2 Identidade e Moralidade - DBD PUC RIO · II a V, traça um mapa das diferentes configurações...

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2 Identidade e Moralidade “É uma forma de auto-engano pensar que não falamos a partir de uma orientação moral que consideramos certa. Essa é uma condição para se ser um self operante, e não uma visão metafísica que podemos ligar e desligar” 1 Tal passagem expressa a crença de Taylor na íntima e indissociável relação entre a identidade pessoal e os compromissos morais predominantes. Para Taylor, ser um self ou possuir uma identidade significa, primordialmente, fazer avaliações qualitativas acerca de certos bens. A resposta à questão “qual é minha identidade” não pode ser dada apenas em termos de descrição física, filiação, origem e capacidades. Certamente muitos desses fatores fazem parte de minha identidade, mas apenas se importarem, se forem bem avaliados de alguma forma. Por exemplo, se minha origem é para mim um elemento central, se me orgulho dela, se ela me faz sentir pertencer a um determinado grupo de pessoas que admiro e respeito, então, tal origem será marcadamente parte de minha auto- interpretação, daquilo que entendo ser o meu self. Assim, nesse exemplo, a identificação entre minha origem e minha identidade está conectada com certas qualidades que valorizo, com certas avaliações fortes 2 . A primeira parte de Fontes do Self é dedicada à relação entre a identidade e o bem, ou seja, Taylor busca associar os sentidos atribuídos ao self e as concepções morais predominantes. Assim, Taylor defende a posição de que a identidade moderna é rica em fontes morais, ou seja, a identidade de cada pessoa é formada pela posição em que ela se coloca dentro do espaço moral a que pertence e pelo intercâmbio lingüístico entre agentes, cuja relação escapa ao 1 “It is a form of self-delusion to think that we do not speak from a moral orientation which we take to be right. This is a condition of being a functioning self, not a metaphisical view we can put on or offin Sources of the Self, p.99; Fontes do Self, p.135 2 Desenvolvo a noção de avaliação forte a seguir no item 1.1.

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2Identidade e Moralidade

“É uma forma de auto-engano pensarque não falamos a partir de uma

orientação moral que consideramoscerta. Essa é uma condição para se ser

um self operante, e não uma visãometafísica que podemos ligar e

desligar” 1

Tal passagem expressa a crença de Taylor na íntima e indissociável

relação entre a identidade pessoal e os compromissos morais predominantes. Para

Taylor, ser um self ou possuir uma identidade significa, primordialmente, fazer

avaliações qualitativas acerca de certos bens. A resposta à questão “qual é minha

identidade” não pode ser dada apenas em termos de descrição física, filiação,

origem e capacidades. Certamente muitos desses fatores fazem parte de minha

identidade, mas apenas se importarem, se forem bem avaliados de alguma forma.

Por exemplo, se minha origem é para mim um elemento central, se me orgulho

dela, se ela me faz sentir pertencer a um determinado grupo de pessoas que

admiro e respeito, então, tal origem será marcadamente parte de minha auto-

interpretação, daquilo que entendo ser o meu self. Assim, nesse exemplo, a

identificação entre minha origem e minha identidade está conectada com certas

qualidades que valorizo, com certas avaliações fortes2.

A primeira parte de Fontes do Self é dedicada à relação entre a identidade

e o bem, ou seja, Taylor busca associar os sentidos atribuídos ao self e as

concepções morais predominantes. Assim, Taylor defende a posição de que a

identidade moderna é rica em fontes morais, ou seja, a identidade de cada pessoa

é formada pela posição em que ela se coloca dentro do espaço moral a que

pertence e pelo intercâmbio lingüístico entre agentes, cuja relação escapa ao

1 “It is a form of self-delusion to think that we do not speak from a moral orientation which wetake to be right. This is a condition of being a functioning self, not a metaphisical view we can puton or off” in Sources of the Self, p.99; Fontes do Self, p.1352 Desenvolvo a noção de avaliação forte a seguir no item 1.1.

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modelo sujeito/objeto3. A moralidade para Taylor pressupõe a tese de que é

impossível à pessoa humana prescindir de configurações, ou seja, de noções

morais, intuições valorativas auto-interpretáveis. Assim, a resposta à questão da

identidade – quem eu sou? – não se restringe apenas a termos de nome e

genealogia. Para uma definição satisfatória da identidade moderna é

imprescindível a referência às configurações morais, ao horizonte de sentido

dentro do qual o agente humano toma posição e decide sobre questões relevantes.

A concepção de moralidade associada à identidade que Taylor desenvolve

conecta-se com a crença de Taylor numa dimensão ontológica do self, ou seja,

certas características que Taylor entende serem universais e permanentes na vida

moral de qualquer pessoa. Tal distinção entre elementos permanentes e elementos

mutáveis na descrição que Taylor faz da identidade, corresponde, de forma

aproximada, à estrutura de Fontes do Self. Na parte I do livro, Taylor desenvolve

as características do self entendidas como universais e inescapáveis; já nas partes

II a V, traça um mapa das diferentes configurações morais e das variáveis noções

de self que se combinaram de Platão aos pós-modernos4.

Além da íntima relação entre identidade e moralidade, outro traço

característico da teoria moral desenvolvida por Taylor é sua ampliação do espaço

conceitual do que tradicionalmente denomina-se Ética5. Para o autor, a concepção

filosófica dominante tem uma visão truncada e restrita da moralidade, pois

privilegia o que é certo fazer (right) em detrimento de uma compreensão moral

mais ampla que inclua também o que é bom ser (good). Taylor considera que boa

parte da filosofia contemporânea tem ignorado por inteiro essa dimensão crucial 3 Uma das questões centrais trabalhadas por Taylor consiste na noção de ´selfs dialógicos`(dialogical selves), ou seja, para Taylor, os agentes humanos não se constituem monologicamentee a individualização somente pode se processar através da socialização. Nesse ponto, gostaria desugerir, seguindo Habermas, a contribuição de George Herbert Mead, behaviorista americano aquem foi atribuída a noção de gênese social do self. Taylor reconhece a contribuição de Meadnuma nota de Fontes do Self (nota 12, p. 55), mas entende que Mead ainda está demasiadopróximo do behaviorismo e não leva em conta o papel crucial da linguagem na definição do self edas relações. Para Taylor, Wilhelm Von Humboldt é o teórico mais claro dessa tradição quevincula identidade e interlocução. Humboldt compreendeu a maneira como a linguagem é feita erefeita na conversação e como a própria natureza de uma conversação requer um reconhecimentode falantes e do espaço de interlocução que eles inauguram. Desenvolvo outros aspectos daconcepção tayloriana de linguagem no final do capítulo 1.4 Tal retrato das mudanças históricas na noção de self será apresentado no capítulo 2 destadissertação.5 Taylor usa indistintamente os termos ética, moral e moralidade. Reconhece, todavia, a distinçãofeita por Foucault, por exemplo, que reserva o termo moral para se referir a códigos e regrasuniversalizáveis e o termo ética para questões referentes a realização pessoal. No entanto, o

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de nossa consciência e crenças morais, chegando até a descartá-las como confusas

e irrelevantes.

A tradição filosófica moderna sempre tendeu a buscar respostas universais

sobre os deveres e obrigações que temos para com os outros, alguma forma de

codificação que nos mostrasse o caminho certo. Como tais respostas

universalistas são calcadas no ideal de igualdade humana, elas tendem a

negligenciar as questões relativas ao bem, ou seja, ao que é bom ser, visto que

estas questões apontam para as particularidades pessoais e culturais. Com sua

visão mais completa da moralidade, Taylor tenta nos lembrar que existem ideais e

objetivos morais que não podem ser bem coordenados com o universalismo, sob

pena de restringir arbitrariamente o campo da moralidade6.

O que Taylor descreve como “crenças ou intuições morais e espirituais”

nos remete a uma concepção mais ampla do que normalmente é descrito como

moral. Além das noções relativas a justiça, respeito à vida e à dignidade da pessoa

humana, geralmente entendidas em termos de obrigações, o autor busca resgatar o

sentido que está na base de nossa compreensão de dignidade, ou seja, a ontologia

moral subjacente às concepções morais dominantes, ou seja, as descrições auto-

interpretativas que os agentes humanos realizam em sua vida moral7.

Outra marca registrada de Taylor e que determina sua concepção de

moralidade é a celebração do pluralismo da modernidade8. O domínio da moral

para Taylor envolve diversos bens, tanto no sentido numérico como no

ontológico. Muitos são qualitativamente distintos entre si e impossíveis de serem

conceito que importa para Taylor é o de ´avaliação forte` que invade ambos os domínios, tanto damoral (right to do) quanto da ética (good to be).6 Em vários textos mais voltados à teoria política e epistemologia, Taylor desenvolve uma críticaao formalismo da ética kantiana e seu anseio por universalização, sem no entanto, desconsiderar olegado da filosofia kantiana. Ver: “The diversity of goods”, in Philosophical Papers 2, op. cit. e “A Validade dos Argumentos Transcendentais” in Argumentos Filosóficos, op. cit.7 Na seção chamada “configurações incontornáveis” (inescapable frameworks), Taylor buscadefender uma posição que será central no desenvolvimento do resto do livro: existe uma diferençafundamental entre reações morais e reações viscerais. Pode até ser verdade que temos umacompulsão natural para o respeito mútuo, que sentimos compaixão pelos semelhantes e que apenasas fronteiras que separam os “outros” relevantes para o nosso respeito e estima são construçõesculturais. No entanto, não podemos reduzir todas as nossas reações a instintos básicos. Em outraspalavras, existe uma diferença crucial entre sentir náusea diante de um objeto nauseante e sentirrespeito ou estima por outro ser humano. Nesse último caso, apesar das variações culturais, aforma assumida por tal reação moral é inseparável de uma descrição do que merece nosso respeito,ou seja, no caso da intuição moral, a descrição articula a intuição. Tal perspectiva serádesenvolvida durante todo o trabalho, visto que vincula-se com a teoria da linguagem defendidapor Taylor.8 O pluralismo de Taylor é certamente influenciado por Aristóteles, apesar de Fontes do Self nãoreservar nenhuma nota ao filósofo.

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combinados, hierarquizados ou reduzidos a um bem fundacional qualquer. Taylor

não acha possível combinar os bens harmoniosamente e tal impossibilidade

constitui uma condição essencialmente moderna. Assim, a vida moral dos

modernos é caracterizada por uma enorme diversidade de bens e pela ausência de

critério único para selecioná-los, o que certamente gera ansiedade e desorientação.

Dito de outro modo, não temos como afirmar um discurso único sobre as escolhas

morais individuais ou coletivas. Na modernidade tardia e, principalmente, nas

democracias liberais ocidentais, não há mais espaço para a imposição de um

determinado bem.

Assim, pode ser certo que a identidade se constitui a partir de avaliações

fortes de orientação no espaço moral e que é impossível ao ser humano prescindir

de tais avaliações auto-interpretáveis, mas, no entanto, convivemos com discursos

antagônicos acerca da moralidade e com divergências profundas quanto às bases

das concepções morais. Em outras palavras, na modernidade tardia, não há um

modo racional único de ordenar os bens constitutivos ou as escolhas morais que

formam uma identidade. Aquilo que constitui uma identificação pode ser qualquer

aspecto da orientação moral diante do universo simbólico de uma cultura, seja

uma prática social, um conjunto de ritos ou uma narrativa histórica.

