1.Permitir ou proibir o uso do boné na escola? · retido na diretoria. No dia seguinte veio usando...

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1 Reflexões acerca do poder disciplinar em Foucault e a educação escolar. 1 Alencar Luiz Zanon 2 RESUMO Este artigo busca explicar sinteticamente o que é o poder disciplinar conforme os estudos de Michel Foucault; faz aproximações iniciais sobre em que medida e sentidos o poder disciplinar ainda se faz presente na escola atual, como provocação para mudança de encaminhamentos na gestão escolar. Palavras-chave: Poder disciplinar. (In)disciplina escolar. Estudo foucaultiano. 1.Permitir ou proibir o uso do boné na escola? Os cursistas discutiam a proibição ou a permissão do uso do boné por alunos na escola. Em algumas escolas seu uso estava proibido. As justificativas para a proibição levavam em conta as algazarras e os desentendimentos: os alunos tiram o boné do colega, ficam jogando um para o outro (fazendo o dono de “bobinho”) e depois escondem-no; muitas ______________________ 1 Este artigo foi produzido no contexto da pesquisa, de cunho bibliográfico, que venho produzindo a partir do Programa de Desenvolvimento Educacional (PDE), programa de formação continuada dos professores da rede estadual de ensino do Estado do Paraná, desde o mês de abril de 2007, sob a orientação da Professora Doutora Ana Lúcia da Silva Ratto, vinculada ao setor de Educação da UFPr (Universidade Federal do Paraná). Trata-se de apresentar uma primeira versão de exposição deste trabalho em forma de artigo. 2 Professor licenciado em Filosofia e em Letras, com Especialização em Magistério para o Ensino Fundamental e Médio, atuando há 23 anos no Ensino Fundamental como professor regente e secretário escolar nas redes Estadual de Educação do Paraná e Municipal de Ensino de Curitiba .

Transcript of 1.Permitir ou proibir o uso do boné na escola? · retido na diretoria. No dia seguinte veio usando...

1

Reflexões acerca do poder disciplinar em Foucault e a educação escolar.1

Alencar Luiz Zanon2

RESUMO

Este artigo busca explicar sinteticamente o que é o poder disciplinar

conforme os estudos de Michel Foucault; faz aproximações iniciais sobre

em que medida e sentidos o poder disciplinar ainda se faz presente na

escola atual, como provocação para mudança de encaminhamentos na

gestão escolar.

Palavras-chave: Poder disciplinar. (In)disciplina escolar. Estudo

foucaultiano.

1.Permitir ou proibir o uso do boné na escola?

Os cursistas discutiam a proibição ou a permissão do uso do boné

por alunos na escola. Em algumas escolas seu uso estava proibido. As

justificativas para a proibição levavam em conta as algazarras e os

desentendimentos: os alunos tiram o boné do colega, ficam jogando um

para o outro (fazendo o dono de “bobinho”) e depois escondem-no; muitas

______________________

1 Este artigo foi produzido no contexto da pesquisa, de cunho bibliográfico, que venho produzindo a partir do Programa de Desenvolvimento Educacional (PDE), programa de formação continuada dos professores da rede estadual de ensino do Estado do Paraná, desde o mês de abril de 2007, sob a orientação da Professora Doutora Ana Lúcia da Silva Ratto, vinculada ao setor de Educação da UFPr (Universidade Federal do Paraná). Trata-se de apresentar uma primeira versão de exposição deste trabalho em forma de artigo.

2 Professor licenciado em Filosofia e em Letras, com Especialização em Magistério para o Ensino Fundamental e Médio, atuando há 23 anos no Ensino Fundamental como professor regente e secretário escolar nas redes Estadual de Educação do Paraná e Municipal de Ensino de Curitiba .

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vezes isso acaba em desavença e, mesmo, em agressão. Uma pedagoga

disse que os professores a pressionaram a proibir o uso do boné na

escola. Outra professora disse que os professores do colégio onde

trabalha acreditam ser o boné o local propício para esconderijo de objetos

ilícitos (armas, drogas, “cola”).

Outro professor relatou o caso de um aluno que teve seu boné

retido na diretoria. No dia seguinte veio usando chapéu. Interpelado

sobre a razão disso explicou que não havia nas normas da escola nada

escrito proibindo o uso de chapéu.

Houve uma escola que reviu sua posição proibitiva ao boné, depois

que um aluno disse que não se matricularia se não abrissem uma

exceção. Em virtude de uma cicatriz que possuía no couro cabeludo,

resultante de um acidente, ele fazia questão de usar o boné. A escola

rediscutiu a norma com os alunos e ficou acertado que podiam usar o

boné, mas que se o mesmo fosse causa de tumulto, ficaria retido na

escola por duas semanas. Depois disso os casos de conflito em torno

dessa peça do vestuário foram insignificantes. Noutras, quanto mais se

exige o cumprimento da norma do boné, mais os alunos resistem.

Noutras escolas, finalmente, o uso do boné é permitido, com menos

ou mais inconvenientes. Alguns dos educadores teceram considerações

sobre o caráter de expressão de identidade de grupos de jovens através

do estilo dos bonés. Um dos cursistas finalmente comentava que se

estava indo “fundo demais no boné”.

