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  • Afinidadeseletivas

    C

    * Professora Adjunta de Literatura Brasileira daUERJ.

    Ana Cristina Chiara*

    Resumo

    Leitura de textos de Caio FernandoAbreu, levando em conta aspectoscomo a delicadeza e as novassensibilidades.Palavras-chave: Caio FernandoAbreu, Romantismo, Narrat ivaContempornea.

    aio Fernando um escritor delicado.Mais do que isso, Caio Fernando um homem delicado. Na minha Cartedu Tendre , ele tem um lugar especial:seguramente prximo aos petits soins.Caio me d cuidados. No gostarianunca de mago-lo. E precisorecuar-se muito no tempo pararecuperar essa geografia especial dosafetos , sem a carga pesada daartilharia ideolgica das minorias.Aliviar as palavras de seu peso e fazer

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    com que brilhem leves, deixando que a pessoalidade de Caio transparea nelas,com seu jeito fraterno, engraado, comovente e incrivelmente terno. Sendodelicado, no h, todavia, nenhuma debilidade nele. Ao contrrio, existe umafora branda na literatura de Caio, uma fora de resistncia (still alive) e umafora de indignao contra os abusos, inclusive os do destino (ainda no!).

    Caio Fernando pertence linhagem dos meninos delicados de nossaliteratura que se queimam num romantismo exaltado, mesmo quando super-atuam de bad boys. da turma dos romnticos lvares de Azevedo A vidae s a vida! Mas a vida tumultuosa, frvida, anhelante, s vezes sanguenta eis o drama 1. Poderia tambm posar para uma foto ao lado de Cazuza(Piedade pra essa gente careta e covarde), ou do comovente e talvez ltimodos romnticos exagerados, Renato Russo. Doem-se tanto e acabam por morrerpor delicadeza (par delicatesse jai perdu ma vie, Rimbaud), envenenadosna prpria paixo (No posso fazer mal nenhum a no ser a mim.) .A palavra-chave entrega. E essa confuso entre a vida e a arte. Essa vida deartista mesmo quando no falam por si prprios, difcil saber quando nofalam de si (Cazuza cantando Esse Cara e estamos entendidos!...). A palavra,para esses artistas, tambm pode ser sen-si-bi-li-da-de, assim escandindo asslabas, como Drummond (esse, ao contrrio, um mestre do disfarce e docontrole da imagem um tigre disfarado.)

    Um certo dandismo transfigura esses artistas em artifces de suas vidas.Seus retratos posados: lvares de Azevedo, o jovem vestido de negro comoera moda, pintado por Krumholtz, capa Byron num ombro s, queixo apoiadona mo branca, o outro brao lnguido no joelho esquerdo, ar grave e pensativo,roupa bem cuidada e elegante. A bela face aristocrtica olha e traga o olhar dooutro para esse universo doce e triste que circunda a vida do poeta. 2 Entretanto,nenhum retrato fiel. Com relao ao poeta romntico, a lenda e a fantasiacontam mais do que a verdade da vida. O caso de lvares de Azevedo deimpressionante impregnao de fantasia potica. Menino de famlia, cria umpersonagem com tal fora que, na imaginao do pblico, passa a ser um bomiodesregrado, com pulmes carcomidos, a cabea encharcada de cognac. E emboramorresse das conseqncias de um tumor, teve a histria corrigida pela fantasiae ser sempre uma vtima do mal do seu tempo, a tuberculose.