Tal postura traz à tona a questão do relativismo. Taylor tenta escapar de tal

rótulo através da noção de avaliação forte9. Apesar do pluralismo moral

contemporâneo e da impossibilidade de hierarquizar valores, existem distinções

qualitativas entre os bens que não podem ser calculados individualmente. Para

Taylor, os indivíduos não vêem seus valores e desejos como potencialmente

equivalentes ou como criações radicais que podemos escolher ou não. Existem

certas avaliações que não são simplesmente construídas; podemos escolher entre

diversos bens, fazer diferentes avaliações, mas não podemos escolher não fazer

tais avaliações. Quando endossamos certos bens, quando os aceitamos, ajudamos

a criá-los, mas, de certa forma, eles já estavam lá. Eles são experienciados mais

como demandas ou chamados do que como objetos à espera de escolhas

arbitrárias individuais. Podemos afirmá-los ou não, mas não podemos fazer 9 A noção chave de avaliação forte desenvolvida a seguir ajuda a entender a resposta de Taylor aopluralismo moral da modernidade e como ele rejeita tanto o formalismo, como as éticasprocedimentalistas de matriz kantiana, quanto o relativismo, como o utilitarismo de Bentham ou operspectivismo nietzschiano, buscando uma postura intermediária que pode ser caracterizadacomo um realismo falsificacionista. Ver a respeito, Abbey, Charles Taylor, pág. 26, op. cit.

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sentido sem eles. As fontes morais estão assim fora do sujeito por meio de

linguagens que soam dentro dele10.

Nesse sentido, Taylor defende um certo realismo moral deflacionado.

Taylor acredita que a melhor teoria moral, aquela que fornece a melhor descrição

do valor das coisas e vidas que estão abertas ao nosso discernimento, é aquela que

adota uma postura realista. Mas isso não significa fazer afirmações sobre como as

coisas representam o universo “em si” ou como seria o universo possível sem a

presença dos seres humanos. Taylor não compartilha a noção mais geral do

realismo de que existe um mundo independente da interpretação humana à espera

de um desvelamento de suas leis e princípios. Taylor acredita que existem fatos e

interpretações e que algumas interpretações são melhores ou mais verdadeiras que

outras por oferecerem uma descrição mais aproximada do fato11.

Para Taylor, uma postura realista é perfeitamente compatível com a tese de

que as fronteiras do bem que estão disponíveis, da forma como podemos

apreendê-las, são determinadas pelo espaço que se abre pelo fato de o mundo

existir para nós, com todos os significados que tem para nós. Isso nos traz a

questão aberta por Heidegger da Lichtung (clareira, abertura, esclarecimento), ou

seja, a questão dos limites de nossa aceitação daquilo que somos, do

enfrentamento dos traços básicos e arbitrários de nossa forma de vida, em última

análise, da nossa (in)capacidade de aceitar a finitude12.

Tal dificuldade moderna é o que conduz muitos filósofos, segundo Taylor,

a elaborar teorias formalistas da moral, ou seja, para driblar o pluralismo,

devemos recorrer a um único princípio ou procedimento para solucionar dilemas

morais. Taylor encaixa em tal rótulo as éticas de matriz kantiana, como a teoria

10 Fontes do Self, pág. 35.11 Para esclarecer melhor a postura intermediária de Taylor, é preciso identificar dois tiposextremos de realismo: um realismo forte diria que existem bens e valores morais que sãoindependentes dos seres humanos; um realismo fraco veria a teoria de Taylor como oferecendouma fenomenologia da vida moral ou, nas palavras de Taylor, “what we need to explain is peopleliving their lives” in Sources of Self, p. 58; Fontes do Self, p. 84. Assim, a teoria de Taylor podeser e é comumente interpretada como um retrato das percepções individuais dos bens e de como ospercebemos como objetos exteriores e intrinsecamente valiosos. No entanto, podemos encaixarTaylor entre as duas posições, visto seu argumento da necessidade de tomar um ponto de partidarealista. Ele argumenta que precisamos encarar seriamente as percepções e intuições moraiscomuns se queremos dar alguma contribuição à moralidade. Ver a respeito, Abbey, CharlesTaylor, op. cit. pág. 29.12 Taylor menciona tal inspiração heideggeriana em duas passagens de Fontes do Self, ambas emconexão com a noção de “formas de vida” de Wittgenstein. Na página 331, ao defender suaposição realista, cita Heidegger no texto e na nota 44; e na página 446, na nota 45.

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liberal de Rawls e a procedimental de Habermas e as teorias utilitaristas. Todas

compartilham a idéia de que, frente a uma escolha moral, os indivíduos podem

apelar para um critério ou procedimento geral que resolverá o dilema. A resposta

de Taylor ao pluralismo moral ontológico percorre a mesma via de Hegel em sua

crítica ao formalismo kantiano e ao esvaziamento dos bens substantivos. Assim,

Taylor reconhece as distinções qualitativas entre bens e rejeita as saídas simplistas

e reducionistas através dos conceitos de avaliação forte, configurações morais e

articulação, temas desenvolvidos a seguir.

2.1Noção de Avaliação Forte

Como observado acima, para Taylor a moralidade não pode ser definida

somente em termos de respeito aos outros, das nossas obrigações perante os

demais. Nesse domínio, outras questões também moldam nosso eixo de

pensamento moral e, portanto, nossa identidade. São as interrogações de avaliação

forte, ou seja, aquelas questões cruciais e incontornáveis que determinam nossos

modos de compreender o que constitui uma vida plena. A noção de avaliação

forte pressupõe a existência de fins e bens que independem de nossos desejos,

inclinações ou escolhas. São distinções incomparáveis e representam padrões com

base nos quais são julgados esses desejos e escolhas. Como exemplo,

interrogações como “qual a vida digna de ser vivida” ou “o que constitui uma vida

rica e significativa” em contraposição a uma vida voltada a questões triviais e

secundárias. Tais questões envolvem discriminações acerca do certo ou errado,

melhor ou pior, mais elevado e menos elevado, descrições que existem

independentemente de nossos desejos e escolhas, apesar de serem validadas por

eles.

A noção de self para Taylor, ou seja, o traço característico e distintivo dos

agentes humanos em comparação com outros animais, envolve a nossa

capacidade de fazer distinções qualitativas e valorativas, ou nas palavras de

Taylor, de fazer avaliações fortes. Taylor deriva sua noção de avaliação forte de

Harry Frankfurt e seu argumento sobre desejos de segundo grau (second-order

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desires)13. Desejos de segundo grau são aqueles desejos que temos sobre nossos

próprios desejos, ou, em outras palavras, o desejo de desejar algo. Apesar do

pluralismo de bens que nos cerca, nós não os consideramos equivalentes; alguns

são superiores, outros são inferiores; alguns melhores, outros piores. O argumento

central de Frankfurt é que a habilidade de valorar desejos de maneiras diferentes é

uma das marcas que diferenciam os seres humanos. Tal argumento de que os

indivíduos entendem alguns de seus desejos como qualitativamente diferentes de

outros informa o conceito tayloriano de avaliação forte. Assim, apesar da

existência de múltiplos bens e desejos disponíveis para uma pessoa, estes não

possuem o mesmo valor ou não são percebidos como qualitativamente iguais. Tal

concepção é calcada no contraste e na hierarquia. Ela pressupõe que os agentes

humanos são avaliadores fortes movidos por um sentido daquilo que é superior ou

inferior, nobre ou comum, melhor ou pior, significativo ou não e outras distinções

do gênero. Taylor toma a noção de avaliação forte como um fato da vida moral.

Assim, as distinções qualitativas que fazemos entre diferentes ações, sentimentos

ou modos de vida, como sendo, de algum modo, moralmente superiores ou

inferiores, são centrais para nosso pensamento moral e para formação de nossa

identidade.

Para esclarecer melhor o conceito de avaliação forte como parte necessária

da vida moral de uma pessoa, quatro questões merecem maior atenção. Primeiro,

Taylor não afirma que todas as avaliações e escolhas que fazemos são baseadas

em avaliações fortes. Algumas decisões não implicam o senso de superior e

inferior. Normalmente, as decisões cotidianas envolvem apenas cálculo ou

pesagem entre as alternativas em disputa, são escolhas não-qualitativas. Por

exemplo, a escolha do meio de transporte que vou usar ou o que vou comer no

almoço. Escolhas desse tipo cotidiano não têm a mesma importância para a

constituição de nossa identidade como as que envolvem avaliação forte14.

Em segundo lugar, apesar da noção de avaliação forte implicar o

reconhecimento de alguns bens como qualitativamente superiores a outros, isso

não implica dizer que os indivíduos tenham plena consciência de que assim o

13 H. Frankfurt. “Freedom of the will and the concept of a person”, Journal of Philosophy, 667(jan. 1971) apud Taylor ,“What is Human Agency?” in Philosophical Papers I. Op. Cit.14 O que não implica dizer que elas não possam vir a ser questões que mereçam avaliaçãoforte.Taylor desenvolve a diferença entre avaliações fracas (não-qualitativas) e fortes (qualitativas)no texto “What is Human Agency?” in Philosophical Papers I, op. cit.

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fazem, ou seja, de que avaliam seus desejos de modo hierárquico. A noção de

avaliação está mais próxima de um julgamento intuitivo do que de uma resposta

refletida. No entanto, os indivíduos sempre fazem esse tipo de julgamento, mesmo

inconscientemente e mesmo se estiverem tão mergulhados em seu background

que não consigam enxergar as distinções de valor que tal pano de fundo

sustenta15.

Assim, para fazer uma avaliação forte não é necessário articular

plenamente o pano de fundo a que se pertence16. É também no nível da

inarticulação, em que geralmente operamos, que realizamos as distinções

qualitativas. Assim, os bens fortemente avaliados não são necessariamente

explícitos ou articulados lingüisticamente. Eles funcionam em nós, ou seja,

exercem forte influência em nossas ações e escolhas morais, mesmo ficando

submersos no background que nos envolve.

Um terceiro ponto de esclarecimento acerca do conceito de avaliação forte

consiste em que, apesar de Taylor usar o adjetivo “forte” para descrever tais

avaliações, ele na verdade enfatiza mais a qualidade da avaliação e não sua força

ou poder propriamente dito. Elas não se referem a desejos fortes que o agente

possa ter como, por exemplo, o desejo de vingança de algum desafeto, mas ao que

se considera idealmente desejável num dado contexto, como a sublimação do

ódio. Assim, o indivíduo pode lutar contra fortes desejos de agressividade com

base na avaliação forte que prioriza a magnificência e o perdão, ou ao menos, a

manutenção das aparências.

O último ponto a ser esclarecido refere-se à universalidade da avaliação

forte. Taylor considera que todos os agentes humanos são avaliadores fortes, mas

nem todos avaliam os bens do mesmo modo ou com a mesma força. Os bens

suscetíveis de avaliação qualitativa variam enormemente de uma cultura para

outra e entre os indivíduos. Tal posição coloca Taylor numa situação complexa

entre relativismo e universalismo. Taylor rejeita o relativismo moral a nível

individual, ou seja, como as pessoas compreendem e vivem sua vida moral. Como 15 Muitos leitores de Taylor interpretaram a noção de avaliação forte como uma escolha refletidade certos compromissos éticos. Tal interpretação gerou uma série de críticas ao que chamaram deexcesso de racionalismo incoerente com a postura realista de Taylor, ou seja, com sua pretensãode descrever a maneira como a maioria das pessoas vivem sua vida moral. No entanto, se haviaqualquer reminiscência racionalista, talvez pela influência de um certo neo-socratismo nosprimeiros escritos de Taylor, tal resquício desaparece totalmente a partir de Fontes do Self. Ver, arespeito, Abbey, Ruth. 2000.

