longo dapesquisa, os historiadores de minha gerao descobriram que histriae antropologia possuem diferenas inconciliveis. O historiador norealiza pesquisa de campo e no pode contar com a riqueza deinformaes provenientes do trabalho de campo, indispensveis emuma pesquisa antropolgica. Os registros do passado so escassos emuitas vezes indiretos. O problema da crtica documental, aspectorelevante da pesquisa histrica, no era levada em conta pelaantropologia histrica. Como usar a documentao inquisitorial paraestudar religiosidade sem avaliar a opresso do inquisidor sobre osacusados? Esse procedimento era bsico, mas nem sempre foi bemempregado pelos historiadores da Nouvelle Histoire, preocupadosantes de tudo com as singularidades dos relatos encontrados nosprocessos. O encantamento pelas fontes ofuscava a pesquisahistrica.

  • Minha trajetria intelectual estava em uma encruzilhada: ouinvestir em novos objetos e abandonar a histria social de influnciamarxista; ou recusar as perspectivas abertas pela histria francesa eabraar O Capital. O caminho escolhido por mim, e?or outroscolegas, foi superar a dicotomia e experimentar outras possibilidades.No meu caso especfico, optei por realizar pesquisa com temasinovadores e preservar alguns princpios do marxismo. Defendia osseguintes pressupostos: a histria era um processo; as transformaesda histria como resultado dos conflitos sociais; o conceito de ideologia;a histria como prxis, conhecimento do passado para entender opresente. Recusei, no entanto, as determinaes do econmico.

    A unio enrte marxismo e a Nouvelle Histoire teve enormeinfluncia de George Duby. Em As trs Ordens ou o Imaginrio dofeudalismo e "Histria social e ideologia dos fenmenos histricos",Duby destacou a relevncia de analisar os fenmenos mentais tendocomo pressuposto as ideologias e a sociedade. Em importante trechodo artigo mencionado, o historiador francs teceu o seguintecomentrio:

    Com efeito, para compreender a ordenao das sociedadeshumanas e para discernir as foras que as fazem evoluir, importante dedicar uma igual ateno aos fenmenosmentais, cuja interveno incontestavelmente todeterminante quanto a dos fenmenos econmicos edemogrficos. Pois no em funo de sua condioverdadeira, mas da imagem que constroem e que nuncafornece o reflexo fiel, que os homens pautam a sua conduta.Eles se esforam para concili-Ia com modelos decomportamento que so o produto de uma cultura e quemais ou menos se ajustam, no decorrer da histria, srealidades materiais 2

    com o mbito do econmico, poltico ... Esse um importante vnculoentre Duby e o marxismo, que foi ignorado e negado por boa partedos historiadores influenciados pela proposta da Nouvelle Histoire.

    A Histria ps-moderna trouxe, no entanto, contribuiesvaliosas para o debate historiogrfico. Entre eles vale mencionar amultiplicidade de temas, a abertura de horizontes nunca antesfreqentados pela historiografia. Histria das mulheres, Histria deGnero, Histria do Imaginrio e Histria da relao do Homemcom a Natureza constituem avanos inegveis do conhecimentohistrico. As novas preocupaes da Histria refletem a vida atual,os conflitos, as dificuldades que rondam o cotidiano e povoam aspginas dos jornais. Ao criticar as novas abordagenshistoriogrficas, os estudiosos da Histria ps-Moderna,particularmente os marxistas, esto equivocados, pois essasconstituem as preocupao das sociedades ocidentais neste finalde sculo. A sexualidade, a relao homem e mulher e os problemasecolgicos so debatidos entre amigos, nas revistas, em circuitosdistantes do mundo acadmico. No h dvida que esses debatesinfluenciaram a historiografia.

    Nesse final de sculo, um outro aspecto contribuiu paradinamizar a pesquisa histrica. O texto tornou-se mais claro, maisapropriado para difundi-Io a um pblico mais amplo. Os historiadorespassaram a cultuar as belas formas da escrita, por vezes influenciadospelas narrativas literrias. A construo de uma boa trama, ossuspenses e as figuras de linguagem podem ser encontrados nashistrias escritas nas ltimas dcadas. O cuidado com o texto constitui,sem dvida, um legado importante da Nouvelle Histoire. A Histriatornou-se, portanto, um fenmeno editorial, presente nas listas delivro mais vendidos. Para alm dos desvios de percurso, da nfaseexagerada na narrativa em detrimento da pesquisa, o conhecimentohistrico tem alcanado indivduos alheios aos debates acadmicos.No so apenas os especialistas que correm s livrarias para compraro ltimo volume da Histria da Vida Privada; o pblico se ampliou.Devemos esse acontcimento Histria ps-Moderna.

    Com muita sabedoria, Duby concebe os fenmenos mentais,e logo os culturais, como parte de uma totalidade (econmica,demogrfica, ideolgica e poltica). As mentalidades somente setornam inteligveis se pensadas em uma totalidade, em suas relaes

  • 1 LADURIE, Emanuel Le Roy. Montaillou, ctaros e catlicosnuma aldeia francesa 1294-1324. (trad.) Lisboa: Ed. 70, s/do

    2 DUBY George. Histria social e ideologias das sociedades. In: LEGOFF, Jacques & NORA, Pierre (ed.). Histria: Novos problemas.(trad.) Riode Janeiro: Liv. Francisco Alves, 1979. p. 131;As trs Ordens ou o Imaginriodo Feudalismo. (trad.) Lisboa: Editorial Estampa/lmp. Universitria, 1982.