Em sua maioria pedagogos e professores da rede estadual de ensino

do Paraná, os cursistas de uma disciplina optativa oferecida pela UFPR3

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3 Disciplina e indisciplina no cotidiano escolar: um enfoque foucaultiano, ministrada pela Professora Doutora

Ana Lúcia Silva Ratto, durante o período de 31/07/2007 a 27/11/2007.

3

perceberam como uma das tantas normas da escola – referentes ao boné,

por exemplo __ pode ter diferentes encaminhamentos e ser um elemento

rico de análise e de ação pedagógica; que as normas estão diretamente

ligadas às manifestações de disciplina e indisciplina no contexto do tipo

de lógica em que se dão e são produzidas; que a disciplina e a indisciplina

estão intimamente relacionadas com toda a organização pedagógica e

administrativa da escola; e que a escola não existe no “ar”: é o resultado

da história e da cultura de uma dada sociedade.

Eu e meus colegas desse curso, trabalhadores da educação,

percebemos através das idéias de Foucault que precisamos expandir

nossa visão sobre a função da escola na sociedade; redescobrir e

questionar os papéis que a escola historicamente desempenhou e vem

desempenhando; verificar se fazemos da escola um instrumento

realmente a serviço da criticidade, autonomia e criatividade do cidadão.

Nesse processo, incumbi-me de conhecer as idéias desse pensador a fim

de compreender melhor o papel que a escola vem exercendo nestes

últimos dois séculos. Alfredo Veiga-Neto4 disse em uma entrevista: “

Foucault é um herdeiro direto de Nietzsche. Lembro aqui as famosas

perguntas nietzscheanas: que estamos fazendo de nós mesmos?, que

estão os outros fazendo de nós? Numa conferência na Universidade de

Vermont, em 1982, Foucault disse textualmente: Talvez o objetivo hoje

em dia não seja descobrir o que somos, mas recusar o que somos” (Apud

Veiga-Neto, 2006).

Adiante voltarei à questão inicial do boné: permitir ou proibir?

__________________________

4 Alfredo José da Veiga-Neto, atualmente é professor colaborador convidado aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul , professor titular da Universidade Luterana do Brasil e um estudioso de Foucault.

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2. Michel Foucault e o poder disciplinar.

As idéias sobre o poder disciplinar em Foucault são expostas

principalmente no seu livro “Vigiar e Punir” (2007). Foucault explica

historicamente a constituição desse tipo de poder. Ele o faz mostrando as

lentas e pequenas mudanças no modo da sociedade organizar-se em seus

vários aspectos cotidianos, políticos, econômicos, dentre outros. O poder

disciplinar vai se constituindo irregularmente, no contexto europeu, em

substituição ao poder de tipo monárquico e soberano, sob os ventos novos

do Iluminismo, da Revolução Francesa e da Revolução Industrial. Essa

época contempla a constituição de novos problemas de governo e de

novas forças culturais e econômicas. O poder monárquico soberano tinha

como característica expressar-se mediante alta visibilidade. O soberano

ostentava o seu poder, mantinha a obediência de seus súditos pela

exposição suntuosa dos signos de riqueza e dos castigos aos que

desafiavam a ordem que representava. O livro Vigiar e Punir inicia

citando os suplícios pelos quais passou Damiens, acusado de parricídio.

[Damiens fora condenado, a 2 de março de 1757], a pedir perdão publicamente diante da porta principal da Igreja de Paris [aonde devia ser] levado e acompanhado numa carroça, nu, de camisola, carregando uma tocha de cera acesa de duas libras; [em seguida], na dita carroça, na praça de Grève, e sobre um patíbulo aí erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas, sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio (...) e às partes em que será atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpo consumidos pelo fogo e reduzidos a cinzas, e as suas cinzas lançadas ao vento. (apud FOUCAULT 2007, p.9).

A exposição do castigo fazia parte do estilo penal do poder do tipo

soberano: propiciar o espetáculo da pena e marcar o corpo do infrator

com cicatrizes ou com a própria morte. Mas dali a poucas décadas, novos

códigos penais começaram a instaurar um novo tipo de poder que

5

Foucault chama de poder disciplinar. Em contraposição ao poder que faz

questão de exibir sua força, o poder disciplinar busca cada vez mais se

ocultar; em vez de marcar os corpos ou eliminá-los, procura controlá-los,

adestrá-los, corrigi-los, produzi-los de certas maneiras.

O poder de tipo disciplinar expande toda uma série de técnicas e

estratégias, alastrando-se por toda a sociedade, para além dos domínios

jurídicos. A partir da Modernidade, após a Revolução Francesa, com a

constituição dos Estados Modernos, com a expansão comercial e

industrial, várias instituições fazem-se cada vez mais presentes e

atuantes nas cidades produzindo o comportamento de seus habitantes em

determinadas direções. Foucault mostra que as novas práticas de

ordenamento destas instituições são fundamentais para internalizar nos

indivíduos um certo tipo de disciplina. Estas instituições são

principalmente o quartel, o hospital (e o hospício), a fábrica e a escola.

Apesar de suas importantes diferenças, elas têm muita coisa em comum.

