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KENEDY, E. Desempenho de indivíduos normais e afásicos em teste de juízo de gramaticalidade sobre orações relativas preposicionadas. In: Revista do ISAT, v. 06, p. 31-46, 2006. ____________________________________________________________________________ 31 DESEMPENHO DE INDIVÍDUOS NORMAIS E AFÁSICOS EM TESTE DE JUÍZO DE GRAMATICALIDADE SOBRE ORAÇÕES RELATIVAS PREPOSICIONADAS Eduardo Kenedy Faculdade de Formação de Professores – UERJ Laboratório de Psicolingüística Experimental - UFRJ Resumo: Neste estudo, procura-se sustentar a Hipótese da antinaturalidade de Pied-piping na relativização por meio de um teste de Juízo Automático de Gramaticalidade aplicado em indivíduos normais e afásicos. Segundo tal hipótese e levando em consideração as condições de economia derivacional do Programa Minimalista (Chomsky, 1995, 2000, 2001 e outros), relativas pied-piping não fazem parte da gramática natural dos indivíduos e, portanto, estão sujeitas aos erros e hesitações comuns no uso de habilidades culturais tardias, aprendidas no processo de letramento. Se a performance de indivíduos normais e afásicos for idêntica nos juízos sobre pied-piping, então teremos começado a reunir evidências em favor da hipótese apresentada, afinal o desempenho lingüístico de afásicos normalmente difere quantitativa e qualitativamente do desempenho de normais (cf. Hickok et al., 1993). Abstract: In this paper I will try to support the Antinaturality of Pied-piping as a relativization strategy hypothesis by means of a Speed Grammaticality Judgment applied in both normal and aphasic individuals. According to that hypothesis and also taking into consideration the Noam Chomsky’s Minimalist Program as a Framework, pied-piping cannot be part of a natural grammar, so it is exposed to many errors and hesitations which take place when one uses artificial constructions acquired in school during literacy process. If normal and aphasic judgments on pied-piping are similar, so initial evidence supporting the Antinaturality hypothesis will be found, assuming that normal and aphasic individuals’ linguistic performance differs quantitatively and qualitatively (cf. Hickok et al., 1993). Palavras-chave: Estratégias de relativização, pied-piping, prepositional-stranding. Key words: Relativization strategies, pied-piping, prepositional-stranding. 1. Introdução Nos estudos de neuropsicologia da linguagem, assume-se que a observação do comportamento verbal de indivíduos com déficits lingüísticos pode ser relevante na tarefa de construir uma teoria explicativa sobre o conhecimento lingüístico de indivíduos normais (cf. Grodzinsky, 1990). No presente trabalho, pretendemos explorar esse tipo de correlação entre Neuropsicologia e Teoria da Gramática para apresentar uma hipótese de solução para o problema que as orações relativas preposicionadas representam para a teoria lingüística sustentada no Programa Minimalista (Chomsky,

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KENEDY, E. Desempenho de indivíduos normais e afásicos em teste de juízo de gramaticalidade sobre orações relativas preposicionadas. In: Revista do ISAT, v. 06, p. 31-46, 2006. ____________________________________________________________________________

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DESEMPENHO DE INDIVÍDUOS NORMAIS E AFÁSICOS EM TESTE DE JUÍZO DE GRAMATICALIDADE

SOBRE ORAÇÕES RELATIVAS PREPOSICIONADAS

Eduardo Kenedy Faculdade de Formação de Professores – UERJ

Laboratório de Psicolingüística Experimental - UFRJ

Resumo: Neste estudo, procura-se sustentar a Hipótese da antinaturalidade de Pied-piping na relativização por meio de um teste de Juízo Automático de Gramaticalidade aplicado em indivíduos normais e afásicos. Segundo tal hipótese e levando em consideração as condições de economia derivacional do Programa Minimalista (Chomsky, 1995, 2000, 2001 e outros), relativas pied-piping não fazem parte da gramática natural dos indivíduos e, portanto, estão sujeitas aos erros e hesitações comuns no uso de habilidades culturais tardias, aprendidas no processo de letramento. Se a performance de indivíduos normais e afásicos for idêntica nos juízos sobre pied-piping, então teremos começado a reunir evidências em favor da hipótese apresentada, afinal o desempenho lingüístico de afásicos normalmente difere quantitativa e qualitativamente do desempenho de normais (cf. Hickok et al., 1993). Abstract: In this paper I will try to support the Antinaturality of Pied-piping as a relativization strategy hypothesis by means of a Speed Grammaticality Judgment applied in both normal and aphasic individuals. According to that hypothesis and also taking into consideration the Noam Chomsky’s Minimalist Program as a Framework, pied-piping cannot be part of a natural grammar, so it is exposed to many errors and hesitations which take place when one uses artificial constructions acquired in school during literacy process. If normal and aphasic judgments on pied-piping are similar, so initial evidence supporting the Antinaturality hypothesis will be found, assuming that normal and aphasic individuals’ linguistic performance differs quantitatively and qualitatively (cf. Hickok et al., 1993). Palavras-chave: Estratégias de relativização, pied-piping, prepositional-stranding.

Key words: Relativization strategies, pied-piping, prepositional-stranding.

1. Introdução

Nos estudos de neuropsicologia da linguagem, assume-se que a observação do

comportamento verbal de indivíduos com déficits lingüísticos pode ser relevante na

tarefa de construir uma teoria explicativa sobre o conhecimento lingüístico de

indivíduos normais (cf. Grodzinsky, 1990). No presente trabalho, pretendemos explorar

esse tipo de correlação entre Neuropsicologia e Teoria da Gramática para apresentar

uma hipótese de solução para o problema que as orações relativas preposicionadas

representam para a teoria lingüística sustentada no Programa Minimalista (Chomsky,

KENEDY, E. Desempenho de indivíduos normais e afásicos em teste de juízo de gramaticalidade sobre orações relativas preposicionadas. In: Revista do ISAT, v. 06, p. 31-46, 2006. ____________________________________________________________________________

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1995, 2000, 2001). As relativas preposicionadas foram primeiramente estudas pelas

pesquisas em variação lingüística, que catalogaram pelo menos quatro variantes para

esse tipo de estrutura: pied-piping (ou forma padrão), prepositional-stranding (ou

preposição-órfã), relativa copiadora (ou com pronome lembrete, ou resumptiva) e

relativa cortadora, ilustradas a seguir.