    Marionilde Dias Brepohl de MagalhesProfessor Adjunto do Departamento da Histria da

    Universidade Federal do ParanUFPR

    Eu gostaria de aproveitar neste momento o papel dedebatedora para, em linhas muito gerais, e a partir da exposio doProfessor Jom Rsen, discutir o percurso da historiografia brasileirainspirada nas tendncias ps-modernas, segundo o que venhoacompanhando nas principais revistas e em congressos e seminriosrealizados pelos programas de ps-graduao deste pas.

    No Brasil, os temas e abordagens propostos pelahistoriografia ps-moderna resultaram, como na Europa, dasfrustraes que os intelectuais sofreram no ps-68, em que as utopiasrevolucionrios e at as evolucionrias no vieram a se concretizar.

    Acrescente-se, para o caso do Brasil, um outro fator. Aredemocratizao neste pas no veio de encontro maioria dasreivindicaes da sociedade; pelo contrrio, a crise social e econmicase aprofundou aps 1983, e a poltica, na conjuntura atual, v-seaprisionada ao restrito espao institucional. Vale dizer, em nossahistria recente, mesmo com a democracia, os diversos movimentossociais interferem ainda menos agora do que antes no processopoltico. E o Estado, inspirado no Neoliberalismo, tem reduzido a cadadia seu poder de interferncia na sociedade, promovendo uma intensaprivatizao do pblico sem uma conseqente publicizao do privado.

    no contexto de intensificao da misria e do aprofundamentodo fosso entre as camadas excludas do processo econmico e polticoe a poltica das elites dirigentes que a histria e os historiadores dosanos 90 iro absorver a crise de paradigmas por que passa o mundocontemporneo: presso demo grfica e imigratria, conflitos tnicose religiosos, desemprego, degradao ambiental, insegurana dacidadania.

  • Como na Europa, esta historiografia procura romper com osclssicos modelos histrico-sociolgicos; as abordagens sistmicasso denunciadas como meta-discursos que ocultam sua prpriapretenso de poder; a macro histria interpretada comogeneralizante e determinista; as disciplinas at ento auxiliares daHistria (como a Economia e a Sociologia) so substitudas pelaAntropologia e pela Literatura.

    No pretendo fazer um inventrio desta produo. Primeiro,pelo tempo que disponho neste debate, e segundo, porque certamentecairia na superficialidade, alm de cometer injustias em minhascrticas, pois recon~eo que inmeros trabalhos valeram-se das novaspropostas muito mais como estratgia metodolgica do que como ~mfim em si mesmo. Alm disto, nestes ltimos trinta anos, a pesqUIsahistrica no Brasil tem deixado de lado as grandes snteses (na maioriadas vezes, excessivamente generalizadoras) em favor de uma pesquisaemprica mais criteriosa e aprofundada, fruto da profissionaliza~oda Histria propiciada pela pesquisa acadmica. Da se explicatambm o por que dos estudos de carter monogrfico.

    Entretanto, no me furtarei a pelo menos manifestar algumasde minhas preocupaes para com minha profisso e para com osrumos da historiografia que se apresenta como ps-moderna.

    Reconheamos que tanto aqui como na Europa a historiografiaps-moderna inovadora no apenas em seus mtodos, mas tambmnos temas: as relaes de gnero, sexualidade, cotidiano, a biografia,a faml ia, os sentimentos, o inconsciente, entre outros, tm dado contade explicar fenmenos intervenientes no processo histrico, igualmenteresponsveis por mudanas sociais, e que eram at ento poucocontemplados.

    inovadora tambm em seus objetos; mulheres, homossexuais,as crianas, o leproso, o escravo, as minorias tnicas, enfim,segmentos sociais que at ento no tinham "lugar" na histria, queeram preteridos mesmo pelos que enfatizavam as camadassubalternas, profundamente fixados na classe operria como classeuniversal .. Graas produo mais recente, creio que temos umquadro mais amplo das inmeras possibilidades de se recortar umadeterminada conjuntura, abandonando a rgida determinao classe-

    movimento - partido.

    Uma outra novidade: at seu pblico mudou. Mesmo no Brasil,cuja populao no to habituada leitura como na Alemanha, jpodemos encontrar editoras comerciais fechando contratos muitorazoveis com nossos profissionais, e divulgando junto aos meios decomunicao esta produo - o que se faz acompanhar de ilustraescoloridas, ricamente encadernadas ou divulgadas em CD-ROMs e,tal como se impe, com um solgan anunciando ser aquela uma leituraobrigatria, seno revolucionria, tanto para leigos como paraespecialistas.

