2. Os Nossos Antepassados, De Italo Calvino, Como Alegoria Do Sujeito Moderno

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  Revista de Estudos Interdisciplinares de Italiano | Número 04 | março/2012 13 O S N OSSOS A NTEPASSADOS  D E I TALO C ALVINO  COMO A LEGORIA DO S UJEITO M ODERNO 1 .  Juliana Zanetti de Paiva Mestranda IEL Unicamp  juzanet [email protected] Sendo o objeto da literatura a própria condição humana, aquele que a lê e a compreende se tornará não um especialista em análise literária, mas um conhecedor do ser humano. T zvetan T odorov (A literatura em perigo, p. 92) Introdução controvertido Harold Bloom, em seu livro Gênio, quando define o que vem a ser um escritor genial, propõe que nos façamos algumas perguntas quando lemos um livro: “[...] ele ou ela alarga a nossa consciência? E como isso se dá?”. Ele propõe, então, o que chama de “teste simples, mas eficaz”, para identificar esse autor: fora o aspecto do entretenimento, a minha conscientização foi aguçada? Expandiu-se a minha consciência, tornou- se mais esclarecida?” (BLOOM, 2003, p. 37). Dentre os escritores que ele considera geniais figura Italo Calvino. Calvino é de fato esse autor que aguça a consciência jogando uma luz sobre ela.  Isso não acontece à toa, não se trata de transposição da política para a literatura; ao lermos as suas obras, acontece uma espécie de provocação à nossa sensibilidade e pensamento. Calvino não apreende nem representa simplesmente um fato social, ele não fala de coerções entre classes sociais, seu empreendimento é mais específico: ele narra aventuras, ou desventuras, que não constituem mero suporte a uma crítica social. A importância de uma obra para Antonio Cândido “quase nunca é devida à circunstância de exprimi r um aspecto da realidade, social ou individual, mas à maneira por que o faz” (2000, p.  33). Assim é a obra de Calvino. Ao lê-la, percebemos dois níveis de construção literária e, portanto, de transfiguração do real: o primeiro é o nível da própria linguagem literária; o segundo é o da alegoria. Na escrita literária de Calvino, encontramos aquilo que Todorov expressa quando discute o que vem a ser a literatura: 1  Este artigo é fruto de um projeto de mestrado em andamento, apoiado com bolsa pela Fapesp. O

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antepassados, De Italo Calvino, Como Alegoria Do Sujeito Moderno

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    O S N O S S O S A N T E PA S S A D O S , D E I TA L O C A LV I N O , C O M O

    A L E G O R I A D O S UJ E I T O M O D E R N O 1.

    Juliana Zanetti de Paiva

    Mestranda IEL Unicamp

    [email protected]

    Sendo o objeto da literatura a prpria condio humana, aquele que a l e a

    compreende se tornar no um especialista em anlise literria, mas um conhecedor

    do ser humano.

    Tzvetan Todorov (A literatura em perigo, p. 92)

    Introduo

    controvertido Harold Bloom, em seu livro Gnio, quando define o que

    vem a ser um escritor genial, prope que nos faamos algumas perguntas

    quando lemos um livro: [...] ele ou ela alarga a nossa conscincia? E

    como isso se d?. Ele prope, ento, o que chama de teste simples, mas eficaz, para

    identificar esse autor: fora o aspecto do entretenimento, a minha conscientizao foi

    aguada? Expandiu-se a minha conscincia, tornou-se mais esclarecida? (BLOOM,

    2003, p. 37).

    Dentre os escritores que ele considera geniais figura Italo Calvino. Calvino de

    fato esse autor que agua a conscincia jogando uma luz sobre ela. Isso no acontece

    toa, no se trata de transposio da poltica para a literatura; ao lermos as suas obras,

    acontece uma espcie de provocao nossa sensibilidade e pensamento. Calvino no

    apreende nem representa simplesmente um fato social, ele no fala de coeres entre

    classes sociais, seu empreendimento mais especfico: ele narra aventuras, ou

    desventuras, que no constituem mero suporte a uma crtica social. A importncia de

    uma obra para Antonio Cndido quase nunca devida circunstncia de exprimir um

    aspecto da realidade, social ou individual, mas maneira por que o faz (2000, p. 33).

    Assim a obra de Calvino.

