2 A REPÚBLICA E O MUNICIPALISMO EXPECTATIVAS ......O centenário da República vai ser um tema...

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COMEMORAÇÕES DO CENTENÁRIO Nº5 MAI.JUN 2010 2 A REPÚBLICA E O MUNICIPALISMO EXPECTATIVAS DESCENTRALIZADORAS E HESITAÇÕES REPUBLICANAS 3 A REPÚBLICA E O MUNICIPALISMO JOSÉ FÉLIX NOGUEIRA 4 RUAS DA CONSPIRAÇÃO HOTEL DE L’EUROPE, CHIADO 5 MULHERES NA REPÚBLICA A VOZ DAS MULHERES OPERÁRIAS 6 LIVROS A I REPÚBLICA NOS LIVROS 7/8 REPÚBLICA E ENSINO NEM TUDO FORAM ROSAS NA OBRA EDUCATIVA DA I REPÚBLICA www.centenariorepublica.pt JORNAL DO CENTENÁRIO FUNDAÇÃO MÁRIO SOARES EGEAC O centenário da República vai ser um tema presente nas Festas de Lisboa, que começam dia 14 de Maio e se prolongam até dia 15 de Julho. “O tema das Marchas de Lisboa é obviamente a República”, como anunciou Miguel Honrado, presidente do conselho de administração da Egeac, na confe- rência de imprensa de apresentação do programa das Festas de Lisboa, reali- zada no cinema S. Jorge, dia 4 de Maio. Mas além das marchas, que irão desfilar na Avenida da Liberdade dia 12 de Junho, outras manifestações artísticas incluídas nas Festas vão também falar da República. É o que sucederá com a exposição “O Fado e a República” que propõe uma viagem aos primórdios do fado, não só através do som, como da pintura, do cinema e da documentação existente. Essa viagem começa no Museu do Fado, onde se encontra actualmente o quadro O Fado, de José Malhoa, artista que foi o primeiro presidente da Sociedade Nacional de Belas Artes, para se estender depois aos salões da SNBA. Também na área musical, a República será celebrada, com o espectáculo a realizar dia 15 de Julho, intitulado “A República é uma mulher”. Neste concerto de encerramento das Festas de Lisboa, que pretende evocar a luta pelos ideais pelos quais se bateram mulheres como Carolina Beatriz Ângelo, Ana de Castro Osório, Maria Veleda e Adelaide Cabete , participam três vozes femininas da lusofonia: Carminho (Portugal), Lura (Cabo Verde) e Mart’Nália (Brasil). Que República? Cem anos de República obri- gam-nos a pensar menos no passado e mais no presente e futuro. Charles Péguy falou-nos da mística e da educação republicanas, não dos momentos trágicos, mas da capacidade cidadã de despertar para a liberdade e responsabilidade e de construir um caminho de emancipação. António Sérgio escreveu que toda a Educação é para a Cidadania. Afinal, a República é a organização da socie- dade política do Povo, pelo Povo e para o Povo, isto é, das pessoas, pelas pessoas e para as pessoas, procurando realizar a “humanitas” de que falava Cícero, assente no valor universal da dignidade humana. A REPÚBLICA EM 100 PALAVRAS GUILHERME D’OLIVEIRA MARTINS, PRESIDENTE DO CENTRO NACIONAL DE CULTURA A REPÚBLICA NAS FESTAS DE LISBOA

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COMEMORAÇÕES DO CENTENÁRIO

Nº5 MAI.JUN 2010

2 A REPÚBLICA E O MUNICIPALISMOEXPECTATIVAS DESCENTRALIZADORASE HESITAÇÕES REPUBLICANAS

3 A REPÚBLICA E O MUNICIPALISMOJOSÉ FÉLIX NOGUEIRA

4 RUAS DA CONSPIRAÇÃOHOTEL DE L’EUROPE, CHIADO

5 MULHERES NA REPÚBLICAA VOZ DAS MULHERES OPERÁRIAS

6 LIVROSA I REPÚBLICA NOS LIVROS

7/8 REPÚBLICA E ENSINO NEM TUDO FORAM ROSASNA OBRA EDUCATIVA DA I REPÚBLICAwww.centenariorepublica.pt

