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Cultura e projeto urbano: interfaces com o patrimônio na zona portuária do Rio de Janeiro
Isabela de Fátima FogaçaDoutora em Geografia e Mestre em Turismo e Hotelaria, Bacharel em Turismo,
Licenciada em Geografia. Professora dos cursos Bacharelado e Licenciatura em Turismo e dos Programas de Pós-graduação em Patrimônio, Cultura e Sociedade
(PPGPACS) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ); [email protected]
Suyane Moraes da SilvaGraduanda do curso Bacharelado em Turismo da Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro (UFRRJ). Bolsista de Iniciação Científica (PIBIC/ CNPq); [email protected]
Introdução
A imbricação dos processos de renovação urbana com as condições e as políticas
culturais se acentua na contemporaneidade. A relação da cultura com projetos urbanos,
nos últimos trinta anos, faz parte de um processo mais vasto de uso da cultura que se
relaciona à economia das cidades e no posicionamento dessas em uma rede e mapa
global de cidades capazes de atrair investimentos, visibilidade e poder.
O conceito de cultura vem passando por transformações e se amplia em largas
esferas, o que influencia na diversificação dos produtos ditos culturais, evidenciando o
conceito de “cultura-econômica”, que a relaciona com o desenvolvimento econômico.
Nessa discussão, do planejamento de cidade estratégicas, a cultura passa a
constituir um elemento central, uma vez que, como apresenta Vaz e Jacques (2001,
p.673) “[...] uma das condições exigidas das cidades que almejam se inserir na rede
global é de apresentar entre os itens que compõem a qualidade de vida urbana um
adequado padrão cultural”.
Sendo assim, observa-se que nas intervenções urbanas brasileiras, em cidades
como São Paulo, Rio de Janeiro, entre outras, especialmente capitais, das últimas
décadas vêm crescendo, progressivamente, a importância dos aspectos relacionados ao
patrimônio cultural e de seu uso por atividades como, por exemplo, o turismo, que
destacam sua face e valor mercadológico.
Essa discussão está relacionada ao que chamamos de indústria cultural, ou seja,
a produção de mercadorias culturais, em que a cultura e tratada como mercadoria a ser
vendida e consumida. Portanto, cada vez mais se tem observado projetos de
revitalização urbana com argumentos ligados à valorização da cultura, e, por
consequência, do patrimônio cultural, em que ambos são ativados para um aspirado
desenvolvimento local.
Através dessa e outras concepções, torna-se fundamental estudar como o
patrimônio cultural vem sendo tratado no âmbito de projetos, como o Porto Maravilha,
que trouxe grande invenção à zona portuária do município do Rio de Janeiro, e interface
que produz com o patrimônio material e imaterial nesse contexto.
Como metodologia para o desenvolvimento desta pesquisa, optou-se pela
pesquisa bibliográfica e documental, a partir da problemática do planejamento urbano
contemporâneo, e, principalmente, que descrevam as experiências das cidades
brasileiras nas grandes operações de reconversão urbanas em que a cultura foi
privilegiada como um ativo econômico. Foi realizado também análise dos relatórios
trimestrais publicados no portal oficial do projeto Porto Maravilha, com intuito de
entender como a própria concessionária responsável pelo projeto apresenta suas ações
relacionadas à cultura e ao patrimônio na composição do mesmo, além de trabalho de
campo e entrevistas com duas gestoras de instituições relacionadas à temática e que se
localizam na área atingida pelo projeto.
O conceito de cultura e sua nova compreensão como ativo/ recurso econômico
O conceito de cultura, como um conceito dinâmico, vem ao logo da história se
transformando, e, na contemporaneidade, ele se amplia, especialmente em função da
globalização e dos impactos dos meios de comunicação, diversificação dos produtos
culturais, bem como de sua massificação, o que revela também a sua perspectiva
mercadológica.
