20131127 - Artigo Libânio ( Diretrizes Pedagogia)

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843 Educ. Soc., Campinas, vol. 27, n. 96 - Especial, p. 843-876, out. 2006 Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br> DIRETRIZES CURRICULARES DA PEDAGOGIA: IMPRECISÕES TEÓRICAS E CONCEPÇÃO ESTREITA DA FORMAÇÃO PROFISSIONAL DE EDUCADORES JOSÉ CARLOS LIBÂNEO * RESUMO: A Resolução do CNE que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de graduação em pedagogia reacende o deba- te em torno da natureza do conhecimento pedagógico, do curso de pe- dagogia, dos cursos de licenciatura para a formação de professores e do exercício profissional de professores e especialistas em educação. Este artigo traz uma exposição crítica ao conteúdo do documento, indican- do que mantém antigas imprecisões conceituais com relação ao campo pedagógico que não contribuem para a superação de problemas acu- mulados na legislação sobre o assunto e, por isso, pouco avança na pro- moção da melhoria qualitativa das escolas de educação básica do país. As insuficiências dos pontos de vista teórico e prescritivo da Resolução demandam um outro entendimento do conceito de pedagogia e, em conseqüência, outra opção curricular para a formação profissional de educadores, sejam eles professores ou especialistas em educação. Palavras-chave: Diretrizes curriculares para o curso de pedagogia. Po- líticas de formação dos profissionais da educação. Co- nhecimento pedagógico. Formação pedagógica. For- mação docente. CURRICULUM GUIDELINES OF PEDAGOGY: THEORETICAL IMPRECISIONS AND NARROW CONCEPTION OF THE PROFESSIONAL TRAINING OF EDUCATORS ABSTRACT: The Resolution of the CNE (Brazilian Board of Educa- tion) instituting National Curriculum Guidelines for pedagogy un- dergraduate courses revives the debate around the nature of peda- * Professor da Universidade Católica de Goiás. E-mail: [email protected]. O autor agradece a leitura e as sugestões feitas ao texto pelas colegas Selma Garrido Pimenta e Ma- ria Amélia Santoro Franco e, muito especialmente, o privilégio de poder compartilhar dos mes- mos ideais e práticas, pela grandeza e dignidade da escola, dos professores e de seus alunos.

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Diretrizes do Curso de Pedagogia

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  • 843Educ. Soc., Campinas, vol. 27, n. 96 - Especial, p. 843-876, out. 2006Disponvel em

    Jos Carlos Libneo

    DIRETRIZES CURRICULARES DA PEDAGOGIA:IMPRECISES TERICAS E CONCEPO ESTREITA DA

    FORMAO PROFISSIONAL DE EDUCADORES

    JOS CARLOS LIBNEO*

    RESUMO: A Resoluo do CNE que institui as Diretrizes CurricularesNacionais para os cursos de graduao em pedagogia reacende o deba-te em torno da natureza do conhecimento pedaggico, do curso de pe-dagogia, dos cursos de licenciatura para a formao de professores e doexerccio profissional de professores e especialistas em educao. Esteartigo traz uma exposio crtica ao contedo do documento, indican-do que mantm antigas imprecises conceituais com relao ao campopedaggico que no contribuem para a superao de problemas acu-mulados na legislao sobre o assunto e, por isso, pouco avana na pro-moo da melhoria qualitativa das escolas de educao bsica do pas.As insuficincias dos pontos de vista terico e prescritivo da Resoluodemandam um outro entendimento do conceito de pedagogia e, emconseqncia, outra opo curricular para a formao profissional deeducadores, sejam eles professores ou especialistas em educao.

    Palavras-chave: Diretrizes curriculares para o curso de pedagogia. Po-lticas de formao dos profissionais da educao. Co-nhecimento pedaggico. Formao pedaggica. For-mao docente.

    CURRICULUM GUIDELINES OF PEDAGOGY:THEORETICAL IMPRECISIONS AND NARROW CONCEPTION

    OF THE PROFESSIONAL TRAINING OF EDUCATORS

    ABSTRACT: The Resolution of the CNE (Brazilian Board of Educa-tion) instituting National Curriculum Guidelines for pedagogy un-dergraduate courses revives the debate around the nature of peda-

    * Professor da Universidade Catlica de Gois. E-mail: [email protected].

    O autor agradece a leitura e as sugestes feitas ao texto pelas colegas Selma Garrido Pimenta e Ma-ria Amlia Santoro Franco e, muito especialmente, o privilgio de poder compartilhar dos mes-mos ideais e prticas, pela grandeza e dignidade da escola, dos professores e de seus alunos.

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    gogical knowledge, of pedagogy courses, of licenciatura courses totrain teachers and of the professional exercise of teachers and special-ists in education. This paper criticizes the contents of this documentpointing out that it maintains old conceptual imprecisions concern-ing the pedagogical field. Such imprecisions do not contribute toovercome the problems that have accumulated in the legislation onthe subject. This Resolution thus bring little advance to enhance thequality of the Brazilian basic education schools. The theoretical andprescriptive deficiencies of the Resolution demand a different under-standing of the concept of pedagogy. Another curriculum optionfor the professional training of educators, be they teachers or educa-tion specialists, is thus needed.