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O centenário da República vai ser um tema presente nas Festas de Lisboa, quecomeçam dia 14 de Maio e se prolongam até dia 15 de Julho. “O tema das Marchas de Lisboa é obviamente a República”, como anunciouMiguel Honrado, presidente do conselho de administração da Egeac, na confe-rência de imprensa de apresentação do programa das Festas de Lisboa, reali-zada no cinema S. Jorge, dia 4 de Maio.Mas além das marchas, que irão desfilar na Avenida da Liberdade dia 12 deJunho, outras manifestações artísticas incluídas nas Festas vão também falarda República. É o que sucederá com a exposição “O Fado e a República” quepropõe uma viagem aos primórdios do fado, não só através do som, como dapintura, do cinema e da documentação existente. Essa viagem começa noMuseu do Fado, onde se encontra actualmente o quadro O Fado, de JoséMalhoa, artista que foi o primeiro presidente da Sociedade Nacional de BelasArtes, para se estender depois aos salões da SNBA.Também na área musical, a República será celebrada, com o espectáculo arealizar dia 15 de Julho, intitulado “A República é uma mulher”. Neste concertode encerramento das Festas de Lisboa, que pretende evocar a luta pelos ideaispelos quais se bateram mulheres como Carolina Beatriz Ângelo, Ana de CastroOsório, Maria Veleda e Adelaide Cabete , participam três vozes femininas dalusofonia: Carminho (Portugal), Lura (Cabo Verde) e Mart’Nália (Brasil).

Que República? Cem anos de República obri-gam-nos a pensar menos no passado e maisno presente e futuro. Charles Péguy falou-nosda mística e da educação republicanas, nãodos momentos trágicos, mas da capacidadecidadã de despertar para a liberdade eresponsabilidade e de construir um caminhode emancipação. António Sérgio escreveuque toda a Educação é para a Cidadania.Afinal, a República é a organização da socie-dade política do Povo, pelo Povo e para oPovo, isto é, das pessoas, pelas pessoas epara as pessoas, procurando realizar a“humanitas” de que falava Cícero, assente novalor universal da dignidade humana.

A REPÚBLICA EM 100 PALAVRAS

GUILHERME D’OLIVEIRA MARTINS, PRESIDENTE DO CENTRO NACIONAL DE CULTURA

A REPÚBLICA NAS FESTAS DE LISBOA

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Eram grandes as expectativas criadas no período que antece-deu a República. O municipalismo e a ideia de um Estadoassente na associação livre de municípios foram defendidosdesde a segunda metade do século XIX, praticamente em para-lelo com a própria República. Em 1852, na obra O município noséc. XIX, José Félix Henriques Nogueira traçava já as linhasmestras do que deveria ser uma República federalista, fundadana autonomia dos municípios.Era pois de supor que uma vez implantada a República sefizesse a reforma política reclamada e que terminasse a vagade oscilações – entre centralização e descentralização dopoder – que caracterizara a legislação herdada da monarquiaconstitucional. O liberalismo produzira vários códigos adminis-trativos – Código de José Luciano de Castro, de 1886, o CódigoAdministrativo de 1878, de Rodrigues Sampaio e o Código de1896. Nesta legislação, embora se defendesse a centralizaçãoadministrativa e financeira, ora se valorizava o município comoentidade dotada de alguma autonomia, ora se limitavam ascapacidades de acção dos municípios.A 5 de Outubro de 1910 era um código centralizador o queregia a nação: o Código Administrativo de 1896, que foraaprovado por João Franco, o que forçava a República aalterá-lo. Isso levou o Governo Provisório a querer assinalardesde logo uma promessa de mudança. Ela surgiu sob aforma de um decreto, promulgado a 13 de Outubro de 1910,no qual se adoptava o Código de 1878, “na parte em que oseu restabelecimento causasse o mínimo de perturbaçãoaos serviços públicos”, até que se elaborasse um novoCódigo Administrativo que consubstanciasse a reformarepublicana.Tal não foi porém viável e, de acordo com Marcello Caetano,“houve que admitir na jurisprudência e nos tribunais a vigên-cia do código de 1896, em algumas matérias fundamentais.Ficou pois a República com dois códigos”.