    Hoje, sem sombra de dvida, os historiadores atingem umpbl ico bem mais amplo, o que, segundo minha avaliao, tem de servisto como um dado positivo. E isto no se deve apenas s tticasempresariais das editoras. Trata-se tambm de uma estratgia poltica:eu diria, uma pol tica da memria; fazer falar os excludos de ontempode ser eficaz para atingir subjetivamente o pblico leitor que, ao seidentificar com aqueles personagens com os seus correspondentesde hoje, com eles se solidarizem, e passem a assumir atitudes maiscombativas diante do status quo.

    Sob esta perspectiva, conforme o historiador Klaus Tenfelde,cumprir-se- a exigncia de que a histria dentro de um EstadoDemocrtico deve fomentar a ao democrtica ." uma histriaaplicvel, engajada, com a ajuda da qual se possa intervir nas disputaspolticas e sociais do nosso tempo."

    No por acaso, so militantes que elegem estes temas.Feministas freqi.ientemente estudam relaes de gnero, o racismo,minorias tnicas, as culturas pr-colombianas ou o Imperialismo, oshomossexuais, a discriminao.

    Sem entrar no mrito destas produes, tampouco as diferenastericas que possuem entre si , gostaria de comentar apenas um dosautores que inspiraram boa parte destes estudos no Brasil, e justificotal escolha to somente por ser este, dentre tantos, um pensador queconheo um pouco mais de perto, bem como pela importncia desuas reflexes para muitos dos colegas de minha gerao: a obra deMichel Foucault.

  • Os estudos histricos realizados sob a inspirao de MichelFoucault no Brasil datam da dcada de 80, se no do final da dcadade 70. E um dos primeiros trabalhos histricos, recordo-meperfeitamente, falava dos suplcios das prises no sculo XIX-XX noBrasil, um tema bastante sugestivo para um pas que ensaiava asuperao de um regime autoritrio que se valeu da tortura e doterror. Logo depois, surgiram pesquisas sobre outras instituiesdisciplinares, como o prprio estado, os hospcios e as fbricas 3 Uno processo de abertura poltica ou de transio para a democracia),desvendando a normalizao do tempo e do espao como uma prticade diversas instituies do estado liberal.

    Mas sobretJido Microfsica do poder que parece terinfluenciado com maior intensidade a historiografia que eucompreendo como ps-moderna.

    Na dcada de 90, proliferam-se estudos sobre os excludos -segmentos sociais de um pas pluricultural, colonizado por uma eliteque no promoveu, durante toda a repblica, a incluso da maioria dasociedade no universo da cidadania. Estes subgrupos so tratadosento como excludos, como vitimados e oprimidos pelo poder.

    Coincide com estas opes temticas, se no estou forandodemais minha leitura, o surgimento de novos movimentos sociais noBrasil; punks, negros, darks, feministas, neo-pentecostais, sem-terra,sem-teto, de ajuda mtua ( como a campanha contra a fome e amisria, do Coordenador de uma ONG Herbert de Souza), mastambm movimentos separatistas, neonazistas, nacionalistas e gruposde extermnio, sem falar da multiplicao de comportamentosdesviantes, como os traficantes de drogas, os arrastes (como sodenominados os assaltos planejados por grupos marginais), aproliferao de vendedores ambulantes, de meninos de rua.

    O que dizer de uma parte desta produo, que a meu ver,estetiza a misria ou o setor informal da economia como sendo gruposde resistncia ao sistema capitalista e modernidade?

    Sob a inspirao de alguns estudos de Foucault, pretende-se,conforme afirma Habermas acabar com uma historiografia global aqual concebe a histria como uma macro-conscincia. (...) pretende-

    se uma histria no singular (que) tem de voltar a ser dissolvida ( ...num pluralismo de ilhas discursivas que emergem sem regra parvoltarem a submergir. 4 Uma histria que revela a descontinuidaddo tempo e a disperso dos poderes.

    Como em Foucault, preocupa-se com a tecnologia do podeInica regularidade que se evidencia na vontade de saber modernamais precisamente, no de um nico poder, mas de poderes diludoem todo o organismo social, no inseridos dentro de uma hierarquipiramidal e sim numa rede interconectada e inextricvel.

    O homem neste discurso histrico , na maior parte das veze:submetido recorrentemente a manifestaes insidiosas de poder,seu resultado, seu produto. O homem , enfim, fabricado pelo podeSeja o poder manifesto em prticas ou em discursos (estes ltimo:sempre mistificadores). E mesmo quando este homem logra qualqUtresistncia, no o opera no espao de um determinado contra-podealinhado portanto ao circuito de onde o poder emana - opera-o silde fora, no espao da transgresso, no universo dos saberealternativos, o que provoca ainda mais a disperso. No poucas vezea oposio extra-parlamentar, movimentos outsider e at mesmaqueles pautados na linguagem da violncia so compreendidos correstratgias quase que necessrias face a um poder que imobili2qualquer oposio.

    Mas no tanto como em Foucault, nestes estudos o homemrepresentado como um objeto do poder, moldado segundo vontadeque lhe so exteriores, incapaz, aos olhos desta historiografia, d I1criar resistncias. 1t

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    IObserva-se ainda at um certo otimismo com as identidade

    particulares em detrimento dos sujeitos universais, estes entendid