1º Cap - Escola e Trajetórias Individuais de Leitura - Juvenal
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Escola e trajetórias individuais de leitura
Juvenal Zanchetta Júnior
UNESP – FCL Assis
RESUMO: Objetiva-se, neste capítulo, apresentar reflexões acerca da formação do
leitor no Brasil. Para tanto, o texto convoca seu leitor a refletir sobre os conceitos de
leitura, educação e alfabetização.
PALAVRAS-CHAVE: Formação do leitor; Leitura literária; Educação.
Este texto aborda, de maneira introdutória, aspectos da formação de leitores no
Brasil. A intenção é mostrar a cultura escolar como fator decisivo no quadro da leitura
literária entre crianças e jovens. Leitura é entendida aqui não apenas como exercício de
decodificação de signos (neste caso, signos da linguagem escrita), mas principalmente
como processo de atribuição de sentidos a tais signos, com base na experiência
individual do sujeito: o domínio sobre a linguagem escrita, a educação escolar, as
crenças, o convívio com variedade de textos e lembrança de outros textos lidos, a classe
social, os grupos de pertencimento, a influência de terceiros, o lugar onde o texto é lido,
e assim por diante. Os sentidos atribuídos a um determinado texto, portanto, não são
estáticos, mas podem se modificar na medida em que o sujeito amplia sua experiência
de vida.
Mesmo em boa parte individuais os trajetos de formação de leitores também
passam por lugares comuns, o que permite mapear parte desse percurso e explicar, até
certo ponto, as razões pelas quais a leitura de textos literários, para a maioria dos
brasileiros, se perdeu pelo caminho ou simplesmente não aconteceu. Para se ter ideia do
tamanho do problema, basta recuperar informações obtidas a partir da edição mais
recente do Indicador de Alfabetismo Funcional (INAF)1. Apenas 25% dos brasileiros
1 Pesquisa realizada desde 2001 pelo Instituto Paulo Montenegro, cujo objetivo é mensurar o nível de
alfabetismo entre brasileiros de 15 a 64 anos.
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são considerados plenamente alfabetizados, isto é, capazes de ler textos mais longos,
relacionar suas partes, comparar e interpretar informações, distinguir fato de opinião,
realizar inferências e síntese (INAF, 2009). Tais características sugerem que apenas um
quarto dos brasileiros apresenta condições para ler um romance ou mesmo uma poesia
mais elaborada.
Esse dado surpreende, pois a leitura é uma ferramenta indispensável à vida em
sociedade, uma vez que dela dependem tarefas elementares da vida cotidiana, como
pegar um ônibus, fazer compras, procurar uma rua na cidade, preparar alimentos,
telefonar em uma cabine pública, utilizar um determinado produto ou serviço.
Entretanto, em âmbito escolar, muitas vezes, ela é vista como enfadonha e sem relação
com a realidade. Os alunos não a aceitam como um instrumento de enriquecimento
pessoal capaz de propiciar o trabalho autônomo. Tanto a leitura solitária, como as
práticas documentais, enquanto instrumento que favorece a interação nas situações reais
de vida em sociedade, ou ainda enquanto um objeto de degustação e prazer
incomparável, pela manejabilidade e pela presença constante dos objetos em que ela se
faz presente, pela diversidade dos modos de acesso a ela e pela extrema economia de
sua utilização, são rejeitadas pelos educandos. Mesmo porque há, em sala de aula,
ausência de leitura do outro que, justamente, favorece a interação, ao término de
rivalidades entre os sujeitos e de atitudes desrespeitosas com relação ao próximo, e ao
professor.
O percentual de brasileiros plenamente alfabetizados permanece o mesmo desde
2001, ano em que a pesquisa INAF teve início. E o fato de se mostrarem “aptos” à
leitura literária não quer dizer que os plenamente alfabetizados são leitores de textos
literários. Os indivíduos com nível universitário são maioria nesse grupo e grande parte
dos cursos superiores no Brasil ignora solenemente a Literatura Brasileira. Isso acontece
até mesmo nos cursos de Letras.