    Esse retrato do poeta lembra os ltimos retratos de Caio nas capas deseus livros: os imensos e belos olhos negros olhando, dragando o espectador,um ar casual de quem pensou longamente cada detalhe que marcar o seulugar, cala jeans, camiseta branca e jaqueta negra de couro. (E como belo descorado assim!seus olhos entreabertos e midos, e seus lbiosfeminis! Se eu no fosse Satan, eu te amaria, mancebo)3 lvares de Azevedo

    2 Vicente de Azevedo transcreve o que narra Francisca, a irm do poeta (como lvares de Azevedoestivesse muito doente) D. Maria Lusa, desejando possuir do filho um bom retrato, convidou opintor Krumholtz para visit-lo. Vendo-o, e percebendo tratar-se de um estrangeiro, Maneco indagou:tes-vous mdecin? melhor informado disse me: Lembra-se daquele retrato que eu tirei comHonrio? Acho-o muito bom Por esse daguerretipo e pela visita ou visitas que fez ao poeta,Krumholtz comps o quadro D. Maria Lusa achava-o timo e dizia: Parece que vai falar! Trata-se, pois, antes de uma composio do que de um retrato (concludo aps a morte do poeta). p.246.

    3 AZEVEDO, lvares. In. Macrio. citado por Antonio Candido. A educao pela noite. SP. tica,1989. p.14.

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    e suas mscaras fatais, suas idias ntimas, seu charuto e seu spleen Caio,um personagem de seus contos, um jovem perdido ( lost generation) nas ruasda cidade: Aura escura, cinza, marrom, cheia de fuligem, de pressa, misria,desamor e solido. Principalmente solido, calamidade pblica.4 Um jovemem busca de e a fim de

    Artistas, como lvares de Azevedo e Caio Fernando, descem ao infernodo corpo. Escrevem com febre, tm febre de escrever: Estou com o sanguecomo gelado no corao, com calor todo da vida fervendo na cabea: Tenhoas mos trmulas. 5/6 So poetas das maldies do corpo. So as notaesdo corpo o modo que substitui, nesses escritos, as dores da alma na hierarquiados assuntos. Seus textos esto contaminados de bacilos, de vrus, de secrees,esto molhados das lgrimas e dos terrores dos doentes, solitrios, fechadosem seus quartos noite, encarando, metafrica ou literalmente, o rosto(benfazejo?) horrendo da morte, em cuja cara podem medusados cuspirtambm e podem rir tambm, comandando a teatralizao da dor:

    Ela se debruou sobre mim, to prxima que consegui ver meu rostointe i ro re f le t ido em suas pupi las d i la tadasNaquela cara v iva ,transbordando para alm das pupilas-buracos-negros vi no apenas omeu horror, mas a beleza de tudo que vivo e pulsa e freme no universoE, de repente, talvez porque eu tenha lido e sonhado e visto filmesdemais, a cara transformou-se na da Grgona. 7

    Enamorados da morte, flertando com essa idia, muito cedo essesartistas tiveram que encar-la de frente. Mas diferena de lvares de Azevedo,cujo perodo de doena foi agudo e breve, sendo, por conseguinte um doentede quarto (imagino o poeta romntico, j exausto da doena, seu meigorosto de quase adolescente, entre perplexo e fascinado, quando pede meque se afaste e murmura baixo a seu pai: Que fatalidade! Imagino comodevia ser bela em seu rosto a morte). No entanto, Caio Fernando e Cazuzano se refugiaram do mundo no enfrentamento da morte. Tratava-se de umoutro quadro de experincia. Foi corajoso o modo como viveram a morte, quefoi sendo servida aos poucos e dolorosamente, sobrepondo sua presenaobsedante e indesejvel da vida nos corpos dos dois.

    Suas mortes tiveram, em certa medida, projeo pblica. Foram mortesanunciadas. Embora fragilizados fisicamente pela AIDS, tornaram vsivel o rostooculto da doena (ou foram levados a isso pela superexposio na mdia),mostraram ao pblico suas imagens debilitadas, mas ainda belas (marcadas

    4 ABREU, Caio Fernando. Pequenas Epifanias, p.27.5 AZEVEDO, lvares. Carta me. S. 12 de abril de 1851 in. Cartas de lvares de Azevedo. SP.