A 25 de Outubro de 1910, o ministro do Interior, António José de Almeidanomeava uma comissão encarregada de elaborar o Código Administrativoda República, órgão presidido por José Jacinto Nunes que, já no final doséculo XIX, havia preparado para os republicanos um projecto de códigoonde defendia uma organização descentralizada, restaurava as provínciase criava órgãos executivos e órgãos deliberativos nos municípios.Com base no trabalho dessa comissão, a 15 de Agosto de 1911, AntónioJosé de Almeida apresentou na Assembleia Constituinte uma propostade Lei que continha as disposições a aplicar às autarquias e aos corposadministrativos locais.Mas o sinuoso percurso desta proposta – que só em 1913 se transformouem lei – foi indicador de que a descentralização administrativa nãochegara em simultâneo com a República.A Assembleia Constituinte aprovou as bases gerais da proposta, masremeteu para o Congresso da República a elaboração de um novoCódigo Administrativo. Sucessivas alterações foram sendo introduzidasna proposta, quer por parecer da Comissão da Administração Pública,quer pela discussão na Câmara dos Deputados e depois no Senado.Quando por fim se chegou à Lei 88, de 7 de Agosto de 1913, apenas foipromulgada uma parte da proposta apresentada em 1911. E nela nãoera referida qualquer revogação dos Códigos de 1878 e de 1896.Esta lei, embora fosse descentralizadora em relação aos municípios,continuava a fazer depender do Orçamento de Estado as receitas ordiná-rias das autarquias.Até 1926 houve várias tentativas para se elaborar um novo Código Admi-nistrativo, com a produção de muita legislação avulsa (em 1916, 1919,1922 e 1924) mas o novo regime terminaria sem que a descentralizaçãotivesse saído da ambiguidade. E sem que a República tivesse criado umverdadeiro corpo administrativo.

FONTE: HISTÓRIA DOS MUNICÍPIOS E DO PODER LOCAL DOS FINAIS DA IDADE MÉDIA À UNIÃO EUROPEIA, CÉSAR DE OLIVEIRA (COORD.), TEMAS E DEBATES, 1996.

EXPECTATIVAS DESCENTRALIZADORASE HESITAÇÕES REPUBLICANAS

A República com dois códigos

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A REPÚBLICA E O MUNICIPALISMO

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José Félix Henriques Nogueira foi não só um precursor do republica-nismo como o primeiro homem em Portugal a apresentar uma visãoideal de uma República descentralizada.Nascido em 1825, em Dois Portos, Torres Vedras, HenriquesNogueira foi um autodidacta. Estudou pelos seus próprios meios e,em 1851, começou a escrever para jornais como o Eco dos Operáriose, na Revolução de Setembro. Nesse mesmo ano candidatou-se adeputado pelo círculo de Alenquer, mas não foi eleito. Dedicou-seentão à escrita. Fundou o Almanaque Democrático – que se publicouentre 1852 e 1855 – e concluiu o livro Estudos sobre a Reforma emPortugal, uma das obras onde traçava um programa para umaRepública fundada na autonomia dos seus municípios.Defensor do federalismo e do associativismo, Henriques Nogueiraimaginava Portugal como um Estado federado constituído por 100municípios. Em 1852 voltou a candidatar-se, mas pelo círculo deTorres Vedras. De novo não foi eleito e decidiu então ir viajar. Em1853 andou por Espanha, França, Bélgica e Alemanha, viagenssobre as quais escreveu as suas impressões. Em 1854 fundou umnovo jornal, o Progresso, onde escreveu sobre temas de políticaeconómica e editou vários artigos que depois reuniu no livro O muni-cípio do século XIX, publicado em 1856. Aos 33 anos morreu, subita-mente, vítima de tuberculose. O escultor Manuel Bordallo Pinheirofez o busto que foi colocado no jazigo do Cemitério dos Prazeres.Uma associação constituída em sua memória, intitulada Club Henri-ques Nogueira, promoveu-lhe mais tarde uma grande homenagemque terá reunido quatro mil pessoas no Cemitério dos Prazeres,segundo afirmava Rafael Bordallo Pinheiro, em O António Maria, dia31 de Janeiro de 1884.