    Ao l-la, percebemos dois nveis de construo literria e, portanto, de

    transfigurao do real: o primeiro o nvel da prpria linguagem literria; o segundo o

    da alegoria. Na escrita literria de Calvino, encontramos aquilo que Todorov expressa

    quando discute o que vem a ser a literatura:

    1 Este artigo fruto de um projeto de mestrado em andamento, apoiado com bolsa pela Fapesp.

    O

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    Ao dar forma a um objeto, um acontecimento ou um carter, o escritor no faz a

    imposio de uma tese, mas incita o leitor a formul-la: em vez de impor, ele

    prope, deixando, portanto, seu leitor livre ao mesmo tempo em que o incita a se

    tornar mais ativo. (TODOROV, 2009, p. 78).

    Isso est presente em Os nossos antepassados. Nele, Calvino apresenta um estilo

    novo diferente das obras anteriores, em que predominava a marca do neo-realismo

    italiano. Nesta obra, ele realiza uma fuga do real e transcende essa mesma realidade

    pela imaginao (CNDIDO, 2000). O segundo nvel de transfigurao do real pela

    alegoria, do qual falamos, uma das rupturas nesse processo de mudana em que

    novos elementos possibilitaram enriquecer a sua narrativa. Isso fica explcito quando ele

    afirma:

    Eu tambm estou entre os escritores que comearam na literatura da Resistncia.

    Mas aquilo de que no quis abrir mo foi a carga pica e venturosa, de energia fsica

    e moral. J que as imagens da vida contempornea no satisfaziam essa minha

    necessidade, para mim foi natural transferir essa carga para aventuras fantsticas,

    fora de nossa poca, fora da realidade. (CALVINO, 2009, p. 69).

    Alm disso, importante destacar a preocupao de Calvino em no escrever uma

    histria qualquer, mas que fosse significativa do ponto de vista narrativo, literrio, e que

    estivesse ligada vida. H nele uma preocupao em, remetendo-nos poca medieval,

    discutir questes relativas quilo que se denomina modernidade. Ele mesmo faz

    questo de esclarecer a sua inteno: [...] para expressar o ritmo da vida moderna, no

    encontro nada melhor do que narrar batalhas e duelos dos paladinos de Carlos Magno

    (CALVINO, 2009, p. 82).

    Para ns, Calvino utiliza como recurso, para expressar o que chama de ritmo da

    vida moderna, a figura literria chamada alegoria. Ela se faz presente nas trs histrias

    que compem o livro Os nossos antepassados: O visconde partido ao meio, O baro nas

    rvores e O cavaleiro inexistente. Nelas, deparamos com enredos em que os

    personagens protagonistas deslindam a possibilidade de um campo de reflexo sobre a

    vida moderna. O autor argumenta que desejaria que as suas histrias fossem vistas

    como um retrato de ns mesmos, seres humanos do presente: Gostaria que pudessem

    ser vistas como uma rvore genealgica dos antepassados do homem contemporneo,

    em que cada rosto oculta algum trao das pessoas que esto a nossa volta, de vocs, de

    mim mesmo (CALVINO, 2001, p. 20).

    Com essa afirmao, vamos ao encontro, mais uma vez, daquilo que Todorov

    discutiu sobre o que vem a ser literatura:

    Como a filosofia e as cincias humanas, a literatura pensamento e conhecimento

    do mundo psquico e social em que vivemos. A realidade que a literatura aspira

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    compreender , simplesmente (mas, ao mesmo tempo, nada assim to complexo),

    a experincia humana. (TODOROV, 2009, p. 77).

    Mas de que experincia humana se trata? O problema central de nossa

    proposio de estudo refletir sobre os personagens dessa trilogia de Calvino como

    uma alegoria de ns mesmos, mas no somente a alegoria de ns contemporneos,

    adoradores de mercadorias, mas de ns enquanto herdeiros do projeto de

    modernidade, que recebemos de nossos antepassados que vivenciaram o advento da

    modernidade como contraposio ao projeto tradicional pr-moderno.

    Ora, a passagem da pr-modernidade modernidade foi marcada por uma forte

    crtica transcendncia religiosa enquanto irracionalismo, crtica que atingiu seu cume

    no iderio iluminista, entendido como Esclarecimento (ADORNO & HORKHEIMER, 1986).