Inglês (1) a. the person to whom I talked yesterday (pied-piping)

b. the person whom I talked to yesterday (prepositional-stranding) c. the person whom I talked to him/her yesterday (copiadora)

Português (2) a. a pessoa com a qual eu falei ontem (pied-piping)

b. a pessoa que eu falei com ela ontem (copiadora) c. a pessoa que eu falei ontem (cortadora)

Para a Teoria da Gramática, a coexistência de duas ou mais dessas variantes num

mesmo sistema lingüístico pode ser um grande problema, pois, considerando-se as

condições de economia impostas ao processo derivacional (Chomsky, 1995: 262-64),

variantes como pied-piping e prepositional-stranding, por exemplo, deveriam

apresentar-se em distribuição complementar entre as línguas, o que contradiz o

conhecimento sintático atual sobre o inglês, segundo o qual essas construções se

encontram em variação livre ou estilística (cf. Alexiadou, 2000). Já em línguas como o

português do Brasil (PB), que não registram na fala natural nem pied-piping tampouco

prepositional-stranding (cf. Tarallo, 1983; Kato, 1993; Corrêa 1996; Kenedy, 2002; e

outros), a situação é ainda mais problemática, pois não se sabe se relativas cortadoras e

copiadoras são derivações sintáticas alternativas à derivação padrão e à preposição-órfã,

que com elas competem no processo derivacional, ou se são expedientes pós-sintáticos

que cumprem a função (vazia na gramática) de relativizar um constituinte regido por

preposição. Pretendemos, neste texto, apresentar essa problemática e formular uma

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hipótese que, acreditamos, poderá lançar luz sobre o problema: a hipótese da

antinaturalidade de pied-piping na relativização (APR). Tal hipótese será testada num

experimento de Juízo automático de gramaticalidade, que medirá o desempenho de

indivíduos normais e de um indivíduo com déficit de linguagem (afasia de Broca) na

tarefa de julgar a gramaticalidade de orações relativas preposicionadas. De um lado, a

hipótese APR prevê que indivíduos normais não diferenciarão ou terão dificuldades em

diferenciar relativas pied-piping gramaticais e agramaticais, já que esse tipo de estrutura

não faz parte do conhecimento tácito e automático (natural) que o um indivíduo tem

sobre a sua língua – trata-se de uma habilidade aprendida (ou não) durante o processo

de letramento, sujeita, portanto, a falhas e hesitações que nunca ocorrem em relação a

fenômenos gramaticais naturais (cf. Grodzinsky, 1990). De outro lado, indivíduos com

afasia de Broca tipicamente apresentam dificuldades no trato com estruturas lingüísticas

que envolvem movimento de constituintes (operação Move), portanto também não

diferenciarão ou terão dificuldades em diferenciar relativas pied-piping gramaticais e

agramaticais em seus juízos, já que estruturas pied-piping são derivadas pela aplicação

de Move pelo menos uma vez. Se o desempenho de indivíduos normais e com déficits

lingüísticos nos Juízos automáticos sobre relativas pied-piping for basicamente o

mesmo, então termos encontrado, ainda com uma metodologia off-line, as primeiras

evidências em favor da APR, afinal o desempenho lingüístico de indivíduos com afasia

apresenta diferenças quantitativas e qualitativas em relação ao desempenho de

indivíduos normais (cf. Hickok et al., 1993).

O texto está organizado da seguinte maneira: na seção 2 apresentaremos o

problema da relativização preposicionada em face das condições de economia

derivacional do Programa Minimalista; na seção 3, formularemos a hipótese da

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antinaturalidade da estratégia pied-piping como uma maneira de resolver os problemas

apresentados na seção 2; na seção 4, descrevermos o teste de Juízo automático de

gramaticalidade, um tipo simples de experimento que aplicamos com a intenção de

sustentar a hipótese formulada na seção 3; as previsões feitas sobre o teste de Juízo

automático a partir da hipótese APR são descritas na seção 5; nas seções 6 e 7

apresentaremos, respectivamente, os resultados e a discussão do experimento.

2. O problema das relativas preposicionadas para a Teoria da Gramática

A interpretação do estatuto das orações relativas preposicionadas na Teoria da

Gramática é bastante problemática quando levamos em consideração as condições de

economia do sistema computacional da linguagem humana, apresentadas, desde

Chomsky (1995: 262-64), como um dos pilares do Programa Minimalista. De acordo

com essas condições, a derivação de uma estrutura sintática não deve ser apenas

convergente, no sentido de preservar a gramaticalidade da construção, mas deve ser

também mínima, no sentido de ser econômica e envolver o menor número possível de

fases e/ou recursos computacionais. Desta forma, numa determinada Fase da derivação

de uma estrutura sintática e a partir de uma dada Numeração, o sistema computacional

optará cegamente pela derivação menos custosa possível. Por exemplo, se houver uma

opção entre aplicar Move ou Merge (juntar constituintes sintáticos), o sistema aplicará

Merge, visto que Move é uma computação mais custosa, já que envolve diferentes

suboperações sintáticas (Copy, Merge, Form Chain e Chain Reduction, cf. Nunes

(2004)); se houver a opção entre aplicar Move sobre um constituinte ou sobre dois, o

sistema aplicará Move sobre apenas um, e assim por diante. Raposo (1999: 30-5)

exemplificou clara e didaticamente de que maneira as condições de economia impõem

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restrições ao processo derivacional. Usando exemplos do inglês e do português o autor

demonstra o seguinte.

