20080627 a Antropologia e Os Atentados

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A ANTROPOLOGIA E OS ATENTADOS AOS ESTADOS UNIDOS Marcos Lanna RESUMO Os atentados aos Estados Unidos de 11 de setembro de 2001 e algumas análises sobre o evento publicadas na mídia nacional e internacional são aqui abordados sob uma perspectiva antropo- lógica. Mediante uma visão comparativa entre os mundos islâmico e norte-americano, o autor busca interpretar as alianças, tanto matrimoniais como entre Estados, segmentos e facções, como "fatos sociais totais". No âmbito islâmico, essas alianças seriam regidas pela lógica hierárquica da dádiva, e no caso dos Estados Unidos, por estratégias de cunho capitalista. Palavras-chave: atentados aos Estados Unidos; antropologia; aliança. SUMMARY This article discusses under an anthropological perspective the September 11 attacks in the Unites States and some analyses about them published in national and international media. By means of a comparative approach on Islamic and North-American worlds, the author looks for an interpretation of the alliances, both matrimonial and between states, segments and factions, as "total social facts". In the Islamic world, those alliances would be guided by the hierarchical logic of the gift, whereas in the Unites States by capitalistic strategies. Keywords: attacks in the Unites States; anthropology; alliance. Freqüentemente não se consegue compreender a diferença entre a identificação com as próprias raízes, o entendimento de quem tem outras raízes e o julgamento de o que é bem ou mal (Umberto Eco). Os atentados ao World Trade Center e ao Pentágono em 11 de se- tembro de 2001 foram um evento de carga simbólica impressionante. Muito já foi dito a respeito, mas pouquíssimo do ponto de vista da antropologia, tanto no Brasil como em outras partes. Nos Estados Unidos, conforme relato pessoal de Terence Turner, antropólogos vieram a público expressar que a própria política externa do país, "com apoio a regimes tirânicos e corruptos e até a terrorismo estatal em vários lugares, muito contribuiu para o ódio e frustração que se manifestaram naqueles ataques" — mas eles foram uma minoria restrita. No Brasil, uma das poucas intervenções de antropólogos foi a de Manuela Carneiro da Cunha. Para ela, ao contrário do que pensa certo senso comum, não há "hiato de quinhentos anos" entre "o homem da rua JULHO DE 2002 85

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  • A ANTROPOLOGIAE OS ATENTADOS AOS

    ESTADOS UNIDOS

    Marcos Lanna

    RESUMOOs atentados aos Estados Unidos de 11 de setembro de 2001 e algumas anlises sobre o eventopublicadas na mdia nacional e internacional so aqui abordados sob uma perspectiva antropo-lgica. Mediante uma viso comparativa entre os mundos islmico e norte-americano, o autorbusca interpretar as alianas, tanto matrimoniais como entre Estados, segmentos e faces,como "fatos sociais totais". No mbito islmico, essas alianas seriam regidas pela lgicahierrquica da ddiva, e no caso dos Estados Unidos, por estratgias de cunho capitalista.Palavras-chave: atentados aos Estados Unidos; antropologia; aliana.

    SUMMARYThis article discusses under an anthropological perspective the September 11 attacks in theUnites States and some analyses about them published in national and international media. Bymeans of a comparative approach on Islamic and North-American worlds, the author looks foran interpretation of the alliances, both matrimonial and between states, segments and factions,as "total social facts". In the Islamic world, those alliances would be guided by the hierarchicallogic of the gift, whereas in the Unites States by capitalistic strategies.Keywords: attacks in the Unites States; anthropology; alliance.

    Freqentemente no se consegue compreender a diferena entre a identificaocom as prprias razes, o entendimento de quem tem outras razes e o julgamentode o que bem ou mal (Umberto Eco).

    Os atentados ao World Trade Center e ao Pentgono em 11 de se-tembro de 2001 foram um evento de carga simblica impressionante. Muitoj foi dito a respeito, mas pouqussimo do ponto de vista da antropologia,tanto no Brasil como em outras partes. Nos Estados Unidos, conforme relatopessoal de Terence Turner, antroplogos vieram a pblico expressar que aprpria poltica externa do pas, "com apoio a regimes tirnicos e corruptose at a terrorismo estatal em vrios lugares, muito contribuiu para o dio efrustrao que se manifestaram naqueles ataques" mas eles foram umaminoria restrita. No Brasil, uma das poucas intervenes de antroplogos foia de Manuela Carneiro da Cunha. Para ela, ao contrrio do que pensa certosenso comum, no h "hiato de quinhentos anos" entre "o homem da rua

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    americano" e o mul Omar: eles so "contemporneos e intrinsecamenteligados", e no avanaremos enquanto "no conseguirmos formular essaligao no presente e no entendermos as dimenses culturais dessa liga-o"1. Tentarei aqui somar minha voz s desses eminentes colegas.

    Argumentei recentemente que a antropologia norte-americana vem secaracterizando por um aprofundamento de sua tradicional perspectiva re-lativizadora e ao mesmo tempo por um envolvimento ingnuo com ques-tes polticas2. H ali preocupao em realizar uma crtica cultural mas nouma antropologia da diferena seja esta de raa, gnero, poltica ou qual-quer outra que questione a estruturao das diferenas sem reportar-se apsicologismos (do tipo "busca pelo poder") e/ou sem fragment-las emcomportamentos culturais polissmicos. Se a antropologia norte-americanarecente tem-se debruado sobre sua prpria realidade, pouco ou quase nadatem dito sobre os Estados Unidos como centro de poder; ao contrrio, suanfase tem recado na desconstruo dos centros.

    possvel que assistamos multiplicao de anlises, dentro e fora daantropologia norte-americana, sobre a diversidade cultural do mundo rabe,denunciando a simples oposio entre Ocidente cristo e Oriente muulma-no como um falso dilema, mas espero que tambm surjam anlises de ml-tiplos centros, sejam eles "ocidentais" ou no, econmicos, polticos ou reli-giosos (caso de Meca). Enquanto no se verifica isso, e antes mesmo de teracesso a qualquer anlise antropolgica do 11 de setembro, darei aqui minhamodesta contribuio para tanto, com base na repercusso dos atentados naimprensa nacional e internacional. No irei propor uma anlise antropolgicado evento ou das sociedades, culturas ou civilizaes nele envolvidas, o quepoderia ser feito de inmeros modos (com base numa "antropologia daviolncia", por exemplo). Decerto, ainda no temos um distanciamentosuficiente para tanto. Mais simplesmente, proporei algumas direes queuma viso antropolgica dos atentados poderia tomar, confrontando umaperspectiva antropolgica, certamente muito especfica, com a de comenta-dores de outras reas, em especial jornalistas. Trata-se de um comentriosobre comentrios que pode oferecer pistas e sugestes (inclusive etnogrfi-cas) para anlises futuras, ou, ainda, trata-se de preencher uma lacuna quetransparece do silncio dos antroplogos a respeito dos atentados e simulta-neamente divulgar as possibilidades de uma certa antropologia.

    Alguns antroplogos diro, como fez o secretrio de Defesa norte-americano, Donald Rumsfeld, que no se trata de "um choque de religiesou de civilizaes", mas de "confronto dentro do mundo muulmano" como se uma coisa exclusse a outra , ou que "no se trata de uma questode religio ou raa ou mesmo de um pas e seu povo", e sim de terrorismo3

    como se todas essas coisas no se implicassem. Nesse sentido, a posiode Rumsfeld semelhante de Maybury-Lewis4. No me parece que "osEstados Unidos brandiram a idia de um ataque geral contra a civilizao eseus valores", como afirmou Carneiro da Cunha5; ao contrrio, negaram, aomenos oficialmente, que o inimigo fosse religioso. Rushdie toma partidooposto ao da antroploga quando se contrape noo que chamou de

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    (1) Carneiro da Cunha, Manue-la. "O mul e o americano: 500anos?". Folha de S. Paulo, 04/11/01, p. A-3.

    (2) Lanna, Marcos. "Sobre a co-municao entre diferentes an-tropologias". Revista de Antro-pologia (USP), vol. 42, 1999. Cf.tambm Da Matta, Roberto."Relativizando o interpretativis-mo". In: Corra, Mariza e La-raia, Roque (orgs.). RobertoCardoso de Oliveira: homena-gem. Campinas: Ed. Unicamp,1992.

    (3) Rumsfeld, Donald. "Tale-ban no resistir". Folha de S.Paulo, 26/10/2001, p. A-12.Note-se que tais afirmaes fo-ram feitas em entrevista ao USAToday, dirigindo-se portantoao "americano comum".

    (4) Maybury-Lewis, David. An-thropology in an age of confu-sion. Conferncia no XXV En-contro Anual da Anpocs, Ca-xambu, 18/10/2001.

    (5) Carneiro da Cunha, op. cit.

  • (6) Rushdie, Salman. "Sim, estaguerra sobre o Isl". Folha deS.Paulo, 04/11/2001, p. A-24.

    (7) Rosenfield, Denis L. "A re-nncia de julgar". Folha de S.Paulo, 06/10/2001, p. A-3.

    (8) Lvi-Strauss, Claude. Raceand history. Paris: Unesco,1952; Dumont, Louis. O indivi-dualismo: uma perspectiva an-tropolgica da ideologia mo-derna. Rio de Janeiro: Rocco,1985.

    "mantra dos lderes mundiais" de que a questo em pauta no o Isl6.Para os Estados Unidos, afinal, sugerir o vnculo entre terrorismo e Isl seriao mesmo que decretar o fim da coalizo que montaram contra o terror.

    A questo do relativismo cultural se coloca de modo evidente nosatentados. Eles trouxeram tona, em todas as esferas da vida ocidental(imprensa, governo, senso comum), posies como a de que

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    o fanatismo religioso, nesta sua forma violenta, necessita ser condena-do sem nenhuma relativizao, pois pe em questo princpios bsicosda convivncia humana como os direitos humanos vlidos paraqualquer religio, raa e sexo e da democracia [...], o que a humani-dade produziu de mais elevado: os preceitos morais de validade uni-versal 7.