    O que essa crtica pretendia era fazer com que emergisse um sujeito livre da

    heteronomia, identificada com a monarquia e a religio: um sujeito livre da menoridade,

    um sujeito que ousa saber (KANT, 2005). Esse sujeito autocentrado e autodeterminado

    , poderamos dizer, o sujeito burgus. No entanto, ao esvaziar o cu (DUFOUR, 2005),

    sob o pretexto de rompimento com a irracionalidade religiosa e, assim, com suas

    posies sociais estticas, a modernidade viu se instalar uma razo no menos

    transcendental, mas que comanda os desgnios terrenos: a razo mercantil e

    instrumental.

    Seguindo a crtica dos frankfurtianos, podemos afirmar que a razo instrumental

    dominada pela lgica formal, pela abstrao dos contedos concretos da vida e pela

    matematizao:

    A lgica formal , assim, o primeiro passo na longa viagem para o pensamento

    cientfico apenas o primeiro passo, porque ainda necessrio um grau muito

    mais elevado de abstrao e matematizao para ajustar o modo de pensar

    racionalidade tecnolgica. [...] Muito antes de o homem tecnolgico e a natureza

    tecnolgica terem surgido como objetos de controle e clculo racionais, a mente foi

    tornada susceptvel de generalizao abstrata. (MARCUSE, 1973, p. 137)

    O pensamento, no sentido do esclarecimento, a produo de uma ordem

    cientfica unitria, um conhecimento que encara os fatos como so, neutros, (ADORNO

    & HORKHEIMER, 1986), desde que metodologicamente comprovados.

    A cincia moderna se desenvolveu a partir de um domnio objetivo da natureza

    levado a um nvel que a histria humana ainda no conhecera. Nesse processo um

    verdadeiro programa de desencantamento do mundo (Idem, p.19) as qualidades

    do mundo so destrudas, juntamente com os deuses, pois o pensamento ordenador

    decompe tudo o que prprio e o que nos homens e nas coisas no se resolve na

    investida objetivante. Consequentemente, o que no se submete ao critrio da

    calculabilidade e da utilidade torna-se suspeito para o Esclarecimento (Ibidem, p. 21)

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    que, por princpio, totalitrio, na medida em que despe a sociedade de qualidades

    sensveis para poder submet-la ao mero clculo.

    essa Razo que vem criando um mundo impessoal em que o chefe, em vez de

    coagir concretamente pela fora, como em sociedades anteriores, apresenta-se de

    forma abstrata com sutilezas metafsicas e manhas teolgicas (MARX, 1985) que

    permitem o domnio pela aceitao racional dos sujeitos. esta sociedade que

    apresentada por Zygmunt Bauman (2008, p. 20) como uma sociedade na qual, ao

    mesmo tempo, ningum pode se tornar sujeito, sem primeiro virar mercadoria, [...]

    uma mercadoria vendvel.

    Os personagens dessa trilogia, de maneiras distintas, trazem a carga desse projeto

    seja por meio do otimismo irrefletido, da mutilao, do esvaziamento dos raciocnios,

    seja por meio da racionalizao formal-cientfica de que do provas; so, em medidas

    diferentes, metforas personificadas da Razo Instrumental (ADORNO & HORKHEIMER,

    1986) com todas as suas contradies, avanos e regresses que culminaram na

    barbrie do sculo XX contra a qual a Razo moderna no pde se opor, por j trazer em

    germe a prpria irracionalidade (Idem).

    O visconde partido ao meio

    Quando lemos O visconde partido ao meio, podemos pensar que se trata de mais

    uma histria em que o mal prevalece sobre o bem, mas essa inicial interpretao no

    suficiente diante da figura de um homem que se apresenta mutilado, partido,

    incompleto, infeliz e solitrio. E temos a certeza disso quando o prprio autor desfaz

    essa interpretao que parece ser a mais clara e evidente diante da construo do

    personagem principal: E os crticos podiam comear a seguir uma estrada falsa:

    dizendo que minha preocupao primeira era o problema do bem e do mal. No, no

    quebrava mesmo a cabea com isso, nem por um instante havia pensado no bem e no

    mal (CALVINO, 2001, p. 10).