    Key words: Curriculum guidelines for pedagogy courses. Training poli-cies for education professionals. Pedagogical knowledge.Pedagogical training and teacher training.

    Da falta de clareza conceitual impreciso na definio da pedagogiae da atividade profissional do pedagogo

    Resoluo CNE/CP n. 1, de 15/5/2006 institui as Diretrizes Cur-riculares Nacionais para os cursos de graduao em pedagogia, namodalidade licenciatura. O artigo 2 estabelece que o curso de

    pedagogia se destina formao de professores para o exerccio da docn-cia em educao infantil, anos iniciais do ensino fundamental, cursos deensino mdio na modalidade Normal, cursos de educao profissional narea de servios e apoio escolar, cursos em outras reas que requeiram co-nhecimentos pedaggicos. O artigo 4 repete o enunciado do artigo 2com uma variante: o curso de pedagogia denominado explicitamente delicenciatura, tal como ocorre tambm nos artigos 7, 9 e 14.

    A Resoluo trata, portanto, da regulamentao do curso de pe-dagogia exclusivamente para formar professores para a docncia naque-les nveis do sistema de ensino. No pargrafo 1 do artigo 2, conceituadocncia nos seguintes termos: Compreende-se docncia como aoeducativa e processo pedaggico metdico e intencional, construdo[sic] em relaes sociais, tnico-raciais e produtivas, as quais influenci-am conceitos e objetivos da pedagogia (...).

    Est explcito no caput desse artigo a reduo da pedagogia docncia, mesmo considerando-se a dubiedade presente no pargrafo

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    mencionado e no pargrafo 2, em que se determina que o curso depedagogia (...) propiciar o planejamento, execuo e avaliao de ati-vidades educativas (grifo nosso). J no artigo 4, pargrafo nico, esta-belece-se que as atividades docentes, alm obviamente das funes demagistrio fixadas no caput do artigo, compreendem, tambm, a parti-cipao na organizao e gesto de sistemas e instituies de ensinorelacionadas com atividades de planejamento, coordenao, avaliao,produo e difuso do conhecimento educacional, em contextos esco-lares e no-escolares. Note-se que nesse artigo, assim como em outros(3 e 5), utilizada a expresso participao na.... No est claro secabe ao curso apenas propiciar competncias para o professor participarda organizao e da gesto ou prepar-lo para assumir funes na gestoe organizao da escola. O pargrafo 2 do artigo 2, embora com reda-o confusa, d a entender que o curso prepara para planejamento, exe-cuo e avaliao de atividades educativas. Seja como for, o que se diznesse pargrafo que o planejador da educao, o especialista em avalia-o, o animador cultural, o pesquisador, o editor de livros, entre tantosoutros, ao exercerem suas atividades estariam exercendo a docncia.

    Observa-se, desde logo, nesses artigos, que as imprecisesconceituais resultam em definies operacionais muito confusas para aatividade profissional do pedagogo. De incio, h uma definio expl-cita de que o objeto da regulamentao um curso de licenciatura. Por-tanto, um curso que se situa na mesma categoria dos demais cursos delicenciatura da educao bsica, deixando suposto que pode existir umcurso de bacharelado em pedagogia, considerando-se a lgica da orga-nizao de cursos da universidade brasileira. Mas logo surgem as im-precises normativas. Por um lado, estabelece-se que a licenciatura empedagogia se destina a formar professores para educao infantil, anosiniciais, cursos normais de nvel mdio, cursos de educao profissionalna rea de servios e apoio escolar, portanto uma licenciatura nica paraas modalidades de ensino mencionadas. Por outro lado, fica implcitoem outros artigos que cada uma dessas modalidades seria uma rea deatuao profissional (leia-se habilitao), conforme artigo 6, alnea II,e artigo 12. Est evidente, tambm, a incongruncia na denominaode licenciatura em pedagogia e no licenciatura em educao infantile anos iniciais. Esta incongruncia conduz necessariamente a uma per-gunta aos legisladores: por qu, se todos os docentes so pedagogos,tambm no se incluem no curso de pedagogia os anos finais do ensi-

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    no fundamental e o ensino mdio? Neste caso, no haveria diferenaentre o curso de pedagogia e o j regulamentado Instituto Superior deEducao.