(3) a. therei seems [therei to be a man in the room] b. there seems [a mani to be a man in the room]

(4) a. * pro parece [Maria estar triste] b. Mariai parece [Mariai estar triste]

A derivação (3b) é considerada inaceitável pelos falantes do inglês, mas isso não

se deve à violação de algum preceito puramente gramatical daquela língua. (3b) é

inaceitável porque é uma derivação computacionalmente mais custosa que (3a), e por

ela é bloqueada na competência lingüística dos falantes. Em (3a) não ocorre Move na

fase indicada entre colchetes: [there] é inserido diretamente como especificador de [to

be] e [a man] é mantido em sua posição de base, ao passo que em (3b) [a man] sofre

Move para a posição de especificador de [to be], já que [there] será retirado da

Numeração apenas na próxima fase derivacional. Como Move torna a derivação mais

complexa, então o sistema computacional bloqueia (3b) e licencia apenas (3a). No caso

do português, (4a) é uma opção derivacional mais econômica se comparada a (4b), já

que não envolve Move. No entanto, sem a aplicação de Move sobre o constituinte

[Maria], esse sintagma não consegue valorar seu Caso Nominativo, o que redunda na

agramaticalidade de (4b). Logo, Move deve ser aplicado obrigatoriamente, como último

recurso para preservar a gramaticalidade da sentença, o que leva ao licenciamento de

(4b) e ao bloqueio de (4a). A conclusão mais importante a que chegam Raposo (1999) e

Chomsky (1995) é que Move só se aplica se for obrigatório, pois, sem ele, a sentença

estaria condenada à agramaticalidade, do contrário Move nunca se aplica, sob a pena de

tornar não-mínima a derivação e, conseqüentemente, deixá-la ilegível para o sistema

computacional.

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As condições de economia impostas ao processo derivacional impedem que, em

línguas como o inglês, pied-piping e prepositional-stranding possam ser interpretadas

como construções em variação livre, em competição estilística na competência dos

falantes, pois, a partir de uma mesma Numeração, prepositional-stranding será uma

estratégia derivacional sempre menos custosa (mínima) em relação a pied-piping (não-

mínima), já que envolve o deslocamento apenas do sintagma regido pela preposição,

enquanto pied-piping envolve o alçamento não só desse sintagma mas também da

própria preposição,1 o que, em outras palavras, significa dizer que, de acordo com

Chomsky (1995: 262-64), prepositional-stranding deveria bloquear sistematicamente

pied-piping.

(5) a. pied-piping the person [to [whom]i I talked [to [whom]]i yesterday b. prepositional-stranding the person [who]i I talked [to [whom]i] yesterday

No caso do português, ainda conforme Chomsky (1995: 263), a impossibilidade

gramatical do prepositional-stranding (já que preposições não regem categorias vazias

em nenhuma língua românica) deveria compelir o uso de pied-piping na relativização

preposicionada, como último recurso para assegurar a convergência da derivação. No

entanto, essa não é a realidade que se observa: pelo menos no português do Brasil, nem

pied-piping tampouco prepositional-stranding são mecanismos naturais de relativização

preposicionada, estrutura que é derivada pelo apagamento da preposição (relativa

cortadora). 1 A caracterização sintática da derivação de pied-piping e de prepositional-stranding depende do modelo de descrição sintática adotado. Pode-se assumir o alçamento apenas do pronome relativo (prepositional-stranding) ou do pronome relativo e da preposição (pied-piping ) (cf. Chomsky, 1977) ou pode-se assumir o movimento do próprio nome relativizado e do pronome relativo (prepositional-stranding ) ou do nome relativizado, do pronome relativo e da preposição (pied-piping) (cf. Kayne, 1994). Em qualquer caso, o problema das condições de economia permanece. No caso do modelo de Kayne, a situação é ainda pior, pois pied-piping envolve duas operações Move, em contraste com uma única operação demandada na derivação de prepositional-stranding (cf. Kenedy: 2002: 111-13).

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(6) a. pied-piping a pessoa [com [a qual]]i eu falei [com [a qual]]i ontem b. prepositional-stranding * a pessoa [a qual]i eu falei [com [a qual]i] ontem c. cortadora

* a pessoa [que]i eu falei [com [que]i] ontem

Ora, as condições de economia prevêem que (i) o bloqueio de prepositional-

stranding numa dada língua deve licenciar pied-piping e (ii) o licenciamento

prepositional-stranding deve bloquear pied-piping. Contudo, dados como (6) acima

desconfirmam (i) ao mesmo tempo em que dados como (5) desabonam (ii). Portanto, há

aqui um problema na Teoria da Gramática que precisa ser desfeito: derivações

alternativas, mínimas e não-mínimas, não podem coexistir num sistema lingüístico

natural, como o inglês; relativas cortadoras, como as do português, devem ser

expedientes sintáticos de relativização, capazes de, ao mesmo tempo, bloquear pied-

piping e prepositional-stranding, e não podem ser uma derivação completamente

independente, de natureza discursiva, cunhada pela gramática do PB, como sustentam

estudos paramétricos como Tarallo (1983), Kato (1993) e Corrêa (1996).

3. Uma hipótese

Para apresentarmos uma possível resposta aos problemas formulados na seção

anterior, assumiremos aqui a hipótese de que relativas preposicionadas não-mínimas

(pied-piping) não são uma construção natural na gramática do inglês ou do português –

e possivelmente em nenhuma língua humana (core-grammar) – hipótese que

denominamos Antinaturalidade de pied-piping na relativização (APR) . Em acordo com

as condições de economia derivacional, assumimos que, na competência lingüística dos

falantes, uma derivação não-mínima será bloqueada por uma derivação mínima sempre

que esta preservar a convergência da derivação. Dito de outra forma, pied-piping só

poderá ser uma derivação natural, numa dada língua, caso seja o último recurso pelo