    Biblioteca da Academia Paulista de Letras, Comentrios de Vicente de Azevedo, 1976.6 Maria Helena Werneck estuda as notaes do corpo na correspondncia de Machado de Assis (Veja

    como ando grego meu amigo), em Um Homem no Limiar: sobre o tema da morte em Pedro Nava,fao um mapeamento do sentimento do corpo, agudizado pela velhice, na obra de Nava.No entanto trata-se nestes dois trabalhos de uma experincia de velhos no limiar de suasexistncias. No caso dos autores vistos no mbito deste artigo, o quadro torna-se mais dramticoporque a morte surpreende-os em plena vitalidade, diferentemente do desmonte da velhice ao qualnos vamos acostumando aos poucos, aqui o rosto jovem se transforma de uma hora para outra emmscara morturia.

    7 ABREU, Caio Fernando. Mais uma carta para alm dos muros in. Pequenas Epifanias. P. A. Sulina,1996 ps.183/184.

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    por um qu de fascinante martrio) e sorridentes (embora tingidas demelancolia). Um outro tipo de vaidade cedeu lugar ao culto do corpo, umavaidade s avessas, em que as marcas da doena foram signos de uma parcavitria. O tempo no parou para esses artistas e, com urgncia criativa, elesmandavam notcias recados: estavam vivos, no eram mortos prvios, aindatrabalhavam, ainda amavam, ainda se divertiam e at (como desafio) fumavamEles se defrontavam com a morte, mas estavam vidos. (Mais uma dose? claro que eu estou a fim? 8). Foram tomados de bravura. E a isso, esseanelo, esse desejo, eu chamo a suprema delicadeza.

    Delicadeza que pode tambm estar ligada ao modo como as emoesencontram-se fortemente interiorizadas, e a esse turbilho interior correspondeuma economia de gestos, tpica dos exibicionistas tmidos. Se poucoacontece em termos de peripcias narrativas, tudo tenso e a tudo sefica atento. A ateno s coisas , por conseguinte, o correlato da intensidadeemocional posta, agora, no mundo exterior. Tudo parece estar subordinado aum desejo de projetar suas imagens em tudo que tocam. Essa pretensaconfisso provoca o fascnio no leitor voyeurista que deseja perversamentecompartilhar desse cenrio composto para seduzi-lo.

    O estudado desalinho do quarto do estudante de direito Manoellvares de Azevedo, as despretensiosas citaes das preferncias musicais,literrias e pessoais (no caso de Caio Fernando, o jardim-metfora das lutasdele contra as foras do mal, contra a fora do Mal), compem o queMarlene de Castro Correia chamou em lvares de Azevedo, de drama nacena do cotidiano .9 Intimidade exposta, as idias ntimas so o cenriodos seus escritos. Reina a desordem pela sala antiga/ desce a teia dearanha as bambinellasMeu quarto, mundo em caos, espera um fiat! 10

    O que vai conferindo significado aos detalhes e abolindo a neutralidadedos objetos.11 Movem-se num mundo sobrecarregado de significado, decorrespondncias de sentido: O sol entrou ontem em Libra. E porque tudo ritual, porque f, quando no se tem, se inventa, porque Libra a regnciamxima de Vnus12

    Este carter emocional com que se misturam vida, paixo e imaginaopertence nova sensibilidade com que os romnticos perceberam as mudanasde sua poca e ao modo como as sensibilidades romnticas contemporneaspercebem nossa poca. Sensibilidades polarizadas almas partidas; anjosdemnios, Ariel/ Caliban esses artistas cultuam as experincias limite, emque perdem suas almas, privilegiam a ferocidade das paixes, e gostam dasnoites gastas nas tavernas ou das aventuras pela noite.