A esfera cultural a partir da crise de várias fontes de crescimento econômico e da
maior distribuição de bens culturais, ganha um protagonismo, de acordo com Yúdice
(2013), como algo ainda não visto na história da modernidade.
Ao discutir a conveniência da cultura, o autor apresenta que “[...] o papel da
cultura expandiu-se como nunca para as esferas política e econômica, ao mesmo tempo
que as noções convencionais de cultura se esvaziaram muito” (YÚDICE, 2013, p.25),
sujeitando-se ao imperativo comercial.
Passa-se a uma instrumentalização da arte e da cultura, seja para melhoria das
condições sociais (tolerância multicultural, cidadania e direitos culturais, etc), seja para
crescimento econômico (desenvolvimento cultural urbano e turismo cultural e urbano,
entre outros). Portanto, a conveniência da cultura para o autor seria “uma característica
obvia da vida contemporânea” (YÚDICE, 2013, p.51).
Yúdice (2013), fundamentado em estudiosos da cultura pelo mundo, ainda
complementa afirmando que:
Em vez de focalizar o conteúdo da cultura – ou seja, o modelo da melhoria (segundo Schiller ou Arnold) ou da distinção (segundo Bourdieu), tradicionalmente aceitos, ou a sua antropologização mais recente, como todo um meio de vida (Williams), segundo a qual reconhece-se que a cultura de qualquer um tem valor – talvez seja melhor fazer uma abordagem da questão da cultura de nosso tempo, caracterizada como uma cultura de globalização acelerada como um recurso (YÚDICE, 2013, p.25 – gripo do autor).
Ou seja, a legitimação da cultura passa a ser baseada em sua utilidade, por meio
da expansão de seu conceito no sentido de solução para problemas, melhorar a
educação, diminuir criminalidade e preconceito racial, promover a coesão social,
reverter a deterioração urbana por meio do turismo, inclusive de criação de empregos.
Yúdice (2013) denomina essa iniciativa de promover a cultura a partir de sua
utilidade, ou seja de seus resultados finais, sociopolíticos ou econômicos de “economia
cultural”. Essa discussão estaria relacionada ao que chamamos de indústria cultural, ou
seja, a produção de mercadorias culturais, a cultura como mercadoria a ser vendida e
consumida.
Segundo Bianchini (1995 apud VAZ E JACQUES, 2001, p.671), até mesmo as
políticas culturais seguem esse movimento, na década de 1980, “no clima do neo-
conservadorismo e neo-liberalismo, as políticas culturais deixam de dar respostas aos
objetivos dos movimentos sociais para dar resposta aos objetivos de desenvolvimento
econômico”. Portanto, na era da indústria cultural, os bens culturais se relacionam a
uma forte necessidade da sociedade pós-industrial ou de massa, o entretenimento.
A cidade não fica alheia a essa discussão, visto que a cultura é inerente à
sociedade e, consequentemente, à cidade que, por um lado, representa a territorialização
da cultura e, por outro, na perspectiva capitalista, o locus da produção e do consumo,
inclusive do consumo do lazer e do entretenimento.
Nas grandes cidades, em um cenário caracterizado pela agitação do dia-a-dia, inúmeros problemas e excesso de preocupações, torna-se cada vez mais forte
o desejo do ser humano em buscar no lazer a solução para a sua frequente necessidade em escapar da saturação e da ‘desordem’ urbana. Não raro, o aumento do tempo livre e a constante busca pela diversão e entretenimento direcionaram o consumo para as atividades de cultura e lazer, qual seja, viagens e passeios frequentes a teatros, cinemas, museus, centros culturais etc (MACHADO, 2003, p.8)
Yúdice (2013) também discute a relação da indústria cultural com as cidades,
citando o Turismo cultural como um elemento que facilita a transformação da cidade
pós-industrial. E, como exemplo emblemático, cita o Museu Guggenhein em Bilbao. As
lideranças locais, preocupados com a reputação da cidade pelo terrorismo e sua
desgastada infraestrutura, buscaram por meio do investimento cultural (um museu com
a marca emblemática de Frank Gehry) atrair atividades que revitalizariam a cidade por
meio da “indústria” de serviços. Cita também Peekskill, em Nova York, que criou um
distrito industrial e ofereceu incentivos a artistas que ali quisessem se instalar, na
perspectiva que os artistas representariam a ascensão social da cidade.