Cerca de 50% dos brasileiros são considerados alfabetizados funcionais: “lêem
e compreendem textos de média extensão, localizam informações mesmo que seja
necessário realizar pequenas inferências” (INAF, 2009). Essa característica, em tese,
permite ao leitor o domínio sobre textos informativos de média complexidade,
habilitando-o também à leitura de textos literários simples, lineares e mais curtos (uma
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crônica ou um conto, por exemplo, no terreno da literatura). Os demais brasileiros
dominam apenas textos elementares (21%) ou, ainda, se mostram em estágio de
analfabetismo (7%).
O percentual de brasileiros que apresenta alfabetização básica (alfabetizados
funcionalmente) está crescendo de forma gradativa (em 2001, eram 34%), no entanto,
os números sugerem terreno ainda limitado para o florescimento da leitura literária no
país, sobretudo para a literatura de maior valor estético. Como chegamos a um cenário
como esse (em termos de leitura literária), num país em que o Ensino Fundamental de
oito anos é obrigatório desde 1971, levando em conta o fato de que a história da escola
brasileira sempre privilegiou os textos literários (haja vista o fato de serem cobrados até
hoje nos principais exames vestibulares)? Boa parte da explicação para esse quadro está
na própria escola ou na falta dela.
A escola de modelo generalista perdurou no país até o final dos anos 1960 – e a
influência desse modelo alcançou os anos 1980. Atenta às questões universais ou à
preocupação de levar adiante aspectos da cultural universal, a escola trazia a literatura
como referência mais elaborada da cultura de uma sociedade. Os textos literários eram
tomados não apenas como bastião da linguagem requintada – a ser imitada pelos jovens
–, mas também como portadores de modelos de virtude, de comportamento, de
patriotismo esmerado. Embora selecionados por uma elite intelectual e, em geral,
ajustados para finalidades pedagógicas, as obras clássicas da literatura eram decisivas na
trajetória escolar dos alunos. Histórias em quadrinhos, jornais, revistas, entre outros
suportes informativos raramente apareciam nas salas de aula, pois seus conteúdos eram
considerados fúteis e efêmeros demais para a obra formadora.
Embora centenário, esse perfil de escola foi deixado de lado a partir dos anos
1970. Considerada elitista, em meio à crescente necessidade de mão-de-obra qualificada
para a indústria e para o desenvolvimento urbano, a escola generalista deu lugar a uma
proposta mais utilitária. As orientações pedagógicas passaram a privilegiar objetos de
leitura inseridos no cotidiano imediato das pessoas. A literatura de prestígio deu lugar a
narrativas curtas, menos complexas, marcadas pela linearidade da ação e por temas
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juvenis2, pela linguagem direta e menos polissêmica (a poesia foi o gênero mais
prejudicado). Significativo documento oficial da década de 1970 indicava a mudança de
ênfase: “[o aluno deve] desenvolver a habilidade de comunicar-se mais ampla e mais
eficazmente nas diferentes situações de discurso: troca de informação; manifestação de
emoções; manifestações volitivas, etc.” (SEE-SP, 1975, p.3). Deixava-se para trás a
tradição universalista, para se responder às necessidades imediatas dos indivíduos na
sociedade.
Por que razão a escola generalista não foi capaz de assentar uma cultura da
literatura na sociedade brasileira? Um dos principais motivos foi o seu caráter
excessivamente seletivo. Reservada para os filhos das elites urbanas, mesmo sendo
obrigatória3, essa escola excluía a maior parte das crianças e jovens, por meio da
repetência ou pela falta de vagas. Mesmo em estados com maior tradição escolar, como
São Paulo, até a década de 1960, pouco mais da metade das crianças estava na escola.
Menos de 20% dos jovens concluía o então “segundo grau” (hoje, Ensino Médio). Os
números eram bem mais modestos em diversos outros estados: Alagoas e Piauí, por
exemplo, ainda enfrentam, nos anos 2000, taxas de analfabetismo na casa de 30%,
segundo o IBGE4.