    A vacilao existente no texto da Resoluo, quanto explicitaoda natureza e do objetivo do curso e do tipo de profissional a formar,decorre de impreciso conceitual com relao a termos centrais na teoriapedaggica: educao, pedagogia, docncia. Com efeito, no artigo 2, pa-rgrafo 1, ao se definir a docncia como objeto do curso de pedagogia,um conceito derivado e menos abrangente como a docncia acaba porser identificado com outro de maior amplitude, o de pedagogia. H, en-to, uma notria inverso lgico-conceitual em que o termo principal ficasubsumido no termo secundrio. Em seguida, a definio parece se con-tradizer ao afirmar que a docncia se vincula aos objetivos da pedagogia.J no pargrafo 2 do mesmo artigo, afirma-se que o curso de pedagogiapropiciar o planejamento, execuo e avaliao de atividades educativas.Afinal, qual o objeto da pedagogia assumido na Resoluo? Atividadeseducativas? Atividades docentes? A redao indica um entendimento quesubstitui o conceito de pedagogia pelo de docncia, em conformidadecom o lema da ANFOPE: A docncia a base da formao de todo e qual-quer profissional da educao e da sua identidade.

    Essa impreciso conceitual quanto ao objeto de estudo da peda-gogia leva a um entendimento genrico de atividades docentes, tal comoconsta no pargrafo nico do artigo 4, em que toda e qualquer ativi-dade profissional no campo da educao enquadrada como atividadedocente, seja essa atividade o planejamento educacional, a coordenaode trabalhos, a pesquisa e sua difuso, e seja qual for o lugar de suarealizao (na escola ou no). de se notar a confuso que o texto pro-voca ao no diferenciar campos cientficos, setores profissionais, reasde atuao, ou seja, uma mnima diviso tcnica do trabalho, necess-ria em qualquer mbito cientfico ou profissional, sem o que a prticaprofissional pode tornar-se inconsistente e sem qualidade. Alm dessaapressada simplificao do campo cientfico da pedagogia e do exerc-cio profissional do pedagogo, essa atividade docente, aplicada a esferasque nada tm a ver com a docncia, entendida meramente comoparticipao na organizao e gesto de sistemas e instituies de ensi-no. Ou seja, a competncia esperada do pedagogo-docente saber par-ticipar da gesto, nada mais, tornando totalmente descabida a afirmao

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    do artigo 14, de que os termos dessa Resoluo asseguram a formaode profissionais da educao prevista no artigo 64 da LDB n. 9.394/96.

    Em boa parte, decorrente dessas imprecises conceituais de base,so verificadas outras insuficincias:

    a) O artigo 5 descreve as competncias necessrias aos egressosdo curso de pedagogia em 16 atribuies do docente, estabele-cendo expectativas de formao de um superprofissional. Sodescries em que se misturam objetivos, contedos, recomen-daes morais, gerando superposies e imprecises quanto aoperfil do egresso. Alm disso, as competncias previstas neste ar-tigo so desconectadas, distintas ou sobrepostas ao que se esta-belece nos artigos 2 ( 2) e 3.

    b) Os artigos 2 e 4 destinam o curso de pedagogia a formaregressos para cinco modalidades de exerccio do magistrio. Masno estabelecem o percurso curricular e as modalidades de diplo-mao, seja para o caso dessas modalidades serem consideradashabilitaes, seja para o caso em que h apenas uma titulao:licenciatura em pedagogia.

    c) A alnea II do artigo 6 deixa entrever a adoo, no currculo,das habilitaes profissionais, inclusive as do artigo 64 da LDB n.9.394/96. Com efeito, est previsto na estrutura curricular docurso um ncleo de aprofundamento e diversificao de estu-dos voltado s reas de atuao profissional priorizadas pelo pro-jeto pedaggico das instituies... O termo habilitaes mencionado no artigo 12.

    d) O artigo 6 define a estrutura curricular em trs blocos: n-cleo de estudos bsicos, ncleo de aprofundamento e diversifi-cao de estudos, ncleo de estudos integradores, em que su-postamente se incluem disciplinas e atividades curriculares. Masisso no est suficientemente claro em decorrncia da redaorepetitiva, confusa e imprecisa.

    e) O artigo 9 exclui toda e qualquer outra modalidade de for-mao inicial que no sejam as estabelecidas na Resoluo, dei-xando dvidas quanto ao cumprimento de outros dispositivos le-gais em vigor, como o Parecer CNE/CP n. 9/2001 e a ResoluoCNE n. 1/2002, que institui as Diretrizes Curriculares para For-

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    mao de Professores para a Educao Bsica. O artigo 10 de-termina a extino de todas as habilitaes existentes decorren-tes de legislao anterior, mas o texto no esclarece como fica oaprofundamento e a diversificao de estudos voltados s reasde atuao profissional, ou seja, quais so essas reas de atuaoprofissional.

    f ) O artigo 14, que trata da formao dos profissionais da edu-cao para administrao, planejamento, superviso etc. (artigo64 da Lei n. 9.394/96), est em desacordo com a LDB, na qualessa formao pode ocorrer tambm em cursos de graduao empedagogia. Alm disso, no h garantia nenhuma, em todo ocontedo da Resoluo, de que o currculo proposto propicie,efetivamente, a preparao do pedagogo para o desempenhodas funes mencionadas no artigo 64 da LDB. Trata-se, pois, deum artigo sem suporte legal, introduzido por convenincia doslegisladores e das associaes defensoras do texto da Resoluo.1