Nesse sentido, como apresentado por Vaz e Jacques (2001), a relação da cultura
com os projetos urbanos contemporâneos faz parte de um processo mais vasto de uso da
cultura, que a relaciona com o desenvolvimento econômico.
Assim, após discutimos essa perspectiva da cultura como um recurso
econômico, e um campo de investimentos e de interesse da sociedade contemporâneo,
no próximo item, discutimos mais especificamente ao campo de estudo deste trabalho,
os projetos urbanos e sua relação contemporânea com a cultura e o patrimônio cultural,
tendo como caso a ser discutido o município do Rio de Janeiro e o projeto Porto
Maravilha..
O projeto Porto Maravilha e suas interfaces com o patrimônio
O projeto Porto Maravilha criado a partir da lei 101 de 2009, que instituiu a
Operação Urbana Consorciada da Área de Especial Interesse Urbanístico da Região
Portuária do Rio de Janeiro, dentro dos compromissos assumidos para a candidatura dos
Jogos Olímpicos Rio 2016, relaciona-se a uma área de cinco milhões de metros
quadrados e tem como limites as Avenidas Presidente Vargas, Rodrigues Alves, Rio
Branco, e Francisco Bicalho (DINIZ, 2012), e trouxe como promessa devolver uma
centralidade de lazer, entretenimento, turismo e moradia à cidade.
No projeto, foram incluídas obras de reestruturação urbana, mobilidade urbana,
bem como de construção de equipamentos culturais ao longo da área denominada Orla
Prefeito Luiz Paulo Conde, valorização e revitalização de outros lugares e equipamentos
de seu entorno.
No âmbito do projeto Porto Maravilha foi desenvolvido o Porto Maravilha
Cultural que visou a recuperação e restauração material do patrimônio artístico e / ou
arquitetônico; a valorização do Patrimônio Cultural Imaterial; a preservação,
valorização da memória e das manifestações culturais; a exploração econômica do
patrimônio material e imaterial, respeitados os princípios de integridade e
sustentabilidade do patrimônio, e inclusão e desenvolvimento social; a produção de
conhecimento sobre a memória da região e inovação na sua exploração sustentável; a
formação e pesquisa, incluindo a produção de publicações sobre o patrimônio material e
imaterial da região portuária (PORTO MARAVILHA, 2017).
Essa perspectiva se fortaleceu com os achados do Cais do Valongo, um sítio
arqueológico, encontrado durante as obras do projeto Porto Maravilha e que foi o mais
importante ponto de desembarque de escravos na América, onde também estava o
cemitério do Valongo (Figura 1).
Figura 1: Sítio arqueológico Cais do Valongo
Fonte: BBC, 2017
De acordo com Porto Maravilha (2017- website), o Porto Maravilha Cultural,
juntamente com outro programa Porto Maravilha Cidadão, tinham a função de.
... articular ações do poder público e parcerias com o setor privado para fomentar e apoiar iniciativas que promovam o desenvolvimento sócio-econômico da população que hoje vive na região e a valorização do seu patrimônio histórico. Com esta estratégia contribuiremos também para o fortalecimento da Sociedade Civil da região.