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qual a gramática dessa língua assegure a convergência de uma relativização

preposicionada. Do contrário, isto é, caso a gramática da língua em questão licencie

prepositional-stranding ou o corte da preposição (derivações mínimas), pied-piping será

bloqueado.2 Segundo nossa hipótese, a existência de pied-piping na relativização de

línguas como o inglês e o português deve ser entendida como uma idiossincrasia da

cultura escrita, uma habilidade lingüística consciente que deve ser aprendida através de

treino e iniciação à escrita formal, artística e forense, cuja origem histórica ainda está

por ser detalhadamente estudada.3

4. Testando a hipótese

Para começa a testar a hipótese acima apresentada, formulamos um experimento

de Juízo automático de gramaticalidade, que visa a verificar (i) se falantes nativos de

língua portuguesa sem déficits de linguagem apresentam diferenças na percepção de

relativas pied-piping e cortadora e (ii) se falantes nativos de língua portuguesa com

déficits de linguagem apresentam diferenças em relação aos indivíduos normais na

percepção de relativas pied-piping e cortadora. De acordo com a hipótese APR, somente

relativas cortadoras devem ser processadas/derivadas automaticamente (pelo

parser/gramática), por ser esse tipo de estrutura natural ao sistema lingüístico, ao passo

que o processamento/derivação de pied-piping, uma construção artificial, deve

demandar esforço consciente do falante. Para encontrar evidências que sustentem ainda

indiretamente essa hipótese, podemos verificar, em primeiro lugar, como falantes

normais julgam relativas cortadoras e pied-piping em termos de aceitabilidade. Se as

2 Com essa argumentação, assumimos que relativas cortadoras, pied-piping e prepositional-stranding sejam derivações assentadas numa mesma numeração. De que maneira o output fonético da cortadora não manifesta a preposição é um problema que deixaremos de lado no presente trabalho. 3 Um esboço desse tipo de estudo diacrônico pode ser encontrado em Johansson (2000), que indica haver, no período medieval do inglês, certa confusão entre a estruturação de interrogativas qu- e relativas de preposição.

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cortadoras são uma estrutura natural, devemos esperar que os juízos acerca dessa

construção sejam precisos, no sentido de que o falante possa facilmente detectar

diferenças entre relativas cortadoras usuais (aceitáveis) e relativas cortadoras

deliberadamente alteradas, mal construídas (inaceitáveis), ao passo que o mesmo não

deve ocorrer com os juízos acerca de pied-piping, estrutura que deve ser julgada de

maneira menos precisa, no sentido de que os falantes não detectarão ou terão

dificuldades em detectar diferenças entre relativas pied-piping usuais (aceitáveis) e

relativas pied-piping deliberadamente alteradas, mal construídas (inaceitáveis). Em

segundo lugar, podemos verificar se a percepção desse mesmo tipo de estrutura em

indivíduos agramáticos é ou não significativamente diferente da percepção de

indivíduos normais. Assumindo que agramáticos têm dificuldades para

produzir/compreender estruturas derivadas por Move (cf. Grodzinsky, 1990; Hermont,

1999), esperamos que eles não tenham problemas na identificação de relativas

cortadoras normais e anômalas, ao passo que o mesmo não deve ocorrer na percepção

de relativas pied-piping, já que estas (mas não aquelas) são derivadas via Move.

4.1. Design do experimento

No Juízo automático de gramaticalidade, o sujeito é apresentado a uma

construção lingüística e deve imediatamente emitir um juízo sobre ela, no qual diga se a

considera aceitável ou inaceitável. Juízos de gramaticalidade são um recurso

argumentativo caro à lingüística gerativa, aproveitados pela pesquisa experimental, que

confere maior cientificidade aos juízos submetendo-os a diversos falantes, de maneira

estatisticamente controlada. No caso do presente experimento, frases são apresentadas,

uma a uma, na tela de um computador. A tarefa do sujeito é ler atentamente cada uma

dessas frases e, tão rápido quanto termine a leitura, emitir um juízo (aceitável ou

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inaceitável) sobre elas. Um botão verde no teclado do computador deve ser rapidamente

pressionado caso o juízo seja aceitável, e um botão vermelho deve ser pressionado para

o caso do juízo inaceitável. Na apresentação das frases, recorremos a uma técnica

chamada Apresentação visual rápida e seriada (Rapid serial visual presentation –

RSVP). Nessa técnica, as palavras que compõe cada frase são apresentadas uma a uma

no centro da tela do computador, rapidamente (a 350 milésimos de segundo cada) e de

maneira não cumulativa, o que impede que o sujeito possa voltar atrás na leitura da frase

ou refletir sobre ela enquanto a lê. Tal técnica possibilita a hipótese de que o sujeito de

fato tenha de processar/derivar mentalmente as frases-estímulo e não apenas exercer sua

habilidade de leitura, já que, com apresentação rápida de palavra-por-palavra, ele não

terá pistas visuais sobre a estrutura sintática que deve construir na mente para poder

interpretar a sentença.

4.1.1. As frases

As relativas preposicionadas presentes nas frases experimentais da tarefa foram

divididas, primeiramente, em dois grupos: pied-piping (PP) e cortadora (C). Depois,

foram criadas duas versões para as relativas de cada grupo: pied-piping não-alterada

(PPN) e pied-piping alterada (PPA) & cortadora não-alterada (CN) e cortadora alterada

(CA). A versão não-alterada apresenta uma relativa usual como (7a-b) abaixo,

considerada gramatical na descrição sintática do português, e a versão alterada apresenta

uma relativa não-usual como (8a-b), deliberadamente mal formada conforme a

descrição sintática da língua.

(7) a. Dinheiro no bolso é uma coisa da qual todo mundo gosta (PPN) b. Dinheiro no bolso é uma coisa que todo mundo gosta (CN)

(8) a. Dinheiro no bolso é uma coisa de qual todo mundo gosta (PPA) b. Dinheiro no bolso é uma coisa que todo mundo gosta de realmente (CA)

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A versão alterada acrescenta à relativa uma modificação estrutural que provoca

estranheza na construção, aumentando a possibilidade do julgamento inaceitável para a

frase. No caso de pied-piping, a alteração consiste em substituir os pronomes relativos o

qual e a qual pelo pronome interrogativo correspondentes: qual. Numa relativização

não-preposicionada, a substituição de um pronome pelo outro é bastante evidente: Ele

me emprestou um livro, o qual é muito interessante VS. *Ele me emprestou um livro,

qual é muito interessante. No caso de pied-piping, deve-se verificar se essa diferença é

perceptível ou não pelos falantes. Em relação às cortadoras, a versão alterada é, na

verdade, uma pseudocortadora, pois a preposição não é suprimida, mas mantida em sua

posição de origem, na qual é regida pelo verbo da relativa. Em nenhum caso de CA, a

preposição foi deixada como última constituinte da frase, fato que evidenciaria

visualmente o caso de uma construção inaceitável em português.