    A Resoluo do CNE, pela precria fundamentao terica com re-lao ao campo conceitual da pedagogia, pelas imprecises conceituais epela desconsiderao dos vrios mbitos de atuao cientfica e profissio-nal do campo educacional, sustenta-se numa concepo simplista ereducionista da pedagogia e do exerccio profissional do pedagogo, o quepode vir a afetar a qualidade da formao de professores de educao in-fantil e anos iniciais. Mantm a docncia como base do curso e a equiva-lncia do curso de pedagogia ao curso de licenciatura, no se diferenci-ando das propostas da Comisso de Especialistas elaborada em 1999 (queincorporou as idias defendidas pela Associao Nacional pela Formaodos Profissionais da Educao) e do Frum de Diretores de Faculdades/Centros de Educao das Universidades Pblicas Brasileiras (FORUMDIR)(de 2005). Avana pouco no esclarecimento das dvidas com relao aambigidades e confuses j existentes na legislao, j que: a) no con-tribui para a unidade do sistema de formao; b) no inova no formatocurricular de uma formao de educadores que atenda s necessidades daescola de hoje; c) interrompe o exerccio de autonomia que vinha sendorealizado por muitas instituies na busca de caminhos alternativos e ino-vadores ao curso em questo. Por tudo isso, no ajuda na tarefa social deelevao da qualidade da formao de professores e do nvel cientfico ecultural dos alunos das escolas de ensino fundamental.

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    Recorrncia de imprecises tericas e conseqncias para o funcio-namento da escola

    O contedo da Resoluo do CNE expressa uma viso estreita dacincia pedaggica, resultado de um equvoco terico sem precedentesna tradio da investigao terica da rea, a subsuno da pedagogia nadocncia, reduzindo a essencialidade dos processos formativos a uma dasdimenses do trabalho pedaggico. Esse posicionamento nega toda a tra-dio terica e a estrutura lgico-conceitual da cincia pedaggica pro-duzida desde Herbart, passando por Dilthey, Durkheim, Dewey at au-tores contemporneos de vrios matizes tericos. Como j mencionado,a insuficincia epistemolgica, decorrente da ausncia de uma conceitu-ao clara do campo terico da pedagogia, originou uma Resoluo cheiade imprecises acerca da natureza da atividade pedaggica, do campo ci-entfico da pedagogia e seu objeto, das relaes entre ao educativa eao docente, entre atividade pedaggica e atividade administrativa, com-prometendo todo o arcabouo lgico e terico da Resoluo.

    A discusso epistemolgica envolvendo os conceitos de pedago-gia e docncia tem sido objeto de varias publicaes (Pimenta, 1997;Libneo, 1998; Libneo & Pimenta, 1999; Libneo, 2003; Franco,2003a). Esses autores tm argumentado que a pedagogia, obviamente,compreende a docncia, pois tambm trata do ensino e da formaoescolar de crianas e jovens, de mtodos de ensino. Mas sustentam quea pedagogia no se resume a um curso, antes, a um vasto campo deconhecimentos, cuja natureza constitutiva a teoria e a prtica da edu-cao ou a teoria e a prtica da formao humana. Assim, o objeto pr-prio da cincia pedaggica o estudo e a reflexo sistemtica sobre ofenmeno educativo, sobre as prticas educativas em todas as suas di-menses. Um campo cientfico pode constituir num curso, mas, antes,importa saber quais so suas premissas epistemolgicas, seu corpoconceitual, suas metodologias investigativas. Se se admite um campode saberes mais abrangente, preciso admitir subcampos de conheci-mentos como seriam, por exemplo, a teoria da educao, a histria daeducao, a organizao do trabalho escolar, a didtica (que trata dadocncia) etc.

    Muitas obras e autores, clssicos e contemporneos, do suportea estas formulaes. O pedagogo espanhol Quintanas Cabanas escreveque a pedagogia a cincia da educao em geral, ela apresenta as dire-

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    trizes a que deve submeter-se a atividade educativa: fundamentos e finsda educao, o sujeito da educao, o educador e todos os tipos e mo-dalidades de educao (1995). O pedagogo francs Gaston Mialaret vai mesma direo:

    A pedagogia uma reflexo sobre as finalidades da educao e umaanlise objetiva de suas condies de existncia e de funcionamento.Ela est em relao direta com a prtica educativa que constitui seucampo de reflexo e anlise, sem, todavia, confundir-se com ela.(Mialaret, 1991, p. 9)

    O pedagogo alemo Schimied Kowarzik chama a pedagogia decincia da e para a educao, portanto a teoria e a prtica da educa-o. Investiga teoricamente o fenmeno educativo, formula orientaespara a prtica a partir da prpria ao prtica e prope princpios e nor-mas relacionados aos fins e meios da educao. Franco (2003a, p. 83-86), ao refletir sobre o conceito de pedagogia na perspectiva dialtica,afirma que o objeto da pedagogia o esclarecimento reflexivo e trans-formador da prxis educativa, de modo que a teoria pedaggica seconstitui interlocutora interpretativa das teorias implcitas na prxis doeducador e, tambm, a mediadora de sua transformao para fins cadavez mais emancipatrios.