Assim, no projeto foram incluídas obras de construção de equipamentos
culturais como Museu de Arte do Rio (MAR), o Museu do Amanhã (Figura 2), o
aquário do Rio de Janeiro (AquaRio), o mural Etnias (mural Kobra) (Figura 3), além de
valorizar e revitalizar outros lugares e equipamentos ali próximos, como as próprias
praças Mauá e XV, o Morro da Conceição, a Pedra do Sal, a Cidade do Samba, o Centro
Cultural Banco do Brasil (CCBB), a Casa França-Brasil, o Centro Cultural dos
Correios, o Paço Imperial, a Ilha Fiscal, etc, todos localizados em uma área de 3,5
quilômetros de extensão, denominada Orla Prefeito Luiz Paulo Conde ou em seu
entorno.
Figura 2: Museu do Amanhã na Orla Conde construído pelo projeto Porto Maravilha
Fonte: Porto Maravilha, 2017
Figura 3: Mural Etnias na Orla Conde construído pelo projeto Porto Maravilha
Fonte: Veja Rio, 2017
A orla Conde, dentro da área portuária e central e que compõe o projeto Porto
Maravilha, trata-se de um calçadão que margeia a Baia de Guanabara e liga as praças
Mauá e XV, aos moldes das Ramblas espanholas, que durante a realização dos Jogos
Olímpicos e Parolímpicos 2016 ganhou o título de Boulevard Olímpico (Figura 4) e
recebeu inúmeras atrações culturais, a maior parte patrocinada por empresas privadas e
multinacionais, como a coca cola.
Figura 4: Boulevard Olímpico durante os jogos Rio 2016
Fonte: Facebook, 2017 (funpage Boulevard Olímpico)
Segundo Santos e Lins (2016, p.4), o “porto Maravilha” conecta 27
equipamentos culturais, e reconfigura uma área, “[...] excluída do setor de investimentos
e de turismo para ser um novo cartão postal da cidade, de certa forma, assumindo uma
re-centralidade de um perímetro de 5 milhões de m², apartado do Centro por décadas”,
como se observa na figura 5.
Os equipamentos culturais já entregues funcionam como âncora do projeto Porto
Maravilha para atração de empreendedores no setor de alimentação (alguns meios de
comunicação propõem roteiro que inclui aproximadamente 10 restaurantes na área),
entretenimento (além dos museus e aquário ali instalados, busca-se manter uma
programação de eventos culturais para movimentar a área), hotelaria, entre outros que
tornam o espaço urbano mais alinhado à perspectiva da global, cultural e divertida, a
uma população que pode pagar pelo preço de viver nela e que causam grande impacto
tanto cultural quanto social na região.
Figura 5: Atrativos culturais presentes na região atingida pelo Porto Maravilha
Fonte: Porto Maravilha, 2017
De acordo com o Porto Maravilha (2017), até o ano de 2017, foram investidos
para Construção e recuperação de equipamentos culturais, os seguintes valores:
•Museu do Amanhã (atualmente geridos pela SMC) 1.Obra: R$ 215 mi (Recursos da PPP) 2.Gestão: R$ 31.169.014,00 3.Museografia: R$ 18.553.673,84 (Aporte do Município) •MAR (atualmente geridos pela SMC) 1.Obra de restauro do Palacete Dom João VI: R$ 13.501.165,99 2.Gestão de abril 2012 até abril 2016: R$ 52.000.000,00 •Restauro da Igreja de São Francisco da Prainha: R$ 3.965.486,38 •Restauro dos Galpões da Gamboa: R$ 8.534.172,82 •Restauro Sede do Talma: R$ 1.465.206,78 •Apoio ao restauro de privados – programa Pro-Apac Sagas: R$ 3.000.721,03 •Construção da Quadra da Vizinha Faladeira: R$ 1.110.220,00 •Restauro do Centro Cultural José Bonifácio: R$ 3.888.202,00
No entanto, apesar do discurso oficial somente destacar benesses sobre o projeto,
inúmeras críticas e questionamentos veio sendo feitos nos últimos anos às intervenções
ali desenvolvidas, como, por exemplo, a apropriação de elementos culturais pelo
turismo (mercantilização e elitização do uso da área), a intervenção localizada, como
foram os restauros ali realizados, e que não se expande ao entorno, a manutenção desta
área renovada e de sua dinâmica turística e cultural, entre outros.