    Ora, uma postura antropolgica comum e no penso aqui no relativismonorte-americano, mas em Lvi-Strauss ou em Louis Dumont8 negar aosdireitos humanos validade universal, o que no significa que no possamosadvog-los ou buscar universais e ao mesmo tempo desconfiar dos univer-salismos. A crtica que se ouve hoje nos Estados Unidos em boa medidadirigida a esse tipo de etnocentrismo que se recusa a tentar entender os mo-tivos dos atentados ou o engajamento fantico. A postura antropolgica queadvogo aqui busca justamente construir bases as menos frgeis possveis pa-ra julgar esse como qualquer outro ato humano.

    Em face de tema to polmico, os antroplogos teriam a alternativa deesquec-lo, assim como faz desde sempre a antropologia norte-americana arespeito da prpria construo daquele pas como centro de poder. Mas elesse sentem hoje tentados a refletir sobre sugestes tais quais a de que as-sassinos como os de 11 de setembro no so "irmos", no sentido de noserem "membros da grande famlia humana"9, ou sobre o fato simtrico einverso a esse, que parece ser uma das mensagens dos perpetradores dosatentados, de que os norte-americanos no podem ser considerados "ir-mos" dos rabes. Antecipando minha concluso, parece-me que tanto oque chamarei generalizadamente de "civilizao islmica" como a civiliza-o judaico-crist tm sua parcela de culpa naquela e em outras carnificinas horror que parece ser a marca da guerra moderna e ps-moderna.

    Tambm muito se afirma, do ponto de vista norte-americano, que estano uma guerra convencional porque no se dirige contra um Estado. Seno est claro contra quem os Estados Unidos combatem, talvez o inimigoinclua um Estado se o definirmos em sentido amplo, antropolgico, e no nosentido mais restrito da moderna teoria da democracia. Tomemos o Taleban.Ao menos para um importante intelectual paquistans, mais do que "extre-mismo islmico, na verdade o que se v no Taleban a lei tribal na sua for-ma mais pura"10. Ora, o que est em questo aqui so temas clssicos daantropologia, como a relao que certamente no de excluso entre

    (9) Wiesel, Elie. "Eu choravapor eles". Folha de S. Paulo,02/10/2001 p. A-14.

    (10) "Paquistans faz crticasaos ataques" entrevista deFateh M. Malik a Igor Gielow.Folha de S. Paulo, 05/11/2001,p. A-12.

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    Estado e tribo ou a sobreposio de guerra intratribal e entre segmentosnacionais que caracterizaria a animosidade no interior do Isl, dentre outrastantas civilizaes que poderamos mencionar.

    J se v que minhas fontes so basicamente jornalsticas, em especialjornalistas que estiveram no Afeganisto, mas meus interlocutores incluemtambm polticos e intelectuais. Travarei com cada um deles um dilogo emplanos diferentes. Tentarei deixar claras as diferenas entre as fontes. Poroutro lado, ficar implcito que mesmo uma informao colhida rapidamen-te por um reprter pode, ao menos na perspectiva que adoto aqui, ter umpeso comparvel ao de um material reunido com muito mais tempo ecuidado por um antroplogo. Afinal, etnografia ou jornalismo, trata-sesempre de verses de fatos. Para aqueles que torcem o nariz aos quetomamos relatos jornalsticos como fontes etnogrficas, lembro que o perigomaior parece residir em no entender como verso qualquer relato etnogr-fico, mesmo o do suposto experto. Por exemplo, fazia parte do folclore doDepartamento de Antropologia da Universidade de Chicago, quando lestudei entre 1983 e 1991, a palestra que Manning Nash fizera em 1979 aovoltar de longo trabalho de campo no Ir, pouco antes da revoluo lideradapor Khomeini: deps contra sua antropologia o fato de sua palestra noabordar nenhum dos temas que logo a seguir entrariam na agenda mundial.

    Para a nossa sensibilidade moderna igualitria, parece to ou maisuniversal que a defesa dos direitos humanos a noo de que "o modelo da lei moralmente superior ao modelo da guerra"11. Antroplogos vm notandoporm que modelos de lei e de guerra no so antinmicos e que os se-gundos podem ser casos particulares dos primeiros. H por certo umnmero surpreendente grande de "modelos de guerra", e um dado assassi-nato, dependendo do ponto de vista, pode ser moralmente condenvel ousocialmente aceito. Bastaria isso para que antroplogos fossem chamados aparticipar da construo de leis internacionais que, hoje se reconhece,devem prevalecer sobre as fronteiras de Estados soberanos, mas claro queisso no ocorrer, pois, com raras e honrosas excees, antroplogos jparticipam to pouco da vida nacional cotidiana que certamente seroafastados dos grandes problemas de que tratarei aqui.

    Mas os atentados ressaltam temas antropolgicos da contemporanei-dade. Uma antropologia da violncia se impe facilmente quando a violn-cia est distante, como a do canibalismo tupinamb. Nesse caso, pode-secompreender, julgar e at mesmo advogar a lgica canibal, como fazemViveiros de Castro, contra a violncia catlica, ou Valerio Valeri, quandoindica que para os hualus de Seram, na Indonsia, guerras sempre dizemrespeito "continuidade da vida"12. Mas o que aprendemos com o olhardistanciado desses autores pode nos ajudar quando nos debruamos sobre

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    (11) "The evidence would notconvict in court but it doesjustify a limited war". The lnde-pendent, 04/10/2001.

    (12) Viveiros de Castro, Eduar-do. "O mrmore e a murta".Revista de Antropologia (USP),vol. 35, 1992; Valeri, Valerio.The forest of taboos. Madison:University of Wisconsin Press,2000.

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    questes mais prximas de nosso tempo e espao, mesmo sob o risco deproduzirmos argumentos circunstanciais.

    Grande parte das anlises dos atentados divulgadas at aqui tentou,com razo, esboar ora o quadro das alianas polticas entre Estados, ora ocontexto cultural e sociolgico mais amplo em que eles se inserem, e algumaschegaram a apontar como essas alianas so vividas por populaes locais.Fala-se assim na aliana recm-formada entre Estados Unidos e Paquisto, naaliana entre Estados Unidos e o Taleban e Osama bin Laden na dcada de1980, na aliana j duradoura dos Estados Unidos com Israel ou com regimesrabes repressores na Jordnia, Egito e Arbia Saudita. Fala-se ainda que aquebra de algumas dessas alianas e a continuidade de outras teriam geradoressentimento em segmentos islmicos, assim como que alteraes nas alian-as entre Estados Unidos e pases ou grupos muulmanos tambm teriam po-tencial para gerar ressentimentos. Isso coloca a questo sobre se se trata real-mente de alianas. Como distinguir alianas de unies momentaneamenteconvenientes? Interessa aos Estados Unidos saber que as motivaes de na-es estrangeiras para estabelecer alianas podem transcender os interessesda realpolitik, entender quando podem demandar cooperao e de quetipo de um determinado grupo ou pas, reconhecer que isso depende devalores culturais? Do ponto de vista rabe, teria a noo de "guerra santa"islmica adquirido um sentido menos transcendente e mais instrumental, aponto de ser usada contra qualquer grupo definido como inimigo, externo ouinternamente, como sugere sua invocao pelo Jamiat Ulema-i-Islam, maior emais influente partido islmico do Paquisto13?

    dentro desse quadro que situarei repercusses e anlises dos atenta-dos que apareceram na mdia escrita. Algumas delas, conforme Edward Said,falam em "inveja ou dio prosperidade, liberdade e ao sucesso mundialdos Estados Unidos" (ou modernidade), enquanto outras se recusam a"situar o horror em um contexto que inclua as aes e o discurso dos EstadosUnidos", com o argumento de que tentar entender os ataques seria justific-los14. Evidentemente, essa postura trai a tradio do relativismo cultural nor-te-americano. Proporei aqui o estudo de algumas alianas intra-Isl e entreIsl e o Ocidente capitalista para entendermos o contexto de que fala Said.Como indiquei, a anlise privilegiar um entendimento dos Estados Unidoscomo centro do poder. Ela deveria ser complementada por uma anlise daperspectiva islmica, que, como lembra V. S. Naipaul, talvez no tivessedeixado de ser, ela tambm, imperial15. No parece haver hoje qualquertentativa de reviver as conquistas das dcadas que se seguiram morte doprofeta Maom, que seriam hoje "realidades mticas", para usar a expressode Marshall Sahlins. Mas isso no pouco, quando sabemos da capacidadedo mito para criar "metforas histricas", alm daquela em que a queda dasTorres Gmeas j se tornou logo aps os atentados. Levanto questes comoessa sem qualquer ambio de respond-las, apenas para apontar a impor-tncia dos estudos antropolgicos para futuras respostas.

    Voltando tese de Said, outro procedimento que transparece emmuitas anlises dos atentados tomar a priori as misses suicidas como

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    (15) Cf., por exemplo, Naipaul,V. S. Alm da f. So Paulo:Companhia das Letras, 1999.

    (14) Said, Edward. "rabes pre-cisam de nova poltica secu-lar". Folha de S. Paulo, 05/10/2001, p. A-20.

    (13) Cf. "Musharraf precisa dei-xar a Presidncia" entrevistade Liaquat Baloch a Igor Gie-low. Folha de S. Paulo, 04/11/2001, p. A-20.

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    (22) Fisk, Robert. "Bush cami-nha para uma armadilha". Fo-lha de S. Paulo, 17/09/2001, p.E-10.

    (21) Sahlins, "Cosmologias docapitalismo", loc. cit.

    (20) Lanna, Marcos. "MarshallSahlins e as cosmologias docapitalismo". Mana (UFRJ),vol. 7, n 1, 2001.