Num de seus escritos ele propõe uma adivinhação:

Vou propor uma adivinhação. Apresentarei um regulamento de uma instituição que realmente existiu nos anos 1840/45 na França, no começo, portanto, do período que estou analisando. Darei o regulamento sem dizer se é uma fábrica, uma prisão, um hospital psiquiátrico, um convento, uma escola, um quartel; é preciso adivinhar de que instituição se trata. Era uma instituição onde havia 400 pessoas que não eram casadas e que deviam levantar-se todas as manhãs às cinco horas; às cinco e cinqüenta deveriam terminar de fazer a toilette, a cama e ter tomado o café; às seis horas começava o trabalho obrigatório, que terminava às oito e quinze da noite, com uma hora de intervalo para o almoço; às oito e quinze, jantar, oração coletiva; o recolhimento aos dormitórios era às nove horas em ponto[...]. (FOUCAULT, 1996, p.107).

Foucault revela depois a que instituição está se referindo. No

entanto, o que importa para ele é dizer que, embora existam algumas

diferenças, muitos elementos comuns circulam entre essas instituições,

convergindo na produção de um certo tipo de sujeito: aquele do corpo

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“dócil e útil” (Foucault, 2007, p.141). O corpo será objeto dos novos

investimentos da sociedade:

Não se trata de cuidar do corpo em massa, grosso modo, como se fosse uma unidade indissociável mas de trabalhá-lo detalhadamente; de exercer sobre ele uma coerção sem folga, de mantê-lo ao nível mesmo da mecânica - movimentos, gestos, atitudes, rapidez: poder infinitesimal sobre o corpo ativo (...) A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). (FOUCAULT, 2007, p.118-119).

Este tipo de poder disciplinar é distinto do poder na escravidão,

onde o senhor é o dono do corpo do escravo; do poder na vassalidade,

uma submissão marcada por rituais sobre o corpo e resultados de

trabalho; e do poder nos medievos monastérios marcado pelas renúncias

do corpo. São novas técnicas detalhadas, minuciosas, comuns às

instituições que visam a máxima utilidade e docilidade possível do corpo.

Foucault nomeia essas técnicas a partir das funções que tendem a

desempenhar como “a arte das distribuições”, “o controle da atividade”,

“a organização das gêneses”, “a composição das forças” (Focault, 2007,

p. 121-142).

A “arte das distribuições” diz respeito à nova preocupação com a

organização espacial: a distribuição dos corpos no espaço. Os indivíduos

devem ser imediatamente localizáveis: “cada indivíduo no seu lugar; e em

cada um lugar, um indivíduo.” (Foucault, 2007, p. 123)

O espaço é “quadriculado” de forma que não existam grupos

confusos: nesse espaço organizado sabe-se bem o lugar de cada um,

assim como suas estritas regras de circulação. A questão é diminuir ao

máximo os espaços obscuros, desconhecidos, onde alguém possa

esconder-se para desertar ou vadiar. Trata-se de organizar o espaço

múltiplo e desconhecido impondo-lhe um tipo de ordem detalhista e

minuciosa.

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O “controle da atividade” consiste nas técnicas de organizar o

tempo, o horário dos indivíduos, o ritmo do corpo, a qualidade da

utilização desse tempo. Caracterizam-se essas técnicas pelo cultivo de

uma rígida pontualidade e um controle extensivo e homogeneizante sobre

os usos do tempo: cada minuto é precioso e deve ser bem empregado.

Para isso as habilidades do corpo do soldado, do operário, do aluno, são

importantes: para extrair do tempo sempre forças mais úteis.

A “organização das gêneses” trata das técnicas de organizar

estágios de aprendizado com programas organizados por graus de

dificuldade crescente. Elas permitem o controle detalhado do

treinamento dos indivíduos, o encadeamento das atividades e os pontos

em que é necessária uma intervenção para, ao final do processo, obter

extrema aptidão desses mesmos indivíduos, conforme as especificidades

das tarefas típicas de cada instituição.

A “composição de forças” são técnicas para extrair resultados não

só dos corpos individuais: esses mesmos corpos, de acordo com suas

habilidades, devem compor com outros a fim de que o conjunto ganhe

força produtiva.

Foucault resume assim essas técnicas:

Em resumo, pode-se dizer que a disciplina produz, a partir dos corpos que controla, quatro tipos de individualidade, ou antes uma individualidade dotada de quatro características: é celular (pelo jogo da repartição espacial), é orgânica (pela codificação de atividades), é genética (pela acumulação do tempo), é combinatória (pela composição de forças). E, para tanto, utiliza quatro grandes técnicas: constrói quadros; prescreve manobras; impõe exercícios; enfim, para realizar a combinação das forças, organiza táticas. (FOUCAULT, 2007, p.141).

Foucault ainda acrescenta três instrumentos para o sucesso do

poder disciplinar: a “vigilância hierárquica”, a “sanção normalizadora” e

o “exame” ( Foucault, 2007, p.143-161).