Mesmo no dossiê de candidatura da cidade do Rio de Janeiro para sediar os
jogos olímpicos de 2016, o projeto Porto Maravilha já vinha apresentado como algo que
revolucionária a realidade da região, e, em que, o patrimônio cultural ocupava um
importante papel.
a revitalização da região portuária do Rio, que compreende a criação de uma região vibrante, relacionada com os navios de cruzeiro ancorados no local. [...] irá [...] transformar em um atraente centro comercial, cultural e de entretenimento, com excelentes opções de transporte, bem no centro da cidade. Ele também servirá para reaproximar a cidade do seu porto, em uma área de impressionante de patrimônio histórico-arquitetônico (DOSSIÊ DE CANDITATURA RIO 2016, v.3. p.74).
Assim, o projeto “Porto Maravilha”, segundo Santos e Lins (2016, p.2),
ancorava-se no discurso da diversidade cultural e arquitetônica, e no resgate do local.
Mas, como os autores bem destacaram, a implantação de novos equipamentos como o
Museu de Arte do Rio (MAR) e o Museu do Amanhã, inaugurados respectivamente em
2013 e em 2015, vai[...] ao encontro de um padrão global de transformação do espaço urbano que tem esses aparatos culturais monumentais como estratégias de atração de turistas. Ou seja, o consumo é o próprio espaço, empacotado em um discurso cultural, sendo os museus, âncoras do desenvolvimento local, e eles mesmos, objetos de desejo (SANTOS; LINS, 2016, p.2).
Essa perspectiva contribui para diferenciar o Rio de Janeiro na linha da cidade-
mercadoria.[...] o porto, e sua denominação do ‘maravilhoso’, traz uma nova resignificação (sic) do espaço não só físico, como simbólico. Não se trata mais de um espaço de carga e descarga, de exportação e de importação de mercadorias, agora o porto é alçado à outra esfera de significação – ele próprio um espaço de lazer, de consumo, um novo produto turístico para a cidade do Rio de Janeiro. Ou seja, ao lado das belezas naturais já consagradas no imaginário da cidade, apresenta-se, principalmente, a beleza (recém) construída, com os empreendimentos culturais Museu de Arte do Rio e Museu do Amanhã, ambos margeados pela Orla Prefeito Luiz Paulo Conde (SANTOS; LINS, 2016, p.2).
Processo que pode ser bem visto por uma avaliação superficial, mas que em uma
análise, mais aprofundada, demostra, ainda mais, a fragmentação da cidade em
territórios desiguais, no qual o patrimônio, após revitalizado e adicionado a um circuito
de consumo, é distanciado do seu verdadeiro dono, a comunidade de seu entorno.
Ao realizar a leitura dos relatórios trimestrais da Companhia de Desenvolvimento
Urbano da Região Portuária (CDURP), uma arquitetura institucional e tecno-
administrativa criada para gestão do projeto, publicados no período de 2010 ao primeiro
trimestre de 2018, é perceptível que a cultura foi um forte argumento usado para a
aceitação da comunidade que reside no entorno da região para a revitalização que ali
ocorreu e para todo o transtorno que sofreram como remoções, sujeira, entre outros.
A análise dos relatórios trimestrais, publicados no período de 2010 ao primeiro
trimestre de 2018, apresentam interfaces do projeto com o patrimônio. No trimestre de
outubro a dezembro, houve a elaboração das propostas para os Programas de
valorização do Patrimônio Cultural. O programa regulamentava a utilização dos
recursos oriundos da venda de Certificados de Potencial Adicional de Construção
(CEPACs) de acordo com a Lei Complementar 101/2010.