    Essas definies mostram um conceito amplo de pedagogia, apartir do qual se pode compreender a docncia como uma modalidadede atividade pedaggica, de modo que a formao pedaggica o su-porte, a base, da docncia, no o inverso. Dessa forma, por respeito lgica e clareza de raciocnio, a base de um curso de pedagogia nopode ser a docncia. Todo trabalho docente trabalho pedaggico, masnem todo trabalho pedaggico trabalho docente. Um professor umpedagogo, mas nem todo pedagogo precisa ser professor. Isso de modoalgum leva a secundarizar a docncia, pois no estamos falando dehegemonia ou relao de precedncia entre campos cientficos ou deatividade profissional. Trata-se, sim, de uma epistemologia do conheci-mento pedaggico.

    Precisamente pela abrangncia maior do campo conceitual e pr-tico da pedagogia como reflexo sistemtica sobre o campo doeducativo, pode-se reconhecer na prtica social uma imensa variedadede prticas educativas, portanto uma diversidade de prticas pedaggi-cas. Em decorrncia, pedagoga toda pessoa que lida com algum tipo

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    de prtica educativa relacionada com o mundo dos saberes e modos deao, no restritos escola. A formao de educadores extrapola, pois,o mbito escolar formal, abrangendo tambm esferas mais amplas daeducao no-formal e formal.2 Assim, a formao profissional dopedagogo pode desdobrar-se em mltiplas especializaes profissionais,sendo a docncia uma entre elas.

    As conseqncias lgicas dessa argumentao so extremamenteclaras: a) o curso de pedagogia no pode ser igual a curso de licenciaturapara formao de professores de educao infantil e anos iniciais do ensi-no fundamental o curso de pedagogia uma coisa, a licenciatura ou-tra, embora interligados; b) a base da formao do pedagogo no podeser a docncia, pois a base da formao docente o conhecimento peda-ggico; c) todo docente um pedagogo, mas nem todo pedagogo preci-sa ser docente, simplesmente porque docncia no a mesma coisa quepedagogia.

    A subsuno da pedagogia na docncia leva a duas dedues: a)sendo a docncia, e no a pedagogia, a base da organizao do currcu-lo de formao, exclui-se a formao do pedagogo especialista, j queno se faz mais a diferenciao entre as atribuies profissionais do es-pecialista em educao e as do professor; b) a extenso do conceito deatividades docentes para atividades de gesto e pesquisa levou a agre-gar ao trabalho do professor mais duas atribuies: a de investigadorlato e stricto sensu, e a de gestor.3

    Essas dedues mostram mais uma faceta das imprecises episte-molgicas da Resoluo: a indistino entre os termos atividade do-cente e atividade administrativa ou organizacional (designaescorrelatas gesto, termo empregado no documento normativo). Des-sa forma, fica descaracterizada no apenas a atividade pedaggica, mastambm a atividade organizacional.

    Observe-se, primeiramente, que uma coisa o carter pedaggi-co da docncia e da gesto, ou seja, h uma necessria dimenso peda-ggica da docncia e da gesto, afirmao esta que se ampara plena-mente no carter abrangente do conceito de pedagogia, e que temosconfirmado exaustivamente (Libneo, 2005b, 2006). Mas da no sepode concluir uma identificao dos conceitos de atividade docente eatividade de gesto, tal como se deduz dos textos da ANFOPE, da Comis-so de Especialistas, do FORUMDIR e, agora, da Resoluo do CNE. As te-

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    ses defendidas pela ANFOPE sempre se centraram na idia da docnciacomo base da formao de todo educador. Aps as crticas ao visreducionista dessa idia que se introduziu entre as atividades docen-tes do pedagogo a gesto, gesto no sentido de funo (rea de atua-o) do pedagogo. Com efeito, o documento da Comisso de Especia-listas inclua como rea de atuao do pedagogo a organizao e gestode sistemas, unidades e projetos educacionais, e o projeto de Resolu-o do FORUMDIR mencionava em um dos artigos a formao para a ges-to educacional (...) entendida como organizao do trabalho pedag-gico (...). Ao se definir a atuao do pedagogo na gesto educacional,pretendeu-se que essa definio respondesse aos crticos da ANFOPE, umavez que abriria espao formao do especialista no professor, recupe-rando a reclamada especificidade da pedagogia. Mas agora, na Resolu-o do CNE, o tema da gesto foi abordado de forma modificada comrelao ao que vinha sendo proposto pelas entidades. Nela, a gesto noaparece explicitamente como funo do professor-pedagogo, isto ,como rea de atuao do pedagogo, mas como uma competncia quese espera do professor para a participao na organizao e gesto de sis-temas e instituies de ensino.