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membros de uma determinada cultura, os indivíduos estão necessariamente

orientados moralmente pelo background que os envolve17. No entanto, o mesmo

não acontece entre culturas. A diversidade entre culturas é incomparável. Não há

critério para julgar a superioridade de um determinado universo cultural sobre

outro. No entanto, um certo relativismo cultural` é minimizado em Taylor pela

sua crença na possibilidade de reconciliar tradições ou, ao menos, conversar

racionalmente sobre as diferenças culturais18.

Taylor considera alguns bens como potencialmente universais. Acredita

que certos valores constam em todos os códigos morais e são fortemente

avaliados por todas as culturas. Tais bens dizem respeito ao valor da vida humana

e a dignidade da pessoa humana. Nas palavras de Taylor, “talvez o mais urgente e

poderoso conjunto de exigências que reconhecemos como morais refira-se ao

respeito à vida, à integridade, ao bem-estar e mesmo à prosperidade dos outros

(...) quase todos sentem essas exigências que foram e são reconhecidas em todas

as sociedades humanas”19.

É claro que Taylor reconhece que muitas dessas aspirações humanistas são

muito mais promessas do que realizações efetivas. No entanto, o reconhecimento

de tais imperativos ocorre mesmo entre seus violadores. Até mesmo os defensores

da pena de morte, por exemplo, são movidos por um senso de valor pela vida dos

inocentes que os leva a clamar pela punição capital dos agressores.

Historicamente, vários grupos sociais foram abusados e desrespeitados sob o

pretexto de não serem completamente humanos. Os bens considerados valiosos

para dar sentido à vida humana e a noção de respeito podem ter variado

significativamente, mas Taylor acredita que a idéia moral geral de que pessoas

devem ser respeitadas é universal e fortemente avaliada em todas as culturas.

Apesar de não usar exatamente tal expressão, acredito que a noção de “auto-

16 A noção de background ou pano de fundo será desenvolvida na seqüência.17 Esta afirmação coloca em xeque a noção de liberdade individual. Sobra espaço para a autonomiana teoria de Taylor? Qual o nível de comprometimento do indivíduo com seu mundo ou espaçomoral? Tais questões somente podem ser respondidas através da noção de linguagem em Taylorque trabalho a seguir em 1.2.2 Narrativa e Articulação e 1.3.1 Auto-interpretação.18 A posição intermediária de Taylor entre relativismo e universalismo que o leva a uma mediaçãoentre a tradição liberal e a comunitária será esboçada na conclusão. Ver “Understanding andEthnocentricity” in Philosophical Papers 2, op. cit. e Abbey, Ruth. “Moral Realism” in CharlesTaylor, op. cit. p. 26.19 Fontes do Self, p.17

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compreensão ética da espécie” expressa tal intuição de Taylor e passarei a utilizá-

la nesse sentido20.

No entanto, tal postura otimista não exime Taylor de reconhecer os

problemas que ainda persistem, apesar da aceitação de que somos todos

avaliadores fortes, ou seja, que tendemos a hierarquizar os bens e a privilegiar

certa concepção de dignidade humana. Apesar de afirmar que os indivíduos

necessariamente avaliam alguns bens de modo superior a outros, podem existir e

freqüentemente existem mais de um desses bens fortemente avaliados (strongly

valued goods) no horizonte moral de uma pessoa. Assim, tais bens podem estar

em forte conflito e não existe um critério, procedimento ou fórmula que ensine

aos indivíduos como reconciliá-los. Além disso, nem sempre os indivíduos atuam

em conformidade com os bens que apreciam, seja por incompetência ou

ignorância quanto ao que realmente os movem21.

Taylor rejeita, portanto, qualquer tentativa de simplificação das

dificuldades e dilemas característicos da vida moral dos modernos, seja ela de

ordem utilitarista ou mesmo a noção de escolha radical entre valores proposta por

Sartre. Não é possível nivelar todos os bens e priorizá-los pelo critério da

utilidade, nem aceitar plenamente a tese de que os indivíduos valorizam certos 20 Habermas utiliza tal expressão em sua resposta a Diter E. Zimmer no debate sobre bioética.Segundo Zimmer, a clonagem humana deve ser proibida porque suspende o mecanismo natural devariação genética que faz de cada indivíduo um ser único. Essa capacidade de adaptação própriada espécie humana faz do ser humano um ´gênio da adaptação` e deve ser otimizada. A demandamoral de Zimmer reduz-se ao clamor pela conservação da espécie. Habermas rejeita tal posturanaturalista com os seguintes argumentos: “Não é a natureza que proíbe a clonagem. Nós é quedevemos decidir (...) quem quiser compreender Darwin, deve ler Kant (...) a biologia não pode nosdispensar de considerações morais (...) a clonagem implica a intervenção numa zona nãodisponível da auto-compreensão do clone”. A noção de auto-compreensão moral da espécie paraHabermas envolve a concepção moderna de autonomia e pressupõe que a vida humana tem valor,mesmo quando não articulado e independentemente de sua origem divina ou superior. A vidahumana deve ser respeitada e não instrumentalizada porque construímos e endossamos uma visãoda pessoa humana como digna de valor. Acredito que Taylor compartilha tal noção em suaconsideração das intuições morais e espirituais das pessoas, apesar de rejeitar o formalismo daética procedimentalista habermasiana. Ver a respeito, “Biologie kennt keine Moral. Nicht dieNatur verbietet das Klonen. Wir müssen selbst entscheiden” in DIE ZEIT, n. 9 fevereiro, 1998,Hamburg; Habermas, La Constelacion Posnacional – Ensayos Politicos. Ed. Paidós Ibérica,Barcelona, 2000.21 A incapacidade de uma pessoa alcançar o bem que deseja, ou seja, o fracasso pessoal diante doprojeto de vida, ou ainda a inconsciência quanto ao que realmente se deseja, ou seja, a ignorânciaem relação ao bem que a move, apontam para o link indissociável entre identidade e moralidadeno pensamento de Taylor. E ainda, tal relação não é estática; os indivíduos compreendem sua vidae sua identidade em movimento, em direção aos bens fortemente avaliados que fornecem o sentidode suas vidas. Tais bens também podem ser alterados ou rejeitados no decorrer da vida de umapessoa, o que implicará certamente numa importante mudança na auto-compreensão que essapessoa tem de si mesma como um self. Desenvolvo mais tais implicações entre mudança de

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bens por escolha própria radical. Para Taylor, a noção de avaliação forte nos

impede de enxergar os bens como equivalentes. Na maior parte dos casos,

sentimos que as fontes morais estão fora de nós, apesar de só fazerem sentido por

meio de linguagens que soam dentro22.

Taylor também distingue várias espécies de bens usando termos como

bens fortemente avaliados, hiperbens e bens constitutivos. Os hiperbens, que

considero sinônimo de bens constitutivos, apesar de Taylor não ser claro a esse

respeito, são os supremos bens fortemente avaliados. Tais bens superiores ajudam

a hierarquizar os demais bens que formam o pano de fundo de uma pessoa. No

entanto, esses bens supremos não são critérios rígidos para hierarquizar todos os

demais bens, mas apenas minimizam os efeitos do pluralismo ao prover os

indivíduos de um mínimo de orientação moral. Os hiperbens são cruciais para a

formação do que Taylor chama de horizonte moral de uma pessoa. Várias

passagens sugerem que, para Taylor, eles são indispensáveis componentes da vida

moral de todas as pessoas23. Daí a crítica freqüente de que Taylor privilegia um

enfoque teísta que desconsidera os ateus, por não reconhecer a possibilidade de

não existir nenhum hiperbem no horizonte de sentido de uma pessoa. Taylor

entende, no entanto, que mesmo as éticas seculares que se proclamam neutras

repousam sobre bens constitutivos, mesmo que de modo implícito. Um bem que

freqüentemente comanda o amor e respeito dos ateus é a imagem do indivíduo

enfrentando com coragem e lucidez o abismo da ausência de sentido do mundo

desencantado. A coragem de enfrentar a ausência de sentido ou aceitar um

universo estéril e simplesmente renunciar à busca de sentido passa a ocupar o

lugar do hiperbem na constituição da vida moral e da identidade do não-crente24.

orientação moral e mudança de auto-interpretação a seguir no item 1.3 dimensão ontológica doself, 1.3.1 auto-interpretação.22 Fontes do Self, pág. 35. Taylor acredita que o reducionismo aplica-se a todas as teorias moraismodernas, uma vez que todas estão comprometidas com a epistemologia naturalista queescamoteia os bens que valoriza, ou, nas palavras de Taylor, é “parasita de fontes morais que elaprópria não pode reconhecer” in Fontes do Self, p. 438.23 O realismo moral de Taylor está lastreado pelo conceito de hiperbem, como na passagem:“perhaps we will find that we cannot make sense of our moral life without something like ahypergood perspective, some notion of a good to which we can grow, and which them makes ussee others differently” in Sources of the Self, pág. 73; Fontes do Self, pág. 90.24 Os exemplos de bens constitutivos – as diversas compreensões de Deus do teísmo, a Idéia doBem para Platão ou a noção de Ordem providencial da natureza – envolvem fontes morais quetranscendem os seres humanos. Assim, Taylor reafirma a interpretação de que todo e qualquerhorizonte moral possui um bem constitutivo. Sobre as críticas de teísmo, ver, por exemplo,Gutting, G. Pragmatic Liberalism and the Critic of Modernity; Rorty, R. Taylor on Truth in Tully& Weinstok, op. cit. e Abbey, Ruth, Charles Taylor, op. cit.

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Para Taylor, os panoramas morais operam em dois níveis. O mais

acessível é composto pelos bens de vida, ou seja, as formas mais reconhecidas do

bem viver, como amor familiar, liberdade, trabalho, racionalidade, piedade,

autenticidade, coragem e benevolência. Mas a vida moral também se constitui de

bens mais profundos, menos óbvios, porém fundamentais: os chamados bens

constitutivos25. A identidade de uma pessoa depende de maneira crucial da

orientação em direção a ele. O reconhecimento de que minha vida se afasta dele

seria insuportável e devastador, pois significaria uma indignidade que atinge o

âmago do meu ser como pessoa. Ao contrário, a noção de que estou rumando na

direção do bem superior me dá um sentido de integralidade e plenitude de ser uma

pessoa ou self. Mesmo quem não está comprometido de maneira obstinada

reconhece bens superiores.

Para Taylor, todos, de alguma forma, reconhecem alguns bens desse

gênero e é exatamente esse estatuto que define a moral em nossa cultura: um

conjunto de fins e exigências que não apenas é dotado de importância

incomparável, como supera e nos permite julgar os outros bens. A articulação da

fonte moral que nos influencia requer a identificação do bem constitutivo que a

embasa26. Mais precisamente falando, fontes morais é o termo técnico que Taylor

usa para se referir aos bens constitutivos na medida em que nos voltamos para

eles de qualquer forma que lhes seja apropriada – por meio da contemplação, da

invocação, da oração, ou o que for – para obter enriquecimento moral27.