No ano seguinte, no trimestre de janeiro a março, os Programas Porto Cidadão e
Porto Maravilha Cultural foram aprovados pelo Conselho de Administração, e, como
parte do Porto Cultural, foi definido, em conjunto com a Subsecretaria Municipal de
Patrimônio, o projeto de restauração dos Galpões da Gamboa. No trimestre seguinte de
2011, foi elaborado o projeto de restauração dos Galpões da Gamboa e foi aberta a
licitação para restauração custeada com recursos oriundos da venda dos CEPACs. No
relatório do trimestre de junho a agosto, foi registrado o início das obras de restauro dos
Galpões da Gamboa e foi aberto o processo de licitação para o restauro do Centro
Cultural José Bonifácio. No último trimestre do ano de 2011, houve a Instituição da
Comissão para a criação do Circuito de Celebração da Herança Africana da Região
(CCHA) e a CDURP colaborou com os estudos para a delimitação do Cemitério dos
Pretos Novos.
No primeiro trimestre de 2012, houve a elaboração do projeto de uso do Centro
Cultural José Bonifácio e Grupos de Trabalho para a Criação do Circuito da Herança
Africana, além da análise de propostas de uso para os Galpões da Gamboa. No segundo
trimestre houve a realização de uma Audiência Pública em que foi apresentado e
debatido o “Relatório do Valongo”, que apresenta os resultados e as recomendações
para a implantação do circuito. O programa, também, naquele ano, apoiou diversas
atividades voltadas à valorização do patrimônio da região, com destaque para atividades
culturais na Pedra do Sal e outras atividades. No semestre seguinte não há registros de
ações relacionadas ao patrimônio. No trimestre de outubro a dezembro, houve a
contratação de uma empresa especializada para contenção e execução do restauro da
Igreja de São Francisco da Prainha.
Em 2013, no primeiro semestre, os relatórios citam as ações realizadas do Porto
Maravilha Cultural no que tange a proteção estrutural da Igreja de Nossa Senhora da
Prainha e convênio para a manutenção do Instituto Pretos Novos. No semestre que
seguiu não houve registros sobre o patrimônio. No trimestre de julho a setembro, houve
a conclusão das obras do Centro Cultural José Bonifácio e o programa Porto Maravilha
Cultural lançou dois editais para valorização do patrimônio da área, um para premiar
projetos culturais, e outro, para apoiar ações de restauro de imóveis preservados na
Região Portuária. No último trimestre desse ano, a CDURP lançou o prêmio Porto
Maravilha Cultural, que destinou R$ 3,8 milhões a 34 projetos culturais a serem
executados na área nos próximos meses e reinaugurou o Centro Cultural Jose Bonifácio
no Dia da Consciência Negra. Houve ainda a oficialização do Cais do Valongo como
Patrimônio Cultural Carioca.
Em 2014, houve registros relacionados ao patrimônio no segundo trimestre do
ano, assim houve a instalação da placa de identificação e valorização da área do
Quilombo da Pedra do Sal, reconhecendo como Patrimônio Cultural da Cidade do Rio
de Janeiro e abertura do canteiro de obras da Igreja de São Francisco da Prainha. No
próximo trimestre, a Sociedade Dramática Particular Filhos de Talma, uma das
primeiras escolas de interpretação do Rio, reabriu as portas ao público, na Saúde, após
restaurado pelo programa Porto Maravilha Cultural.
Em 2015, no segundo semestre, houve a entrega do prédio da Igreja de São
Francisco da Prainha, restaurado e o lançamento do Turismo de Experiência do Porto.
No terceiro trimestre, a Praça Mauá foi reinaugurada com expressivo impacto na vida
cultural da cidade, em resgate da importância histórica do espaço.
Em 2016, no primeiro trimestre, a Organização Cultural Remanescentes de Tia
Ciata (ORTC) e o Centro Cultural Pequena África (CCPA) ganharam sede nova na
Região Portuária, no Jardim Suspenso do Valongo, e o Programa Porto Cultural
renovou o apoio ao Instituto Pretos Novos.