A “vigilância hierárquica” trata da “máquina de vigiar”: todos olham

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a todos; todos vigiam a todos; todos controlam a todos. Forma-se uma

rede com o mínimo possível de lacunas, integrada, de alto a baixo e de

baixo a alto. Em qualquer ponto da rede, o indivíduo sabe que deve vigiar

e que, ao mesmo tempo, é vigiado. Mesmo que na organização jurídica e

política da sociedade haja um chefe, é o aparelho inteiro que produz essa

vigilância extensiva, que institui aqueles que são encarregados de

controlar. O sonho político, no contexto desse tipo de lógica de poder, é o

de que cada indivíduo internalize esse olhar vigilante dentro de si,

tornando-se seu próprio vigia.

A “sanção normalizadora” trata de punir não tanto como expiação e

nem mesmo como pura repressão, mas principalmente como correção.

Estabelece-se o que é o normal em cada situação. Os indivíduos sentem-

se induzidos a serem normais: são encorajados a não se desviar, a

enquadrar-se. Há nas instituições “pequenos tribunais” encarregados de

fazer valer “o normal”:

Nestas instituições não apenas se dão ordens, se tomam decisões, não somente se garantem funções como a produção, a aprendizagem, etc., mas também se tem o direito punir e recompensar, se tem o poder de fazer comparecer diante de instâncias de julgamento. Este micro-poder que funciona no interior destas instituições é ao mesmo tempo um poder judiciário. O fato é surpreendente, por exemplo, no caso das prisões, para onde os indivíduos são enviados porque foram julgados por um tribunal, mas onde sua existência é colocada sob a observação de uma espécie de micro-tribunal, de pequeno tribunal permanente, constituído pelos guardiões e pelo diretor da prisão, que de manhã à noite vai puni-los segundo seu comportamento. (FOUCAULT, 1996, p.111).

O “exame” é o instrumento que usa rituais de observação, registro

escrito, testes, provas, relatórios, entrevistas, processos. Uma das

principais características desses exames é classificar e definir quem é ou

deve ser o indivíduo. Nas instituições desenvolvem-se e criam-se

documentos de registro escrito da vida dos indivíduos: um “poder de

escrita”. Cada indivíduo descrito nesses exames e considerado um “caso”.

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Não se trata de fazer a crônica da vida de uma pessoa para sua

“heroificação”, mas para sujeitá-la, para usar dessas informações quando

necessário for normalizá-la.

Foucault conclui a terceira parte de seu livro ‘Vigiar e punir” com o

modelo arquitetônico do poder disciplinar: o panoptismo. Em seus

estudos descobriu o “Panóptico” (pan = tudo; óptico = visão) de

Bentham5.

O princípio é conhecido: na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; ela tem duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar. (FOUCAULT, 2007, p.165-166).

Na prisão, no hospício, no hospital, na fábrica, na escola, em toda a

sociedade: todos sabem que são vigiados. Mesmo se, por vezes, não há

ninguém na “torre central”, você não sabe e encarrega-se de vigiar a si

mesmo. Essa forma de poder disciplinar é econômica: não precisa investir

em mecanismos explícitos de repressão, seu efeito é produtivo; penetra

em toda a sociedade, é discreto, estende seu poder em todas as

instâncias, faz crescer a docilidade e a utilidade de todos os elementos do

sistema.

Existe um ordenamento político e jurídico macro-social de poder,

mas este, segundo Foucault, não se sustentaria se não houvesse relações

microfísicas cotidianas de poder disciplinar.

_____________________

5 Jeremy Bentham, filósofo e jurista inglês (1748-1832)

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3. O poder disciplinar analisado por Foucault e a escola.

Após as considerações anteriores é possível estabelecer relações

mais diretas com o mundo escolar, ainda que este não tenha sido objeto

de estudo específico de Foucault. Cabe considerar que historicamente a

expansão do ensino gratuito e universal deu-se nas sociedades ocidentais

a partir da Modernidade, no contexto de expansão do capitalismo

comercial e industrial, do Iluminismo e dos ideais da Revolução

Francesa. A escola, a partir de então, vem exercendo com maior

evidência a função de produzir indivíduos dóceis, úteis, normais.

Nessa perspectiva disciplinar, sob os véus dos diferentes ideários

educacionais, com a presença aqui ou acolá de educadores abnegados,

percebe-se a forte presença daquela intenção de que a escola tenha

aquela função tão bem ilustrada por Kant:

Enviam-se em primeiro lugar as crianças à escola não com a intenção de que elas lá aprendam algo, mas com o fim de que elas se habituem a permanecer tranqüilamente sentadas e a observar pontualmente o que lhes ordena”, uma vez que “a falta de disciplina é um mal pior que a falta de cultura, pois esta pode ser remediada mais tarde, ao passo que não se pode abolir o estado selvagem e corrigir um defeito de disciplina. (KANT, apud Veiga–Neto, 2000, p.9, grifos no original).

A escola com esse “tom” disciplinador faz-se imediatamente visível

em nosso imaginário quando lembramos (aos que são mais “vividos”) ou

vemos filmes retratando o ambiente escolar do século XVIII até o século

XX (pelo menos até 1970, quando comecei a estudar, ainda era assim): o

controle disciplinar rígido e detalhado, elogioso aos que se adequavam às

normas e duramente implacável com os que não as seguiam. Mas e hoje?

A escola ainda é a mesma?