    Ento fica mais claro que se trata, de fato, de uma alegoria sobre o ser humano

    enquanto ser na sociedade moderna, e no em qualquer sociedade. As interrogaes

    passam, ento, a ser acompanhadas de uma inquietao e reflexo sobre quem e o

    que representa esse ser partido ao meio, reforadas pela afirmao de Calvino ainda no

    prefcio:

    Partido ao meio, mutilado, incompleto, inimigo de si mesmo o homem

    contemporneo. Marx chamou-o de alienado, Freud preferiu reprimido; um

    estado de harmonia antiga perdeu-se, aspira-se a uma nova completude. O ncleo

    ideolgico-moral que pretendia dar histria era esse. (CALVINO, 2001, p. 10-11).

    Essa mutilao se fazia no s no protagonista, mas este queria faz-la existir fora

    dele, nas plantas, nas frutas, nos animais e at nas pessoas:

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    [...] Viram as peras que pendiam contra o cu da manh e ao v-las ficaram

    horrorizados. Porque no estavam inteiras, eram vrias metades de peras cortadas

    ao comprido [...] Caminhando, os servos encontraram numa pedra meia r que

    pulava, graas resistncia das rs, ainda viva. (CALVINO, 2001, p. 39).

    Mas por qual razo o visconde um ser mutilado, incompleto? Por que, essa

    mutilao, o personagem mutilado quer v-la tambm na sociedade? Essas so

    perguntas que nos fazemos ao lermos a histria e que nos possibilitam pensar que o

    visconde Medardo, bem como o personagem Pedroprego, representam uma alegoria do

    indivduo na vida moderna, aquele que no consegue ser um ser inteiro e nem

    consegue explicar o porqu. Se na pr-modernidade havia certa harmonia e equilbrio,

    uma vez que tudo se justificava pelos cus e quem fazia essa mediao era a igreja, na

    modernidade houve a libertao desse jugo. No mais a f que fornece fundamento

    vida, mas a razo. Mas no a razo enquanto capacidade de pensamento e reflexo,

    mas aquele tipo de razo que, com os frankfurtianos, chamamos de instrumental. No

    havendo mais qualquer tradio que medeie e d equilbrio e sustentao relao

    entre os indivduos, a mo invisvel do mercado tende a cumprir esse papel. Todos

    passam a ser livres para concorrer no mercado, para mudar a vida como ganhadores de

    dinheiro. Os laos sociais passam a ser determinados pela vida de mercado, e

    historicamente assistimos importncia cada vez maior da mercadoria na vida dos

    indivduos, no s como objeto de uso, j alienado, mas como objeto de desejo

    abstrato, objeto que vai preencher o vazio deixado pela perda de laos sociais para alm

    dos laos da vida de mercado, laos que aparecem em algo que exterior ao indivduo,

    que o constitui e constitui as relaes que so estabelecidas entre eles. Na

    modernidade, essa mutilao presente em Medardo se d na incapacidade de o ser

    humano ser de fato humano, pois as relaes sociais, e at a existncia do ser na

    sociedade, so coisificadas, transformadas em mercadorias e, portanto, submetidas a

    uma lgica que determina e comanda a vida humana. E isso acontece como se fosse

    natural, como se a completude do ser no fosse possvel seno nas mercadorias, no

    havendo reflexo acerca de como ou porque isso se d. No interessa, na modernidade,

    refletir sobre o que se produz ou qual o significado dessa produo. Pouco importa se

    bombas ou pares de sapatos so produzidos (JAPPE, 2006).

    Essa falta de reflexo e pensamento sobre o contedo das nossas aes e criaes

    ou a negao da reflexo se faz presente de forma muito clara no personagem

    Pedroprego, carpinteiro que construa as forcas encomendadas por Medardo para matar

    quem ele decidisse e ordenasse:

    Como posso, pensava, aceitar construir algo to engenhoso mas que tem um

    objetivo diferente? E quais podero ser os novos mecanismos que construirei com

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    mais boa vontade? Mas no obtendo respostas para tais questes, tratava de

    expuls-las da mente, esforando-se em fazer as instalaes mais bonitas e

    engenhosas que podia. Tem de esquecer o fim para o qual serviro. Olhe-os s

    como mecanismos. V como so bonitos? (CALVINO, 2001, p. 48-49).

    assim que a modernidade encara suas construes, como mecanismos que

    funcionam, este o aspecto formal da razo que domina. No se pe em questo os

    fins o que seria tarefa para uma razo sensvel e crtica.