Em 2017, as interfaces com o patrimônio diminuem drasticamente, somente as
obras de conservação e manutenção mantinham seu ritmo normal, mesmo assim, há
registros de um grupo de trabalho para a criação do Museu da Escravidão e Liberdade e,
no terceiro trimestre o Cais do Valongo foi declarado oficialmente Patrimônio da
Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura (UNESCO). Foi ainda criado um Grupo de Trabalho destinado ao
desenvolvimento de ações que visavam a gestão, educação, preservação, conservação e
manutenção de forma integrada e compartilhada do Sitio Arqueológico Cais do
Valongo.
Assim, pôde-se observar a diversidade de atividades que foram criadas e,
aparentemente, estão sendo realizadas em diversos espaços através de reformas que
foram executadas para as olimpíadas de 2016. Todavia, percebe-se que, desde janeiro de
2017, mesmo nos relatórios trimestrais da CDURP, é evidente o impacto da mudança na
gestão municipal e na forma de lidar com o projeto e seus elementos, o que inclui a
cultura. Ali era destacado que os recursos para as ações culturais, que incluem o
patrimônio, haviam sido gastos de forma concentrada em 2016, para as olimpíadas, o
que estava prejudicando o andamento dos projetos.
Após realização de entrevistas com duas gestoras de órgãos culturais ali
localizados, em setembro de 2018, Pituka Nirobe, gestora do Centro Cultural José
Bonifácio a época, uma das edificações históricas da região que passou por restauros
dentro do projeto Porto Maravilha, e Merced Guimarães, diretora e fundadora do
Instituto Pretos Novos, que mantem muita relação com a área do cais do Valongo,
declarada patrimônio mundial pela UNESCO, percebemos diversas contradições entre
as promessas divulgada antes do processo de revitalização, durante e após sua
conclusão.
Nos relatórios são apresentados investimentos em diversos projetos para incentivo
à cultura, sendo que na realidade isso se deu de forma diferente. O Porto Maravilha,
teoricamente, obrigatoriamente, deveria destinar 3% de todo dinheiro arrecadado na
venda dos CEPACs da região, de acordo com a Lei Complementar 101/2010, à cultura
e, consequentemente, à conservação e valorização do patrimônio histórico ali existente.
Todavia, segundo as gestoras, desse dinheiro somente uma parte foi destina a restauros
de algumas edificações na região, e, após as obras de restauro, pouco ou nenhum
recurso vem sendo destinado ao seu funcionamento e para que continuem sendo
mantidos e valorizados.
Ao questionar Pituka se recursos do projeto estavam destinados para manter os
espaços culturais e o patrimônio, esta declarou
Não, a não ser o que já vem da secretaria de cultura da Prefeitura. Todos os equipamentos têm uma verba muito insignificante para o tamanho do prédio e para tudo que a gente pretende fazer, então não existe. Bem, pelo menos ao
meu conhecimento, eu como gestora e assinando, nunca tive nenhum desses montantes vindo, a não ser que vai para os cofres da prefeitura.
O relatório das atividades da CDURP, do primeiro trimestre de 2017, também traz
contradições quanto aos investimentos em cultura como âncora da vivacidade da área,
uma vez que destaca a suspensão do repasse de recursos ao Instituto dos Pretos Novos,
que se situa próximo ao Cais do Valongo, e que compõem o Circuito Histórico e
Arqueológico da Celebração da Herança Africana, ou seja, um dos seis pontos de
visitação que remetem a uma dimensão da vida dos africanos e seus descendentes na
Região Portuária.