O bem constitutivo comanda o amor de seu detentor, pois, para Taylor,

agir de acordo com o bem significa amá-lo. Conhecimento, ação e emoção são

fundidos na interpretação tayloriana do papel e do poder dos bens constitutivos na

vida moral. Na conclusão de Fontes do Self, Taylor torna clara sua posição de que

padrões elevados exigem fontes fortes (high standards need strong sources) e de

que os ideais humanistas hoje aclamados como universais como a justiça e a

benevolência são derivados da noção cristã de agape, ou seja, o amor que Deus

tem pelos seres humanos e sua ligação com o fato de eles serem bons como

criaturas (embora não seja preciso definir se são amados por serem bons ou se são

25 Taylor trabalha tal distinção especialmente na parte I, seção 4.1 e na parte IV de Fontes do Self.26 A relação entre articulação e capacitação será trabalhada no item 1.2 a seguir.27 Fontes do Self, pág. 402.

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bons por serem amados). Os seres humanos participam desse amor por meio da

graça28.

Nesse sentido, um bem constitutivo funciona como uma poderosa fonte

moral, mesmo que inarticulada, do background de uma pessoa. Articular um bem

constitutivo é esclarecer o que está envolvido no bem de vida que uma pessoa

adota. Assim, o bem constitutivo subjacente fornece uma fonte de avaliação forte

e dissemina vários bens de vida. Um mesmo bem constitutivo pode disseminar

diversos e contrastantes bens de vida29. Seguindo os exemplos que Taylor

desenvolve na parte histórica de Fontes do Self, podemos identificar como bens

constitutivos: a noção do Logos ôntico platônico, a base teísta cristã e a noção de

ordem providencial da natureza que preparou o terreno para a virada subjetivista

da modernidade.

O conceito de bem constitutivo (ou hiperbem) é, portanto, fundamental

para a compreensão da dinâmica entre identidade, moralidade e articulação

lingüística no pensamento de Taylor. Articular um bem constitutivo significa

descortinar nossas motivações e entender melhor nossa própria existência. Além

disso, a ênfase de Taylor em tais fontes morais aponta para a importância da

dimensão do amor em sua teoria moral. Para o autor, é o amor que move as

pessoas em direção aos bens e as conduzem a avaliar fortemente alguns e

priorizá-los em suas vidas.

2.2Configurações morais

Ressaltando a relação intrínseca e indissociável entre identidade e

moralidade, relação esta mediada pela linguagem, Taylor defende a tese de que o

sujeito só se constitui através da articulação de intuições valorativas lastreadas por

28Ver Fontes do Self, p. 658. Outros textos onde Taylor trata a questão: A Catholic Modernity? ePhilosophical Reflections on Caring Practices, op. cit.29 Como exemplo de bens fortemente avaliados ou bens de vida de uma pessoa moderna, Taylorcita a razão auto-responsável, a busca da felicidade e a benevolência. Tais bens eram interligados eassegurados por uma ordem providencial que era o bem constitutivo, matriz de todo o sentido.Com o iluminismo naturalista, os bens de vida continuam os mesmos, mas a noção de ordemprovidencial não se sustenta frente ao naturalismo. Assim, surge o problema do sentido. Por que asrealizações humanas comuns têm um significado especial? Por que ser benevolente e responsável?Quem ou o quê assegura a ordem?

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configurações morais que orientam o self dentro de seu horizonte de sentido,

dentro do espaço moral a que pertence. Assim, o self forma-se no contato com

outros, no interior da comunidade lingüística e das redes de interlocução onde

somos capazes de auto-interpretação e de formação de sentido. Para Taylor, só

somos um self na medida em que certas questões nos importam. A identidade de

uma pessoa define-se essencialmente pela maneira como as coisas têm

significação para ela. E as coisas têm significação mediante uma linguagem de

interpretação que acatamos como válida para discutir tais questões. Neste ponto,

como em vários outros, Taylor é profundo devedor da filosofia de Heidegger,

especialmente da tese de Ser e Tempo de que a compreensão diz respeito ao modo

do ser do Dasein; de que este último é essencialmente um ser de compreensão. O

Dasein está no mundo, antes de tudo, como compreensão e como afetividade. Daí

o entendimento da afirmação de Heidegger de que o Dasein é em todos os

sentidos interpretação. Em outros termos, na linguagem de Ser e Tempo, a

compreensão é um existencial fundante. 30.

O sentido de configurações morais remete às concepções morais e

respectivas compreensões do que é ser um self na modernidade. Assim, o

background de uma pessoa constitui-se de uma complexa mistura de tradições

distintas que se transfiguraram e se auto-influenciaram através da história das

idéias no ocidente31. Taylor acredita que este é outro elemento constitutivo e

indelével da vida moral de uma pessoa, ou seja, sua imersão no horizonte ou

configuração moral de sua cultura, no conjunto de crenças que moldam o agente e

lhe fornecem orientação valorativa. Estamos familiarizados com tais noções

através da religião e seus códigos de comportamento. No entanto, podemos pensar

também em movimentos seculares como fornecedores de configurações morais

poderosas. Entre os mais influentes, podemos citar o marxismo, o feminismo e o

ambientalismo. Apesar da questão permanecer aberta quanto ao nível de lealdade

que tais perspectivas morais exigem, é certo que elas fornecem aos seus membros

uma configuração moral (moral framework) em que se apoiar, mesmo quando não

articulada.

30 Heidegger, .Ser e Tempo, §31 e 32, parte 1, op. cit.31 Vale ressaltar a relação intrínseca entre avaliação forte e configuração moral. O horizonte moralou framework de uma pessoa constitui-se de avaliações fortes, de julgamentos sobre a importânciados diversos bens em disputa.

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2.2.1Background:

Seguindo a argumentação heideggeriana do ser-no-mundo32, Taylor

defende a forte tese de que uma pessoa não se constitui enquanto tal sem um

horizonte de sentido, ou seja, sem um espaço moral dentro do qual ela se orienta

para decidir questões relevantes. É nesse sentido que Taylor associa a crise de

identidade com a desorientação, com a perda dos padrões de referência, com a

incerteza acerca da posição em que se colocar dentro do espaço moral a que se

pertence33. Só podemos ser um self, no sentido pleno da expressão, quando nos

movemos num certo espaço de indagações em que buscamos uma orientação para

o bem. Assim, só se é um self no meio de outros, no intercâmbio de falantes, no

interior da comunidade lingüística, no âmbito das redes de interlocução onde

interagimos com outros agentes.

A tese do desencanto da modernidade, segundo Taylor, nos levou a

acreditar que as configurações são opcionais, visto que as sociedades tradicionais,

sólidas e estáveis foram varridas do mapa e todas as configurações passaram a ser

problemáticas e mutáveis. Na modernidade, não consideramos mais indiscutíveis

as questões formuladas em termos universalistas34. A identidade dos modernos é

complexa, multifacetada e mais profunda do que qualquer tentativa de articulação

que façamos dela. Mas a discussão acerca de nossa identidade é incontornável,

visto que faz parte do agir humano existir num espaço de indagações sobre bens

32 Segundo Taylor, Heidegger descreveu a estrutura temporal inescapável do ser no mundo, ouseja, a partir de um sentido daquilo em que nos tornamos, entre uma gama de possibilidadespresentes, projetamos nosso ser futuro. Esta é a estrutura de toda a ação situada, por mais trivial ecotidiana que ela seja. Ver, a respeito, Taylor, Engaged Agency and background in Heidegger, op.cit. Na linguagem de Heidegger: “pertence essencialmente ao dasein ser em um mundo. Assim, acompreensão do ser, própria do dasein, inclui, de maneira igualmente originária, a compreensãode ´mundo` e a compreensão do ser dos entes que se tornam acessíveis dentro do mundo”, Ser eTempo, pág. 39/40, op. cit.33 Taylor faz uma analogia entre a orientação no espaço moral e a orientação no espaço físico.Sabemos onde estamos fisicamente por meio de uma mistura de reconhecimento de marcos quetemos diante de nós e de um sentido de como viajamos para chegar até ali. Passamos a entendermelhor os estados morais que buscamos por meio do próprio esforço de tentar alcançá-los durantenossa vida. Assim, encontrar sentido na minha ação presente requer uma compreensão narrativa deminha vida, um sentido sobre o que me tornei que só pode ser conferido pela história, pelosmarcos de referência de minha trajetória de vida. E, ao projetar minha vida para frente e endossaro rumo atual, estou projetando uma história, uma direção a ser seguida. Nesse sentido, minha vidaestá dirigida para aquilo que ainda não sou. Fontes do Self, p. 72.34 Trabalho a questão do desencanto da modernidade no início do capítulo 2.

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sujeitos a avaliações fortes, anterior a qualquer escolha ou mudança cultural que

venha a ocorrer depois.

Essa discussão lança um difícil desafio à descrição naturalista do agente

humano como desprendido, livre de todas as configurações. Como crítico de tais

teorias reducionistas da moral, Taylor acredita que um sujeito totalmente

desencantado, desengajado, sem configurações morais ou religiosas é alguém em

terrível crise de identidade. Essa pessoa não saberia situar-se diante de questões

de importância fundamental, não saberia orientar-se em relação a elas, não teria

condições de respondê-las e enfim, não conseguiria tomar decisões. Para Taylor,

os horizontes no seio dos quais levamos a vida e a compreendemos têm de incluir

as discriminações qualitativas fortes, pois viver no âmbito desses horizontes

fortemente qualificados é algo constitutivo do agir humano e sair desses limites

seria sair fora da noção de pessoa humana integral35.

Tal postura de Taylor é também influenciada pela noção heideggeriana de

Lichtung, o que pode ser compreendido de modo aproximado como

esclarecimento, abertura, trazer-à-luz, no sentido de que as fronteiras do bem, da

forma como conseguimos apreendê-lo, são determinadas pelo espaço que se abre

para nós pelo fato de o mundo existir, com todos os possíveis significados que

têm para nós. Para Taylor, Heidegger foi o pioneiro na crítica à epistemologia

tradicional, cujo elemento central é a noção de sujeito desprendido. Somando à

crítica heideggeriana a de Merleau-Ponty e dos últimos escritos de Wittgenstein,

Taylor desenvolve o conceito de engaged agent ou sujeito engajado que se

completa com a noção de embodied self ou self corporificado. Assim, da leitura de

tais autores críticos do racionalismo iluminista, da epistemologia e da linguagem

tradicionais, Taylor relaciona, de modo indissociável, as noções de background e

agente engajado.

A idéia central que extraímos de tal relação é de que o self não existe sem

referência a seu mundo, às coisas que estão à sua disposição, aos significados que

se abrem para ele, às formas de vida que o entrelaçam. Engajamento significa, em

35 Esta afirmação nos conduz a discussão sobre o conceito de pessoa. Taylor apresenta umadefinição densa de pessoa que rejeita vários pressupostos das teorias sobre inteligência artificial eque pretende contribuir na discussão atual sobre bioética. No entanto, sua definição substantiva deseres corporificados dotados de linguagem deixa em aberto a questão dos indivíduos incapazes dearticulação e linguagem por alguma deficiência ou doença. Tais indivíduos não seriam seresplenos, seriam excluídos da categoria de ´pessoas`? Taylor discute essa questão no texto “TheConcept of a Person” in Philosophical Papers I, pág. 97, op. cit.

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última análise, a impossibilidade de se pensar um sujeito universal, solto, livre,

sem pré-compreensões que moldem o seu entendimento. Para Taylor, seguindo

uma leitura de Heidegger via Merleau-Ponty, o mundo é moldado pelo

engajamento do sujeito, no sentido de que o único modo do ser humano

experimentar a vida neste mundo é essencialmente como um sujeito que tem um

corpo.