O que se viu a partir dos anos 1970 foi a expansão crescente do número de vagas
nas escolas, a ponto de, nos dias de hoje, o atendimento, no Ensino Fundamental,
alcançar mais de 90% das crianças e jovens, e no Ensino Médio, mais de 50% dos
jovens (em boa parte dos estados brasileiros). Mesmo lento esse crescimento não foi
acompanhado de uma sólida e contínua política educacional, dando conta de fatores
importantes, como os seguintes (para citar apenas alguns entre aqueles que se
relacionam mais de perto com a leitura e, sobretudo, com a leitura literária):
2 A Série Vaga-Lume (Editora Ática), com cerca de uma centena de títulos publicados, é emblemática
dessa perspectiva. Mesmo em meio à rápida evolução tecnológica, que propiciou grande diversidade da
produção midiática, essa coleção (lançada em 1972) tornou-se – para várias gerações, a única referência
de leitura escolar e sobrevive até os dias de hoje. 3 Até 1971, a escolaridade obrigatória eram os quatro primeiros anos (o chamado “ensino primário”);
depois de 1971, com a lei 5.692/71, os oito primeiros anos (o então chamado “primeiro grau”) passaram a
ser obrigatórios. 4 Disponível em:
<http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=774>.
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a) A formação de professores para essa nova escola ocorreu de maneira
bastante lacunar. Apenas na década de 2000, os estados se mobilizam
sistematicamente para a exigência de nível superior aos candidatos ao
magistério, numa tarefa não concluída em termos nacionais. Grande parte dos
cursos de formação é privada; muitos cursos historicamente mostraram-se de
qualidade duvidosa, passando a ser avaliados somente a partir do final dos
anos 1990 (primeiramente com o Exame Nacional de Cursos, o “provão”, e
mais tarde com o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior –
Sinaes).
b) A preparação dos professores para a leitura literária não tem um estatuto
próprio. Nos cursos de Pedagogia (preparatórios para o magistério nas
primeiras séries), essa formação se dá de maneira incidental. Nos cursos de
Letras (preparatórios para o magistério nas últimas séries do Ensino
Fundamental e no Ensino Médio), o ensino de literatura ainda é um grande
desafio. Mesmo disciplinas específicas, como aquelas ligadas à literatura
infantil e juvenil, são tratadas com reserva dentro da própria universidade.
Basta lembrar que conteúdos relacionados ao ensino de literatura ou sobre a
produção literária para crianças e jovens não eram cobrados no “provão”, e
também não são avaliados no Exame Nacional de Desempenho de Estudantes
(Enade), que faz parte do Sinaes.
c) Essa preparação lacunar em termos de ensino de literatura mostra-se
ainda mais diluída quando se observa que boa parte dos professores formada
nas últimas três décadas é a primeira ou a segunda geração de suas famílias a
alcançar o nível superior, algo que, em muitos casos, significa o contato
limitado dessas famílias com a cultura letrada – e, portanto, com o livro.
d) O quadro agrava-se, ainda, devido ao fato de que as bibliotecas escolares,
quando existentes, com raras exceções se mostram limitadas em termos de
obras literárias. Para gerações inteiras de alunos – e professores – o único livro
disponível foi, durante décadas, o livro didático. Apenas em anos recentes,
desenvolvem-se programas sistemáticos de equipamento das escolas com
textos literários.
e) Finalmente, é preciso salientar que o traço funcionalista da escola
contemporânea dificulta sensivelmente o trabalho com a literatura. A opção
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por textos curtos, tratados em seus aspectos estruturais (como as questões
relacionadas ao gênero, por exemplo), torna os textos literários bastante
deslocados. Nos Parâmetros Curriculares Nacionais (Ensino Médio), a
literatura é tratada como um código entre vários outros. A difícil redução de
suas características aos limites de gênero (à moda do que se faz com gêneros
como o ofício, o requerimento, a bula de remédio etc.) afasta ainda mais as
obras literárias, incluindo-se a poesia, das salas de aula.