    (19) Sahlins, Marshall. "Cosmo-logias do capitalismo". In:Anais... XVI Reunio Brasileirade Antropologia, Campinas,1988; "O 'pessimismo senti-mental' e a experincia etno-grfica: por que a cultura no um 'objeto' em via de extin-o". Mana (UFRJ), vol. 3, n 2,1997.

    imorais ou fanticas, sem refletir sobre as razes por trs do ato. Indiquei quetambm esse seria evidente procedimento no-antropolgico. Certamentecaberia esmiuarmos as diferenas e semelhanas entre os pilotos do dia 11de setembro e os inmeros homens-bomba palestinos que h dcadasatacam alvos judaicos e norte-americanos. Para tanto, no seria intil voltaraos tempos rabes pr-islmicos com o Roberston Smith de Parentesco ecasamento na Arbia antiga, de 1885, e de A religio dos semitas, de 1889,este ltimo inspirador do ensaio sobre o sacrifcio de Marcel Mauss; oumesmo recorrer a estudos da tradio etnogrfica britnica como o de AndreSinger, raro discpulo de Evans-Pritchard, sobre os pashtus do Paquisto; ouainda perquirir anlises antropolgicas do ato suicida, como a de Joo DalPoz16.

    Mas h outros temas fundamentais, como a segmentao do mundoislmico, que abordarei apenas tangencialmente. A antropologia inglesamostrou que em partes da frica ela se liga a grupos de descendncia ecultos ancestrais. Mas como mostra o trabalho de Pierre Bonte sobre osbedunos e tribos do Norte da frica, "um modelo linhageiro segmentar nod conta da lgica das alianas e dos conflitos", j que a "aliana matrimoniale poltica determina estatutos diferenciados e hierarquias sociais que podemse organizar em estruturas polticas complexas"17. Vide o fato de Osama binLaden ser sogro do mul Omar e, segundo alguns relatos, vice-versa: teriahavido troca de filhas, apesar de negada pelo Taleban18. Sem espao paraaprofundar a questo, indico apenas que a antropologia no mais associaa segmentao, ao modo de Evans-Pritchard, somente s sociedades semEstados e descendncia linhageira; citei a perspectiva de Bonte por re-lacionar segmentao e aliana no mundo rabe.

    Ora, essas alianas so interculturais, dinmicas e transcendem o nvellocal. Como mostra Sahlins, relaes de grupos indgenas com potnciasestrangeiras reproduzem estruturas anteriores aos contatos, ao mesmo tem-po que as modificam19. No caso da aliana entre Bin Laden/Al Qaeda e mulOmar/Taleban, os primeiros representariam o estrangeiro (lder saudita eguerreiros vindos de vrias regies muulmanas) e os segundos o local. Masdeveramos considerar outras alianas, sempre envolvendo potncias capi-talistas. Sahlins mostrou que essas alianas dependem de lgicas nativasparticulares, as quais no assumiriam mera posio passiva no contato in-tercultural. Entretanto, como tentei mostrar em crtica a esse autor20, no sepode, a pretexto de analisar esse contato sob a perspectiva nativa, excluiriniciativas freqentemente belicosas das potncias capitalistas, cuja violn-cia pode em alguns casos ser o signo marcante do contato. Afinal, cabe a nsexplicar por que os aliados norte-americanos no mundo rabe, por exemplo(para no falar na Polinsia de Sahlins), incluem bom nmero de "ditadurascorruptas". Experincias democrticas frgeis, assim como misria e altondice de mortalidade, no podem ser atribudas exclusivamente responsa-bilidade nativa, como faz Sahlins quanto ao caso havaiano21. E talvez sejaverdade que "os rabes gostariam de ter um pouco da democracia e daliberdade sobre as quais Bush lhes fala"22.

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    (16) Dal Poz, Joo. "Crnica deuma morte anunciada: do sui-cdio entre os Sorowaha". Re-vista de Antropologia (USP),vol. 43, n 1, 2000.

    (17) Bonte, Pierre. "Systmesegmentaire". In: Bonte, Pierree Izard, Maurice (orgs.). Dicti-onnaire de l'ethnologie et del'anthropologie. 2a ed. Paris:PUF, 1992, p. 65.

    (18) Cf. "Filho do mul Omarpode ter morrido". Folha de S.Paulo, 22/10/2001, p. A-14.

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    O Taleban seria ento, desde sua origem, simultaneamente guerreiro e reli-gioso, no assumindo a separao, comum no mundo muulmano, entre l-deres espirituais e polticos. Assim, porm, reproduziu na prtica algo domito de origem da sua religio, pois Maom, ao contrrio de muitos outroslderes religiosos, no teria sido simplesmente "um sbio ou um profeta, masum governante por direito prprio", um guerreiro conquistador29. Evidente-mente, a prtica de roubo de mulheres no exclusiva do Taleban, mesmoem terras afegs: membros da Aliana do Norte teriam o hbito de matar asfamlias de suas mulheres aps rapt-las30.

    Os atentados de setembro de 2001 revelaram ao pblico ocidental umadisputa pelos lugares mais sagrados do islamismo, Meca e Medina, na ArbiaSaudita, que teria sido uma de suas motivaes. Por trs dela h alianas di-vergentes de segmentos sauditas: com os Estados Unidos, por um lado, e como interesse do Taleban na regio sagrada da Arbia, por outro. Por trs destaltima h uma outra aliana, matrimonial, iniciada no sculo XVIII, quandoum prncipe saudita da Casa de Saud casou-se com uma filha de AbdulWahab, fundador da seita sunita Wahhabi, uma forma de islamismo "puro"que seria posteriormente adotada pelo Taleban. Um dos interesses comunsdessa aliana era fazer seguir a lei religiosa da Sharia. Ora, a famlia al-Saud

    (30) Segundo Robert Fisk, a Ali-ana do Norte "uma confede-rao de patriotas, chefes guer-reiros nativos, estupradores etorturadores" ("Just who areour allies in Afghanistan?". The

    (29) Sullivan, Andrew. "A fabsoluta, incio de uma batalhapica". O Estado de S. Paulo,21/10/2001, p.A-24.

    (28) Macartney, Jane. "Poucosj viram o lder afego". Folhade S. Paulo, 17/09/2001, p. E-10.

    (27) Vale contrastar a esses re-latos o de um mdico brasilei-ro sobre um casamento "tradi-cional" no Afeganisto no in-cio da dcada de 1990: "Per-guntei onde estavam os noivose me chamaram de louco. Ex-plicaram que as nicas pessoasque no poderiam estar em umcasamento afego eram os noi-vos. O casamento representa aunio das famlias. So dois outrs dias de festa. O pai mandao filho viajar. Enquanto a festaest acontecendo, o pai enviaum mensageiro. Na estrada, ofilho recebe uma carta comu-nicando: 'Filho, voc se casou'"("Tempo no Afeganisto nopassa, diz mdico" entrevis-ta de Mauro Bueno a Margare-te Magalhes. Folha de S. Pau-lo, 08/10/2001, p. F-10).

    (26) Cf. Fisk, Robert. "It suitsBin Laden if we call him thehead of world terror". The In-dependent, 25/09/2001.

    no incio de 1994, depois de ouvir que duas adolescentes tinham sidoraptadas de seu vilarejo por um comandante mujahidine e violenta-das, o mul Mohammad Omar convocou trinta estudantes do islamis-mo [...], atacou a base do comandante, libertou as moas e apossou-sede grande quantidade de armas e munies28.

    H assim alianas entre os Estados Unidos e diversos povos do OrienteMdio, de um lado, e alianas intra-Isl de outro, mas elas se influenciammutuamente e se sobrepem23. De um ponto de vista interno, a legitimidadeda Casa Real saudita perante seus sditos, por exemplo, pode se abalar pelomodo como recruta mulheres para seus harns, assim como membros doTaleban teriam adotado prticas como a de descartar suas velhas mulherespor novas tomadas fora da populao afeg24, enquanto a populaoiraquiana se ressente de Saddam Hussein e filhos com seus agentes recruta-dores de servios sexuais25. Essas prticas de evidente opresso mulherno se do necessariamente por fora de uma "essncia opressora islmica",constituindo antes perverses de leis tradicionais, muitas das quais alisassociadas por segmentos islmicos influncia ocidental26. A insatisfaoda populao oprimida se evidencia: tanto os pais dessas mulheres comoelas mesmas sentem tratar-se no de "casamentos tradicionais", como imagi-na certo senso comum ocidental, mas de raptos, quando no estupros27.

    V-se ento que o prprio Taleban praticou em determinado momen-to atos contra os quais teria se colocado originalmente. Um dos mitos daorigem desse grupo afego conta que

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    (23) Isso para no falarmos deuma aliana ainda mais ampla,e supostamente mais duradou-ra, entre Estados Unidos e Rs-sia, China, ndia e membros daOtan contra a "ameaa islmi-ca" em lugares to distintoscomo Chechnia, Xinjiang eCaxemira: "uma aliana degrandes potncias em favor deuma ordem internacional queno se via desde meados dosculo XIX" (Luttwak, Edward."Terror aproxima EUA, Rssiae China". Folha de S. Paulo, 10/10/2001, p. A-22). Luttwak re-conhece, alis, que a relaoentre Estados Unidos e Paquis-to no constituiria uma verda-deira aliana, mas uma "aco-modao temporria": o Pa-quisto "no a esposa", mas"uma amante passageira"("Fase ps-atentado trar sur-presas" entrevista a PauloSotero. O Estado de S. Paulo,21/10/2001, p. A-22).

    (24) Cf. Fisk, Robert. "Saudisturn their backs on the Taliban,a monster they helped to crea-te". The Independent, 26/09/2001.

    (25) Cf. Fisk, Robert."The sonswho promote Saddam's cruellegacy". The Independent, 08/09/2001.

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    permanece reinando at hoje. O prncipe Turki bin Faisal al-Saud ocupou achefia do servio secreto saudita por muito tempo (deixou-a um ms antesdos atentados), e nessa condio foi o fomentador da aliana com o Taleban,que recriou laos seculares entre chefes guerreiros al-Saud e sacerdoteswahhabis. Esses laos foram ampliados com as expedies de caa de vriosoutros prncipes sauditas ao Afeganisto, patrocinadas pelo prncipe Turki al-Saud desde 1994. Isso foi aprovado pelos Estados Unidos, pois contrabalan-aria a influncia da outra grande tribo ou seita muulmana afeg, Shia Ha-zara, aliada do Ir xiita. No por acaso o Ir apoiou inimigos do Taleban comoa Aliana do Norte. Os hspedes sauditas teriam retribudo a hospitalidade doTaleban com veculos, um sistema de telefone celular, petrleo e dinheiro31.