Nosso experimento apresenta, portanto, 4 condições: PPN, PPA, CN e CA. Para

medição do comportamento dos sujeitos, consideramos duas variáveis independentes:

aceitabilidade (aceitável ou inaceitável) e tempo de resposta.

No total, foram constituídos 20 grupos de frases experimentais, cada qual com as

quatro condições da tarefa. Nossa intenção foi apresentar todas as condições a cada

sujeito pelo menos 5 vezes, mas nunca repetindo exatamente a mesma frase (método do

quadrado latino). Assim, um sujeito exposto, por exemplo, a PPN Dinheiro no bolso é

uma coisa da qual todo mundo gosta, veria como PPA a frase Boa vontade de políticos

é uma coisa de qual os cidadãos dependem infelizmente, como CN veria É preciso ter

cuidado com as pessoa que pedimos informações na rua atualmente e como CA, Não

consigo me lembrar do número da pessoa que liguei para agora mesmo. Desta forma,

cada sujeito é exposto 20 frases experimentais, 5 de cada condição. Um grupo de frases

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distratoras estruturalmente não relacionadas à relativização foi elaborado: 40 frases de

distratoras por 20 frases experimentais. As distratoras também foram balanceadas em

alteradas e não-alteradas. Cada frase, tanto as experimentais quanto as distratoras,

cotinha 13 palavras.4

4.2. Sujeitos 4.2.1. Sujeitos normais

Participaram do experimento 40 sujeitos, 20 homens e 20 mulheres, com idade

média de 20 anos de idade, todos com escolarização média completa e filhos de pais

também de escolarização média, residentes desde o nascimento na região metropolitana

do Rio de Janeiro, nos municípios de Niterói, São Gonçalo e Maricá. Todos os sujeitos

declararam não possuir qualquer tipo de problema visual ou qualquer distúrbio

relacionado à leitura.

4.2.2. Sujeito agramático I., paciente do Instituto de Neurologia da UFRJ, onde realiza exames periódicos

e faz exercícios fisioterapêuticos, foi por seus médicos classificada como uma afásica de

Broca (lesão no lobo frontal e parietal do hemisfério esquerdo). A paciente I. foi

primeiramente estudada por Hermont (1999, p. 62-68) e Kenedy (2001: 6), tendo sido

submetida, entre outros tipos de avaliação diagnóstica, ao Teste de Boston. O diálogo

prévio com os médicos e com a própria paciente foi determinante para decidir se ela

tinha condições de compreender e executar a tarefa do experimento, que envolvia

habilidade de leitura rápida de palavras e o mínimo de coordenação motora para

pressionar botões num teclado de computador. I. tem 42 anos de idade, possui nível

superior e exercia a profissão de professora antes de seu AVC.

4 Foram também controladas as variáveis tipo de preposição e função do SP (argumento ou adjunto). No entanto, tais variáveis não serão levadas em consideração no presente trabalho.

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4.3. Procedimentos

Os sujeitos foram conduzidos individualmente a uma sala apropriada para a

aplicação do experimento, na qual recebiam instruções orais informais sobre a tarefa.

Logo em seguida, liam as instruções formais na tela com computador e procediam a um

treinamento, julgando frases distratoras (semelhantes às distratoras do experimento)

como aceitáveis ou inaceitáveis. Esse treinamento continha até 20 frases, que podiam

ser abreviadas ou replicadas conforme o sujeito se declarasse seguro o suficiente para

iniciar a tarefa. O treinamento foi atentamente acompanhado pelo pesquisador, que

verificava se o sujeito havia de fato compreendido a tarefa e tinha condições de iniciá-

la.

Todas as 13 palavras de cada frase foram apresentadas no centro da tela do

computador durante 350 milésimos de segundo (msec). A última palavra de cada frase

vinha acompanha de um ponto final, que indicava o término da seqüência de palavras.

Após a última palavra, um ponto de interrogação aparecia no centro da tela do

computador, o que indicava ao sujeito o momento de emitir o juízo sobre a frase lida. O

juízo era emitido por meio dois botões do teclado do computador. Um botão vermelho

deveria ser pressionado caso o sujeito considerasse a frase inaceitável, e um botão verde

deveria ser pressionado caso o sujeito considerasse a frase aceitável. Após o julgamento

da frase, o sujeito deveria pressionar um botão branco, também presente no teclado,

para dar início à nova seqüência de palavras. A mediação do tempo de reposta era feito

pelo relógio interno do computador, e se iniciava no momento do aparecimento da

interrogação na tela.

O experimento foi elaborado no programa Psyscope versão 1.2.5. e rodado no

computador PowerBook G4 (Laptop da Apple, Macintosh), monitor de 15''. Cada

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sujeito realizou sua tarefa de maneira individual e isolada, e levou cerca de 20 minutos

para concluí-la.

5. Previsões

De acordo com a hipótese da antinaturalidade de pied-piping, assumimos que os

sujeitos normais terão dificuldades para detectar diferenças entre PPN e PPA, julgando

ambas igualmente aceitáveis ou inaceitáveis. Já no caso das cortadoras, assumimos que

os sujeitos sistematicamente detectarão as diferenças entre CG e CA, julgando CG

aceitável e CA inaceitável regularmente. Para o sujeito agramático, prevemos um

desempenho semelhante aos indivíduos normais, quanto aos juízos acerca de C e PP.

6. Resultados5 6.1. Sujeitos normais

Os sujeitos não apresentaram problema para a identificação de distratoras

alteradas e não-alteradas. Distratoras não-alteradas apresentaram 93,6% de julgamentos

aceitáveis, e distratoras alteradas receberam 95,1% de julgamentos inaceitáveis.

Relativas CN apresentaram um nível alto de aceitação pelos sujeitos (84,5%).