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Foi uma manifestação imponente, que tanto honrouos seus iniciadores como os que a ella voluntariamenteadheriram.Não obstante a chuva agrestee pertinaz, cerca de quatro mil pessoas esperaram e assistiram no cemitério dos Prazeres a essa homenagem de consideraçãopela memoria d’um homemcujos princípios democráticosforam tão vigorosos que ainda vivem e florescem na associação a que legou o nome.O ANTÓNIO MARIA, 31 DE JANEIRO DE 1884.

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”JOSÉ FÉLIX HENRIQUES NOGUEIRA, “HISTÓRIA DO REGIME REPUBLICANO EM PORTUGAL”, LISBOA, 1930, PP 33.

O governo central, composto dos representantes

dos municípios, elabora e concentra todas as opiniões

e simpatias do país, dita a lei e vela pela sua execução.

O município conserva toda a energia e independência

própria dentro dos limites legais e compreende uma

série, resumida mas completa, de instituições públicas.

O lugar, já individualmente já em grupos de freguesias e

círculos, associa os seus moradores, e forma o elo desta

cadeia convergente de interesses de que ninguém

é excluído.

”JOSÉ FÉLIX HENRIQUES NOGUEIRA,IN CARTA A OLIVEIRA MARTINS, RAUL REGO, OB. CIT. PÁG.128.

José Félix Henriques Nogueira (1825-1858)

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A REPÚBLICA E O MUNICIPALISMO

Quisera que num país como o nosso, emancipado

por cruentes esforços da tutela humilhante, egoísta e

sanguinária da monarquia absoluta, cansado do regime

traiçoeiro e faccioso da monarquia constitucional,

necessitado de restaurar as forças perdidas em lutas

estéreis e de cicatrizar feridas que ainda gotejam,

ávido, enfim, de gozar as doçuras da liberdade porque

tanto há sofrido, o governo do Estado fosse feito pelo

povo e para o povo, sob a forma nobre, filosófica e

prestigiosa da República.

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Ruas da Conspiração

Inaugurado em 1845 na Rua do Carmo 2, o Hotelde L’Europe (também designado por hotel d’Eu-rope) foi um dos locais onde, em Lisboa, os repu-blicanos se encontravam para conspirar. Proprie-dade de Mme Langet, este hotel viria a ser dignode registo nos momentos que antecederam aimplantação da República, em 1910, como narraJosé Relvas nas suas “Memórias Políticas”.Foi no Hotel d’Europe que Relvas e Eusébio Leãose refugiaram no dia 4 de Outubro, quando a lutapela República já estava na rua e num momentoem que “as primícias da Revolução deixavamantever a derrota”, como sustenta Relvas.Eusébio Leão, que era médico, estava doente earrastava-se com dificuldade, tendo nas primei-ras horas da revolução permanecido no seuconsultório no Chiado, um local que não seria omais indicado, em caso de derrota e de caça aosrepublicanos revoltados.“Nestas circunstâncias, a posição no Consultórioera insustentável e, por isso (,,,)levei EusébioLeão, sempre doente, para o Hotel d’Europe. Foiesse o nosso quartel-general durante as horasda Revolução, desde a manhã de 4 até às 7 horasde 5”, escreve Relvas nas “Memórias Políticas”.

Já em 1891, o Hotel d’Europe se tornara conhe-cido. E nas vésperas do 31 de Janeiro, do Porto,pelo Hotel d’Europe, em Lisboa, passou a polícia,em busca de conspiradores.“Em 30 de Janeiro a polícia procurava-me noHotel d’Europe e nas casas dos meus amigos.”,refere José Relvas.Mas deste hotel que foi local de conspiração eexistiu até 1912 no antigo Palácio Barcelinhos,ao Chiado, nada resta, excepto “a memória dapermanência de várias prima-donas do Teatro deS. Carlos e da famosíssima Sarah Bernhardt queali esteve hospedada na sua segunda visita aPortugal, em Abril de 1880”, refere Ana MariaAlves Pedro Ferreira, na sua tese de mestradoem História de Arte, sobre “A Arquitectura Hote-leira de Lisboa”.No entanto, como esclarece Ana Ferreira, umnovo Hotel de L’Europe haveria de surgir na capi-tal, ainda no período da I República, quando em1921 inaugurou na Praça Luis de Camões nº 5um novo estabelecimento, propriedade de Alexan-dre de Almeida e que é referido na revista ABC,de 24 de Fevereiro de 1921, como “Um melhora-mento citadino”.