    Em 1995, um velho conhecido do prncipe Turki al-Saud chega aoAfeganisto: Osama bin Laden. Foi o apoio financeiro dos prncipes sauditasque ps fim s escaramuas entre os guerrilheiros mujahedines e possibili-tou a verdadeira revoluo cultural fundamentalista que se viu no Afeganis-to. Ulems sauditas especialmente o xeique Abdul Aziz bin Baz, grandemufti e chefe do Conselho dos Grandes Oradores exigiram o apoio daCasa Real ao Taleban, o que significaria uma forma de contrabalanar apresena de tropas norte-americanas em terras sagradas durante a Guerra doGolfo. Para os prncipes, esse apoio lhes atenuaria as hostilidades dos ule-ms (em torno de questes como a simples idia de companhias de seguro,tidas por eles como antiislmicas32); mais ainda, reforaria a sua posiocomo intermedirios entre os ulems e o Ocidente. Em abril de 1997 o mulRabbani, um dos lderes do Taleban, foi recebido em Riad pelo prprio reiFahd, que o congratulou como representante da Sharia33. Desde setembrode 2001 a Casa dos Saud se apavora com a possibilidade de ser associada aosataques norte-americanos ao Afeganisto. De um modo geral, os governan-tes muulmanos reagiram contra o Taleban e Bin Laden antes do que a po-pulao34. Uma associao das lideranas rabes com os ataques e Bushteria, na lgica nativa, um significado quase transcendental, e no aquele dealiana puramente poltica e oportunista.

    Assim, o fim da aliana entre Estados Unidos e Taleban, ou mesmo adestruio deste, no levou quebra do lao secular entre sauditas (casa reale povo) e sacerdotes wahhabis. De novo, alianas e contra-alianas internasao Isl so decisivas. Quando o Taleban dizia que Bin Laden era seu hs-pede, usava a linguagem nativa comum para indicar que suas relaes nopoderiam ser mais estreitas, indo alm do parentesco. Trata-se de tpicoexemplo de "fato social total" la Marcel Mauss. Quando Bin Laden cria a AlQaeda (em 1989, no Paquisto), no cria apenas um grupo militar: com seudinheiro e de outros aliados, como a casa real saudita, cria uma "rede de as-sistncia aos combatentes na jihad e suas famlias". E somente ao voltar doSudo, em maio de 1996, que ele leva o Taleban a uma postura antiame-ricana, oferecendo, alm de dinheiro, outros "benefcios materiais", como"projetos de reconstruo da infra-estrutura destruda pela guerra"35.

    Do ponto de vista do Taleban, ainda segundo essa fonte, a aliana comBin Laden j teria se enfraquecido desde 1996, quando Bill Clinton congelou

    A ANTROPOLOGIA E OS ATENTADOS AOS ESTADOS UNIDOS

    Independent, 05/10/2001). Ar-thur Schlesinger fala em "cole-o dbia de grupos tribaisapoiados pelos russos e detes-tados pela etnia pashtu" ("Tal-vez devssemos pensar maisno Vietn do que em Kosovo".Folha de S. Paulo, 03/11/2001,p. A-13). Realmente h dubie-dade, pois h quem fale na se-guinte composio: 38% depashtus, etnia que d suporteao Taleban, 25% de tadjiques,19% de hazaras, 6% de uzbe-ques e o restante de "pessoasde outros pases" (Altares, Gui-llermo. "Emaranhado tnicoforma Aliana do Norte". Folhade S. Paulo, 02/10/2001, p. A-10). "A estrutura militar dos re-beldes que tentam derrubar oTaleban lembra a dos senhoresfeudais com seus vassalos", os"chefes das tribos locais", queseriam os mais ricos, assumin-do postos de comando e osmais pobres dependendo deseus favores (Alencar, Kenne-dy. "Vila em runas centro deconfronto". Folha de S. Paulo,18/10/2001, p.A-17).

    (31) Cf. Fisk, "Saudis turn theirbacks on the Taliban...", loc.cit.

    (32) Cf. Fisk, Robert. "Dividedkingdom that became a cradlefor determine killers". The ln-dependent, 27/09/2001.

    (33) Cf. Fisk, "Saudis turn theirbacks on the Taliban...", loc.cit.

    (34) Cf. Fisk, Robert. "This loo-se conjecture is unlikely to cutmuch ice with the Arab nati-ons". The Independent, 04/10/2001.

    (35) Sant'Anna, Lourival. "Co-mo os estudantes encontram ABase". O Estado de S. Paulo,21/10/2001, p.A-18.

  • (36) "Taleban nega entrega deBin Laden por 'princpio'". Fo-lha de S. Paulo, 13/10/2001, p.A-13. Segundo o WashingtonPost, esse financiamento teriasido de U$ 100 milhes, ape-nas nos ltimos cinco anos (cf."Bin Laden deu US$ 100 mi aoTaleban". Folha de S. Paulo,12/10/2001).(37) "Ataque ruim para o Oci-dente" entrevista de PierreLacoste a Alcino Leite Neto.Folha de S. Paulo, 19/10/2001,p. A-14.

    (38) Sousa Santos, Boaventurade. "Os novos antagonismos".Folha de S.Paulo, 19/11/2001,p. A-3.

    (39) "Tempo no Afeganistono passa, diz mdico", loc.cit.

    (40) " ilgico e imoral aceitarum jogo que compense a vidade inocentes" entrevista deMohammed Al Jabri a Joo Ba-tista Natali. Folha de S. Paulo,08/10/2001.

    (41) Sobre alianas matrimoni-ais rabes, ver Bonte, Pierre(ed.). pouser au plus proche.Paris: L'Ehess, 1994.

    JULHO DE 2002 93

    parte do dinheiro do saudita no pas e proibiu s instituies financeirasnegociar com sua organizao; e teria se enfraquecido ainda mais aps osatentados s embaixadas norte-americanas no Qunia e na Tanznia em1998, quando Bin Laden teria passado "de ativo a passivo" em relao aoTaleban, isto , de credor a devedor. Mas durante os ataques dos EstadosUnidos ao Taleban e Al Qaeda no final de 2001 houve indicaes con-trrias, que apontaram a persistncia dessa aliana cujos fundamentos nosremetem lgica da ddiva e no apenas da realpolitik. Assim, um msaps os atentados o mul Omar dizia que Bin Laden financiara seu grupo etinham "direito hospitalidade"36. Do mesmo modo, o Taleban teria dado"somas considerveis aos chefes de cls do pas para que eles se ligassem sua causa", afirmou um analista que props aos Estados Unidos "a mesmaestratgia, num outro sentido"37. O problema com essa proposta desco-nhecer um dos argumentos importantes que apresento aqui: o de que a l-gica da ddiva e da aliana hierrquica, se est presente nos Estados Unidos,no os organiza como nao. Seria igualmente importante reconhecer a di-ficuldade (ou quase impossibilidade) de implantar-se "uma gesto de con-flitos que no exclua e antes pressuponha a cooperao e a confianamtuas"38 contra essa viso, o argumento implcito aqui que necessita-mos de um entendimento destas ltimas como prestaes e linguagem parasaber at que ponto se podem "implantar" tais gestes neste ou naquelecontexto.

    O Ir, por sua vez, sempre se ops ao Taleban, que protegeu Ahl-e-Sunnah Wal Jamaar, chefe da oposio "terrorista" iraniana. V-se como ahistria poltica muulmana passa realmente por noes de hospitalidade,um dos fundamentos tradicionais da aliana, especialmente rabe: a ddiva,nesse caso, um emprstimo territorial, isto , a hospitalidade uma ddivade espao, muito valorizada em uma cultura "em que o tempo no passa"39.Do mesmo modo que cinco sculos atrs categorias nativas permitiram atomada da Amrica por colonizadores espanhis francamente minoritrios,talvez uma particular nfase de certos rabes no territrio em relao aotempo, presente em menor grau entre os judeus, tenha levado "apropria-o de sua histria pelo Ocidente"40, apropriao esta nada artificial e muitoalm do que Said chama de "orientalismo".

    Vimos quo profundas (ainda) so as alianas entre sauditas e sacerdo-tes sunitas. A aliana entre Taleban e setores islmicos importantes j haviasido minada antes de Bush formar sua coalizo. Contribuiu decisivamentepara tanto o presidente iraniano Mohammad Khatami em maio de 1999, apso massacre de diplomatas iranianos pelo Taleban em 1998. J o fim da alianaentre sauditas e Taleban (mas no o wahhabismo) cristalizou-se com a men-cionada demisso do prncipe Turki al-Saud da chefia do servio secretosaudita. Esses fatos mostram que as alianas intra-Isl so poltico-religiosas,quando no matrimoniais, polticas e religiosas41. J as "alianas" norte-americanas, dada a separao republicana entre Estado e Igreja, seriam antesde tudo poltico-econmicas (embora a ltima esposa americana do reiHussein da Jordnia tenha trazido um elemento matrimonial aliana entre

    MARCOS LANNA

  • 94 NOVOS ESTUDOS N. 63

    (45) Mauss, Marcel. "Ensaio so-bre a ddiva". In: Marcel Mauss.Sociologia e antropologia vol. II. So Paulo: EPU/Edusp,1974.

    (44) "Aliana combinaotransitria" entrevista comAntonio Candido. Folha de S.Paulo, 15/10/2001, p. A-5.

    Estados Unidos e Jordnia). Surge ento a questo: os Estados Unidos fazemou apenas manipulam alianas? Isto : so realmente capazes de alianascomo o so as sociedades hierrquicas da ddiva que a antropologia analisa(rabes inclusive, entre tantas outras)? Talvez no seja por acaso que Chomskyuse o epteto "partidrios" e no "aliados" dos Estados Unidos42.