Complementarmente, relativas CA apresentaram baixo nível de julgamentos aceitáveis

(19%).

0

50

100

aceitável inaceitável

Gráfico 1- precentual de aceitabilidade de

relativas cortadoras não-alteradas (CN) e

alteradas (CA) - Sujeitos Normais

CN

CA

5 Infelizmente, não houve tempo hábil para a análise de variança (aNova), que poderia indicar se os valores brutos aqui são de fato significativos para as condições estudadas. Submeteremos os resultados à análise estatística brevemente.

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Relativas PPN apresentaram um índice médio de aceitação (66,5%), relativamente

próximo do nível de aceitação de PPA, que teve 76,5% de juízos aceitáveis.

0

50

100

aceitável inaceitável

Gráfico 2 - percentual de aceitabilidade

de relativas pied-piping não-alteradas

(PPN) e alteradas (PPA) - Sujeitos

Normais

PPN

PPA

Em relação ao tempo de julgamento, CN foi a condição mais rapidamente julgada,

com média de 951 msec., seguida de CA, com média de 1023 msec. PPN apresentou

tempo médio de julgamento superior aos tempos de C, com 1191 msec., seguido da

condição mais lentamente julgada, PPA com 1337 msec. Vê-se que relativas cortadoras

são julgadas mais rapidamente em relação a pied-piping: média para C 987 msec.;

média para PP 1398 msec.

Gráfico 3 - tempo médio de julgamento de pied-

piping e cortadoras - Sujeito Normais

(em milésimos de segundo)

0 500 1000 1500

PP

C

6.2. Sujeito agramático

O sujeito não apresentou problemas na identificação de frases

distratoras alteradas e não-alteradas. Distratoras não-alteradas

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apresentaram 85,9% de julgamentos aceitáveis , e distratoras alteradas

receberam 79,6% de julgamentos inaceitáveis .6

Relativas CN apresentaram nível de aceitação alto (73,2%), enquanto CA

apresentaram baixo nível de aceitação (35%).

0

20

40

60

80

aceitável inaceitável

Gráfico 4 - precentual de aceitabilidade de

relativas cortadoras não-alteradas (CN) e

alteradas (CA) - Sujeito Agramático

CN

CA

Relativas PPN e PPA apresentaram basicamente os mesmos índices de aceitação

e rejeição: PPN com 54% de aceitação e PPA com 61%.

0

50

100

aceitável inaceitável

Gráfico 5 - percentual de aceitabilidade

de relativas pied-piping não-alteradas

(PPN) e alteradas (PPA) - Sujeito

Agramático

PPN

PPA

Os tempos de julgamento do paciente apresentaram os seguintes resultados: CN

foi a condição julgada de maneira mais rápida, com média de 4798 msec. CA, com

tempo médio de 5232 msec, foi a segunda condição mais rapidamente julgada. Já PPN

apresentou tempo de julgamento superior aos tempos médios de resposta de C, com

6 Cabe ressaltar que as frases experimentais não apresentavam estruturas descontínuas como relativas, interrogativas ou passivas. Como pode ser visto no anexo I, tais frases apresentavam orações absolutas, coordenadas e subordinadas de diferentes tipos. Por não serem estruturas geradas via Move, acreditamos que as distratoras não foram um problema para o sujeito.

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média de 6733 msec., seguido da condição mais lentamente julgada, PPA com 6921

msec. O tempo médio de julgamento de C (5015) foi inferior ao de P (6827)

Gráfico 6 - tempo médio de julgamento de pied-

piping e cortadoras - Sujeito Agramático

(em milésimos de segundo)

0 2000 4000 6000 8000

PP

C

7. Discussão

Os dados acima parecem confirmar indiretamente a hipótese da antinaturalidade

de pied-piping na relativização, uma vez que tanto os sujeitos normais quanto o sujeito

agramático são capazes de julgar diferentemente relativas CN e CA, mas não fazem

julgamentos distintos quando a relativa é PPN ou PPA. Como os resultados apontam,

tanto PPA quanto PPN são consideradas igualmente aceitáveis pelos falantes normais.

O fato interessante é que os sujeitos normais não rejeitaram PPN ou PPA, tampouco

agem de maneira aleatória, considerando-as ora aceitáveis ora inaceitáveis. PPN e PPA

são percebidas praticamente da mesma maneira pelos sujeitos normais. Uma explicação

plausível para esse comportamento é que os sujeitos normais, em razão de sua

escolarização, são capazes de reconhecer a estrutura pied-piping (ou algo semelhante,

como PPA), daí a maior aceitação e a menor rejeição dessa estratégia de relativização,

no entanto, esses mesmos sujeitos não são capazes de perceber inconsistências

estruturais nesse tipo de construção (a troca do pronome relativo pelo interrogativo),

pelo menos num juízo automático, na técnica RSVP, sem espaço para a reflexão mais

atenciosa. Como PPN e PPA são estruturas parecidas, os sujeitos não as distinguem. A

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percepção dessas inconsistências ou demanda maior tempo de reflexão e/ou só é

acessível para indivíduos treinados nas nuanças da língua escrita formal, artística ou

forense. Já com o sujeito agramático a situação é um tanto diferente: ele também não é

capaz de distinguir PPN e PPA, no entanto, não aceita indiferentemente ambas as

construções, como fazem os sujeitos normais, mas parece oscilar aleatoriamente entre

aceitável e inaceitável, no nível da chance, portanto. Esse tipo de comportamento é

previsto se assumirmos (com Grodzinsky, 1990 e outros) que o afásico de Broca tem

dificuldade em processar/derivar estruturas que apresentam constituintes deslocados

(Move), como é o caso de relativas PP, mas não de relativas C. De forma resumida:

tanto sujeitos normais quanto o sujeito agramático não são capazes de distinguir PPN e

PPA: os sujeitos normais julgam PPN e PPA como igualmente aceitáveis e o sujeito

agramático julga esses estruturas ora como aceitáveis, ora como inaceitáveis, na chance.

A situação com as cortadoras é totalmente diferente, pois os sujeitos normais

reconhecem esse tipo de estrutura tão bem e, praticamente, com a mesma velocidade

com que detectam a inconsistência de uma preposição que deixou de ser apagada (CA).