Hotel de l’Europe no Chiado

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Como era há 100 anosAinda que a República não tenha instituídode facto a almejada descentralização dopoder na vida quotidiana dos municípios,nem tenha criado um verdadeiro CódigoAdministrativo Republicano, a Lei 88, apro-vada a 7 de Agosto de 1913, trouxe uma ino-vação à administração local: o referendum.As deliberações que dissessem respeito amatérias como a “contracção de emprésti-mos, o lançamento de contribuições direc-tas ou indirectas, a municipalização de servi-ços, mutualidade, seguros, previdência ecrédito e venda de carnes verdes” podiamser sujeitas a referendum. Para isso bastavaque “a décima parte dos eleitores” o reque-ressem.As câmaras municipais da I Repúblicatinham já um vasto conjunto de competên-cias, que passava não só pela construção ereparação de estradas, ruas e caminhos,como pela possibilidade de subsidiaremestabelecimentos de instrução, ou pelacriação de serviços municipais, nos quais seincluía o abastecimento de água e a fruiçãocomum de pastos. Com a Lei 88, passaramtambém a ter capacidade para “expropriaras propriedades necessárias aos serviços emelhoramentos municipais”.Mas em matéria de criação de receitas, alegislação não foi tão longe. E continuavaa fazer depender do poder central a possi-bilidade de as obter, considerando receitaordinária “os subsídios especiais consigna-dos no Orçamento de Estado”. Já quantoàs receitas decorrentes de impostosdirectos, embora a lei permitisse o lança-mento de “derramas especiais” a suaformulação era vaga e remetia para“percentagens adicionais ao Orçamento”,nunca bem definidas.

A vida dos municípios

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Nestas circunstâncias, a posição no Consultório era insus-

tentável e, por isso (,,,) levei Eusébio Leão, sempre doente, para o

Hotel d’Europe. Foi esse o nosso quartel-general durante as

horas da Revolução, desde a manhã de 4 até às 7 horas de 5.

”JOSÉ RELVAS, IN MEMÓRIAS POLÍTICAS.

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Só existe um meio parasalvar a humanidade (…)que o povo se compenetre queas lutas actuais são pura esimplesmente económicas euma vez feita a abolição detodos os privilégios, acabadaestará a exploração burguesae governamental e, portanto,a opressão.

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Nascida em Lisboa no seio de uma família da média burguesia, Angelina Vidalera filha de um músico ilustre, Joaquim Casimiro Júnior, organista da RealCapela da Bemposta e, mais tarde, Mestre da Sé Patriarcal de Lisboa.O pai morreu quando Angelina Vidal tinha 9 anos de idade. “Terá frequentadoum colégio de religiosas, onde adquiriu algumas noções de língua, história eliteratura pátrias, rudimentos de aritmética, as tradicionais artes femininas, oindispensável francês e sólidos conhecimentos da arte das fusas e semifu-sas”, refere Maria Helena Vilas-Boas Aboim. A sua aprendizagem não teráficado por aí e Angelina “continuou a estudar e trabalhar”, ganhando conheci-mentos que mais tarde lhe permitiram ser professora nas escolas da Socie-dade A Voz do Operário e no Conservatório, além de escritora e jornalista. Aos 19 anos casou-se com Luis Augusto Vidal, médico da Armada, de quemteve cinco filhos, mas de quem viria a separar-se em 1884, tendo perdido atutela dos filhos para o marido. Com a separação, as agruras financeiras deAngelina Vidal acentuaram-se, obrigando-a a trabalhar muito. Passou a ser avoz das mulheres, em particular das operárias, de quem mais se aproximarana sua luta pela emancipação. Destemida, já em 1880 aceitara o convite de republicanos nortenhos parair ao Porto pronunciar duas conferências que causaram brado, AngelinaVidal tornou-se jornalista, colaborando com vários órgãos de imprensa,entre eles A Voz do Operário e no jornal O Trabalho, enfrentando a intole-