    8 FREJAT, Cazuza, Ezequiel Neves. Por que a gente assim?9 CORREIA, Marlene de Castro. Poesia Sempre. Ano 6, nmero 9. Rio de Janeiro. Fundao Biblioteca

    Nacional, maro de1998 (312- 324)10 AZEVEDO, lvares. Idias ntimas in. Obras Completas . 8a. ed., vol.1, Companhia editora Nacional,

    1942. p.14811 A expresso de Antonio Candido a propsito dos parnasianos, no ensaio Os primeiros

    Baudelaireanos (op. cit. 1989)12 ABREU, Caio Fernando. Pequenas Epifanias, p.30.

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    Almas dialgicas Macrio/Penseroso, Prsio/Santiago13 expem-seem indagao permanente ao pblico. Palcos dos conflitos erticos, esseslricos disfaram, sob a capa de algum cinismo, a delicadeza feminil de suaspaixes. Delicados, crem no amor. E, se para o poeta romntico a va de soi,o amor-essa idealidade improvvel para o escritor contemporneo, significaestar na contracorrente da banalizao dos afetos: Um livro com 13 histriasindependentes, girando sempre em torno de um mesmo tema: amor. Amor esexo, amor e morte, amor e abandono, amor e alegria, amor e memria, amore medo, amor e loucura. 14

    Um pouco mais e esses autores, poderiam ir alm, nessa inclinao daliteratura para o mal. Talvez pudessem ter radicalizado a literatura do delrioe da perverso total, forar os limites da moral e dos bons costumes literrios maneira do prncipe das sombras, o belo exterminador do futuro,Lautramont. Como o anjo negro Maldoror, cravar as unhas na pele brancae lisa dos adolescentes.

    Deve-se deixar crescerem as unhas durante quinze dias. Ah! Como doce deitar-se com uma criana que nada tem ainda sobre seu lbiosuperior, e passar suavemente a mo por seu rosto, inclinando para trsseus belos cabelos! Depois, de repente, quando ele menos espera, cravaras unhas longas em seu peito macio, de tal modo que no morra; poisse morresse, no teramos mais tarde o espetculo de suas misrias.15

    No entanto se para lvares de Azevedo faltou maturidade16, paraCaio Fernando excedeu a boa conscincia do discurso amoroso que busca anaturalizao do erotismo humano, no sentido de torn-lo bom e verdadeiroem si mesmo.

    Se o toque do outro de repente for bom? E se tudo isso que voc achanojento for exatamente o que chamam de amor? Quando voc chegano mais ntimo. No to ntimo, mas to ntimo que de repente a palavranojo no tem mais sentido. Voc tambm tem cheiros. As pessoas tmcheiros, natural. Os animais cheiram uns aos outros. No rabo. O quevoc queria ? O amor s acontece quando uma pessoa aceita quetambm bicho. Se o amor for a coragem de ser bicho. Se o amor for acoragem da prpria merda.17

    H, no texto de Caio Fernando, um tratamento das experincias docorpo a que se contrapem, por exemplo, dois poetas contemporneos paraquem a homossexualidade corresponde vivncia do xtase, nada parecidacom o toque bom do amor. Para eles, talvez, o amor, como aparecetematizado na obra de Caio, seja uma experincia que ultrapasse at a prpriacoragem de ser bicho, sendo uma vivncia radical do mais. A experincia

    13 Trata-se de personagens de lvares de Azevedo e de Caio Fernando respectivamente nas novelasNoite na Taverna e Pela noite adentro.

    14 ABREU, Caio Fernando. Os Drages no conhecem o paraso. (Prefcio).15 LAUTRAMONT. Obra Completa. trad., prefcio e notas de Claudio Willer. So Paulo. Iluminuras,

    1997. p.7116 Cf. Artigo de Mrio de Andrade : Amor e Medo in. Aspectos da Literatura Brasileira , 6ed. So Paulo,

    ed. Martins, 1978.17 ABREU, Caio Fernando. Pela Noite in. Estranhos Estrangeiros. So Paulo. Companhia das Letras,

    1996. p.114.