Atualmente, a preparação dos professores ocorre, ainda, de maneira
fragmentada, incidental e principalmente “escolarizada”: os docentes, em boa parte, têm
contato com os livros apenas na escola e reproduzem práticas isoladas, aprendidas
circunstancialmente, na condição de alunos (da escola básica ou de cursos preparatórios
para o magistério) ou na experiência de sala de aula. Tais práticas, por seu turno, se
desenvolvem em meio a gerações de alunos também distantes dos livros, em razão da
falta de cultura letrada nas famílias; da opressiva cultura midiática calcada na imagem e
no som; da cultura utilitária que perpassa o mundo capitalista – exigente de finalidade
concreta e imediata às ações e objetos culturais. Tem-se, como consequência, um
conjunto de características bastante comuns ao contato das crianças e dos jovens com os
livros, que interferem diretamente na trajetória de leitura dos estudantes:
a) A sacralização das obras literárias: professores tomam os livros,
principalmente os clássicos, como objetos solenes e pouco acessíveis à leitura
individual. Para os alunos, as obras literárias apresentam sentidos “prontos”,
encontrados em resumos e comentários produzidos por especialistas: cabe aos
estudantes reproduzir essas opiniões, perfazendo uma vivência, quando muito,
“terceirizada” com os livros. Desse modo, O ensino de literatura que muitos
alunos de Ensino Médio conhecem, tanto da rede pública quanto da privada, é
voltado para a memorização de datas, de características de cada movimento
literário e de nomes de autores considerados mais expressivos dentro de cada
movimento. Quando se apresenta um texto por escrito, para análise em sala,
este geralmente é desconhecido dos alunos e desvinculado de sua realidade.
Por sua vez, os alunos do Ensino Fundamental concebem a leitura como algo
que “serve” para instruir, aumentar o vocabulário, escrever melhor, fazer
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exercício, preencher lacunas, testar a memória e passar a “moral”. Logo, a
leitura é concebida como meio para aprendizagem de certas habilidades, como
reforço da função da escola de ensinar a ler, escrever, contar e transmitir
valores.
b) As fichas de leitura como modo de ler: prática já tradicional na escola,
em que os estudantes buscam dados específicos nas obras literárias,
transformando os livros em baú de informações pontuais. A leitura torna-se
uma experiência estéril, mas existe a sensação de que o livro está sendo lido,
de que o dever foi cumprido pelo aluno. Cabe ao professor apenas corrigir as
respostas dos estudantes.
c) A verbalização como leitura: outro modo muito comum de verificação de
leitura é a prática da leitura em voz alta. O professor, sobretudo nas primeiras
séries, solicita que o estudante verbalize o conteúdo da obra lida. Com isso,
existe a sensação de que o aluno, efetivamente, “passou pelo conteúdo do
livro”.
d) A teatralização como leitura: o livro ou a poesia passa a ser encenada,
exposta sob a forma de jogral, desenhada, escrita sob outro gênero textual. O
texto literário serve como pretexto para outras atividades, consideradas mais
atraentes do que o texto literário em si. Uma variante dessa prática é a
assistência a filmes que reportam os livros, como forma de atrair o leitor para
o texto escrito ou mesmo para substituí-lo.
e) O texto curto como referência de leitura: limita-se a leitura literária a
textos curtos, em geral, crônicas ou poesias com sentido direto e aparente: sob
o pretexto da falta de obras e da falta de tempo para a leitura, opta-se por
excertos e por textos presentes em livros didáticos, que oferecem pouca
dificuldade de entendimento ao professor e aos alunos.
f) A leitura como responsabilidade apenas do aluno: são comuns os casos
de professores que disponibilizam tempo para os alunos irem até a biblioteca,
para lerem ou para retirarem textos para leitura pessoal. O professor não
interfere nas escolhas do aluno: uma revista informativa, uma história em
quadrinhos ou um livro de ciências, todos eles, na visão do professor, entram
na categoria “literatura”.
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g) A literatura atraente são os livros de ação e policiais: professores e alunos
tendem a partilhar a ideia de que os textos atraentes são, apenas, aqueles que
encadeiam ações, tensão, mistério e um clímax bem delimitado. É comum o
pensamento de que esses livros interessam mais aos homens, enquanto as
mulheres preferem histórias de amor. Quanto mais próximas da realidade,
maior a aceitação das histórias: literatura passa a ser sinônimo de “vida real”,
em geral com soluções também altamente previsíveis.
h) Os livros a serem lidos devem ser velhos: é comum nas bibliotecas
escolares (quando elas existem!) a prática de guardar a sete chaves os livros
novos, deixando à disposição do aluno apenas livros mais antigos, surrados.