rância e a suspeição de muitos. Foi também ensaísta, conferencista,tradutora e poetisa, artes que não lhe trouxeram porém bens materiais.A pobreza acompanhou-a toda a vida. Chegou a viver de subscriçõesabertas nas fábricas de tabaco.Em 1878 militou no Partido Republicano Federalista e foi uma republi-cana empenhada, mas também crítica. Já depois de implantada a Repú-blica partiu dela um alerta, recordando o que se passara após a RevoluçãoFrancesa, em que o novo poder não respeitou os princípios da Liberdade,Igualdade e Fraternidade. “A questão social é internacional, é económica”,advertia num dos artigos que escreveu. Angelina Vidal morreu em Lisboa,em Agosto de 1917, pobre como sempre viveu.

FONTES: OPERÁRIAS E BURGUESAS – AS MULHERES NO TEMPO DA REPÚBLICA, MARIA ALICE SAMARA, A ESFERA DOS LIVROS, 2007.

DICIONÁRIO NO FEMININO (SÉCULOS XIX-XX), DIRECÇÃO DE ZÍLIA OSÓRIO DE CASTRO E JOÃO ESTEVES.

ANGELINA DO CARMO VIDAL (1853-1917)

A voz das mulheres operárias

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ANGELINA VIDAL , IN “DICIONÁRIO NO FEMININO (SEC XIX-XX)”.

Notas biográficas

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6FOTOBIOGRAFIA JOSÉ RELVAS 1858-1929Autor José Raimundo Noras Edição Imagens & Letras, 2010

Apoio institucional da CNCCR

D. AMÉLIA (A RAINHA EXILADA QUE DEIXOU O CORAÇÃO EM PORTUGAL) AutorIsabel StilwellEdição A Esfera dos Livros, 2010

A MONARQUIA CONSTITUCIONAL (1807-1910)AutorMaria de Fátima BonifácioEdição Texto Editores, 2010

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S Obra profusamente ilustrada naqual se dá a conhecer o homem degrande cultura que foi José Relvas,uma das principais figuras daRepública. O empresário, o político,o diplomata, o artista e o colec-cionador de arte surgem nesta obrade José Raimundo Noras, em que sereproduz o relato feito pelo próprioJosé Relvas das 33 horas que ante-cederam o 5 de Outubro de 1910.

Amada pelos portugueses que aacolheram calorosamente quandoveio viver para Portugal, D. Améliade Orleães e Bragança era umamulher feliz quando casou comD. Carlos. Mas a sua felicidade foi-seapagando com as perdas sucessi-vas e o exílio. É a história da “rainhaexilada que deixou o coração emPortugal” que Isabel Stilwell foidescobrir.

Com o pronunciamento militar de1820, legitimado pelas novas teo-rias políticas que afirmavam residirno povo (ou na nação) a fonte únicada soberania, que concebiam opoder como um contrato entregovernantes e governados, e queviam naqueles uma espécie dedelegados destes, a revoluçãoinaugurou-se em Portugal, destacaMaria de Fátima Bonifácio na suarecente obra, dedicada à monar-quia constitucional.

5 DE OUTUBRO - UMA RECONSTITUIÇÃOAutorErnesto RodriguesEdição Gradiva, 2010

Cem anos depois, revivem-se osdias 4 e 5 de Outubro de 1910 e arevolução republicana passo apasso. Ilustrações e reproduçõesde documentos da época apoiam anarrativa de Ernesto Rodrigues queé construída a partir de relatórios ede memórias dos protagonistas doderrube da monarquia.

ANGELINA VIDAL – ESCRITORA, JORNALISTA, REPUBLICANA REVOLUCIONÁRIA E SOCIALISTAAutorMário de Campos VidalEdição Tribuna da História, 2010

Apoio institucional da CNCCR

Jornalista, escritora, poeta, femi-nista e revolucionária, AngelinaVidal foi uma mulher que lutou emtodas as frentes, mas nem semprefoi bem compreendida no seutempo. Neste livro, Mário de CamposVidal dá a conhecer a vida e a obradesta republicana e apresenta “commestria um retrato do pensamentopolítico dos meios intelectuais daépoca” como afirma no prefácioIrene Flunser Pimentel.