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    do desejo neles quase de imolao ritual, juntando ascese mstica e friaprofana. Trata-se de Valdo Motta e de Roberto Piva e da radical transfiguraoda vivncia homossexual em transe corporal:

    No cu / de Exu / a luz18 (Valdo Motta)Teu cu fora da lei / lngua dos espritos ndiosteu pau enfurecido boca no meu palegria de anjo/ boca no meu saconas estradas do prazer/ poesia desatinocogumelos profetizando abrindo a Noiteanarquia & delrio ao excesso do Dia

    (Roberto Piva)19

    Caio Fernando, ao contrrio, impregna sua obra de uma doceafetividade. Como escritor, dedica-se a restaurar os acontecimentos, como,nos museus, retira-se com cuidado a ptina do tempo das obras de arte a fimde nelas recuperar o brilho. Na literatura de Caio, os acontecimentos maissem graa recuperam esse brilho so pequenas epifanias. So, portanto,um modo de conferir importncia ao outro, aos detalhes e ao cotidiano.Era isso aquela outra vida, inesperadamente misturada minha, olhando aminha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: umapequena epifania 20

    Epifania torna-se na literatura de Caio uma experincia de compaixo.Compaixo: curvar-se na direo do outro, estar prximo, ser fraterno,preocupar-se com e ocupar-se do outro sem sobrecarreg-lo. Talvez a palavramelhor fosse acolhimento. Epifania no sentido de um concentrar-se nomomento presente de forma atenta, de tocar o ponto claro e brilhante dadesimportncia das coisas pequenas. Voltar-se para o outro, para o pequenodo outro, para as fragilidades do outro.

    Em suas crnicas, e porque as crnicas talvez sejam um gneromais adequado (depois da poesia) para essa qualidade de sentimentos,Caio Fernando Abreu pode experimentar essa disponibilidade para opequeno Deus, pe teu olho amoroso sobre todos os que j tiveram umamor sem nojo nem medo. sobre todos que continuam tentando porrazo nenhuma-sobre esses que sobrevivem a cada dia ao naufrgio deuma por uma das iluses. 21

    O texto de Caio Fernando , sem dvida, representante da afetividadeintensa a que a literatura pode ascender em alguns momentos privilegiados.Seus fragmentos de vida nas crnicas reunidas em Pequenas Epifanias nosdo essa medida do infinitivamente pessoal, confessional e humano, que rara nos textos arrogantes e blass das colunas dos jornais atuais ondebrilharam, em dias melhores, Clarice, Drummond, Antonio Maria, Rubem Braga(para ficar com os reis dos reis); assim como as deles, suas pequenas epifanias

    18 MOTTA, Valdo. Bundo e outros poemas. Campinas, So Paulo, Unicamp, 1996, p.69.19 PIVA, Roberto. Ciclones. So Paulo, Nankin Ed., 1997. p.34.20 ABREU, Caio Fernando. Pequenas Epifanias. Porto Alegre; Sulina, 1996. p.14.21 Idem, ibidem. p.31.

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    atingem tambm a justa e necessria medida do geral (ou do universal) parapoderem sobreviver ao serem recolhidas num livro

    A compaixo com que Caio se refere ao mundo sua volta aproxima-o em afetividade da poesia de Manuel Bandeira, cujo olhar compassivo paracom os pequeninos, para com os animais, com as mulheres pobres etresloucadas, com os amantes, com os solitrios, com os cocainmanos, levouDavid Arrigucci a escrever o belo ensaio em que desloca o sentido da palavrahumilde do carter de servido para o de estar a servio, prximo dos outros,dos que esto sozinhos, dos que so pobres, dos que trabalham, dosesquecidos. 22

    Compaixo que se forja na solidariedade dos que se acostumaram aser irremediavelmente solitrios, porque compreenderam que todos so ssmesmo quando no esto ss. Dos que sentiram a solido dos doentes, dosamores impossveis, a solido noturna da prpria condio humana, mas quepuderam super-la pela fraternidade apaixonada com que estenderam suasensibilidade acolhendo o outro, das flores ameaadas pelo caramujo dostextos de Caio ao porquinho da ndia de Manuel Bandeira, dos amigos quepartiram ao grande amor que esperaram inultimente, transformando a matriapouca e rala do cotidiano em motivo de ordem potica, em alumbramento.