Práticas próximas àquela são as de impedir o aluno de levar livros para casa
ou, então, autorizar apenas a saída de livros mais velhos, já gastos.
i) A leitura em sala de aula representa trabalho com o texto escrito, mais
especificamente, com exercícios de gramática. Perde-se, neste caso, conforme
Elizabeth D’Angelo Serra (1998, p.8), a oportunidade de o contato com a
língua ser provocador, crítico, original e prazeroso, potencial que a literatura,
como arte, oferece. A abordagem do texto escrito, enquanto um debruçar sobre
o objeto de análise como um fim em si mesmo, desconsidera o sujeito-leitor, o
aluno como pessoa, com sua afetividade, suas percepções, sua expressão, seus
sentimentos, sua crítica, sua criatividade.
j) “Ah, esses alunos não têm sensibilidade para a literatura! Suas famílias
são tão desestruturadas e distantes dos livros que tentar fazê-los ler é perda de
tempo!” Trata-se da ideia da carência cultural, presente no Brasil desde há
muito, sobretudo, quando o assunto são as crianças e jovens provenientes das
faixas menos favorecidas da população.
Podemos elencar outras atitudes, mas os exemplos citados são suficientes para
sugerir práticas que denotam a dificuldade, quando não o medo, de se lidar com textos
literários na sala de aula. Talvez, não seja por acaso que muitos estudantes, com
experiência de vida permeada por situações favoráveis ao contato com os livros,
tornem-se leitores à revelia da escola – que, não raramente, se mostra indiferente a essa
bagagem extracurricular.
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Embora não seja possível afirmar que todas as escolas tenham dificuldade para
lidar com a literatura, não é arriscado dizer que quando existe esse trabalho, ele se deve
mais à iniciativa individual de professores leitores do que de um projeto pedagógico das
escolas. Mas o que fazer, sendo a escola o único espaço em que gerações inteiras podem
ter contato com os textos literários?
Essa reflexão justifica-se, pois a organização do meio escolar desempenha um
papel determinante para o aprendizado da leitura enquanto poder que ele propicia ao
aluno, tanto pelo domínio do funcionamento dos grupos de que ele participa, quanto
pela condução de seu próprio processo de aprendizagem (FOUCAMBERT, 1997,
p.136).
Como ocupar com literatura o sagrado e generoso espaço da ficção e da poesia
com o qual todos os indivíduos contam e que hoje é dedicado quase integralmente a
telenovelas, filmes e séries televisivas, canções populares e aos próprios pares?
Alguns fatores podem ser desde já enumerados, para reflexão inicial, quanto ao
perfil dos mediadores de leitura que precisam:
1. ter disposição e curiosidade para ler textos literários. Não é possível
incentivar a leitura sem o vivo interesse pela leitura de obras literárias, que
abordem temas diversos. O mediador é alguém que domina certo repertório de
textos, suficiente para oferecer alternativas ao leitor iniciante, cujo gosto,
quase que invariavelmente, está nas histórias “reais”, na ação e no melodrama.
O tempo despendido com a leitura de livros é um tempo ganho e não um
tempo gasto;
2. deter certo domínio técnico acerca da literatura. Para tanto, faz-se
necessário conhecer certos procedimentos estéticos, a fim de se observar a
obra literária não apenas como história, mas também como construção de
linguagem artística, original. Reconhecer a estrutura de um texto significa, de
algum modo, antecipar-se aos jovens leitores, provocá-los em relação ao todo
e aos detalhes da obra;
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3. fomentar a inclusão da leitura literária no projeto pedagógico das escolas,
tornando a leitura uma proposta política permanente de ação. Além disso,
devem conhecer os espaços mediadores de leitura disponíveis fora da escola, a
fim de incentivar os estudantes a frequentá-los. É preciso, então, não apenas
disposição, mas também livros, espaços para a leitura, tempo para a leitura,
mecanismos para a aquisição e circulação de textos;
4. insistir em ações que desvelem a perspectiva de consumo tão inerente aos
tempos de hoje. Um jovem urbano chega a carregar (ou querer carregar) para a
escola, cotidianamente, cerca de R$ 500,00 ou ainda mais (seus tênis custam
cerca de R$ 200,00; as calças, talvez R$ 200,00; um aparelho celular custa
outros R$ 300,00; etc.). Vencidos os símbolos do consumo (algo que inclui
ainda outros equipamentos eletrônicos, bem como as músicas populares, os
astros e estrelas da moda etc.), há espaço para o trabalho com outros símbolos,
de caráter estético;
5. investir em ações que desarticulem o “espírito de corpo” dos diversos
grupos ou do grupo maior de alunos. Tal “espírito” falseia personalidades,
fazendo com que os alunos assumam para si papéis estabelecidos pelo grupo, e
amplia a resistência a qualquer diálogo que se proponha coletivo ou individual.