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REPÚBLICA E ENSINO

NEM TUDO FORAM ROSAS…

“Nem tudo foram rosas na obra educativa da IRepública”, mas “ela foi realmente importantea vários níveis, quer na laicização do ensino,quer nas novas formas de educação para acidadania, quer nas metodologias e nas expe-riências levadas a cabo com as escolas móveis,as escolas-oficina e as universidades popula-res ou ainda com a criação das universidadesde Lisboa e do Porto”.Foi com esta introdução sumária, feita porMaria Cândida Proença, que se iniciou dia 23 deAbril, na Reitoria da Universidade Nova deLisboa, o colóquio “República e Ensino” – umencontro que esta investigadora da FCSH daUNL coordenou com Guilherme d’OliveiraMartins. Ao longo de dois dias, ali foram escal-pelizadas as grandezas e as derrotas da obraeducativa da I República.Neste encontro houve lugar para alertas, sobrea necessidade de se preservar e estudar opatrimónio educativo legado por homens comoAdolfo Coelho, que criou a Biblioteca e o MuseuPedagógico. E houve espaço para a apresenta-ção de investigações originais, como era a deJaime Reis, “Os mancebos de 1930: O que feza República pela sua Educação?”. Nela é feitauma análise de resultados do esforço educativoda República, baseada não nos censos mas norecenseamento militar.Houve também lugar para homenagens avários pedagogos – de há 100 anos e contem-porâneos – e houve igualmente espaço paraintervenções críticas. Foi o caso da abordagemfeita por Sérgio Niza, que falou sobre o homemnovo republicano e sobre a formação da cida-dania democrática, algo que, 100 anos depois,em seu entender, está ainda por alcançar. “A educação cívica na lógica do Conselho daEuropa está por resolver. Propõe uma educa-ção para a cidadania com carácter transversal,

o que foi esquecido”, disse Niza, que distinguiua obra de António Sérgio, o pedagogo republi-cano que viria a ser recuperado após o 25 deAbril. “Só na autonomia se realiza um projectode educação”, sustentou.

“A VIRTUDE REPUBLICANA É ESSENCIALMENTE ACÇÃO”“A República como Demopedia” foi o tema lan-çado por Fernando Catroga, para quem “avirtude republicana é essencialmente acção.O homem é um ser prático”, sublinhou o profes-sor da Universidade de Coimbra, sustentandoque “a estratégia da pedagogia republicana é ade passar o homem da situação de menoridadepara a maioridade”.O pensamento pedagógico foi abordado emvárias comunicações como a de Maria JoãoMogarro, que falou do património educativo eda acção pedagógica de Adolfo Coelho, um repu-blicano que ousou ser crítico do Partido Repu-blicano Português, enquanto João de Barros foia figura eleita por Maria Cândida Proença.A Escola Primária Republicana foi o tema daintervenção de Joaquim Pintassilgo, que confes-sou ter hesitado ao escolher o título. “Houveuma escola primária republicana? Sim e não”,afirmou. “Um Sim, no sentido em que há umacultura republicana e um não relativo, porque hácontinuidade em várias dimensões do ensino emrelação ao que vem do século XIX”, sustentou.“Os republicanos investem imenso no esforçoda escolarização, que parcialmente não temconsequências, mas que nos dá uma tonalidademuito própria para nós hoje que ainda acredita-mos na escola como lugar de transformaçãodas pessoas”.Mais crítico foi Jorge Ramos do Ó, que abordouo Ensino Liceal, uma área em houve fraca

aposta dos republicanos e onde a monarquiaconstitucional obtivera nos seus últimos anosmelhores resultados, nomeadamente com acriação de novos liceus. Na República, o cresci-mento do número de alunos no ensino liceal foimínimo, como assinalou Ramos do Ó: no anolectivo de 1910/1911 havia 9.740 alunos noensino público, no ano lectivo de 1925/1926havia 12.604.