Nesse sentido, Taylor entende a noção de habitus de Pierre Bourdieu

como bastante útil. Uma disposição corporal torna-se um hábito quando codifica

uma certa compreensão cultural. Um hábito tem sempre uma dimensão expressiva

que lança certos significados que as pessoas compartilham. O self engajado e

corporificado é anterior a qualquer tentativa de representação. Mesmo a

concepção postulada pela epistemologia tradicional de um self desengajado só é

possível em contraste com um background mais amplo, o ser-no-mundo

cotidiano.

Nesse sentido, se falta a Taylor uma teoria contemporânea da luta de

classes, na medida em que ele fala do ponto de vista do intelectual da cultura

norte atlântica, onde os conflitos de classe mais virulentos já foram superados36, a

aproximação com Bourdieu que ele mesmo sugere em seu texto “To follow a

rule”, oferece uma interessante combinação que pode ser explorada para uma

melhor compreensão das sociedades periféricas, como a brasileira37. Bourdieu

oferece uma sofisticada análise da forma singularmente opaca e refratada que a

dominação ideológica, mascarando seu caráter de classe, assume na modernidade

tardia. Taylor aproxima Bourdieu e Wittgenstein tendo em vista a ênfase na noção

de articulação e de prática. Obedecer a uma regra é antes de tudo uma prática

aprendida e não um conhecimento. A ´prática` pode ser articulável, ou seja, ela

pode explicitar razões e explicações para o seu “ser deste modo e não de qualquer

outro” quando desafiada a isto. No entanto, na maior parte das vezes, esse pano de

fundo inarticulado permanece implícito, comandando silenciosamente nossa

atividade prática. Assim, a ênfase de Bourdieu concentra-se no condicionamento

pré-reflexivo, automático, emotivo, espontâneo, em uma palavra, inscrito no

corpo de nossas ações, disposições e escolhas. Os nossos corpos são, na sua

36 Para uma crítica das posições de Taylor e Fraser, veja Honneth, Axel. “Recognition orDistribution?” págs. 52/53, in: Theory, Culture and Society, vol. 18, issues 2 & 3, 2001.37 Taylor, “Seguir uma Regra” in Argumentos Filosóficos, pág. 181.A combinação entre Taylor eBourdieu é trabalhada no Brasil por Jessé Sousa, Iuperj.

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37

forma, dimensão, apresentação, etc, a mais tangível manifestação social de nós

mesmos.

No seu texto já clássico sobre a Distinção38, Bourdieu desenvolve a noção

de habitus. O habitus, ao contrário da tradição racionalista e intelectualizante,

permite enfatizar todo o conjunto de disposições culturais e institucionais que se

inscrevem no corpo e que se expressam na linguagem corporal de cada um de nós

transformando, por assim dizer, escolhas valorativas culturais e institucionais em

carne e osso.

Assim, na trilha da crítica fenomenológica de Heidegger ao racionalismo

instrumental, Taylor defende uma concepção do sujeito como um agente

essencialmente personificado e engajado no mundo. Isso não significa apenas que

dependemos de certas características corporais, como ter o cérebro intacto para

raciocinar ou abrir os olhos para enxergar. O que Taylor deseja afirmar é algo

sobre a natureza de nossa experiência, pensamento e demais funções que nos

qualificam enquanto sujeitos e não apenas as condições empiricamente

necessárias a essas funções. Quando Taylor descreve os sujeitos como

essencialmente corporificados, ele refere-se ao fato de que é essencial para nossa

experiência e pensamento ser a experiência e o pensamento de seres dotados de

corpo.

2.2.2Narrativa e Articulação

O retrato pintado por Taylor de um self situado no espaço moral,

movendo-se por amor e admiração em direção aos bens fortemente avaliados e

38 O que Bourdieu tem em mente é a formação de um habitus de classe, percebido como umaprendizado não intencional de disposições, inclinações e esquemas avaliativos que permitem aoseu possuidor perceber e classificar, numa dimensão pré-reflexiva, signos opacos da culturalegítima. O habitus é uma necessidade internalizada e transformada em disposições. Diferentescondições de existência produzem diferentes habitus fazendo com que agentes de uma mesmaclasse ajam de acordo com esquemas avaliativos que são, em grande medida, intercambiáveis.Todos os agentes de uma mesma classe ou fração de classe agem de acordo com esquemas que sãointercambiáveis. Assim, até as escolhas percebidas como as mais pessoais e recônditas de cada umde nós, desde a preferência por carro, compositor ou escritor até a escolha do parceiro sexual, são,na verdade, fruto de fios invisíveis que interligam interesses de classe ou fração de classe. Essesfios invisíveis interligam e cimentam tanto afinidades e simpatias, constituindo as redes desolidariedades objetivamente definidas ou, por outro lado, forjam antipatias soldadas pelopreconceito. Bourdieu, Pierre. Distinction: A Social Critique of the Judgment of Taste, Harvard,1984.

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38

ansiando aproximar-se deles, está intimamente conectado com o papel que ele

atribui à narrativa na vida moral. Taylor acredita que os indivíduos interpretam

suas vidas necessariamente em termos de narrativas; o sentido de suas vidas

aparece como o desenrolar de uma história que tem continuidade do passado em

direção ao futuro. O modo de dar sentido a um momento particular qualquer é

através do encaixe de tal momento no contexto maior de nossas vidas. É

impossível dar sentido a algo sem localizá-lo em relação aos eventos passados e

às esperanças e temores futuros. Novamente, vemos a presença de Heidegger,

com a noção de finitude do Dasein (being-in-time)39. A narrativa é, assim, uma

propriedade ontológica do self que estrutura necessariamente sua auto-

compreensão enquanto agente.

Taylor não é pioneiro na afirmação do papel da narrativa na auto-

interpretação pessoal40. No entanto, sua visão da identidade relacionada à

moralidade fornece uma nova luz a tal compreensão. Taylor associa mais

marcadamente o papel da narrativa com a moralidade e com a pluralidade de

concepções de bem que marcam a modernidade. As narrativas funcionam em

diferentes níveis, fornecendo uma ampla gama de potenciais identificações aos

indivíduos. Na escala cultural mais ampla, por exemplo, fornecendo sentido às

histórias de povos e nações, construindo identidades através de mitos, heróis,

eventos, símbolos. As religiões também constroem histórias sobre como foram

fundadas e consolidadas através dos tempos. Assim, as narrativas desempenham

um papel crucial na auto-compreensão dos indivíduos.

Rearticulando a argumentação de Taylor até aqui: afirmar que

compreendemos nossa vida na forma de uma narrativa significa dizer que, a fim

de entender minimamente nossa vida, precisamos de uma orientação para o bem,

o que significa algum sentido de discriminação qualitativa, daquilo que é

incomparavelmente superior. Esse sentido do bem tem de ser incorporado à

compreensão de minha vida como uma história em andamento. É a partir do meu

sentido de onde estou em relação ao bem que desejo e, levando em conta diversas

possibilidades, que projeto a direção de minha vida em relação a ele. A vida de

39 Fontes do Self, p. 70-72.40 Taylor reconhece a influência dos trabalhos de Alasdair MaIntyre, Paul Ricoeur, Jerome Brunere Heidegger. Fontes do Self, nota 24, p.70.

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39

uma pessoa tem, portanto, sempre um grau de compreensão narrativa, situada no

tempo41.

Essa compreensão do self narrativo e situado remete à noção de unidade

da identidade. Apesar da diversidade de bens presentes no horizonte cultural de

uma pessoa, e da difícil conciliação entre eles, tendemos a conceber uma visão

unificada do self. Isso não significa dizer que não há espaço para mudanças

radicais na vida de uma pessoa. Como destaca Taylor, tendemos a nos referir a

tais momentos de transformação como etapas superadas da mesma vida. Apesar

de usarmos expressões como “hoje sou outra pessoa” para nos referir a mudança

em relação a tempos e experiências passadas, não duvidamos seriamente de que

sejamos os mesmos42.

Para construir uma narrativa e dar sentido à sua existência, uma pessoa

deve conseguir articular os bens que a movem. No entanto, como vimos, a

maioria dos nossos mais poderosos valores, e mesmo as configurações morais

mais importantes de nosso background, podem permanecer na inconsciência,

operando de modo tácito. Geralmente, apenas em períodos de crise ou reavaliação

existencial que a pessoa se detém a pensar sobre os valores que preza e a articular

os bens que a influenciam. Na maior parte do tempo, os bens, valores, crenças,

práticas e atitudes subjacentes à concepção moral de uma pessoa (e de muitas

teorias morais modernas) permanecem inarticulados. Devido a tal silêncio a

respeito das fontes mais profundas de nossa auto-compreensão, Taylor dedica

especial atenção à articulação, ao trazer à luz aquilo que é oculto, porém atuante.

Por acreditar na importância da articulação, Fontes do Self é um monumental

esforço nesse sentido. Mais que um empreendimento filosófico sistemático,

Fontes do Self busca narrar, articular, explicitar, falar sobre os bens mais

importantes que, de modo complexo e conflituoso, constituíram a modernidade e

nos constituíram como agentes modernos.

41 Novamente Taylor cita Heidegger e sua noção de ekstaseis passada e futura. Fontes do Self, p.74, nota 34.42 Nota-se aqui claramente o realismo moral defendido por Taylor. Uma teoria moral deveconseguir explicar como as pessoas normalmente entendem e vivem sua vida moral, ou seja,explicar as práticas da vida moral cotidiana. O objetivo de uma tal teoria seria trazer maior luz àcompreensão que as pessoas fazem de si mesmas e de seus valores. Tal posição vincula-se com adistinção de Taylor entre ciências humanas e naturais (crítica à epistemologia tradicional) e com aconcepção dos seres humanos como animais que se auto-interpretam (dimensão ontológica do self)que será desenvolvida na seqüência. Tal postura também leva Taylor a rejeitar as concepções quedescrevem a identidade pessoal como uma ilusão auto-confortadora.

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40

O processo de articulação do background tácito requer a evocação dos

ideais que capturam as pessoas para o determinado horizonte moral e que as

inspiram a agir de acordo com ele. Segundo Taylor, pelo menos seis funções

podem ser atribuídas ao processo de articulação, de modo relacionado. A primeira

função é melhor compreender os valores e respostas morais ao descortinar seus

pressupostos. Como moralidade e identidade estão entrelaçados, compreender

melhor os valores que nos movem significa compreender melhor a nós mesmos.

Dessa forma, a articulação responde a um dos grandes anseios socráticos: o auto-

conhecimento.

Uma segunda função da articulação é trazer à tona a enorme complexidade

da vida moral dos modernos e mostrar a variedade de bens e a dificuldade de

combiná-los de modo harmonioso. Não é restringindo o campo da moralidade a

códigos de comportamento que conseguiremos harmonizar os diferentes bens que

nos influenciam. Ao contrário, Taylor acredita que a articulação do pluralismo

moral moderno aumenta as chances de um debate racional acerca de valores

culturais irredutíveis. Esta seria uma terceira função da articulação: instigar o

diálogo entre culturas, rejeitando o relativismo simplista que considera todos os

bens como equivalentes e não reconhece nenhuma forma de hierarquizá-los. Para

Taylor, conflitos podem ser resolvidos, o que não implica dizer que todos os

conflitos devam ser resolvidos.