Hoje os que nos ocupamos com a educação procuramos refletir e

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elaborar teorias e práticas educacionais a fim de fundamentar nossa

ação. Os objetivos que traçamos buscam desenvolver em geral, no plano

discursivo, o aluno autônomo, crítico e criativo. Mas até que ponto certas

práticas de educação favoreceram ou ainda estão a favorecer a

construção de pessoas passivas, submissas, consumistas,

preconceituosas, coniventes ou acomodadas com regimes políticos,

muitas vezes, ditatoriais e/ou excludentes?

Analisando a escola de hoje percebemos que é, ao mesmo tempo,

bem diferente e bem igual à escola com aquele tipo de disciplina que

delineamos nos parágrafos anteriores e presente nas abordagens de

Foucault. Resta aprofundar nossa reflexão para verificar em quais

direções e medidas.

A seguir não dirigirei as análises à escola de antes, ou à escola que

se adequava confortavelmente ao poder disciplinar descrito

anteriormente, mas à escola como a vejo atualmente, ano de 2008.

Principalmente a escola pública que conheço.

Hoje este tipo de controle disciplinar rígido já não acontece na

totalidade das escolas com toda sua intensidade. Acredito que uma escola

assim, apesar de certo saudosismo de alguns educadores, pais ou até de

alunos, não consegue mais se sustentar com tranqüilidade, tamanho o

esforço de repressão que demanda. Muitos alunos, pais, educadores e

outros agentes da sociedade civil rebelam-se contra esse tipo de escola.

No entanto, nossas escolas convivem ainda com esse “modelo”

disciplinador como que “mascarado”, não tão explícito. Pelo fato de ser

um modelo, ter uma história tão arraigada na cultura escolar e por não

termos experiências diversificadas de organização escolar, ele persiste

através de toda maquinaria montada para sustentá-lo. Para perceber

isso, basta passar revisando os principais itens do poder disciplinar,

descritos anteriormente, e verificaremos sua ainda potente presença. É o

que farei a seguir.

No que se refere à arte das distribuições, a movimentação no

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espaço escolar ainda guarda “rituais” como a formação de filas para a

entrada e também nas salas com relação às carteiras; o uso controlado do

banheiro, lugares de acesso permitidos ou proibidos, a definição rígida

dos lugares de cada um na sala6. Mas há escolas que não fazem filas para

entrada e também nas salas a posição das carteiras é flexibilizada. Não se

trata de fazer uma interpretação simplificada das idéias de Foucault:

pensar que o simples fato de fazer ou não fazer a fila é o que importa,

mas uma reflexão e problematização sobre que tipo de lógica fundamenta

tal norma.

Quanto ao controle da atividade a escola trata de vigiar a utilização

do tempo, estabelecer controles extensivos e pormenorizados para seu

uso: pontualidade, ritmos homogeneizadores. Todos têm de fazer o

possível para realizar as mesmas coisas e ao mesmo tempo. As aulas são

de cinqüenta minutos; os bimestres, os semestres, o ano letivo, as

oitocentas horas, os duzentos dias letivos... O menor desvio nesses

tempos movimenta toda uma máquina para a reposição do “tempo

perdido”. Cabe questionar se realmente vale a pena investir nesse tempo

rígido. Alega-se justamente o “bom propósito” de assegurar o direito do

aluno à educação plena. Mas será que com alguma outra organização

do tempo não se conseguiria mais em termos de educação e

aprendizagem do que conseguimos hoje? O “modelo” pouco considera as

diferenças nos ritmos e interesses de aprendizagem, nos

encadeamentos na consecução das tarefas. Aquele que é mais rápido, é a

desacelerar seu aprendizado, quando precisa ajustar-se ao ritmo médio

da sua turma, o que o desestimula e não extrai todo potencial que poderia

oferecer se fosse mais desafiado; por outro lado, o estudante de ritmo

mais lento deve acelerar, mesmo sob o risco de comprometer o

entendimento de sua tarefa. Sendo assim, quanto ao tempo, não está a

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6 Muitas escolas têm o hábito de fazer o “espelho” - uma folha afixada do lado interno

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da porta da sala de aula com o desenho das posições das carteiras constando o nome e o lugar de cada aluno. Todos os professores devem zelar para que o aluno ocupe em todas as aulas aquela posição espacial.

escola ainda “refém” de um modelo muito homogeneizante e rígido?

A organização das gêneses faz-se nas escolas através do currículo,

dos programas de conteúdo de cada série, dos requisitos prévios rígidos,

dos planejamentos estéreis de aula. Eles estão presentes em nossas

escolas e não podemos imaginar o trabalho sem isto. Entretanto, é

preciso usá-los com cuidado porque nenhum conhecimento é neutro.

Alfredo Veiga-Neto, em entrevista ao informativo do Instituto Humanitas

Unisinos, afirma que o currículo é “ o mais eficiente dispositivo capaz

de instituir na Modernidade a sociedade disciplinar”. Diz ainda: “Com

isso mostrei o caráter não natural desse artefato escolar”.