O Instituto, em 2017, comemorou 21 anos dos primeiros achados do cemitério do
Valongo e de sua atuação com ações de educação no município. Após o início das obras
do Porto o Instituto teve um aumento significativo em sua visitação, nos últimos 3 anos
chegou a 48mil visitantes, entre 2005 e 2013, um período de 8 anos, havia
contabilizado, aproximadamente 24 mil visitantes. Portanto, o projeto de renovação e os
achados do cais do Valongo trouxeram grande visibilidade ao instituto e mostraram sua
importância cultural. Assim, na ocasião do corte dos recursos, houve uma mobilização
social em decorrência dessa suspensão e, em função da manifestação contraria da
população e de órgãos de cultura e comunicação, a prefeitura precisou rever sua posição
e manteve os repasses ao instituto.
A gestora do Centro Cultural Jose Bonifácio também citou a ausência de
articulação com o restante do território e a necessidade de se criar coisas novas ao invés
de tratar do que já existe.
Segundo a entrevistada...só fica no discurso, nunca entra na prática. Fala-se tanto em patrimônio, mas não tem verba para manter um patrimônio em pé,... Então, precisavam gastar milhões fazendo um VLT? Que é para uso de meia dúzia de pessoas, por que só passa aqui vazio? Que não atende a população? Não atende a massa? Alguns patrimônios que estão pedindo socorro continuam na mesma situação, fizeram um elefante branco que é o Museu do Amanhã, por que não pegou esse dinheiro para recuperar o que já existia? Mas se eles tirassem dinheiro para recuperar a onde eles iriam ganhar os 10%? Tendo uma coisa nova começando do zero que vai estará entregue às baratas daqui uns anos.
Ou seja, grande parte do dinheiro foi destinado a construção de novos
equipamentos como o Museu do Amanhã que trouxesse visibilidade política aos atores
envolvidos e a cidade.
Assim, fica evidente que a interface do projeto com o patrimônio se deu a partir
de um processo de apresentou diversas deficiências que deve ainda ser amadurecida
pelas pesquisas científicas de modo a contribuir com a gestão pública de nossos bens
culturais.
Considerações finais
O projeto Porto Maravilha teve como ações a reforma e reestruturação de
patrimônio históricos materiais que por muito tempo ficaram abandonados, e a
instalação nestes espaços, de forma notória, de equipamentos culturais como museus e
áreas de lazer. Foram, também, promovidos roteiros culturais e turísticos no intuito de
atrair pessoas de diversos lugares do mundo e visibilidade à área.
No entanto, em função do foco na mercantilização dos espaços da cidade,
percebe-se que o patrimônio passa a ser mais um ingrediente desse receituário e fica à
mercê da lógica mercantilista, em que só será valorizado aquilo que é conveniente para
a geração de visibilidade e lucro.
Assim, durante nosso trabalho de pesquisa bibliográfica e campo percebemos,
que apesar dos restauros realizados ainda há uma centena de patrimônios edificados na
região que correm o risco de virem abaixo, em função de suas condições precárias de
conservação, e que os recursos que seriam destinados a esse fim priorizaram a criação
de novos centros de culturais que trouxessem mais destaques ao projeto urbano e a
cidade como o Museu do Amanhã.
Mesmo locais restaurados, como o Centro Cultural Jose Bonifácio, vêm tendo
poucos recursos para sua manutenção e para sua retroalimentação no que tange a
exposições, atividades e gestão, tampouco há projetos que dinamizem seu entorno como
uso cultural ou comercial de amigos moinhos, sinalização e promoção turística.
Ficou evidente também que o patrimônio e a cultural como um todo continuam
serem vitimados da descontinuidade política tão corriqueira em nosso país,
especialmente, pela descontinuidade de ações a partir de 2017. Assim, encerramos esse
artigo, sem pretensão de concluir nossas análises e investigações sobre o tema.
Referências
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DINIZ, Nelson. De Pereira Passos ao Projeto Porto Maravilha: Colonialidade do saber e transformações urbanas da região portuária do Rio De Janeiro. XII Colóquio Internacional de Geocrítica. Bogotá, 212. Disponível em: < http://www.ub.edu/geocrit/coloquio2012/actas/07-N-Diniz.pdf >.Acesso em: 30 de outubro de 2016.
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