    Que todo professor precisa aprender a participar das formas deorganizao e gesto da escola algo inquestionvel (cf. Libneo,2005a). A crtica ao conceito de gesto presente na Resoluo, equivocada identificao entre atividade docente e atividade gestora, eentre competncia do professor para participar da gesto e rea de atu-ao profissional. Trata-se, na verdade, de conceitos distintos. O docen-te aquele que ensina para que o aluno aprenda o que necessita parainserir-se de forma crtica e criadora na sociedade em que vive. O gestor o que dispe e coordena a utilizao adequada e racional de recursose meios, organiza situaes, para a realizao de fins determinados, talcomo escreve Paro com relao atividade administrativa (Paro, 1986,p. 19-20).

    O gestor escolar, portanto, algum que no processo de traba-lho escolar sabe dispor recursos por meio da racionalizao do trabalhoe da coordenao do esforo humano coletivo em funo do fim visado,isto , o ensino e a aprendizagem dos alunos. Docncia e gesto, por-tanto, so dimenses da atividade pedaggica, mas no so a mesmacoisa, a gesto uma atividade-meio que concorre para a realizao dosobjetivos escolares sintetizados na docncia. Assim sendo, no h lgi-

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    ca que possa sustentar o que consta no pargrafo nico do artigo 4 daResoluo: As atividades docentes tambm compreendem participaona organizao de sistemas e instituies de ensino, englobando (...) pla-nejamento, coordenao (...) produo e difuso do conhecimento (...).

    J comentamos a ambigidade do entendimento de participaona gesto como competncia esperada do professor, mas, logo em se-guida, a gesto se transforma em funo do professor. V-se, pois, que acorrespondncia semntica entre pedagogia e gesto educacional tam-bm peca por reducionismo e, mesmo, simplificao, na mesma medi-da da identificao de pedagogia com docncia. No correto, teorica-mente, definir o trabalho do pedagogo especialista pela gesto, assimcomo muito pouco identificar o papel do pedagogo com o docente.Trata-se de mais uma tentativa de conciliao de posies conflitantes,sem tocar na questo bsica, discutida anteriormente, que a crtica diviso tcnica do trabalho pedaggico.

    Eis que chegamos ao cerne de todas as demais questes proble-mticas da Resoluo do CNE, o tema da diviso do trabalho pedaggi-co, que ir incidir na reduo do curso de pedagogia docncia e naeliminao das habilitaes, tal como ocorreu em propostas curricularesde algumas faculdades de educao.4

    Como sabido, h mais de 25 anos, ao mesmo tempo em queessas teses foram tomando corpo nas associaes de educadores pela for-mao de professores, trs entidades de associao profissional se auto-extinguiram, a Associao Nacional de Supervisores, a Federao Naci-onal de Orientadores Educacionais e a Associao Nacional deAdministrao Escolar. Paralelamente, muitas Secretarias de Educaoretiraram das escolas ou deixaram de contratar coordenadores pedago-gos com formao especfica, prejudicando a gesto curricular e peda-ggico-didtica. Que motivaes levaram os educadores a extinguir suasentidades profissionais? Por que se acabaram as habilitaes em algunscursos de pedagogia? Quais tero sido os ganhos e os prejuzos dessaauto-extino para as escolas, para os alunos e para as famlias? Que ra-zes levaram a essas medidas?

    J deixamos claro que a Resoluo mantm a docncia como eixodistintivo do currculo de formao do pedagogo,5 o que significa fa-zer equivaler o curso de pedagogia a um curso de licenciatura. Mencio-namos anteriormente a falta de embasamento na teoria pedaggica da

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    principal tese em que se sustenta a Resoluo. O que justificaria tama-nha convico de um numeroso grupo de educadores que h anos sus-tenta a tese da docncia como base da formao de todo educador?

    A crena na docncia como base comum da formao profissional

    A origem dessa crena coincide com o movimento poltico no meiodos intelectuais da educao, mais precisamente o ano de 1980, em quefoi realizada a I CBE e criado o Comit Pr-Formao do Educador. A tesecentral desse movimento a docncia constitui a base da identidadeprofissional de todo educador (Encontro Nacional, 1983) consumou-se como bandeira da ANFOPE, que perpetuou o mote e acabou por difun-di-lo entre os educadores de forma pouco crtica, uma vez que raramenteos pressupostos tericos da tese foram justificados. Entretanto, as poucastentativas de proceder a essa justificativa fazem crer que sua origem estna crtica diviso tcnica do trabalho na escola.

    A anlise da documentao publicada pelas associaes de edu-cadores permite concluir que a argumentao no tem apoio na teoriapedaggica, mas na sociologia. A organizao da escola sob o capitalis-mo implicaria uma degradao do trabalho profissional do professor. Aformao no curso de pedagogia seria fragmentada, pois formaria de umlado pedagogos, que planejam e pensam, e de outro os professores, queexecutam, dentro da lgica da diviso tcnica do trabalho segundo aqual, na sociedade capitalista, predomina a diviso entre proprietriose no-proprietrios dos meios de produo. A essas duas classes sociaiscorresponde uma diviso social do trabalho em que uma se ocupa dotrabalho intelectual, outra do trabalho manual. H uma ciso entre otrabalhador e os meios ou instrumentos de trabalho, em que esses mei-os so providos pelos gestores do processo de produo. H uma classeque pensa, desenvolve os meios de trabalho, controla o trabalho; e ou-tra classe que faz servio prtico, cumpre determinaes do gestor, fun-dando a desigualdade social. A diviso social do trabalho, expresso dasrelaes capitalistas de produo, e que se manifesta na organizao doprocesso de trabalho, reproduz-se em todas as instncias da sociedade,inclusive nas escolas, onde haveria dois segmentos de trabalhadoresopostos entre si, os especialistas (diretor, coordenador pedaggico) e osprofessores, instaurando a desigualdade e promovendo a desqualificaodo trabalho dos professores. E como se elimina essa fragmentao? Eli-