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SÉRGIO NIZA

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REPÚBLICA E ENSINO [email protected]

FICHA TÉCNICA Título Jornal do Cente-nário Propriedade Comissão Nacional paraas Comemorações do Centenário da Repú-blica (CNCCR) ISSN 1647-3493 DirecçãoComissão Nacional para as Comemoraçõessdo Centenário da República Coordenaçãode edição Francisco Sarsfield Cabral EdiçãoFernanda Ribeiro Colaboração Inês QueirozDesign Henrique Cayatte Design

Homenagem a Rogério Fernandes

O nome de Rogério Fernandes, o pedagogo e grande teórico daEducação recentemente falecido, foi por diversas vezes evocado pelosintervenientes no Colóquio República e Ensino e, em particular, peloscoordenadores da iniciativa, que quiseram prestar-lhe homenagem.“Devemos recordá-lo como uma figura de alguém que nos legou umaobra muito importante” afirmou durante o colóquio Guilhermed’Oliveira Martins, salientando que era suposto Rogério Fernandesparticipar naquele encontro, não fora a morte inesperadamente olevar, a 4 de Março de 2010.“Nas conversas que tivemos para organizar esta iniciativa, uma daspessoas que naturalmente referimos como sendo indispensável estarpresente foi o Professor Rogério Fernandes. Infelizmente, entre essemomento e hoje ele deixou-nos”, explicou o coordenador do colóquio,Guilherme d’Oliveira Martins.

Ao longo do encontro, outros oradores se referiram a RogérioFernandes, fosse a propósito de obras que escreveu e que são basi-lares para quem se dedique ao estudo das ciências da Educação.Rogério Fernandes fora um dos oradores no encontro “Pensar aRepública – 1910-2010”, apoiado pela Comissão Nacional para asComemorações do centenário da República, e que se realizou dia 3 deNovembro de 2009 na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas daUniversidade Nova de Lisboa. Nessa conferência, o pedagogo falaraprecisamente sobre a I República e a Educação.A revista A Página da Educação publicou na sua edição de Março a últimaentrevista dada por Rogério Fernandes (em http://www.apagina.pt/).

“Durante o regime monárquico, foram criadosseis estabelecimentos novos entre 1908 e1910”. Como exemplo de pioneirismo citou oLiceu Central de Lisboa (1906) depois LiceuPedro Nunes, do qual foi reitor António SáOliveira e onde se desenvolveram muito asassociações escolares. O Ensino Técnico e Profissional, sobre o qualversou a comunicação de José Cardim, foi umaárea que a República desenvolveu, ainda queesse desenvolvimento não tenha sido nemrápido, nem linear. Mas se em 1910 eram 27 asescolas técnico-profissionais, em 1926 essenúmero cresceu para 50, tal como cresceu onúmero de alunos.A Universidade e a República foi o tema dacomunicação de Luis Reis Torgal, “uma ques-tão complexa”, como salientou, mas em quehouve desenvolvimento durante a República,com a criação de novas Universidades e com oaumento do número de alunos. De 1911 a 1926houve um aumento de mais de mil alunos.Guilherme d’Oliveira Martins, que coordenou oencontro apresentou uma comunicação, sobrea Educação Cívica e Educação Republicana,mas centrada no que foi o republicanismo nãoapenas no período entre 1910-1926. AdolfoCoelho, Antero de Quental, Alexandre Herculano,Passos Manuel foram algumas das figuras aque se referiu, para mostrar que “a culturarepublicana ia buscar as suas raízes ao pensa-mento liberal”.A comunicação de Amadeu Carvalho Homemversou a Propaganda Republicana e de Ensinode Massas, enquanto Augusto Mateus abordoua actualidade na educação, defendendo que elaé ainda e sempre uma grande prioridade naacção pública.Para o ex-ministro, “a dimensão do desafio quetemos hoje é maior do tínhamos em 1910.E os desafios bem mais complexos. Já não é a

luta contra o analfabetismo, é enfrentar astransformações do mundo que nos exigemmais capacidades”.Se a I República foi o momento zero, o 25 deAbril foi o momento 2.0 e, agora, defendeuAugusto Mateus, “é tempo de fazer umaRepública 3.0”. “É um desafio colossal, não tanto no que dizrespeito ao acesso à educação mas à qualida-de da educação e com um programa maiscentrado na equidade do que na igualdade”.

A dimensão do desafio que temos hoje é maior do quetínhamos em 1910. E os desafios bem mais complexos.

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