Uma quarta função da articulação seria trazer à tona as fontes morais

subjacentes às teorias morais que Taylor critica. Todas elas possuem motivações

morais pressupostas, mesmo quando negam qualquer comprometimento e juram

neutralidade. Taylor considera, por exemplo, o utilitarismo de Bentham. Apesar

de negar qualquer discriminação qualitativa entre os bens, sua postura neutra

implica o comprometimento com a racionalidade, com o respeito pelo indivíduo e

sua autonomia e, de forma dispersa, com a afirmação da vida cotidiana43. Assim,

Taylor considera que sua teoria também contribui para a explicitação dos bens

consagrados pelas teorias reducionistas, mesmo quando elas próprias não os

reconhecem.

Em quinto lugar, a articulação também atua como capacitadora

(articulation empowers), ou seja, ao trazer à luz a fonte moral que produz a

43 A noção de afirmação da vida cotidiana é um importante elemento da dimensão histórica do selftrabalhada no capítulo 2.

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motivação de aderir a determinado bem, a articulação contribui para a maior

lealdade em relação a ele. Isto porque trazer o bem constitutivo subjacente à tona,

explicitar o que normalmente mantém-se tácito, estreita o contato entre o bem e

seu seguidor, o que certamente revigora sua aderência a ele. De modo oposto, o

fracasso na articulação do background contribui para seu desgaste. Sem nenhuma

forma de articulação, perderíamos o contato com o bem44.

Por fim, a articulação permite uma crítica imanente que não se contenta

apenas em atacar os bens rivais, mas que reconhece a necessidade de reconfigurá-

los. Retraçar as fontes morais e os caminhos trilhados pela história das idéias na

modernidade nos ajuda a reviver os bens e valores que nos motivaram e, assim,

reconfigurá-los e reconciliá-los entre si, na medida do possível. Tal poder

conferido à articulação está conectado com o papel da linguagem na filosofia de

Taylor. A compreensão da linguagem como expressivista e constitutiva da

realidade, e não apenas como instrumento de representação, aparece como central

para a argumentação de Taylor acerca da particularidade da identidade moderna e

do papel central da auto-interpretação do agente na produção da sua identidade45.

2.3Dimensão Ontológica do Self

Como já mencionado na introdução, uma ampla compreensão do self

envolve o reconhecimento de duas dimensões distintas e fundamentais: a

ontológica e a histórica. Fontes do Self pode ser lido dessa forma. A parte I, que

Taylor considera dispensável para aqueles que não se interessam pela discussão

filosófica contemporânea, dedica-se ao desenvolvimento dos elementos

ontológicos do self, ou seja, aquelas características universais e permanentes que

constituem a identidade de qualquer pessoa. Já o resto do livro, partes II a V,

narram uma história do self moderno, as principais tradições que ofereceram 44 Taylor lembra que a filosofia é apenas um modo de articulação dos bens constitutivos dobackground de uma pessoa. Aliás, a análise filosófica é uma das formas mais fracas decapacitação. Outras formas mais potentes são a poesia, a literatura, as artes visuais eperformáticas, a música, a oração e os rituais diversos. Todas essa formas de midia modernapossuem a habilidade de trazer à luz o bem subjacente e, com isso, aumentar a lealdade de seusaderentes. Assim, articulação em sentido restrito significa explicitar o bem em linguagemfilosófica, mas a articulação, de uma forma geral, pode envolver outras formas de expressão. Ver arespeito, Taylor, Argumentos Filosóficos, op. cit.

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42

visões sobre o self, as origens da discussão filosófica, os processos de

transformação sociais e culturais, enfim, as diversas interpretações que se

entrelaçaram e constituíram a noção moderna de self. De certa forma, as duas

partes do livro podem ser destacadas, como sugere Taylor no prefácio46. E, apesar

de tomar como base as noções desenvolvidas na parte I do livro, Taylor não faz

uso de conceitos específicos sem os devidos esclarecimentos47.

Assim, paralelamente à posição pluralista e culturalista, com a afirmação

da historicidade essencial da noção de self, Taylor acredita que certas

características estruturais são universais. O self não é apenas mudança e

movimento; ele é uma entidade inerentemente moral, visto que selfs são sempre

situados em espaços morais. Um dos traços imutáveis da identidade humana é

exatamente a inescapável centralidade da auto-interpretação para a constituição

da noção de um self individualizado. Um segundo elemento constitutivo do agente

humano é a intencionalidade, que Taylor denomina de propósito (purpose), ou

seja, o fato de já estarmos sempre situados e orientados num determinado espaço

de interlocução. Em terceiro lugar, a dialogicidade essencial da mente humana e

sua conexão central com o quarto elemento: a linguagem. Sem pretensão de

esgotar o assunto, traçarei algumas características centrais da concepção de

linguagem de Taylor no final deste capítulo, buscando rastrear e mapear suas

principais influências e implicações.

2.3.1Auto-interpretação

“Seres humanos são animais que se auto-interpretam” ou “Human beings

are self-interpreting subjects”48. Tal afirmação expressa a fundamental noção

tayloriana de que um dos componentes vitais que constituem a identidade de uma

pessoa é o entendimento ou a interpretação que ela faz de si mesma. E esse

processo de se auto-interpretar é uma característica distintiva da espécie humana.

45 Esta questão ainda será desenvolvida no final do capítulo 1.46 Fontes do Self, p. 11.47 Abbey aponta certa incongruência no fato de Taylor não se utilizar, nas demais partes de Fontesdo Self, da conceituação elaborada na Parte I. Afinal, as duas dimensões não são indissociáveis?Acredito que Taylor não se utilizou das expressões mais complexas para evitar um textohermético, mas a elaboração filosófica da Parte I embasa a aproximação histórica que Taylorrealiza no resto do livro.48 Philosophical Papers I, cap. 2 “Self-interpreting animals”, op. cit. pág. 45.

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Apesar desta afirmação parecer incontroversa hoje, ela foi e ainda é alvo de

disputa entre Taylor e os behavioristas e pode ser estendida a todas as teorias que

buscam uma visão objetiva do self, ou seja, um ponto de vista de terceira pessoa,

de um observador externo. Teorias como a da escolha racional, a sociobiologia e,

mais recentemente, a psicologia evolucionista, representam tentativas de alcançar

esse ideal de cientificidade e evitar toda e qualquer referência a elementos

subjetivos49.

O self não é um objeto de estudo como outro qualquer e não se encaixa

nos cânones científicos modernos50. Como esclarece Taylor, quando falamos de

um ser humano como sendo um self, queremos nos referir à idéia de que as

pessoas são seres de profundidade e complexidade necessárias para ter uma

identidade como a que vem sendo descrita até agora, ou seja, uma identidade

moral. Com isso, Taylor quer se distanciar das análises psicológicas e

sociológicas que afirmam, por exemplo, que os chipanzés têm uma noção de self

porque se reconhecem diante de um espelho. É certo que o ego freudiano faz parte

daquilo que Taylor chama de self, mas um ego totalmente livre da influência do

Superego e do Id é somente um calculador lúcido de custos e benefícios. Tal

capacidade estratégica requer consciência reflexiva, mas ainda não alcança a

noção tayloriana de self. A dimensão da identidade humana que Taylor quer

destacar vai além da auto-observação neutra e relaciona-se com a auto-imagem,

ou seja, com o fato dos seres humanos se preocuparem com a adequação de sua

imagem à determinados padrões, de modo geral, socialmente introduzidos. Em

outras palavras, o self de Taylor tem necessidade de identidade e, portanto, de

alguma orientação para o bem. Portanto, para compreendermos um self, não

bastam apenas informações empíricas sobre sua origem, ocupação, idade, cultura,

etc. É preciso saber como a própria pessoa se interpreta. De acordo com Taylor,

49 Esta disputa está relacionada com a distinção entre ciências humanas e naturais que Taylorconsidera ponto-chave para a superação da epistemologia tradicional e que ele remete a Dilthey,Heidegger e Gadamer. Uma das razões mais importantes para rejeitar a aplicação dos mesmosmodelos das ciências naturais para a compreensão da ação humana e da sociedade consiste no fatode que objetos naturais não se auto-interpretam. Assim, o enfoque científico sobre a sociedadedeve ser modificado e libertado do jugo das ciências naturais, se quiser dar uma contribuiçãorelevante para sua área de estudo. Ver, a respeito, Philosophical Papers II, op. cit.50 Taylor refuta o enfoque cientificista em relação ao self em Fontes do Self, pág. 51

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“a interpretação que fazemos de nós mesmos e de nossa experiência constitui

aquilo que somos”51.

Uma série de considerações devem ser traçadas para uma melhor

compreensão da noção tayloriana de sujeitos auto-interpretativos. Primeiro, a

auto-interpretação não é algo que a pessoa realiza sozinha, conversando com seus

botões. O modo como o self se vê é moldado pelo modo como ele é reconhecido

pelos outros52. Segundo, a auto-interpretação que uma pessoa faz é

freqüentemente ilusória, exagerada ou mesmo patológica. No entanto, a validade

da auto-interpretação não é condição para seu funcionamento. Mesmo uma

interpretação errônea de si é relevante para a formação da identidade. Além disso,

uma pessoa pode ter múltiplas e até conflitantes visões de si mesma,

interpretações que mudam radicalmente com o tempo ou que são abandonadas.

Ainda assim, mesmo que de modo incoerente e em constante processo de

formação, minha auto-interpretação é crucial para a formação de minha

identidade.

Para Taylor, uma mudança na auto-interpretação equivale a uma mudança

no próprio self que é ao mesmo tempo intérprete e interpretado53. Com a aquisição

de novos vocabulários para expressar seus sentimentos, experiências e aspirações,

as pessoas tendem a alterar seu entendimento sobre tais aspectos e,

conseqüentemente, a alterar seu entendimento sobre si mesmas. Assim, a

mudança no vocabulário da auto-interpretação remete a uma mudança no próprio

self. Grande parte da inspiração tayloriana ao tratar o self é influenciada pela

tradição hermenêutica. Um self pode ser comparado a um texto, no sentido de que

existe um significado a ser compreendido, mas diferentes interpretações sempre

podem surgir e alterar o sentido anterior oferecendo novos significados que

possibilitem uma compreensão melhor de uma identidade. No entanto,

diferentemente de um texto, o self assume os dois papéis da relação: ele é, ao

mesmo tempo, o sujeito que interpreta e o objeto a ser interpretado.

51 “Our interpretation of ourselves and our experience is constitutive of what we are”. In “Self-Interpreting Animals”, Philosophical Papers I, pág. 45.52 Esta questão será discutida adiante no item 1.3.3 e no capítulo 2, especialmente no item 2.3.53“Our formulations about ourselves can alter what they are about”. In Taylor, “The Concept of aPerson”, Philosophical Papers I, pág. 97.

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2.3.2Propósito / Intencionalidade

Os indivíduos podem alterar o modo como se auto-interpretam, mas essas

alterações não são totalmente arbitrárias ou caprichosas. Por mais desprendidas

que possam parecer, as escolhas individuais estão sempre orientadas por

determinados propósitos intrínsecos ao indivíduo. Taylor sustenta que agir

influenciado por esses propósitos originais é um elemento ontológico do self, ou

seja, é uma característica universal, por maiores que sejam as variações históricas.

Os seres humanos são movidos por metas ou objetivos de vida intimamente

relacionados com os bens que afirmam. Assim, para compreender a identidade de

uma pessoa é necessário fazer referência aos seus propósitos54.

Normalmente, na nossa vida cotidiana, nos referimos a propósitos ou os

pressupomos em nossas afirmações55. O mesmo gesto ou ação ganham

interpretações distintas conforme a intenção ou propósito que lhe conferimos.