    O meu quarto de dormir a cavaleiro da entrada da barra.

    No entanto o que ouo neste momento um silvo agudo de sagim. 23

    Sentado escrivaninha, de frente para a janela, estou vendo uma cenaA cena acontece no meu campo de viso, s poderia evit-la saindodaqui. Mas quero ver .24

    Sozinhos, em seus quartos, filtravam a experincia do contato humanoextraindo das coisas o sentido da passagem do homem pelas coisas, ou osem sentido dessa passagem. Na justa medida sem muito desespero, que intil, sem pieguice, que de mau gosto, sem cinismo, porque j basta adesrazo, mas com suave ironia para poder suportar o peso como na perfeitaequao do poeta: Quero tanta coisa/ Belo belo/ Mas basta de lero-lero/Vida noves fora zero. 25

    Nas crnicas de Caio Fernando, e mesmo em seus contos, essaproximidade do outro arranca o pronome de tratamento voc da coloquialidadevazia e, por meio dele, constri uma ponte de cumplicidade com o leitor,forando intimidade, mas sobretudo, responsabilizando-o, para motivar ointeresse pelo mundo volta: Quem consola aquela prostituta? Quem meconsola? Quem consola voc, que me l agora e talvez sinta coisas semelhantes?Quem consola este pas tristssimo? 26 Caio Fernando tem essa espcie de

    22 ARRIGUCCI, Davi. O humilde cotidiano de Bandeira. In. Enigma e Comentrio. So Paulo.Companhiadas Letra. 1987.

    23 BANDEIRA, Manuel. Comentrio Musical (Libertinagem). In. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro,Jos Olympio, 1970. p. 107.

    24 ABREU, Caio Fernando. Pequenas Epifanias. p.57.25 BANDEIRA, Manuel. Op. cit. (Belo belo). p. 193.26 ABREU, Caio Fernando. Pequenas Epifanias. p. 68.

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    responsabilidade que o faz tomar conta do mundo, no sentido de estaratento s misrias e ao sofrimento, atento ao lixo da vida.

    Essa atitude existencial provoca, vez em quando, o estado deperplexidade que podemos localizar em outra afinidade de Caio Fernando:A vida era isso, ento? Essa falta de vergonha? 27 Isso a vida? O domniodo aqui e do agora? Uma filiao? Um jeito torto de olhar que lembra o darde ombros de Clarice Lispector. O susto que a vida era para Caio FernandoAbreu, s vezes, equivale ao susto Clarice. O susto de ter de olhar o olho deesttua cega, na bilheteria do cinema.

    Nesses momentos a delicadeza e a compaixo vm transfiguradas poruma aura dura de realismo cruel. O texto no alivia a intensidade de que omundo real passa a estar impregnado. Tanto pode ter a ver com a doena as cartasde Caio para alm dos muros como tambm j estava nele h muito tempo,desde o comeo de sua literatura, desde o Inventrio do irremedivel.Uma conscincia de no fazer parte 28. Conscincia de ver o real descarnadoabsolutamente de fora dele. Uma espcie de epifania s avessas porque aoinvs do sentimento de acolhimento do outro, isso provoca um repelo, umsalto para fora de um crculo de percepo confortvel, uma sensao de seestar penetrando no ciclo seco:

    No que o ciclo seco no tenha f , o que acontece que nopodendo ver o que no visvel , f ica l imitado ao real

    Por ser limitado ao real, o ciclo seco jamais considera a possibilidadede um osis ou de uma caravana passando. Secamente, apenas vaiem frente. 29