    O baro nas rvores

    Seguindo a trilogia, temos O baro nas rvores. Diferentemente da primeira

    histria, aqui Calvino no destaca a mutilao ou a incompletude do ser. Segundo ele, a

    sua teia narrativa seria sobre: [...] uma pessoa [que] se impe voluntariamente uma

    regra difcil e a segue at as ltimas consequncias, pois sem esta no seria ela mesma

    nem para si nem para os outros (CALVINO, 2001, p. 13). Obviamente, o autor delineia

    como ser a narrativa e, a partir disso, constri um objetivo, ou um desejo, a ser

    alcanado. Mas isso no significa dizer que, durante o processo de criao e escrita, a

    histria no possa extrapolar os objetivos definidos e apresentar outros temas ou ideias

    que apontem para outros caminhos da reflexo e da crtica. Segundo Calvino, a histria

    tem como objetivo principal mostrar a determinao de algum em seguir um projeto

    at as ltimas consequncias para manter a sua identidade. Mas, como ele mesmo

    afirmou, os leitores de suas histrias esto livres para interpretar alm do explicitado

    por ele em suas anlises ou comentrios sobre as suas prprias histrias: Assim como

    esto livres para interpretar como quiserem estas trs histrias, e nem precisam sentir-

    se vinculados ao testemunho que agora lhes ofereci sobre sua gnese (CALVINO, 2001,

    p. 19).

    Deste modo, podemos adicionar algumas outras interpretaes sobre o

    personagem principal Cosme Chuvasco de Rond. Ao decidir viver em cima das rvores,

    deixa-se claro, atravs do narrador seu irmo que Cosme no aceita as relaes

    familiares que se do em sua casa, nem o mando autoritrio do pai, muito menos a

    ideia que o pai representa de ascenso riqueza e poder trazidos pela nomeao a

    algum cargo importante. Mas se pode compreender, tambm, que Cosme no

    conseguia relacionar-se diretamente com as pessoas, pois fugia delas quando

    determinado comportamento ou pessoa o desagradava. No caso de Cosme, ele vivia

    momentos de selvageria: [...] ele era igualmente avesso a todo tipo de convivncia

    humana vigente em sua poca, e por isso fugia de todos, e se obstinava em

    experimentar novos; mas nenhum deles lhe parecia suficientemente justo e diferente

    dos outros: da seus contnuos intervalos de selvageria (CALVINO, 2001, p. 332). Em

    contrapartida, quando em contato com as pessoas, mantinha postura otimista, fruto de

    sua proximidade aos ideais da Revoluo Francesa. A sua recusa, no fim das contas,

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    em relao ao Antigo Regime. Ele o legtimo representante da filosofia das Luzes, o

    que no impede que ele tenha momentos de selvageria como uma espcie de reao

    ao fato de as relaes sociais no serem como ele projetava.

    na modernidade e contemporaneamente cada vez mais que os sujeitos se

    relacionam atravs de objetos, a cada instante uma novidade, e mesmo assim sentem-

    se vazios porque o contedo expresso a negao do ser e a afirmao da mercadoria.

    E esse vazio est tambm presente em Cosme, que vive sempre com a ideia de [...]

    tornar-se til, de realizar um trabalho indispensvel para os outros (CALVINO, 2001,

    p.229), impelido sempre a agir, mas que, ao final, no sabe por qual razo fez tantas

    coisas: [...] vivo h muitos anos por ideais que no saberia explicar nem a mim

    mesmo: mas fao uma coisa muito boa: eu vivo sobre as rvores (CALVINO, 2001, p.

    359). (Traduo nossa)

    Outro elemento importante aparece a vida vazia de significado e entendimento.

    Pensar penoso e uma atividade para alguns. O irmo de Cosme expressa bem essa

    ideia aps a morte dele: Antes era diferente, havia meu irmo; dizia para mim mesmo:

    j existe ele que pensa. E eu tratava de viver (CALVINO, 2001, p. 361).

    O cavaleiro inexistente

    Continuando a trilogia, percebemos que O cavaleiro inexistente vai muito alm de

    uma histria para nos fazer divertir, como disse Harold Bloom (2000, p.705). A histria

    desse cavaleiro possibilita uma reflexo sobre a negao da individualidade do ser

    humano, de todo aquele indivisvel que existe em cada um graas s suas experincias

    sempre diversas em proveito de uma forma-sujeito apta vida moderna, com aes e

    pensamentos em consonncia com o ritmo moderno.