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    minando a diviso de tarefas que est na base da fragmentao do tra-balho pedaggico e transformando todos os profissionais da escola emprofessores. Foi natural, da, chegar tese da docncia como base docurrculo de formao dos educadores, pela qual o curso de pedagogiapassa a ter como funo essencial a formao de docentes.

    Esse arrazoado aparece de modo exemplar na Exposio de Mo-tivos que acompanha a Resoluo n. 207/1984, da Universidade Fede-ral de Gois, que fixa o currculo do curso de pedagogia, definido comolicenciatura para formar professores das matrias pedaggicas do cursonormal e das sries iniciais do ensino de 1 grau. Nesse currculo, fo-ram totalmente excludas as habilitaes que, poca, constavam da le-gislao (Parecer n. 252 e Resoluo n. 2/69 do CFE). A Resoluo daUFG, alm de mencionar explicitamente o vnculo com as teses do Co-mit Pr-Formao do Educador, foi provavelmente o primeiro docu-mento normativo sobre o que se acreditava ser o novo formato do cursode pedagogia debatido naquele Comit. O argumento para transformara pedagogia num curso de formao de professores, sem as habilitaes, muito claro. Conforme se l na Exposio de Motivos, a expanso dematrculas nas escolas de ensino fundamental, fruto da poltica educa-cional da poca, requeria distribuir de modo mais racional as tarefas deescolarizao entre os profissionais da educao (orientador educacio-nal, administrador escolar, supervisor escolar e inspetor escolar), dei-xando aos professores as tarefas de execuo do ensino. Dessa forma, apoltica educacional do Estado

    (...) negou o saber e a competncia dos professores no desempenho des-sas funes (...). Transformado num mero executor do que pensado edecidido por outrem, o professor cada vez mais afastado de uma com-preenso do seu processo de trabalho como um todo, bem como de suaconduo. Essa fragmentao e hierarquizao do trabalho pedaggico ,portanto, um importante meio de controle da educao pelo Estado (...).

    Segue-se, no documento, a explicitao de que o curso de peda-gogia deve formar o pedagogo, o qual deve ser, antes de tudo, um pro-fessor, no fazendo mais sentido a formao de tcnicos/especialistas(sic), j que sua presena na escola fragmenta o processo de escolari-zao, expropria o saber e a competncia dos professores, separa o quepensa, decide e planeja do que executa e, portanto, sua existncia contra a democratizao do processo de trabalho no interior da escola.

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    Com base nesta argumentao, so indicadas as disciplinas e atividadescurriculares, inclusive as disciplinas encarregadas do conhecimentototalizante da escola (sociologia, psicologia, etc.) e das formas de orga-nizao do trabalho pedaggico, o qual contribuir para que esse novoprofessor tenha condies de participar efetivamente da vida da escolae de exercer temporariamente as funes de direo e coordenao-ge-ral ou de rea. Como se pode constatar so exatamente os termos queacabaram por formar o arcabouo das teses da ANFOPE, da Comisso deEspecialistas e, agora, da Resoluo n. 1, de 15/5/2006, do CNE.

    Essas idias haviam sido anteriormente desenvolvidas com posi-es tericas bem definidas no artigo Pedagogia e educao ou decomo falar sobre o bvio, de Jos Miguel Rasia, publicado nos Cader-nos CEDES n. 2 (Rasia, 1980). Aps expor a diviso social e tcnica dotrabalho no capitalismo, em que se diferenciam dois grupos no interiordo processo da produo social, os que executam e os que controlam oprocesso, escreveu o autor:

    (...) a organizao desptica do trabalho na sociedade capitalista se re-produz no interior da organizao escolar (...). Entendemos por processode produo escolar o processo que se d no interior da organizao es-colar do qual participam alunos, professores, pedagogos, contedos (ci-ncia + ideologia) e comportamentos e que tem como resultado final umcerto tipo de homem que reproduz em si as determinaes da sociedadecapitalista (...). O exame emprico da escola nos permite visualizar no in-terior do processo de produo escolar uma especializao dos trabalha-dores em funes especficas. De um lado, os pedagogos propriamenteditos e de outro os professores. Penetrando mais a fundo na observaoda dinmica escolar, vemos que aos primeiros correspondem as funesde controle e administrao, de organizao do processo de produo es-colar. Aos professores correspondem as funes de execuo de um certoplanejamento institucional (...). Neste sentido, poderamos afirmar queos pedagogos enquanto administradores da educao se esforam paraorientar, supervisionar e administrar o processo de produo escolar ten-do em vista sua continuidade. Isso implica o exerccio de um certo des-potismo, de uma certa dominao sobre o conjunto daquilo que, em lin-guagem pedaggica, chamamos de corpo docente e no s a este, mastambm ao corpo discente. Em uma palavra, ao universo escolar comoum todo (...). O que devemos estabelecer como tarefas para o pedagogo,hoje quando falo em pedagogo estou me referindo a todo educador ,so duas questes que me parecem fundamentais na anlise que se faz da