    Sabemos desde Mauss que a ddiva fundamento da aliana, mas deum tipo particular de aliana, no-moderna. Os interesses norte-americanosso, ao contrrio, freqentemente relacionados troca capitalista de merca-dorias. Por isso Bin Laden, por exemplo, pode ser ora "til", ora a represen-tao do "mal abominvel". A utilidade o critrio da troca mercantil, o valorque orienta sua prtica, mas no a da aliana hierrquica. A prpria moralnorte-americana no se funda no mesmo tipo de relao, a "tica protestan-te" de modo geral se afastando da ddiva (a no ser que pensssemos noascetismo enquanto ddiva, o que est alm de nossos limites aqui). Noimportaria assim se os aliados dos Estados Unidos em um dado momentoso, alm de assassinos, estupradores, invasores russos na Chechnia ousoldados da Aliana do Norte43. Ainda que se possa falar em infinitos tipos depatronagem islmica, a norte-americana definitivamente tem suas particula-ridades. Mas seria ela exclusivamente comercial? Como caracterizar, porexemplo, a aliana entre Israel e Estados Unidos, que sabidamente inclui avenda de grande quantidade de armas "made in USA"? Seria ela primordial-mente comercial? Pela sua fora, durao e constncia, tal no parece ser ocaso.

    Essa uma questo importante para as cincias sociais. Para oscientistas polticos assim como para o marxismo, de um modo geral, asalianas tm um sentido fraco, na medida em que seriam puramenteinstrumentais: constituiriam antes de tudo fenmenos polticos, e no fatosculturais ou expresso de trocas fundadoras da sociabilidade, como asentende o estruturalismo de inspirao lvi-straussiana. Um autor comoAntonio Candido parece privilegiar aquele primeiro sentido. Para ele, asalianas seriam "flutuaes tticas", "combinaes transitrias", ainda queafirme que "em toda atividade poltica h dois nveis, desde que no se tratede mero oportunismo": a "ttica do momento" e o "princpio diretor"44.Poderamos supor que ambos os nveis a que se refere Candido soenglobados pela instrumentalidade, na medida em que esse "princpiodiretor" por ele definido como um "alvo final", desejo ou objetivo decriao de "uma sociedade realmente igualitria" que, eu lembraria, comfreqncia se revela puramente retrico. Mas o que parece oportuno lem-brar a demonstrao de Mauss no "Ensaio sobre a ddiva"45, depoiscontinuada pelas antropologias de Lvi-Strauss e de Dumont, de que h umoutro sentido de aliana, forte e no-moderno, como fato social. Esse sentidopode ser poltico, matrimonial ou religioso, mas nunca apenas poltico eimplica sempre, se no linguagem (no sentido saussuriano do termo), aomenos criao de sociabilidade, moral e intersubjetividade comuns.

    Aparentemente, o interesse utilitrio-comercial e as "combinaestransitrias", para retomar a expresso de Antonio Candido, caracterizam as

    A ANTROPOLOGIA E OS ATENTADOS AOS ESTADOS UNIDOS

    (42) Chomsky, Noam. "EUA te-ro de optar entre fora e lei".Folha de S. Paulo, 22/11/2001,p. E-8.

    (43) Cf. Fisk, "Just who are ourallies in Afghanistan?", loc. cit.

  • (46) Cf. Fisk, "Just who are ourallies in Afghanistan?", loc. cit.

    (47) Cf. "Lderes tribais pedemsada de estrangeiros". Folhade S.Paulo, 26/10/2001.

    (48) Fisk, "Just who are ourallies in Afghanistan?", loc. cit.

    (49) Embora o afegni de Dus-tum e dos russos valesse "ametade do usado no vale doPanshir e no resto do pas eimpresso pela ONU (o Talebanusa os dois tipos)" (Alencar,Kennedy. "Corrupo mandana Aliana do Norte". Folha deS. Paulo, 19/10/2001, p. A-16).

    (53) Cf. Lanna, "Sobre a comu-nicao entre diferentes antro-pologias", loc. cit.

    (50) Cf., por exemplo, Stiglitz,Joseph. "EUA tm de rechaarfundamentalismo de merca-do". Folha de S. Paulo, 12/10/2001.

    (51) Vidal, Gore. "Algo de novona Tera-Feira Negra". Folhade S. Paulo, 18/09/2001, p. E-9.

    (52) Chomsky, op. cit.

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    "guerras por procurao", como a dos sul-vietnamitas armados pelos Esta-dos Unidos para diminuir suas baixas ou a das milcias libanesas usadas porIsrael contra os palestinos46, ou ainda a dos tupiniquins usados por portu-gueses contra franceses e tupinambs: diferena dos tradicionais mercen-rios, "guerreiros por compra", o "guerreiro por procurao" um soldado dooutro. Tudo se passa como se fosse vlido contratar os "nossos" guerreiros(ou terroristas) para acabar com os "outros".

    No caso do Afeganisto, assistimos a um jogo confuso de alianas econtra-alianas, intensificado pela presena de potncias estrangeiras. Des-de que Estados Unidos e Unio Sovitica (e antes deles os ingleses, no sculoXIX) l intervieram, a histria sempre atestou alianas mutantes tomutantes que a prpria conferncia de lderes tribais do Sul afego deoutubro de 2001 definia como "estrangeiro" ora o ocidental, ora o rabe47.H ainda uma multiplicao de intermedirios, indivduos que oscilam entrepertencer a um lado ou outro das alianas. Surpreendentemente, at mesmochefes oscilam entre grupos e levam consigo todo o seu entourage, como nocaso de Abdul Rashi Dustum. Descrito pela imprensa mundial como "gene-ral uzbeque" durante a queda do Taleban, controlador da importante regioem torno de Mazar-e-Sharif, ele era tido anteriormente como um "poderosogngster" que sara da Aliana do Norte para comandar os massacres quelevaram o Taleban ao poder e depois retornou em troca de subornos48.Dustum j havia lutado ao lado de Moscou durante a ocupao sovitica, esua posio era ento suficientemente importante para que ele imprimissenotas da moeda afegni, as quais ainda circulavam no pas em outubro de200149. As atitudes desse lder se explicam em parte por sua constanteinimizade com Burhanuddin Rabbani, presidente destitudo pelo Taleban.

    Muito se fala do "enfoque unilateral" da diplomacia dos Estados Uni-dos50 alis, outro ponto central pouco abordado pela antropologia norte-americana. Ora, no seria a unilateralidade uma forma de ausncia dereciprocidade? Essa no-reciprocidade no estaria explicitada nas propostasde poltica externa de Bush quando candidato presidencial? Mais do queuma circunstancial inveno "bushita" para usar a expresso de GoreVidal51 , a poltica externa isolacionista refletiria, a meu ver, a obsessoamericana com o comrcio e os lucros. Como lembra Chomsky, j BillClinton informava "s Naes Unidas que os Estados Unidos agiro 'multila-teralmente quando possvel, mas unilateralmente quando necessrio'"52.

    Do mesmo modo, a menor nfase prtica da espionagem na polticaexterna norte-americana mais recente pode ser em parte creditada suposi-o de que informaes do estrangeiro podem ser compradas, negligencian-do-se que essa compra s se realiza aps trocas e colaborao mtua. Essetpico caso de englobamento da mercadoria pela ddiva caracterizaria a meuver tanto a prtica da antropologia53 como a espionagem. E o isolacionismonorte-americano no apenas poltico: ele tambm se expressa na acade-mia, mediante a transformao da sua antropologia em "cultural studies"e a recusa do conhecimento objetivo daquele "outro" que em guerras dedcadas atrs tanto ajudara as potncias ocidentais.

    MARCOS LANNA

  • A ANTROPOLOGIA E OS ATENTADOS AOS ESTADOS UNIDOS

    Mas os atentados de 11 de setembro trazem tona um outro interessedos Estados Unidos: retaliar uma invaso indita em sua histria. Um pasjovem e que tanto j invadira terras estrangeiras sofre um ataque que trazgrande nmero de mortos. Estes devem ser de algum modo vingados, mas avingana aqui d-se ao modo de uma civilizao mercantil-individualista.No se trata das vinganas de indgenas sul-americanos ou das montanhasda Nova Guin, mais conhecidas dos antroplogos. Umberto Eco ressalta acontradio moral que ao menos os tupis no cometiam: " como se de-cidssemos que, se numa certa rea do globo existissem canibais, ns vamoscom-los para que assim aprendam [a no ser mais canibais]"54. Outrocomentrio relevante sobre a retaliao americana do jurista SampaioFerraz: ela "subjuga o mundo a uma relao entre meios e fins"55 isto , auma certa razo prtica56.

    Ainda do ponto de vista da vida no centro globalizante, a reao aosatentados trouxe mudanas importantes. Atestou-se, por exemplo, uma recu-perao de valores comunitrios nas semanas que se seguiram ao evento,expressa, entre outras atitudes, nas filas para doar sangue em um pas onde osangue legal, majoritria e cotidianamente comprado, ou ainda no surgi-mento de um esprito de solidariedade entre vizinhos em Nova York (real ouno, importa que imaginado pelos "nativos"). Se esse esprito no a marcadaquela cidade, como se sua solidariedade passasse do "orgnico" ao "me-cnico" de Durkheim. Seno, vejamos. Diz Joseph Stiglitz que aps os atenta-dos verificou-se nos Estados Unidos "um sentimento mais forte de comunida-de, um sentido maior de coeso social do que se sentia h anos, qui d-cadas", com o que veio considerao "o papel do governo, algo que deveriater sido feito muito tempo atrs". Aps dar o exemplo do "sacrifcio debombeiros e policiais", o consagrado economista conclui: "h um sentimentocrescente de que talvez nos tenhamos equivocado ao dar nfase demais aosinteresses materiais egostas, esquecendo um pouco de compartilhar"57.