A assimetria entre a percepção de cortadoras e de pied-piping pode ser explicada pela

hipótese da antinaturalidade de pied-piping: como cortadoras são uma construção

natural, os juízos de gramaticalidade acerca desse tipo de estrutura são precisos, capazes

de detectar rapidamente qualquer violação às condições de convergência ou de

processamento da sentença; já estruturas pied-piping são analisadas com menos precisão

e mais lentamente, como se fosse um julgamento acerca de uma frase de uma língua

estrangeira, que o sujeito aprendeu mediante treinamento explícito. O mesmo pode ser

dito sobre o desempenho do sujeito agramático. Ele foi capaz de diferenciar CN e CA

com grande precisão, embora para isso tenha despendido um tempo maior em relação

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aos indivíduos normais (possivelmente em relação a dificuldades motoras). Esse

resultado parece indicar que a relativização cortadora permaneceu intacta na gramática

do sujeito, já que esse tipo de construção não envolve Move.

8. Considerações finais

Com o experimento apresentado neste trabalho, acreditamos ter reunido as

primeiras evidências que podem sustentar a hipótese da antinaturalidade de pied-piping

na relativização. Embora o desempenho de sujeitos normais e o sujeito agramático tenha

sido diferente (normais aceitam tanto PPN quanto PPA e o agramático oscila

aleatoriamente entre aceitação e negação dessas estruturas), todos tiveram em comum o

fato não distinguir estruturas pied-piping bem-formadas e seus correspondentes mal-

formados, o que não acontece quando o tipo de relativa e cortadora. Ora, se indivíduos

normais e agramáticos apresentam desempenho semelhante em tarefas lingüísticas – nas

quais esperávamos desempenhos diferentes –, então há aqui algum problema que deve

ser detectado. Esse problema, segundo pensamos, são as relativas pied-piping, que são

tão estranhas à gramática de um indivíduo normal quanto à do indivíduo agramático.

9. Referências bibliográficas ALEXIADOU, A. et al. 2000. Syntax of Relative Clauses. Amsterdam and Philadelphia: John Benjamins. CHOMSKY, N. 2000. Minimalist inquiries: the framework. In: Roger Martin, David Michaelsnd Juan Uriagereka (eds.) Step by step: Essays on minimalist syntax in honor of Howard Lasnik, 53–87. Cambridge, Mass.: MIT Press. [1998 – MIT15] CHOMSKY, N. 2001a. Derivation by phase. In: Michael Kenstowicz (ed.). Ken Hale: A life in language, 1–52. Cambridge, Mass.: MIT Press. [1999, Ms.] CHOMSKY, N. 2001b. Beyond explanatory adequacy. Ms., Massachussetts Institute of Technology. CHOMSKY, N. 1995. The minimalist program. Cambridge, Mass.: The MIT Press. CHOMSKY, N. 1981. Lectures on Government and Biding. Foris: Dordrecht. CHOMSKY, N. 1977. On Wh-Movement. In: CULICOVER, P. WASOW, T. & AKMAJIAN, A. (eds.) Formal syntax. NY: Academic Press. CORRÊA, V. 1998. Orações relativas: o que se sabe e o que se aprende no português do Brasil. Campinas: Unicamp (Tese de doutorado). GRODZINSKY, Y. 1990. Theoretical perspectives on language deficits. Cambridge (MA): MIT Press. HERMONT, A. 1999. Compreensão de sentenças com vestígios de SN e de elemento –QU no agramatismo. Rio de Janeiro: UFRJ/FL. (Dissertação de Mestrado) HICKOK, G., ZURIF, E. & CANSECO-GONZALES, E. 1993. Structural description of agrammatic c comprehension. Brain and Language. 45(3), 371-395. JOHANSSON, C. 2002. Pied piping and stranding from a diachronic perspective. IN.: PETERS, P., COLLINS, P. e SMITH, A. (Eds.). Papers from the Twenty First International Conference on English Language Research on Computerized Corpora Sydney 2000. Amsterdam/New York: NY.