    Ou o modo como Clarice Lispector entende a existncia bruta, semlibis, sem esquecimento:

    O mais difcil no fazer nada: ficar s diante do cosmos . Trabalhar um atordoamento. Ficar sem fazer nada a nudez final. H uns queno agentam. Ento vo se divertir.30

    A experincia do ciclo seco da ordem do irremedivel, como diriaClarice. diferente da experincia do desprezvel, essa Caio reserva para osassuntos da banda podre: a poltica torta e falaciosa, a perda da qualidadede vida nas cidades (a lei do atrolho), as pequenas perversidades, ospreconceitos covardes. Ciclo seco quando a impresso do real se tornaexpresso muda do real. Ento tem que haver muita impiedade para que oescritor no doure a plula, no faa gracinhas, nem aterrorize, basta quediga sim para o ciclo seco. Basta que d os verdadeiros nomes, sem desvios.O sujeito, ento, sofre a experincia da secura nos seus mais diversospatamares: a insupervel, da individualidade, sozinho num canto sempossibilidade de compartilhar com ningum; a da impossibilidade do amor,como um cachorro batido pelo dono; a da dor fsica na doena, perdidasolido; a da presena iminente da morte ensaio cruel para o destino fatal.

    27 LISPECTOR, Clarice. A Via Crucis do corpo . Rio de Janeiro. Artenova, 1974. p.71.28 ABREU, Caio Fernando. Idem. p.162.29 Idem, ibidem. p.125/126.30 LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984. p.589.

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    A literatura do ciclo seco no de alvio. Com ela, Clarice, e com ele,Caio Fernando, nos afastamos das aprazveis regies na Carte du Tendre .Ingressamos nos domnios do nojo que vivido no extremo do brutal contatocom o real indiferente, com a imagem proliferante da morte, afeta a delicadeza,tingindo-a de terror pnico:

    E foi quando eu pisei num enorme rato morto. Em menos de um segundoestava eu eriada pelo terror de viver em menos de um segundoestilhaava-me toda em pnico, e controlava como podia o meu maisprofundo grito .31

    Referncias Bibliogrficas

    ABREU, Caio Fernando. Mais uma carta para alm dos muros. In: ___.Pequenas epifanias . Porto Alegre: Sulina, 1996.______. Pela noite. In:___. Estranhos estrangeiros . So Paulo: Companhiadas Letras, 1996.______. Os drages no conhecem o paraso . So Paulo: Companhia dasLetras, 1988.ARRIGUCCI, Davi. O humilde cotidiano de Bandeira. In:___. Enigma ecomentrio. So Paulo: Companhia das Letras, 1987.AZEVEDO, lvares. Carta me. S. 12 de abril de 1851. In: ___. Cartas delvares de Azevedo. Comentrios de Vicente de Azevedo. So Paulo:Biblioteca da Academia Paulista de Letras, 1976.AZEVEDO, lvares. Macrio. In:___. Obras completas . 2v. 8a. ed. Rio deJaneiro: Companhia Editora Nacional, 1942.BANDEIRA, Manuel. Comentrio musical (Libertinagem). In:___. Estrelada vida inteira. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1970.CANDIDO, Antonio. A educao pela noite . So Paulo: tica, 1989.CORREIA, Marlene de Castro. Poesia sempre . Ano 6, nmero 9. Rio deJaneiro: Fundao Biblioteca Nacional, marode1998.LAUTRAMONT. Obra completa. Traduo, prefcio e notas de ClaudioWiller. So Paulo: Iluminuras, 1997.LISPECTOR, Clarice. A via crucis do corpo. Rio de Janeiro: Artenova, 1974.______. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.MOTTA, Valdo. Bundo e outros poemas . Campinas, So Paulo: Unicamp,1996.PIVA, Roberto. Ciclones . So Paulo: Nankin Ed., 1997.

    31 Idem, ibidem. p.485.