    Para usar os termos de Da Matta, os Estados Unidos teriam deixado, aomenos por instantes, de ser "nao" para ser "sociedade"58. Talvez isso locorra caracteristicamente em tempos de crise, mas essa no foi a nicamudana desde o 11 de setembro. Vrios analistas expressaram o receio deque a esse processo correspondesse certa desvalorizao de valores demo-crticos, como os direitos civis. Para Gore Vidal, tal desvalorizao teria seiniciado durante a Guerra do Golfo59. A "volta" comunidade seria ahiptese otimista, e a pessimista a ameaa totalitarista, como aventou JosArthur Giannotti60. O certo que em estados norte-americanos j vemos leisde controle de indivduos que representariam "estmulo claro ao racismo"61.

    Seja esse desenvolvimento norte-americano visto com os olhos oti-mistas de Da Matta62 ou pessimistas de Giannotti, pertinente a questo: arelao com o Isl minaria valores democrticos? Aparentemente sim, dadasafirmaes recentes de norte-americanos influentes, advogados inclusive, afavor da tortura como mtodo investigativo neste suposto "mundo novo"ps-acidente63. Isso explicaria por que "para defender os valores ocidentaisse estejam fechando os olhos para arranhes a esses [mesmos] valores"64.

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    (63) Cf. Dvila, Sergio. "Ameri-canos j debatem tortura nasinvestigaes". Folha de S.Paulo, 01/11/2001, p. A-16.

    (64) Carneiro da Cunha, op.cit.

    (62) Para ele, "essa solidarieda-de cvica, administrativa, sociale moral em torno do presiden-te Bush estranha e avessa ans, brasileiros" (Da Matta, Ro-berto. "A viso brasileira da tra-gdia americana". O Estado deS. Paulo, 22/09/2001). Emborarealmente ausente em nossahistria, essa solidariedadepode se dar em certo grau me-diante um desejo da morte dooutro, que, dependendo doponto de vista, pode ser o ter-rorista ou o muulmano. NoBrasil, prossegue o antroplo-go, "no se entende como aPresidncia pode ir alm dopresidente que, no nosso cdi-go cultural, possui o papel".Ora, o prprio Da Matta mos-trara antes (Carnavais, malan-dros e heris, loc. cit.) que, demodo diverso ao caso norte-americano, esse exato papel seestende aos brasileiros quandocapazes de usar o "voc sabecom quem est falando?". Des-se ponto de vista, cada um dens seria um "presidente" e/ouum centro, um patro, como jargumentei (Lanna, "Sobre acomunicao entre diferentesantropologias", loc. cit.). DaMatta considera ainda que,num Brasil de ascendncia ca-tlica, a cruz, e no a bandeira, "um poderoso smbolo decompaixo e de solidarieda-de". Mas se a bandeira ameri-cana smbolo de compaixo,tambm o de ocupao. Nome parece assim haver aquicompreenso inadequada dareao norte-americana.

    (54) Eco, Umberto. "Crtica arma contra desorientao".Folha de S. Paulo, 07/10/2001,A-25.

    (55) Ferraz Jr., Trcio S. "Terro-rismo e retaliao". Folha de S.Paulo, 24/10/2001, p. A-3.

    (56) No sentido empregadopor Marshall Sahlins (Cultureand practical reason. Chicago:The University of ChicagoPress, 1976).(57) Stiglitz, op. cit., grifo meu.(58) Da Matta, Roberto. Car-navais, malandros e heris. Riode Janeiro: Zahar Eds., 1979.

    (59) Vidal, op. cit.(60) Giannotti, Jos Arthur. "Aocultao do real". Folha de S.Paulo, caderno "Mais!", 07/10/2001, pp. 12-13.

    (61) Carneiro da Cunha, op.cit.

  • (65) Lvi-Strauss, op. cit.

    (66) Le Carr, John. "Guerrasuja e inevitvel". Folha de S.Paulo, 21/10/2001, p. A-23.

    (67) Cf. Dumont, op. cit.(68) Cf. Lvi-Strauss, op. cit.

    (69) Mauss, Marcel. "La na-tion". In: Ouevres vol. III.Paris: Minuit, 1969.

    (70) Dumont, Louis. Homo hi-erarchicus. Paris: Gallimard,1967.

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    Essa ameaa aos direitos humanos lembra o argumento de Lvi-Straussde que o contato entre culturas ocidentais e no-ocidentais transforma nos as segundas, mas tambm as primeiras65. Os atentados parecem ter tra-zido cena um novo dilema americano alm daquele da raa, que alis seagrava e se alia cada vez mais questo do gnero , relativo no-aco-modao entre comunidade e nao. Nas palavras de um escritor:

    O que a Amrica mais deseja neste momento, mais do que a vinganajusta, mais amigos e menos inimigos. E o que a Amrica est reservan-do para si [...] ainda mais inimigos. Mesmo depois das propinas,ameaas e promessas com que se montou a colcha de retalhos dessacoalizo bamba66.

    Na verdade, esses dilemas da raa e da presena de um individualismo na-cionalista esto interligados, pois a questo racial desafia os prprios ideaisde nao democrtica pelos quais os Estados Unidos, de algum modo, emboa medida retrico, se definem resolutamente67. Sabemos que esse idealno atualizado praticamente em parte alguma68, mas nenhum pas se apro-xima mais do que os Estados Unidos da definio de "nao" de Mauss: umacoleo de indivduos que coloca a si mesma como um indivduo-nao,numa relao de competio com outros indivduos-nao69. Sua prpriadiplomacia no seria concebida ou atualizada como instncia para alianas ou, ao modo rabe, para uma relao hspede/anfitrio , mas para aexpanso comercial e a manuteno da primazia no "ranking geopoltico",numa "estratificao social" internacional a expensas de uma "hierarquia",para usar os termos de Dumont70.

    Parece-me que uma nao, como um fantico (termo to usado nofinal de 2001 e que hoje a mdia substitui por "extremista"), recusa a alianacomo relao, pois esta requer contraprestaes e um grau mnimo deabnegao ou compromisso. A aliana, qualquer aliana, o oposto daobsesso, pois exige abrir mo de ideais ou de parte deles. Percebe-se queh ao menos um sentido importante em que nacionalismo e fanatismo seaproximam: o de incapacidade para relao. Esta implica no s abrir mode ideais, mas tambm, e mais importante, comprometimento. Do ponto devista anglfono, a aliana requer ao mesmo tempo "compromise" e "com-mitment". sugestivo que o ingls fragmente este duplo sentido: "compro-mise" carrega um sentido pejorativo, referindo-se a algum que abre mo deum ideal e se recusa a lutar, e no o sentido positivo de engajamento e cola-borao que tem no portugus "compromisso" ("commitment"). O fantico,como a nao, recusa tanto o compromisso como o "compromise", e seambos tm algum compromisso, com suas prprias certezas. Seu mvel aquilo que a cincia social anglfona denomina "self interest", o que diferedo "interesse" que, segundo Mauss, no deixaria de estar presente na ddiva.Nesse sentido, o que Bin Laden chama "nao islmica" pode muito bem ser

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  • 98 NOVOS ESTUDOS N. 63

    uma nao no sentido maussiano do termo: um desenvolvimento religiosoda nao, que no Ocidente se coloca como grupo poltico. Em ambos os ca-sos a nao fenmeno moderno.

    Mesmo que a hiptese do pargrafo anterior se mostre equivocada, ficasubentendido que a perspectiva antropolgica probe conjeturas apriorsticasmesmo que de aparente bom senso, como esta: "O problema com o funda-mentalismo religioso ou moral so suas idias primitivas de revoluo eresistncia, incluindo uma vontade de matar e ser morto"71. Trata-se aqui deconvices que precisamos entender melhor antes de desqualific-las como"armadilhas religiosas mentirosas", como faz Edward Said. Ele prprio se sur-preende com o fato de os terroristas de 11 de setembro serem da classe mdia,mas isso por preconceituosamente supor que apenas "os pobres e desespera-dos so ludibriados pelo pensamento mgico"72. Por no questionar "por queclasse mdia?", "por que muulmanos?", "por que contra os Estados Unidos?","por que resistir?", "por que matar?", "por que se sacrificar?", avana suaretrica a favor de uma "comum emancipao e entendimento mtuo", cuja(im)possibilidade tambm mereceria ser especificada. Ora, se Said est certode que "o pensamento mgico e o cultuar cada vez maior da morte" de fato seexplicam muito incompletamente por noes como "frustrao", "desespero"ou "patologia criminosa", parece igualmente insatisfatrio afirmar que "overdadeiro culpado o sistema de ensino primrio" de pases rabes, um"sistema educacional antiquado [que] gerou falhas de lgica e de raciocniomoral e a valorizao insuficiente da vida humana que levam ou aos pioresexageros de fervor religioso ou servil adorao do poder"73. Basta dizer queno Brasil h fervor religioso, adorao servil do poder, educao inadequada,criminosos patolgicos, frustrao e desespero, mas em um contexto total-mente diverso de ordenao tanto de valores como de prticas.

    Ao mesmo tempo, a nao norte-americana move-se por um mercadode interesses (self interests). Esse mercado multicultural, pois h nele oembate de etnias-indivduo, as chamadas minorias, como a dos muulmanos,que representam cerca de 1% da populao do pas. Essas minorias s sominorias do ponto de vista da nao, mas de um "ponto de vista nativo", emmuitos casos, como o muulmano, elas se definem menos como minorias doque como comunidades hierrquicas: importa menos a nacionalidade do quea religio, o pertencimento comunidade de irmos ("umma"). V-se queoposies entre conceitos antropolgicos como "hierarquia" e "nao", "so-ciedade" e "comunidade" podem se substancializar em oposies de outrotipo, como aquela entre muulmanos e cristos, que levou alguns observado-res a falar em "guerra de civilizaes". Saber se h ou no uma tal guerra crucial, mas no sem antes reconhecer que as respostas que buscamosnecessariamente se vinculam a diferentes perspectivas: "a ignorncia sobre oIsl pode se provar a coisa mais potencialmente mortal que temos a temer"74.