Mesmo teorias educacionais tidas como engajadas socialmente

podem perder os objetivos previstos na aplicação da sua organização

curricular. Principalmente quando tomada a organização curricular de

forma aligeirada e simplificada, na direção do “tempo útil”, onde os

educadores enfatizam o “ativismo”, a apresentação de “tarefas”, a soma

enorme de registros escritos (cópias), a fim de comprovar o

“cumprimento do programa”. Nessa direção afirma Ana Lúcia Ratto:

Embora as posições da Pedagogia Histórico-Crítica venham sendo objeto de críticas e redimensionamento, mesmo entre os autores que a defenderam, alguns pontos de suas reflexões tenderam a se tornar de senso comum, especialmente nos meios escolares. Um se refere exatamente à centralidade da aquisição dos conteúdos escolares, diante das problematizações sobre o que caracteriza historicamente a especificidade da escola como instituição social.(...)A partir desse movimento pedagógico, estabeleceu-se uma tendência curricular “conteudista”, em que os professores passaram a ser pressionados pelas exigências de uma vasta lista de conteúdos obrigatórios a serem trabalhados nas várias disciplinas, algo que, a meu ver, acabou por atualizar as tradições pedagógicas existentes na cerrada vinculação do tempo escolar a um “tempo útil”, a um “tempo de produção”, a um tempo a ser controlado, esquadrinhado e homogeneizado, o mais possível, a fim de que o programa curricular possa ser “vencido”. (RATTO, 2007, p. 162-163).

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Quanto à composição de forças, a busca por ganho de um certo

tipo de produtividade conjuga todas as energias da escola. Logo, hoje, há

poucos espaços de afrouxamento da produção, como os momentos de

recreio ou a semana de jogos. Nestes momentos os educadores percebem

que “deságüa" ali toda a energia represada (reprimida) dos alunos. Daí

acontecerem muitos problemas de disciplina neste momentos: os alunos

ficam prestes a “estourar ou estouram mesmo”. Afinal, não se pode deixar

os alunos sozinhos um só instante, a vigilância precisa ser extensiva.

Desse modo eles não aprendem a agir com autonomia e responsabilidade

nos tempos em que não estão sendo direcionados. E se um elemento que

desejamos desenvolver nos alunos é a autonomia, não parece que

estejamos propiciando condição efetiva para tanto. Há falta de espaços de

liberdade e de escolhas mais significativos no ambiente escolar.

Quanto à vigilância hierárquica, dentro da escola os vários atores

estão sob foco de estreita vigilância: os alunos, os professores, os pais, o

diretor, os pedagogos, o inspetor, funcionários; e também fora da escola

contracenam outras instâncias de vigilância como a imprensa, o

ministério público, o conselho tutelar, o Núcleo Regional de Ensino, a

Secretaria de Educação. Todos vigiam e são vigiados. Ratto fez uma

pesquisa em livros mais ou menos padronizados nas escolas conhecidos

como “livro de ocorrência”. Neles são registradas principalmente as

atitudes indisciplinadas dos alunos. Os alunos são “olhados” pelos

professores, inspetores e, também, por esse livro.

Os livros de ocorrência pesquisados não existem de modo independente dessa rede de olhares, na medida em que funcionam nessa teia, em meio ao conjunto extenso de instrumentos de disciplinamento em ação, tanto na sociedade, quanto na escola. Os livros agem no sentido de concretizar, especialmente para crianças, o fato de elas estarem sob constante observação e julgamento, com efeitos para muito além dos sujeitos que neles estão presentes, pois as crianças que não estão registradas nos livros sabem muito bem que, a qualquer momento, podem sê-lo. O caráter extensivo, contínuo, microfísico, tanto do poder disciplinar, de modo geral, quanto especificamente da rede de vigilância hierárquica, age conforme o “sonho político” de que cada criança se torne seu próprio vigia, através da interiorização desses olhares - e do

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conjunto dos mecanismos através dos quais o poder disciplinar circula - dentro de si.

Essa rede de vigilância apresenta uma hierarquia. No entanto, por ela circulam relações de poder que, no conjunto, possuem dimensões automáticas e anônimas.(...) essa rede de vigilância hierárquica atua sobre todos os sujeitos que estão sob sua alçada, não apenas sobre as crianças. (RATTO, 2007, p.121-122).

Nesse sentido até o diretor, que tem muitas funções burocráticas,

está sujeito a sanções caso não cumpra ordens superiores, como os

processos administrativos.

No tocante à sanção normalizadora observamos a escola fazendo

“das tripas coração” para normalizar a todos. No entanto, cabe aqui fazer

uma distinção entre “normalizar” e “normatizar”; entre “normal” e

“norma”:

É possível considerar que, no pensamento foucaultiano, as normas adquirem dois sentidos básicos. Um se articula exatamente a essa dimensão de equivalência entre normas e regras (...) a questão da norma não pressupõe haver sociedades nas quais inexistam restrições, ou parâmetros de cunho obrigatório e universal de ordenamento das relações sociais. (...)

O outro sentido básico dado à questão da norma no pensamento de Foucault vincula-se aos mecanismos de normalização, estes sim excludentes ao enfoque dado à questão ética. (RATTO, 2007, p.146-147).

“Normatizar” é a ação de criar, estabelecer, definir, avaliar e

reinventar as normas de convivência inerentes à vida em sociedade;

“normalizar” é a ação de trazer o outro ao campo do “normal”, objetivar e

subjetivar os indivíduos a partir de modelos homonegeizantes

desconsiderando a dimensão da singularidade.