A comunicação só acontece por meio de palavras de ordem, por parte dos
professores e também por parte dos alunos;
6. incentivar a polifonia e a diversidade: a leitura é um gesto ativo e
indisciplinado (e não passivo e solene). Textos literários têm vida e são
barulhentos. Silenciá-los significa querer fazer passar o tempo e não permitir
que os textos falem. A troca de impressões, as diferenças de posições, as
relações estabelecidas com textos não literários são formas de consolidar um
território de leitura.
7. considerar o texto literário como indispensável, principalmente se vivido
como instrumento de libertação, Justamente, por isso, cativar seu público para
a sua leitura, pois esta propicia uma vivência interativa, na qual se toma
consciência do próprio “eu” e do outro. Enfim, assegurar que a leitura
represente de fato a posse de um saber, por meio do qual o leitor pode exercer
seu papel de cidadão, sendo capaz de se posicionar de modo crítico;
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8. partir de uma concepção democrática de que todos têm direito à literatura
e à arte, pois esta faculta atingir a humanização, ou seja, ativar, segundo
Antonio Candido:
[...] o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos
essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa
disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de
penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da
complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. (1995, p.249)
Para Cyana Leahy-Dios (2000, p.27), um dos benefícios potenciais da literatura
é a ampliação do sentido das múltiplas possibilidades de vida no leitor. Ela lhe dá uma
chance de “viver” dilemas morais. Por meio do contato com o texto literário, os sujeitos
ampliam a sua visão de mundo, veem a realidade sob novos prismas, refazem o “real”.
Isto ocorre porque, segundo Diana Pessoa de Barros (1999, p.7), os discursos literários,
por serem dotados de ambivalência intertextual interna e proporcionarem a
multiplicidade de vozes e de leituras, permitem a substituição da verdade “universal”,
única, pelo diálogo de “verdades textuais”, contextuais e históricas. Assim, os leitores
reconsideram, por meio do diálogo com textos diversos de diferentes autores, a
“verdade única” que possuem, ou melhor, que lhes transmitiram.
Enfim, num país em que a leitura literária ainda é tímida, a escola continua
sendo um dos lugares fundamentais para o florescimento ou para o achatamento da
cultura literária. Pensar ou repensar os próprios textos literários e as práticas escolares e
extra-escolares ligadas a essa área são condições iniciais para a tarefa de formação de
leitores.
Ao longo deste Curso, esperamos alinhavar atividades decisivas para promover
a revisão do senso comum sobre a literatura, para romper com os preconceitos e com as
resistências em relação aos livros de poesia e de ficção. As atividades a serem
desenvolvidas oferecem instrumentos concretos para o trabalho de mediação, mas
observam, primeiramente, a condição do mediador como leitor de textos literários.
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Referências bibliográficas
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intertextualidade: em torno de Bakthin. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 1999.
CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: ______. Vários escritos. 3.ed. rev. e
ampl. São Paulo: Duas Cidades, 1995, p.235-63.
FOUCAMBERT, Jean. A criança, o professor e a leitura. Trad. Marleine Cohen;
Carlos Mendes Rosa. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.
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<http://www.ipm.org.br/download/inaf_brasil2009_relatorio_divulgacao_final.pdf>.
Acesso em: 07 dez. 2009.
LEAHY-DIOS, Cyana. Educação literária como metáfora social: desvios e rumos.
Niterói: EdUFF, 2000.
SEE-SP – SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO DE SÃO PAULO. Guias
curriculares para o ensino de 1º grau – Língua Portuguesa. São Paulo: CERHUPE,
1975.
SERRA, Elizabeth D’Angelo (org.). 30 anos de literatura para crianças e jovens:
algumas leituras. Campinas, SP: Mercado de Letras: Associação de Leitura do Brasil,
1998.