    Quanto mais estridente se torna o discurso acerca da fantstica individualidade

    moderno-ocidental, tanto mais os seres humanos individuais tornados abstratos do

    ponto de vista real se igualam entre si qual um ovo em relao ao outro, at mesmo

    no que se refere ao hbito exterior, no modo de pensar e agir mecanicamente

    controlado pelas modas e pelas mdias de acordo com o fetiche da valorizao

    (KURZ, 2010, p.87).

    Se Marx falou dos sujeitos no capitalismo, portanto, na modernidade, como

    portadores de uma mscara de carter (1984), poderamos dizer que Calvino construiu

    uma alegoria da armadura de carter do sujeito moderno.

    O protagonista, Agilulfo, uma alegoria forte do sujeito moderno porque ele

    quem tem sempre atitudes calculadas, sem reflexes ou questionamentos, com a

    aceitao da realidade vivida e por isso sem atritos com ela; pelo contrrio, h nele um

    vazio que se expressa nas atividades que desenvolve. Sobre a sua poca, diz-se:

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    [...] Era uma poca em que a vontade e a obstinao de existir, de deixar marcas, de

    provocar atrito com tudo aquilo que existe, no era inteiramente usada, dado que

    muitos no faziam nada com isso por misria ou por ignorncia ou porque tudo

    dava certo para eles do mesmo jeito e assim uma certa quantidade andava perdida

    no vazio. Podia at acontecer ento que num ponto essa vontade e conscincia de si,

    to diluda, se condensasse, formasse um cogulo, como a imperceptvel partcula

    de gua se condensa em flocos de nuvem, e esse emaranhado, por acaso ou por

    instinto, tropeasse num nome ou numa estirpe, como ento havia muitos

    disponveis, numa certa patente de organizao militar, num conjunto de tarefas a

    serem executadas e de regras estabelecidas [...] (CALVINO, 2001, p. 393).

    Outro personagem, Gurdulu, tambm a representao da falta de

    individualidade, ele reflete a fuso do ser com o objeto, portanto, a negao desse

    mesmo ser. Isso fica muito claro quando Gurdulu se depara com uma sopa para o jantar

    e grita vrias vezes: Tudo sopa! (CALVINO, 2001, p. 411). E diante dos gritos de

    Gurdulu, outro personagem se questiona: [...] mas era mais uma dvida que um

    arrepio que aquele homem que girava ali na frente sem enxergar tivesse razo e o

    mundo no fosse nada mais que uma imensa sopa sem forma em que tudo se desfazia e

    tingia com sua substncia todo o resto (CALVINO, 2001, p. 412).

    A forma social moderna, capitalista, tende a encarar o mundo com essa mesma

    indiferenciao, como uma sopa sem forma e sem qualidades, uma vez que a

    quantidade que conta, quantidades de riqueza tanto maiores quanto desprovidas de

    sentido realmente humano. Calvino apreendeu, com sua literatura, o significado do

    advento do mundo moderno com sua razo unidimensionalmente instrumental que

    tende a rechaar a razo sensvel e crtica para nos tornar armaduras de carter como

    Agilulfo que, no acampamento, no momento em que todos se recolhiam para dormir,

    tentava manter-se deitado e continuava pensando: no os pensamentos ociosos e

    divagantes de quem est para pegar no sono, mas sempre raciocnios determinados e

    exatos (CALVINO, 2001, p. 373).

    Refletir sobre o ser humano e a sociedade em diferentes pocas analisar a viso

    que a obra exprime do homem, a posio em face dos temas, atravs dos quais se

    manifestam o esprito ou a sociedade (CNDIDO, 2000, p. 34), pois a literatura expressa

    uma viso de mundo, ela [...] refere-se a tudo. No pode ser separada da poltica, da

    religio, da moral. a expresso das opinies dos homens sobre cada uma das coisas.

    Como tudo na natureza, ela ao mesmo tempo efeito e causa. Imagin-la como

    fenmeno isolado no imagin-la (CONSTANT citado por TODOROV, 2009, p. 60).

    Estamos cada vez mais sendo obrigados a pensar formas de compreender os

    tempos contemporneos que atravessam o que se pode chamar de uma crise de

    civilizao, e a literatura sempre deu provas de compreender sensivelmente a

    sociedade.

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