Levantar o braço pode significar tanto um chamado ao garçom quanto um lance

num leilão, dependendo do contexto e da intenção do agente. É nesse sentido que

o agir está conectado com a responsabilidade. Quando o meu propósito ou meta é

alcançar determinado resultado e eu sou bem sucedida nesse intento, então tal

resultado deve ser computado a meu favor, como uma realização minha. Ao

contrário, se causei um evento que não desejava, que não correspondia ao meu

propósito inicial, a tendência é que minha responsabilidade seja diminuída. No

campo jurídico, tal noção é essencial para a distinção entre culpa e dolo e abre um

amplo campo de debates sobre a responsabilidade do agente.

Não apenas os seres humanos são animais com propósitos. No entanto,

para os demais animais que também guiam suas vidas por metas pré-

estabelecidas, o sentido de tais metas não participa de sua auto-compreensão. Isso

54 Com esta tese Taylor participa do debate sobre inteligência artificial como um forte crítico. Nãoimporta o quanto inteligente possa ser uma máquina, o que sempre a distinguirá dos humanos emesmo de outros animais, é que as máquinas não podem ser fontes originais de propósitos. Aocontrário, a invenção de máquinas inteligentes é, para os seres humanos, um propósito em si e uminstrumento para o preenchimento de outros objetivos humanos. Taylor defende a noção depropósito (purpose) desde seu primeiro livro The Explanation of Behaviour, onde critica a visãoreducionista da identidade e ação humana das teorias behavioristas e defende uma aproximaçãoteleológica da identidade humana. Ver, a respeito, Abbey, Charles Taylor, op. cit. Pág. 63.55 Taylor considera fundamental a referência ao modo de compreensão cotidiano, às noções dosenso comum, visto que uma teoria do comportamento humano deve explicar o modo como aspessoas se compreendem, uma vez que isso influencia sobremaneira seu comportamento.

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está diretamente conectado com a tese de que os seres humanos são animais de

linguagem. O que faz nossa auto-interpretação desempenhar um papel crucial na

formação de nossa identidade é o fato de a articularmos lingüisticamente. O ser

humano pode declarar seus propósitos para si mesmo e para os outros através da

articulação na linguagem. Essa habilidade de apresentar nossos propósitos para

nós mesmos e de fazê-los nosso objeto de reflexão através da mediação lingüística

nos diferencia dos demais animais que, todavia, também possuem necessidades,

desejos, intenções e emoções.

Aqui novamente repercute a noção expressivista de linguagem de Taylor.

Articular alguma coisa é transformá-la. Encontrar um novo vocabulário para

descrever uma emoção ou experiência significa criar uma nova emoção ou

transformar o sentido de uma dada experiência. Assim como uma nova auto-

interpretação transforma o ser, uma nova descrição moral ou espiritual transforma

uma cultura.

2.3.3Dialogicidade e Linguagem

A idéia central de Taylor de que os indivíduos são seres auto-

interpretativos que se constituem imersos num universo cultural com o qual

interagem através da linguagem, coloca em cena um terceiro elemento ontológico

do self: a dialogicidade. A descoberta ou articulação da identidade pessoal

envolve também uma relação dialógica com os outros. Como já mencionado, o

sujeito não se auto-interpreta no isolamento, conversando apenas consigo mesmo.

Ao contrário, por maior que seja nossa tentativa de desligamento do mundo e das

opiniões externas, nossa identidade é constituída pela contínua conversação com

os demais, sejam eles reais ou imaginários.

Isto significa dizer que nós nos transformamos em agentes humanos

plenos, capazes de compreender a nós mesmos e aos demais e, portanto, de definir

nossa identidade, através da aquisição de significações compartilhadas, de formas

de expressão social. E só aprendemos essas formas de expressão através de nossa

interação com os demais, especialmente com aqueles que são mais importantes

para nós. As pessoas não adquirem as linguagens de que precisam para se auto-

definirem por si mesmas. Em vez disso, somos apresentados a essas linguagens

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por meio das outras pessoas. A gênese do espírito humano é, nesse sentido,

dialógica56.

Tal dimensão dialógica deve ser pensada em termos lingüísticos, no

sentido de que as pessoas sempre se encontram situadas num espaço moral e

cultural mais amplo onde travam relações mediadas pela linguagem com os

“outros significativos”57. Somente podemos nos constituir em agentes humanos

plenos, capazes de nos compreender e de definir nossa identidade pessoal, de

articular nosso self, através das linguagens humanas, ou seja, de nossos modos de

expressão em geral: língua, arte, música, gestos, amor, etc. Somos introduzidos na

linguagem por meio da interação com outras pessoas que têm importância para

nós, os “outros significativos”. Este processo de socialização que produz a

individuação é contínuo, não se restringindo ao momento de aprendizagem da

linguagem. A definição de nossa identidade depende de um diálogo constante

com o que os “outros significativos” desejam ver em nós ou em oposição a tais

expectativas.

Essa relação dialógica perdura indefinidamente, apesar da existência de

uma certa nostalgia do “ideal monológico”, ou seja, do desejo de libertação dos

condicionamentos externos rumo a uma completa autonomização individual.

Entretanto, como ressalta Taylor, seria um esforço sobre-humano e fadado ao

fracasso tentar evitar que nossa identidade seja formada ou influenciada pelos

“outros significativos”. Mesmo quando conseguimos nos desligar desses outros

que nos influenciam, como os pais, por exemplo, ainda mantemos uma

conversação interna contínua com eles. Dessa forma, descobrir minha identidade

não depende apenas da minha reflexão isolada, mas de toda uma negociação por

meio do diálogo, parte externo, parte interno, com o outro. Assim, o dialogismo

também é interior.

Até agora temos três traços essenciais do self, segundo Taylor. Os seres

humanos definem sua identidade através da auto-interpretação que fazem

orientados por propósitos intrínsecos que reconhecemos através da linguagem que

nos é apresentada na relação dialógica com os demais agentes. Todo esse

56 Taylor rastreia tal concepção dialógica do self em pensadores como Humboldt, o romancistarusso Mikhail Bakhtin e o pragmático americano George Herbert Mead Ver Fontes do Self, nota12 e 13, pág. 55 e Argumentos Filosóficos, nota 8, pág. 246 e 101, op. cit.57 Expressão cunhada por George Herbert Mead in Mind, Self and Society, op. Cit. Volto a essaquestão no capítulo 2, item 2.3.3.

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processo só é possível contra um pano de fundo que nos fornece o sentido de

nossas vivências e relações. Entendemos o mundo e nós mesmos através da

articulação lingüística que não apenas representa algo, mas também o constitui e

transforma.

A afirmação de Taylor de que a articulação de algo tende a transformá-lo

remete a sua concepção de linguagem que remonta aos pensadores alemães

Herder e Humboldt. Segundo Taylor, a mais influente tradição filosófica sobre a

linguagem pode ser rastreada em Hobbes, Locke e Condillac. Para tais

pensadores, a linguagem era um veículo para comunicar idéias que existiam

independentemente de sua expressão lingüística. A linguagem aparecia como

instrumento primordial da construção de nosso mundo, através do qual ordenamos

as coisas ao nosso redor. Daí a enorme preocupação com seu uso adequado e com

seu potencial abuso

No entanto, a nova compreensão da linguagem e da arte do período

romântico lançou uma forte crítica à concepção lockeana e propôs uma noção

distinta de criatividade. Este novo enfoque apresenta as palavras como

constituintes do pensamento e emoções e não apenas como rótulos colados às

coisas. Expressivismo é o termo usado por Taylor para se referir a esse novo

entendimento da linguagem como constituindo a realidade e não apenas a

representando58.

Nas palavras de Taylor,

“a idéia revolucionária do expressivismo é que o desenvolvimento de novosmodos de expressão nos torna capazes de ter novos sentimentos, mais poderosose mais refinados e, certamente, uma maior auto-compreensão. Ao expressarnossas emoções e sentimentos nós lhe damos uma dimensão reflexiva que ostransforma”59

Nesse cenário, a dimensão criativa da linguagem supera a visão

instrumental. As palavras não são simplesmente rótulos; descrever algo de forma

diferente do usual pode mudar a percepção de uma pessoa quanto a isso. Taylor

também aplica essa perspectiva expressivista à sua noção de identidade pessoal. A

leitura de um bom romance, por exemplo, pode nos trazer uma descrição de uma

58 Taylor segue o trabalho de Isaiha Berlin que utiliza o termo ´expressionismo` para debater asidéias de Herder. Alguns intérpretes de Taylor vêm se referindo a ele como representando umcerto ´expressivismo hermenêutico`. Os principais textos de filosofia da linguagem de Taylorestão no final de Philosophical Papers I, op. cit.59 Taylor, “Philosophy of Language” Philosophical Papers I, parte III, op. cit.

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emoção que nós não tínhamos identificado ainda e que, portanto, ainda não existia

para nós. Aparece aqui uma combinação de criação e descoberta que é difícil

definir e que dividiu pensadores associados à mesma visão romântica da

linguagem. Taylor associa-se a essa concepção explicitamente e busca contribuir

para o debate entre as duas principais tradições e também entre as divergências

dentro da tradição expressivista60.

Segundo Taylor, Isaiah Berlin ajudou a resgatar Herder de sua posição

obscura na filosofia, ofuscado pelo seu sucessor mais rigoroso e influente: Hegel.

Para Taylor, Herder é a figura revolucionária que cria um modo

fundamentalmente diferente de pensar sobre a linguagem e o significado, modo

esse que tem profunda repercussão na cultura moderna. Para justificar sua

afirmação, Taylor analisa uma passagem de On the Origin of Language61, onde

Herder rejeita a teoria da origem da linguagem de Condillac.

Condillac explica o surgimento da linguagem utilizando-se da teoria

designativa de Locke. Em seu livro, ele apresenta uma fábula a fim de ilustrar

como a linguagem surgiu a partir do que denomina “signos naturais”, ou seja,

relações diretas e imediatas entre o som emitido e a coisa que lhe causou62.

Assim, por exemplo, uma criança vendo a outra gritar de aflição, passa a entender

o grito como signo daquilo que causou a aflição. A partir daí esse signo passa a

referir-se àquela coisa e temos então, um “signo instituído”. Assim, o léxico vai

gradualmente e naturalmente aumentando. Herder ataca essa história como

totalmente inadequada e que, ao final, pressupõe precisamente o que pretendia

explicar. A relação de significação, ou seja, como e por quê ocorre a compreensão

do signo lingüístico, não é explicada. As crianças de Condillac gritando no

deserto já têm desde o começo a capacidade de compreender o que é a

representação de alguma coisa pela palavra, logo, o que é falar sobre alguma coisa

por meio da palavra. Mas é exatamente esse o mistério da origem da linguagem:

que capacidade é essa que apenas os seres humanos possuem de dotar sons de

60 Taylor mapeia a discussão no prefácio de Argumentos Filosóficos e desenvolve sua posição notexto “A importância de Herder”, pág. 93, op. cit.61 Herder, Johann Gottfried. Essay on the Origin of Language, op. cit.62 A fábula de Condillac consiste em duas crianças no deserto que emitindo gritos e fazendo certosgestos como expressões naturais de sentimentos. Etienne Condillac, Essai sur l´origine desConnaissances Humaines, apud Taylor, Argumentos Filosóficos, pág. 94, op. cit.

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significado, de apreendê-los como referência a coisas e de usá-los para falar sobre

elas?