Portanto, quanto mais homogênea uma turma, mais fácil será

controlá-la. Aquele aluno normal, nem muito agitado, nem totalmente

passivo, é o modelo ideal. Os alunos diferentes mobilizam toda a escola a

trazê-los para um padrão de comportamento. Entretanto cabe não peder

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de vista que mesmo os normais e os “bem comportados” são

permanentemente alvos de um processo de normalização, ainda que de

“reforço”.

Finalmente, verifiquemos a presença na escola de um último

componente da sociedade disciplinar apontado por Foucault: o exame. A

escola examina: emite relatórios, avalia, classifica, promove, retém,

compara. O professor faz provas, testes, compara os alunos, as turmas,

aprova ou reprova. O diretor, a secretaria da escola e o professor devem

preencher várias fichas de controle: diário de classe, registro de

conteúdos e de recuperação de conteúdos, metodologia utilizada,

sistema de avaliação, relatório final, ficha individual; livro ponto, livro

de ocorrência, livros-ata, planejamento, etc. O professor corrige os testes

dos alunos; o pedagogo fiscaliza o diário de classe do professor; o Núcleo

Regional de Ensino faz verificação de documentos nas escolas. A cada

intervalo de tempo a escola deve rever seu regimento, seu projeto

pedagógico, seu estatuto de conselho escolar, enviá-los às instâncias

superiores e pleitear sua aprovação. Após o carimbo e a assinatura da

hierarquia superior a escola estará “legalizada”. Muitas vezes, preocupa-

se mais com o registro atualizado do que com a ação efetivamente

pedagógica. É a “papelada”, a burocracia. Enfim, tudo deve estar

registrado e funcionando “normalmente”. Caso um pequeno detalhe fique

sem registro, a escola, o diretor ou o professor fica sob suspeita, sob

culpa, sujeitos a sanções.

4. Considerações finais.

Neste trabalho de estudo bibliográfico procurei explicar as idéias

de Foucault a respeito do poder disciplinar. Julgo que as técnicas de

disciplinarização dos indivíduos, a fim de torná-los sujeitos mais dóceis e

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úteis, continuam valendo para o governo da sociedade hoje, com as

devidas nuances e condições específicas inerentes a um novo tempo.

Dediquei toda uma seção desse meu texto a analisar a presença de cada

uma das técnicas do poder disciplinar na escola. Confrontando as

questões educacionais mais candentes com que nos debatemos

diariamente, faço as perguntas: a presença, mais ou menos explícita,

desse tipo de poder disciplinar no ambiente escolar, tem relação com os

problemas que enfrentamos? Subsidia-nos teoricamente nos

encaminhamentos de gestão dos processos educativos? Acredito que sim.

Não se trata simplesmente de pressupor que, em si, a disciplina e tudo o

mais seja “bom” ou “ruim”, mas problematizar as questões escolares a

partir das lógicas que as instituem.

A perspectiva central de análise é a de que a disciplina e a indisciplina são produzidas socialmente e na escola, sendo indissociáveis da lógica que as institui, do conjunto dos elementos definidores do que é necessário ou prejudicial ao seu ordenamento cotidiano. Nada em si mesmo é “bom” ou “ruim”, tudo depende do contexto e do tipo de lógica em que se insere. No caso do mundo escolar, o pressuposto aqui adotado é o de que algum tipo de disciplina lhe é necessário e bem vindo, a questão é definir qual. (RATTO, 2007, p.23).

Para os gestores escolares, refletir sobre essa questão é

fundamental para definir os rumos da educação de hoje e de amanhã.

Tomando como referência o panorama educacional de hoje e a

necessidade de novas respostas, lembro que quando comecei a atuar em

escolas, há duas décadas, a gestão de uma escola acontecia sem tantos

questionamentos, pois o tipo de poder disciplinar descrito neste texto

dava conta das demandas com mais tranqüilidade. Entretanto, nestas

últimas décadas houve algumas mudanças que trouxeram novos desafios

para o gerenciamento das escolas. Cito dois exemplos de mudanças. Um

deles é a recente exigência social de acesso de todos os alunos à escola:

cada vez mais a escola deve procurar atender a todos e não apenas

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aqueles que a ela se adaptam. Era comum, anteriormente, haver a

exclusão do aluno que não se adequasse ao sistema escolar, sutilmente ou

diretamente pressionado a deixar a escola. Uma segunda mudança: as

gerações mais jovens chegam à escola trazendo um repertório de

aprendizados e comportamentos diferentes do das gerações passadas,

apreendidos numa nova maneira de interagir com o mundo,

principalmente através dos novos meios de comunicação social. A

presença de uma clientela com novas características vem colocando em

“xeque” o modo de ser da escola.

Voltamos a afirmar que questionar o modo de ser da escola não

significa simplesmente descartá-la, ou descartar a disciplina dentro dela.