    Em entrevista a Robert Fisk em 1997, Osama bin Laden dizia: "Nadatenho contra o povo americano, apenas contra seu governo"75. O reprterretruca que se trata de um governo de representantes eleitos pelo povo, mastalvez fosse justamente este um dos questionamentos de Bin Laden ao "gover-

    A ANTROPOLOGIA E OS ATENTADOS AOS ESTADOS UNIDOS

    (71) Said, Edward. "Islam andthe West are inadequate ban-ners". The Observer, 16/09/2001.

    (72) Ibidem.

    (73) Said, Edward. "Crise temrelao direta com palestinos".Folha de S. Paulo, 05/11/2001,p. A-15.

    (74) Vallely, Paul. "What is Is-lam?". The Independent, 20/09/2001.(75) "Oussama Ben Laden, parRobert Fisk". Le Monde, 18/09/2001.

  • (78) Cf. Fisk, Robert. "TheArabs will ensure they receivea political reward for their su-pport". The Independent, 04/10/2001.(79) "Especialista teme ataquedos EUA a outros pases" entrevista de Sara Roy a Fer-nanda da Escssia. Folha de S.Paulo, 09/10/2001, p. A-25.

    (77) Cf. Fisk, Robert. "They canrun and they can hide. Suicidebombers are here to stay". TheIndependent, 13/09/2001.

    (76) Cf. Dumont, Homo hierar-chicus, loc. cit.

    MARCOS LANNA

    no americano": seu republicanismo. Isso porque pases comandados porxeiques, emires, ims, muls, reis, califas, aiatols, sultes, muftis etc. so,ao menos em tese, hierrquicos76, e nem sempre democrticos, no sentido(ocidental) de no terem governantes eleitos. Como notei para o caso daArbia Saudita, a presena de hierarquia no significa necessariamente con-senso, legitimidade e absoluta aceitao, por parte da populao, da religioe da postura de seus chefes. A "nao islmica" de Bin Laden assim si-multaneamente moderna (porque nao) e no-moderna (porque religiosa eno-republicana). Outra diferena inegvel entre essas civilizaes estaria no"modelo de guerra": a presena do guerreiro suicida, que teria equivalenteentre os Tamil indianos e os camicases japoneses, parece ser a contrapartidada bomba nuclear77.

    As viagens diplomticas de governantes e mandatrios ocidentais apases rabes semanas aps os atentados e tambm nos meses seguintes entre outros, Tony Blair e os secretrios norte-americanos da Defesa e doEstado, Donald Rumsfeld e Collin Powell indicam a necessidade de umaaliana rabe-ocidental. Os Estados Unidos foram bem-sucedidos ao inici-la, mas tal tarefa certamente difcil. Em primeiro lugar, como argumentei, oenvolvimento norte-americano se coloca facilmente como interesse de curtoprazo e dificilmente como comprometimento. Em segundo lugar, a justiadeveria ser regida, de acordo com os cnones modernos, por um direitointernacional, que ainda est sendo criado no h, por exemplo, umadefinio legal de terrorismo. Em terceiro lugar h o fato, analisado acima, deque os diferentes grupos envolvidos tm diferentes concepes e prticas daaliana. Para os rabes, apoiar poltica e militarmente o Ocidente implicariacompromisso, para o qual exigiriam contrapartidas como a soluo da ques-to palestina, o fim das sanes ao Iraque e o afastamento norte-americanodos lugares sagrados na Arbia. Alis, foram essas as trs demandas principaisde Bin Laden78 e h americanos que as endossam, contrapondo-se a posiesde Bush: "Temos de repensar nossa poltica contra o Iraque, onde cinco milcrianas morrem por ms como resultado das aes militares dos EstadosUnidos, quase o mesmo nmero de vtimas das aes de setembro"79.

    Mas pode uma nao democrtica e individualista agir como um pashierrquico, abrir mo do comportamento unilateral em nome da reciproci-dade? A questo porm no apenas a de os Estados Unidos "repensarem suapoltica externa": bem mais complexa, implicaria o "repensar" de toda anao. No seria uma questo de mera "poltica" (nem no sentido de "policy"nem no de "politics"), mas de construo de categorias sociais (ao modo dainterpretao durkheimiana de Montesquieu).

    De um ponto de vista do contexto cultural mais amplo, a histria jsugere a dificuldade da aliana entre o Isl e o Ocidente, se lembrarmos que

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  • 100 NOVOS ESTUDOS N. 63

    (83) Cf., entre outros, Valeri,Valerio. "Relativisme culturel".In: Bonte e Izard (orgs.), op.cit. O que por sua vez relativizageneralizaes como esta deEdward Luttwak: "A mensagempassada pelas mesquitas, pe-los professores, pelos lderespolticos aos jovens a de quenada importante exceto a re-ligio uma religio que serecusa a coexistir com outrasreligies e que a soluoreal para o problema dos jo-vens matar um judeu ou umcristo e ir ao paraso, ondecada um ter 72 virgens"("Americanos tm sorte com oseu Sul" entrevista a MariaBrandt. Folha de S. Paulo, 10/10/2001, p.A-22).

    (84) Lvi-Strauss, Tristes trpi-cos, loc. cit., passim.

    (82) Rushdie, op. cit.

    (81) Carneiro da Cunha, op.cit.

    (80) Lvi-Strauss, Claude. Tris-tes trpicos. So Paulo: Compa-nhia das Letras, 1996 [1955],passim. Esse argumento lem-bra a crtica do antroplogo associao entre arte abstrata eelite compradora ocidentais, omercado definindo o contedode uma arte que, se evidente-mente simblica, nesse casoestaria aqum da linguagem (cf.Charbonnier, George. Entreti-ens avec Claude Lvi-Strauss.Paris: Plon/Juillard, 1961).

    A ANTROPOLOGIA E OS ATENTADOS AOS ESTADOS UNIDOS

    as Cruzadas foram um marco fundador da Europa moderna. Mas tambm aantropologia fornece uma demonstrao inequvoca de quo profunda essaoposio. Penso nos captulos finais de Tristes trpicos, em que Lvi-Strausstrata da Caxemira, regio invadida por muulmanos aps longo convvioentre as civilizaes helnica, hindusta e budista. Comentando que elemesmo representa "a tradio que faltava", a judaico-crist, Lvi-Strauss con-trasta a benevolncia budista ao Isl, alvo de duras crticas. Fala em "indign-cia", do "atual menosprezo dos muulmanos pelas artes plsticas" e de suasproibies msica (revividas pelo Taleban em pleno limiar do sculo XXI).Nota que a diviso entre ndia e Paquisto "segundo a linha divisria religio-sa" levou "exasperao da austeridade e do puritanismo". Os muulmanosrepudiam a ndia por meio "da destruio dos dolos" (como o Taleban re-pudiou Buda destruindo esttuas). Lvi-Strauss j intua que essa destruio"renova Abrao, mas com um significado poltico e nacional bem novo". OIsl se caracterizaria ainda, para o mestre francs, por uma distncia entre opalcio e o bazar. Nele a arte se tornaria oficial: "ou sustentada pelo ouro, oudesaba"80. Pode-se argumentar que Lvi-Strauss injusto ao no reconhecer aarte islmica presente at mesmo no bazar ou ao condenar como "formasmenores de sensualidade" suas manifestaes em "perfumes, rendas, borda-dos e jardins"; ou que discutvel a identificao que faz entre muulmanos ealemes. Mas fundamental entender sua justificativa para criticar o Isl: essacivilizao seria prxima e semelhante demais europia.

    Carneiro da Cunha critica "o uso de um discurso cultural e religioso"nas partes envolvidas no atual conflito81. Mas pode tal encontro ser entendi-do em outros termos? Como pondera Rushdie, "a questo aqui o Isl, sim,[mas] isso significa exatamente o qu? Afinal, a maior parte do que constituiuma crena religiosa no algo muito teolgico"82. A questo de Rushdienos remete de volta a Lvi-Strauss, para quem o Isl prega liberdade,igualdade e tolerncia, mas o faria "em situao de crise permanente queresulta da contradio entre o alcance universal da revelao [do Profeta] e aadmisso da pluralidade das fs religiosas". Ora, esse dilema no muitodiferente daquele do relativismo em antropologia83.

    Para Lvi-Strauss, os muulmanos "anulam o crdito a que aspiramquando afirmam que so os nicos" a praticar a tolerncia; "todo o Islparece um mtodo para desenvolver no esprito dos crentes conflitosinsuperveis, ainda que seja para salv-los em seguida". As solues propos-tas seriam simples demais, como o "enclausuramento das mulheres" (masLvi-Strauss reconhece um ponto positivo nesse "enclausuramento": a cria-o de um "mundo prprio" feminino). Os muulmanos seriam "incapazesde suportar a existncia do outro como outro". Estaramos ento frente auma "grande religio que se funda mais na impotncia para criar laos como exterior e menos na evidncia de uma revelao"84. Ora, no seria tambmo Ocidente, como sugeri acima, to ou mais impotente para criar laosexteriores que no aqueles comerciais? Caso positivo, isso confirmaria ahiptese de Lvi-Strauss de que existiriam semelhanas profundas entre oIsl e o Ocidente judaico-cristo.

  • (86) Cf. Lvi-Strauss, Race andhistory, loc. cit.

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    Ambos os pensamentos seriam animados por "um esprito global" com "de-masiados traos comuns", da seus conflitos: "no plano internacional, essesdesacordos seriam o resultado de duas burguesias que se afrontam. A opres-so poltica e a explorao econmica no tm o direito de procurar descul-pas entre suas vtimas". Esta ltima frase pode ser hoje tomada como notvelreprimenda a uma interpretao dos atentados muito comum no Ocidente,que os usa para justificar a opresso poltica e a explorao econmica; maisainda, ela nos lembra que se encontra postura simtrica no Isl.

    Outra semelhana, em torno da "atitude diante da histria", vista porLvi-Strauss como diferena. A atitude islmica seria para ele "contraditria",o que se expressaria no fato de que cada governante da Dli invadida de-molia a cidade do governante anterior e a refazia em outro espao, "em vezde ter o passado concentrado num pequeno espao, maneira das cidadeseuropias"; a "preocupao de fundar tradies acompanha-se de um ape-tite destruidor de tradies anteriores. Cada monarca desejou criar o impere-cvel abolindo a durao".