Segundo Taylor, para compreender a objeção de Herder, temos que

assumir um ponto de vista interno, temos que ir além da posição de observador

externo, para o qual é suficiente fazer um relato da origem da linguagem e do

aprendizado como sendo o estabelecimento de um vínculo entre a palavra e a

coisa. Não que isso nos conduzirá à resposta da questão quanto à origem da

linguagem, coisa que Herder também não conseguiu. No entanto, ao mudar o foco

de análise da linguagem, Herder abriu um novo domínio de intuições sobre sua

natureza e antecipou Wittgenstein ao considerar a base de compreensão que a

linguagem requer, ou seja, o pano de fundo sobre o qual as descrições lingüísticas

fazem sentido.

Em primeiro lugar, Taylor busca mostrar que as expressões lingüísticas

não são sinais, como os ensinados a ratos ou chipanzés. Nesse caso, a correção de

um sinal é determinado pelo sucesso na realização de uma tarefa, como passar

pela porta amarela para ganhar o queijo ou fazer o gesto de “quero banana” e

ganhar a banana. De modo diferente, alguns dos usos da linguagem humana não

podem ser avaliados em termos de resultados e sua correção somente pode ser

expressa por meio de outros vocábulos como verdade, adequação, expressão

exata, etc. Assim, resume Taylor, “não podemos definir a justeza das palavras em

termos da tarefa sem definir a tarefa em termos da justeza das palavras”63.

Essas atividades humanas eminentemente lingüísticas definem o que

Taylor denomina de dimensão lingüística, ou seja, a dimensão humana que

trabalha com formas irredutíveis de justeza. Nesse sentido, uma criatura adquire

linguagem humana quando entra na perspectiva lingüística. A base da crítica de

Herder a Condillac situa-se aqui: Herder vê que o essencial para que as crianças

no deserto aprendam a tomar seus gritos como palavras é que elas passem a

operar na dimensão lingüística64.

Este é o traço distintivo mais sofisticado do ser humano: somos seres de

linguagem sofisticada. Não apenas fazemos combinações de frases, jogos de

linguagem e compartilhamos compreensões comuns, mas também somos dotados

63 Taylor, “A importância de Herder”, op. cit. Pág 98.64 Taylor segue sua digressão sobre Herder mostrando como sua influência se ramificou nasteorias contemporâneas da linguagem, como em Heidegger, Merleau-Ponty e Wittgenstein.

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de uma dimensão constitutiva /expressiva, inseparável de toda conversa humana.

É apenas na e através da linguagem que podemos fazer as discriminações que

envolvem avaliações fortes, como a distinção entre superior e inferior, essencial e

secundário. Apenas os animais com linguagem e capazes de hierarquizar bens

podem ser considerados seres morais (ou imorais).

A dimensão lingüística envolve a questão da justeza irredutível, ou seja, da

impossibilidade de traduzir a justeza das palavras em termos de respostas não

lingüísticas. Atribuir a dimensão lingüística a uma criatura significa sustentar que

ela é sensível a formas irredutíveis de justeza no signo que emite. Uma criatura

opera na dimensão lingüística quando pode usar e responder a signos em termos

de justeza descritiva, de sua verdade, de seu poder de evocar algum estado de

espírito ou exprimir alguma emoção.

Taylor acredita que Herder percebeu, mesmo que de modo implícito, essa

dimensão lingüística mais sofisticada que nos distingue dos demais animais com

linguagem. A sua objeção central a Condillac consiste exatamente nesse ponto: as

crianças no deserto não podiam tomar seus gritos como palavras porque não

estavam operando na dimensão lingüística. Herder traduz essa condição através

da noção de Besonnenheit, isto é, uma espécie de reflexão que nos capacita a ser

usuários da língua. Essa reflexão pode ser entendida como uma concentração ou

contemplação dos objetos através do seu reconhecimento, o que se traduz na

criação de um espaço de atenção, de distanciamento da significação mais

instintiva. Essa é a atitude reflexiva que a dimensão lingüística exige, segundo

Herder.

Para Taylor, em oposição à visão reificada do signo das teorias de Locke e

Condillac, Herder representa uma linha divisória na nossa compreensão da

linguagem. A ligação entre signo e objeto adquire um novo sentido quando

consideramos o caráter constitutivo da linguagem. As palavras não representam

coisas e não existe uma precisão lingüística irredutível que devemos buscar. Esse

erro decorre da desconsideração do pano de fundo (background) em que nos

apoiamos, mesmo sem perceber ou admitir. O pano de fundo proporciona a

incorporação da compreensão acerca da justeza lingüística. Segundo Taylor, o não

reconhecimento do papel crucial do pano de fundo constitui o defeito de toda

teoria designativa do significado. Além disso, com a reificação promovida pela

epistemologia moderna a partir de Descartes e Locke, isto é, com o impulso de

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objetificação de nossos pensamentos e conteúdos mentais, a desconsideração do

pano de fundo tornou-se ainda mais grave. Segundo Taylor, as teorias

comportamentalistas que tentam explicar o pensamento e a linguagem a partir do

ponto de vista do observador externo são calcadas nessa teoria do conhecimento

reificada e elidem por completo o pano de fundo em que nos apoiamos.

Dessa forma, ressalta Taylor, todo o esforço de recuperação do pano de

fundo tinha de se opor à epistemologia moderna associada à revolução científica.

As mais importantes filosofias dos dois últimos séculos representaram esse

esforço, culminando no pensamento de Heidegger e Wittgenstein. No entanto,

Herder continua sendo para Taylor a figura chave nessa resistência por ser o

primeiro a abrir essa nova perspectiva da linguagem. A concepção herderiana de

linguagem apresenta, segundo Taylor, duas direções de argumentações

relacionadas: em primeiro lugar, uma tentativa de articular uma parte do pano de

fundo, projeto este desenvolvido por Kant em sua crítica ao empirismo atomista

de Hume; em segundo lugar, a tentativa de situar nosso pensamento no contexto

de nossa forma de vida, como parece evidente nas obras de Heidegger e

Wittgenstein.

Para Taylor, essas duas direções estão entrelaçadas e ambas já se

encontram no pensamento de Herder. A firme crença no pensamento situado é o

que leva Herder à articulação da dimensão lingüística. Por não admitir que a

linguagem represente um mero acréscimo à vida animal, Herder se vê obrigado a

perguntar que tipo de transformação psíquica propicia o aparecimento da

linguagem. Essa é a questão que Herder responde com a noção de reflexão

(Besonnenheit). Ver nosso pensamento como situado nos leva a percebê-lo como

uma entre outras formas possíveis de vida psíquica. Isso nos torna conscientes de

seu pano de fundo distintivo.

Assim, Taylor acredita que Herder muda nossa compreensão da linguagem

de maneira significativa. A primeira intuição de Herder foi ver que a expressão

constitui a dimensão lingüística através do reconhecimento do caráter situado do

pensamento lingüístico. A linguagem emerge como uma atitude nova, como uma

reflexão peculiar em relação às coisas e que não pode estar inteiramente

desvinculada da nossa postura ou ação corporais em relação a essas coisas. Ela

deve ser vista como uma ação expressiva, ato que tanto atualiza essa reflexão

interna como a apresenta aos outros no espaço público. E, ainda segundo a

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interpretação que Taylor faz de Herder, essa ação situada e expressiva é a fala. A

fala é a expressão do pensamento. Ela não é apenas o revestimento exterior de

algo que possa existir independentemente. A fala é constitutiva do pensamento

lingüístico reflexivo, ou seja, do pensamento que lida com seus objetos na

dimensão lingüística.

A Herder também pode ser creditada a compreensão de holismo do

significado. Uma palavra só tem significado no âmbito de um léxico e de um

contexto de práticas lingüísticas que se acham embutidas, em última análise,

numa determinada forma de vida. Segundo Taylor, a formulação mais celebrada

dessa intuição deve-se a Wittgenstein e é tributária do reconhecimento da

dimensão lingüística tal como Herder a formulou. As palavras individuais só

podem ser palavras no contexto de uma linguagem articulada. A linguagem não é

algo que se possa construir com uma palavra de cada vez, como queria Condillac.

O erro está exatamente na desconsideração do pano de fundo necessário à

linguagem. Assim, seguindo a interpretação de Taylor, a articulação herderiana da

dimensão lingüística mostra que a história designativa clássica da aquisição da

linguagem é impossível. Essa história envolve uma confusão entre o mero sinal e

a palavra. Pode haver repertórios de um único sinal, pois acertar no caso do sinal

significa apenas responder adequadamente. Mas não pode haver léxicos de uma

só palavra porque acertar no caso da palavra requer algo mais, uma espécie de

reconhecimento da justeza irredutível da dimensão lingüística.

Desse modo, a compreensão do holismo do significado foi uma das idéias

mais importantes que emergiram da filosofia de Herder. Vários pensadores

influentes aplicaram sua intuição, como Humboldt que a incorporou na sua noção

de linguagem como rede65 e Saussure que a usou na distinção entre langue e

parole66. No entanto, a mais vigorosa aplicação filosófica dessa noção encontra-

se, segundo Taylor, na última obra de Wittgenstein67. Sua refutação da teoria

65 A noção tayloriana de redes de interlocução deve muito a Wilhem von Humboldt. SegundoTaylor, “falar é tocar parte da rede, o que faz o todo ressoar. Como as palavras que usamos sótem sentido em termos de seu lugar na rede total, nunca podemos a princípio ter uma visão claradas implicações daquilo que dizemos. Nossa linguagem é sempre mais do que podemos alcançar.É, de certo modo, inexaurível. A característica crucial da linguagem é ser ela uma forma deatividade em que, por meio da expressão, se realiza a reflexão. A linguagem, no dizer deHumboldt, deve ser vista como atividade de fala, não como trabalho já feito”. Humboldt, OnLanguege. Cambridge, 1988 apud Taylor, Argumentos Filosóficos, pág. 111.66 Ferdinand de Saussure, Curso de Lingüística geral, São Paulo, Cultrix, 1997 apud Taylor,Argumentos Filosóficos, pág. 150.67 Wittgenstein, Investigações Filosóficas, apud Taylor, Argumentos Filosóficos, pág. 110.

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designativa recorre constantemente à compreensão de pano de fundo em que

precisamos nos apoiar para falar e compreender. As palavras só têm o significado

que têm para nós no interior dos jogos de linguagem que jogamos com elas e que,

por sua vez, encontram seu contexto em determinada forma de vida. Dessa forma,

ressalta Taylor, o holismo recebeu aceitação universal e se constitui hoje em um

dos axiomas da lingüística.

Combinando essa descobertas, veremos então a linguagem como um

padrão de atividade mediante o qual exprimimos /realizamos um certo modo de

ser no mundo, isto é, um modo lingüístico; mas esse padrão só pode ser

apresentado contra um pano de fundo que nunca podemos dominar por inteiro,

visto que estamos remodelando-o constantemente. Remoldá-lo sem dominá-lo

significa que nunca sabemos de modo integral o que fazemos com ele. A idéia

revolucionária implícita em Herder foi a de que o desenvolvimento de novas

modalidades de expressão nos capacita a ter novos sentimentos, mais potentes ou

mais aprimorados, e por certo mais autoconscientes. Ao serem capazes de

exprimir nossos sentimentos, damos uma dimensão reflexiva aos nossos

pensamentos que os transforma. O animal lingüístico pode sentir não só raiva

como indignação, não só amor como admiração. “No que se refere à linguagem,

somos tanto construtores como construídos”68.

68 Taylor, Argumentos Filosóficos, pág. 11.

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