Depreende-se ao conhecer a obra de Foucault que ele não seja contra a

escola ou contra a educação. Inclusive nunca afirmou que a disciplina não

é importante para obter aprendizados. A disciplina é um instrumento

necessário que deve, ou deveria, levar ao aprendizado. Entretanto, para o

zelo da tarefa de conhecer e pensar, a concepção de disciplina não

precisa equivaler a um simples adestramento, a que fica reduzido o fazer

escolar em certos lugares e tempos: homogeneização, repetição, cópia,

reprodução. Corroborando com esse raciocínio, a professora Inês Lacerda

de Araújo escreveu num artigo sobre Foucault e a educação o seguinte:

Se não há uma subjetividade livre, autônoma, não haverá também pessoas educadas, criativas, que é justamente o que a escola deveria produzir. Sem criatividade, não é possível recusar o sujeito preso ao saber e ao poder de disciplinas que normalizam; sem indagar o que queremos para nós, não é possível criar novos estilos de vida, pautados por atos éticos de liberdade e autonomia.(...)

Na escola não burocratizada, não colonizada pelas demandas imediatas de obtenção de grau, de cumprimento de protocolos, é que prevalece a formação, a capacitação, o aprendizado produtivo. Vigilância, punição e controle desceriam a um segundo plano, conforme o interesse pela educação crescesse, os procedimentos disciplinares se tornariam intoleráveis. (LACERDA, Inês A., Revista Educação, p.34-35).

Hoje há espaço para a convivência simultânea de várias lógicas de

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disciplinamento nas escolas e o gestor precisa estar atento, refletindo

sobre seu modo de agir e sobre o que observa a sua volta. Há

experiências diferenciadas de gestão escolar: com mais ou menos

autoridade, mais ou menos autoritarismo, mais ou menos democracia; há

locais onde ocorrem assembléias de alunos, de pais. Há escolas onde se

atenuam até o possível as punições e outras que as usam constantemente

(por exemplo, tirar o recreio) para gerir a disciplina.

Hoje os gestores escolares, principalmente a figura do diretor, têm

opção de usar recursos humanos que ultrapassam o campo estritamente

pedagógico para administrar as questões disciplinares. Por

exemplo: os encaminhamentos psicopedagógicos, empresariais, jurídicos

e policiais. Profissionais como terapeutas, psicólogos, assistentes sociais,

juízes, patrulheiros escolares, cada vez mais são chamados a responder

por questões da escola. O gestor escolar precisa questionar em que

medida deve servir-se desses profissionais sem o risco de abdicar de suas

funções precipuamente educativas. Perguntar-se, por exemplo, sobre os

encaminhamentos nos moldes empresariais em que a ênfase está em

normalizar a fim de produzir o cidadão “flexível”, dócil às necessidades

do “mercado”; onde a diferença que se cultiva é aquela do “diferencial”

que o profissional terá para atender à demanda dos clientes, não a

diferenciação e autonomia vislumbrada nos projetos políticos e

pedagógicos de nossas escolas. Indagar-se sobre as funções e lógicas de

atuação da “patrulha escolar” e os resultados de sua atuação. Essas

alterações e reformulações nos encaminhamentos estão servindo para

superar ou incrementar uma escola onde prevalece um poder do tipo

“disciplinar”, produtor dos sujeitos dóceis e úteis? Enfim, a gestão

escolar é um trabalho exigente, não é um processo ingênuo e espontâneo.

Foucault nos ensina a prestarmos atenção e cuidado permanentes

com relação à escola, à educação, aos procedimentos pedagógicos. Por

isso, proibir ou permitir o boné é uma questão disciplinar que pode

também ser discutida dentro da perspectiva desse referencial que

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começamos a estudar. Seguirei lendo e aprofundando as idéias de

Foucault, verificando que relações de significados podem adquirir essa e

outras regras.7

Se assumimos a perspectiva de que a disciplina e a indisciplina são cotidianamente produzidas pela escola, a partir de configurações específicas adquirida pelas relações de poder e pelo tipo de lógica que, em cada contexto, institui ambas, é possível desnaturalizá-las, retirá-las de uma dimensão de inevitabilidade, na direção de exercitarmos nossa capacidade de revê-las e reinventá-las. (RATTO, 2007, p. 256).

A reinvenção da disciplina exige do educador uma nova postura

pedagógica com relação ao conflito: este não é apenas “uma pedra de

tropeço”, mas também o “trampolim” para novos aprendizados. A

autonomia, a criticidade e a criatividade são aprendizados “regados” de

conflito.

___________________

7 Esta é uma primeira versão de artigo, conforme o cronograma estabelecido no PDE (Programa de Desenvolvimento Educacional) da Secretaria de Estado da Educação do Paraná. Continuarei aprimorando os estudos até a produção de uma versão final.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FOUCAULT , Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau, 1996.

________. Vigiar e Punir. O nascimento da Prisão. Petrópolis: Vozes, 33ª edição, 1987.

RATTO, Ana Lúcia S. Livros de ocorrência. (In)disciplina, normalização e subjetivação. São Paulo: Cortez. 2007.

REVISTA EDUCAÇÃO. Foucault pensa a educação. Número 3. São Paulo: Editora Segmento, 2007.

VEIGA-NETO, A. Foucault e a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.

____________ . Entrevista ao IHU (Instituto Humanitas Unisinos) on line. São Leopoldo, 06 de novembro de 2006 , edição 203, www.unisinos.br/ihu .