    Sem negar a importncia dessa observao emprica, parece-me que,entendida a partir de um olhar mais distanciado, essa atitude islmica dianteda histria seria mais bem entendida no exatamente como contraditria, mascomo caracterstica daquilo que o prprio Lvi-Strauss denominou "socieda-des quentes"86. A presena de um "esquentamento" da histria seria assimmais uma semelhana entre Ocidente e Isl. Alis, o que Lvi-Strauss toma co-mo marca de governantes islmicos no Sudeste Asitico no difere muito doque fazem tantos governantes no Brasil, que tambm deixam suas marcas

    Com respeito a povos e culturas ainda sob a nossa dependncia, somosprisioneiros da mesma contradio de que padece o Isl em presenade seus protegidos e do resto do mundo. No concebemos que princpiosque foram fecundos para assegurar nossa prpria expanso no sejamvenerados pelos outros.

    Haveramos que refletir se as semelhanas por ele apontadas85 anula-riam as diferenas que enfatizei at aqui entre modos de aliana rabe eocidental. Embora demonstre haver semelhanas, Lvi-Strauss no as aceitafacilmente, no perdoa "ao Isl apresentar-me a nossa imagem". Mas houtro motivo para sua no-aceitao: alm das semelhanas ou, eu pre-feriria, por causa delas , o Isl "ameaa o pensamento francs": "a Franaest se tornando muulmana". Certamente esse medo perpassa hoje aomenos parte da elite (militar, poltica, econmica) no s francesa, masocidental. Lvi-Strauss no aprofunda esse ponto, mas volta s semelhanas:haveria no Isl como no Ocidente "a mesma atitude livresca, o mesmoesprito utpico e esta convico obstinada de que basta resolver os proble-mas no papel para se livrar deles", "um racionalismo jurdico e formalista, [...]uma lgica artificiosa" que nos protege e justifica nossos erros. H mais:

    MARCOS LANNA

    (85) Entre outras, em torno daatividade escravocrata. Diz apropsito Elio Gaspari ("A es-cravido africana dos africa-nos". Folha de S. Paulo, 09/06/2002, p. A-18) que "a escravi-do africana foi em certa pocasobretudo uma atividade doIsl" antes de ser dominadapor cristos, eu complementa-ria. A semelhana entre essascivilizaes escravocratas nes-se caso comercial e poltica.Vale lembrar que, alm da rela-o domstica servo/senhor, aescravido pressupe a presen-a de um Estado escravocrata.

  • A ANTROPOLOGIA E OS ATENTADOS AOS ESTADOS UNIDOS

    destruindo as de seus antecessores. conhecida a distino que fez Braudelentre a civilizao latina ("do azeite de oliva e do vinho") e as germnicas ("dacerveja e da manteiga"). Seria a primeira uma sntese do Isl e das segundas?

    Lvi-Strauss prossegue sua abordagem criticando ao Isl ter erguidobarreiras entre o Ocidente e o Oriente e impedido o budismo de influenciarmais a Europa. Faz ento um elogio "pacificao unificadora" budista, cujaviso de unio entre os sexos oposta excluso muulmana; em vez darevelao, "a quietude da fuso"; o sbio, como o profeta, no seria deus,mas "em tudo o mais eles se contrapem: um, casto, o outro, potente, comsuas quatro esposas; um andrgino, o outro barbudo; um pacfico, o outrobelicoso; um exemplar, o outro messinico". Ao opor-se ao Isl nas Cruza-das, e agora novamente, o Ocidente no teria feito mais que se assemelhar aele. J o budismo deve ser louvado porque nele no se trata "de inclinar-sediante de dolos ou de adorar uma pretensa ordem sobrenatural, mas apenasde prestar homenagem reflexo decisiva que um pensador, ou a sociedadeque criou a sua lenda, props h 25 sculos". Lvi-Strauss identifica-se aoprprio Buda: tudo o que aprendera com mestres, filsofos e sociedades quevisitara seria que "o esforo para compreender destri o objeto a que est-vamos ligados". O budismo seria

    uma religio do no-saber [que] no se funda em nossa incapacidadepara compreender. Atesta nossa aptido, eleva-nos at o ponto em quedescobrimos a verdade sob a forma de uma excluso mtua do ser e doconhecer. Por uma audcia suplementar, s ela junto com o marxis-mo reduziu o problema do metafsico ao do comportamento humano.

    Tudo se passa como se a antropologia representasse um refgio budista emum Ocidente de mentalidade mais prxima "muulmana". impossvelno lembrar da sua reflexo sobre a relao entre sujeito e objeto na "Intro-duo obra de Marcel Mauss":

    Se este ltimo momento da dialtica que leva iluminao legtimo,ento todos os que o precederam e se lhe assemelham tambm o so. Arecusa absoluta de sentido o trmino de uma srie de etapas quelevam, cada uma, de um sentido menor a um sentido maior. O ltimopasso, que necessita dos outros para ser dado, valida-os a todos87. (87) Lvi-Strauss, Claude. "In-

    troduo obra de MarcelMauss". In: Marcel Mauss, So-ciologia e antropologia, loc. cit.

    (88) Frias Filho, Otavio. "Povosdo livro". Folha de S. Paulo, 04/10/2001, p. A-2.

    Mas se a disciplina antropolgica se assemelha em algo ao budismo, hque se reconhecer que ao mesmo tempo ela se insere na tradio livresca tobem criticada em Tristes trpicos. E como sugere Otavio Frias, hoje a violnciareligiosa caracteriza "os povos do Livro porque eles insistem no monoplioda verdade e no literalismo da palavra revelada"88. Discordo porm da anlise

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  • Novos EstudosCEBRAP

    N. 63, julho 2002pp. 85-103

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    desenvolvida por Frias em alguns pontos. A violncia religiosa no foi, nodecorrer da histria, "prerrogativa" exclusiva dos povos do livro, e tambmno me parece que o cristianismo tenha sido fundamentalista "at o sculoXVII" e depois "deixado de s-lo", no momento em que divises entre ca-tlicos e protestantes e entre vida civil e religiosa "alimentaram conquistascientficas e a acumulao capitalista". Realmente, o "modelo laico e plura-lista" uma evoluo, mas no necessariamente "funciona melhor", dadoinclusive seu modelo de guerra de destruio em massa, ao qual j aludi.Alm disso, o atual fundamentalismo parece ser aquele "de mercado"89,fundado em noes como a de "liberdade", noes relativas que justo agoraesto sendo tomadas, errnea e quase que desesperadamente, como univer-sais90. Em resumo, busca por liberdade, acumulao capitalista e conquistacientfica no levam necessariamente ao fim dos fundamentalismos, mastalvez os acentuem. Afinal, a prpria palavra "fundamentalismo" designavainicialmente crenas protestantes. A facilidade como a modulamos para ocontexto islmico mais uma prova de semelhanas entre "eles" e "ns". Essevalorar a palavra realmente caracteriza muulmanos, judeus e cristos.

    A questo carece de tratamento antropolgico que a expanda e rela-cione com o estudo das alianas que muito rapidamente propus aqui. Atque ponto presena do livro se seguiria ausncia de reciprocidade e daperspectiva relacional? Antes de tentarmos esboar qualquer resposta a essaquesto, cabe aqui concluir que, se h uma guerra, ela realmente "opecivilizaes" e que "delinqncia" de uma parece corresponder a "irres-ponsabilidade" de outra91. Essa animosidade, que tantas formas tem assumi-do, no se explica assim por uma essncia islmica no-democrtica, mas, aocontrrio, exatamente pela proximidade entre Ocidente e Isl, proximidadede atitudes subjetivas "quentes" em relao histria. Mais ainda, ficouimplcito aqui que a capacidade rabe e islmica para a aliana hierrquica,muito resumidamente esboada por mim e ainda alvo de reflexo por partedos antroplogos92, uma diferena importante entre suas civilizaes e oindividualismo ocidental. Certamente os Estados Unidos teriam muito aganhar se pudessem ou soubessem ir alm de suas "alianas" utilitrias eassociassem sua indiscutvel liderana econmica e militar algum tipo deliderana que inclusse alianas e valores hierrquicos, praticando formas desolidariedade como aquelas geradas pela ddiva. Isso no s em tempos decrise interna, mas tambm externamente.

    Economistas como Paul Krugman pedem maior cooperao econ-mica (dadivosa?) da parte dos Estados Unidos a causas internacionais. Maspropor isso talvez seja ingenuidade ou "wishful thinking". Haveria razesprofundas para os Estados Unidos "dispensarem aval externo" e dedicaremapenas "0,11% de seu PIB assistncia internacional [enquanto] o Canad e asgrandes naes europias so trs vezes mais generosos"93, bem como paraque Bush insista que " a misso que determina a coalizo e no a coalizaoa misso". Para sabermos se realmente as h, e quais seriam, resta no tantoaprofundar o estudo das alianas norte-americanas, mas sobretudo buscaruma antropologia dos Estados Unidos antropologia da "misso".

    Marcos Lanna professor doDepartamento de Antropologiada UFPR.

    Recebido para publicao em28 de junho de 2002.

    (93) Krugman, Paul. "O'Neillno mostrou o que Bono esta-va procurando". Folha de S.Paulo, 01/06/2002, p. B-2.

    (92) Cf. Bonte (ed.), pouserau plus proche, loc. cit.

    (91) Souza, Josias de. "Antia-mericanismo delinqente pro-duz pr-americanismo irres-ponsvel". Folha de S. Paulo,16/09/2001, p.A-9.

    (90) Cf. Rosenfield, op. cit.;Coelho, Marcelo. "Valores uni-versais, Berlusconi e o Tale-ban". Folha de S. Paulo, 10/10/2001, p. E-18. Para este ltimo,devemos entender "a liberda-de individual como um 'meta-valor', em vez de um simplescapricho da cultura ocidental".

    (89) Soros, George. A crise docapitalismo. Rio de Janeiro:Campus, 1999.

    MARCOS LANNA

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