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KATO, M. 1993. Recontando a história das relativas em uma perspectiva paramétrica. In. ROBERTS, I. & KATO, M. (orgs.) Português Brasileiro: uma viagem diacrônica. Homenagem a Fernando Tarallo. Campinas: Unicamp. pp. 223-261. ed. 1996. KAYNE, R.1994. The antisymmetry of syntax. Cambridge, Mass.: The MIT Press. KENEDY, E. 2002. Aspectos estruturais da relativização em português: uma análise Raising. RJ: UFRJ. (Dissertação de Mestrado) KENEDY, E. 2001. Teste de compreensão de paciente agramático em relação a cláusulas relativas resumptivas. Rio de Janeiro: UFRJ. Disponível na Internet via correio eletrônico: [email protected]. NUNES, J. 2004. Linearization of chains and sideward movement. Cambridge, Mass.: MIT Press. RAPOSO, E. 1999. Da Teoria de Princípios e Parâmetros ao Programa Minimalista: algumas idéias- chave. In: Chomsky, N. O Programa Minimalista. Trad. de Eduardo Paiva Raposo. Lisboa: Caminho. pp. 15 -37. TARALLO, F. 1983. Relativization Strategies in Brazilian Portuguese. Philadelphia Univ. of Pennsylvania (Doctoral dissertation). ANEXO I (Frases do experimento) Frases experimentais 1. João Paulo II foi o tipo de Papa no qual todo mundo confiava. 2. João Paulo II foi o tipo de Papa em qual todo mundo confiava. 3. João Paulo II foi o tipo de Papa que realmente todo mundo confiava. 4. João Paulo II foi o tipo de Papa que todos confiavam em realmente. 5. O Rio não é mais um lugar no qual podemos ir com tranqüilidade. 6. O Rio não é mais um lugar em qual podemos ir com tranqüilidade. 7. O Rio infelizmente não é mais um lugar que podemos ir com tranqüilidade. 8. O Rio não é mais um lugar que podemos ir em com tranqüilidade. 9. Político é o tipo de pessoa na qual os brasileiros não confiam mais. 10. Político é o tipo de pessoa em qual os brasileiros não confiam mais. 11. Político é o tipo de pessoa que os brasileiros realmente não confiam mais. 12. Político é o tipo de pessoa que os brasileiros não confiam em mais. 13. Ter muito dinheiro no bolso é uma coisa da qual todo mundo gosta. 14. Ter muito dinheiro no bolso é uma coisa de qual todo mundo gosta. 15. Ter muito dinheiro no bolso é uma coisa que todo mundo gosta mesmo. 16. Ter dinheiro no bolso é uma coisa que todo mundo gosta de muito. 17. O Rubem Fonseca é um escritor brasileiro moderno do qual temos poucas notícias. 18. O Rubem Fonseca é um escritor brasileiro moderno de qual temos poucas notícias. 19. O Rubem Fonseca é um escritor brasileiro moderno que nós temos poucas notícias. 20. O Rubem Fonseca é um escritor que temos poucas notícias de nos jornais. 21. Boa vontade de políticos e governantes é uma coisa da qual todos dependemos. 22. Boa vontade de políticos e governantes é uma coisa de qual todos dependemos. 23. Boa vontade de políticos e governantes é uma coisa que nós todos dependemos. 24. Boa vontade de políticos e governantes é uma coisa que dependemos de infelizmente. 25. É preciso cuidado com as pessoas a quem pedimos informação hoje em dia. 26. É preciso cuidado com as pessoas a quais pedimos informação hoje em dia. 27. É preciso ter cuidado com as pessoas que pedimos informação hoje em dia. 28. É preciso cuidado com as pessoas que pedimos informação a hoje em dia. 29. A pessoa para a qual você mostrou o caminho correto será sempre agradecida. 30. A pessoa para qual você mostrou o caminho correto será sempre muito agradecida. 31. A pessoa que você mostrou o caminho correto lhe será sempre muito agradecida. 32. A pessoa que você mostrou o caminho correto para será sempre muito agradecida 33. Parar em faixa de pedestre é um princípio ao qual nenhum motorista obedece. 34. Parar em faixa de pedestre é um princípio a qual nenhum motorista obedece. 35. Parar em faixa de pedestre é um princípio que nenhum motorista realmente obedece. 36. Parar em faixa de pedestre é lei que nenhum motorista obedece a realmente. 37. Não consigo lembrar do número do telefone para o qual acabei de ligar. 38. Não consigo mais lembrar do número do telefone para qual acabei de ligar. 39. Eu não consigo mais lembrar do número do telefone que acabei de ligar. 40. Não consigo lembrar do número do telefone que acabei de ligar para agora.

KENEDY, E. Desempenho de indivíduos normais e afásicos em teste de juízo de gramaticalidade sobre orações relativas preposicionadas. In: Revista do ISAT, v. 06, p. 31-46, 2006. ____________________________________________________________________________

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41. A violência é o tipo de coisa com a qual aprendemos a conviver. 42. A violência é o tipo de coisa com qual nós aprendemos a conviver. 43. A violência é o tipo de coisa que infelizmente acabamos aprendendo a conviver. 44. A violência é o tipo de coisa que aprendemos a conviver com infelizmente. 45. Uma pessoa realmente chata é aquela com a qual ninguém gosta de sair. 46. Uma pessoa realmente chata é aquela com qual ninguém gosta muito de sair. 47. Uma pessoa muito chata é aquela que ninguém gosta mesmo de sair junto. 48. Uma pessoa muito chata é aquela que ninguém gosta de sair com realmente. 49. O vendedor com o qual a minha tia discutiu foi muito mal educado. 50. O vendedor com qual a minha tia discutiu foi mesmo muito mal educado. 51. O vendedor que a minha tia discutiu ontem foi mesmo muito mal educado. 52. O vendedor que a minha tia discutiu com foi mesmo muito mal educado 53. Morte é realmente um assunto sobre o qual ninguém gosta muito de falar. 54. Morte é realmente um assunto sobre qual ninguém gosta muito de ficar falando. 55. Morte é realmente um assunto que ninguém mesmo gosta muito de ficar falando. 56. Morte é um assunto que ninguém mesmo gosta muito de falar sobre realmente.. 57. No meu quarto existe uma mesa sobre a qual sempre deixo meus livros. 58. No meu quarto existe uma mesa sobre qual eu sempre deixo meus livros. 59. No meu quarto existe uma mesa pequena que sempre eu deixo meus livros. 60. No meu quarto existe uma mesa que sempre eu deixo meus livros sobre. 61. Lula não conseguiu entender o problema para o qual seus ministros pediam atenção. 62. Lula não conseguiu entender o problema para qual seus ministros mais pediam atenção. 63. Lula não conseguiu entender o problema que seus ministros pediam cuidado e atenção. 64. Lula conseguiu entender o problema que seus ministros pediam atenção para na reunião.. 65. O cartaz do show para o qual o rapaz estava olhando era colorido. 66. O cartaz do show para qual o rapaz estava olhando era mesmo colorido. 67. O cartaz do show que o rapaz estava olhando era mesmo todo colorido. 68. O cartaz do show que o rapaz estava olhando para era mesmo colorido. 69. Na verdade o professor durão é aquele pelo qual todos têm muito respeito. 70. Na verdade o professor durão é aquele por qual todos têm muito respeito. 71. Na verdade o professor durão é aquele que todos têm realmente muito respeito. 72. Na verdade o professor durão é aquele que todos têm respeito por realmente. 73. O filho voltou para casa e entrou pela mesma porta pela qual saiu. 74. O filho voltou para casa e entrou pela mesma porta por qual saiu. 75. O filho voltou para casa e entrou pela mesma porta que ele saiu. 76. O filho rebelde voltou e entrou pela mesma porta que saiu por antes. 77. A vida dos artistas é um tipo de informação pela qual me interesso. 78. A vida dos artistas é um tipo de informação por qual me interesso. 79. A vida dos artistas é um tipo de informação que me interesso muito. 80. Vida de artista é um tipo de informação que me interesso por muito.