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    escola: o poder de decidir e de reorganizar o trabalho pedaggico; o po-der de trazer para a sala de aula as grandes questes do cotidiano da clas-se trabalhadora. (p. 19-24)

    O tema volta a ser tratado em 1990 (V Encontro Nacional daCONARCFE) em que a adoo da base comum nacional do currculo foijustificada como instrumento de luta contra a degradao da forma-o do profissional da educao, provocada pela fragmentao do tra-balho sob o capitalismo, caracterizada pela separao entre concepodo trabalho e sua realizao, e pelo controle do trabalho de execuode quem detm o conhecimento do processo de trabalho. So formula-es que do suporte terico ao mote cunhado em 1983, no qual sesustenta a base comum nacional dos cursos de formao de educado-res: Todas as licenciaturas (pedagogia e demais licenciaturas) deveroter uma base comum: so todos professores; a docncia constitui a baseda identidade profissional de todo educador.6 Os documentos oficiaisdos movimentos, publicados aps 1990 Comisso Nacional pelaReformulao dos Cursos de Formao do Educador e Associao Na-cional pela Formao dos Profissionais da Educao , apenas reiteramo mote, sem apresentar novas contribuies para a discusso epistemo-lgica da identidade cientfica e profissional da pedagogia.

    H muitas maneiras de discutir essas questes, especialmente ada relao entre as formas organizacionais do processo capitalista de pro-duo e as formas de organizao do trabalho em instituies. H umoutro caminho para se compreender a relao entre as formas de gestona empresa e as formas de gesto na escola, que leva a concluses dife-rentes do que foi exposto. A escola ser, efetivamente, um local de tra-balho capitalista? fato que o sistema de produo capitalista pe aescola a seu servio para atender necessidades de sua prpria manuten-o, especialmente para produzir trabalhadores, de forma que ela cum-pre determinados papis para o funcionamento da organizao capita-lista da produo. admissvel que a organizao escolar contenhatambm elementos do processo capitalista de organizao do trabalho.Entretanto, no se pode deduzir disso que a escola passe a constituir-seexclusivamente como local de trabalho capitalista. Se isso fosse poss-vel, a escola seria considerada um lugar de produo de mercadorias,valendo a o raciocnio segundo o qual a produo de trabalhadores (oque faz a escola) seria idntica ao processo de produo de mercadori-as. H de se considerar que os professores, como tambm os especialis-

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    tas, que atuam na escola, no so agentes diretos do capital, nem osalunos mercadorias a serem produzidas. Isso leva a distinguir produode coisas e produo de seres humanos como processos no-idnticos,ainda que estruturas organizacionais sejam planejadas para que umapossa estar a servio de outra. Alm do mais, se convm ao capitalistaproduzir trabalhadores assalariados automatizados, isso no significaque a subjetividade do trabalhador seja sempre subjugada em funodo capital. O que ocorre, pois, que o trabalho escolar tem suaespecificidade, ainda que no descolada dos seus vnculos com a orga-nizao social e econmica da sociedade.7 O trabalho pedaggico esco-lar tem uma natureza no-material, no se aplicando a ele, de modopleno, o modo de produo capitalista. O conhecimento como objetode trabalho na escola inseparvel no ato de produo, e esta capaci-dade potencial ningum retira da pessoa que conhece. Isso significa queos resultados do processo de trabalho escolar, bem como as formas deorganizao interna, no esto absolutamente preordenados pelo capi-tal. Se h uma especificidade do trabalho pedaggico escolar, h tam-bm uma especificidade das formas de organizao do trabalho peda-ggico, por mais que estas possam ser permeadas por influxos daorganizao geral do capitalismo.

    A explicao do surgimento da desigualdade social pela diviso dotrabalho no exclui outros fatores geradores da desigualdade. Alm disso,conquanto a escola no produza as desigualdades bsicas (elas so anteri-ores), pode gerar em seu interior outras desigualdades, como o tratamen-to diferenciado de homem e mulher, a discriminao social, a discrimi-nao tnica, a excluso de crianas que no conseguem aprender, oinsucesso na aprendizagem por causa de uma professora despreparada.Dada a natureza da instituio escolar, os elementos presentes nas rela-es capitalistas de produo no incidem nela de forma igual. Nas atu-ais condies de funcionamento da escola, a diviso tcnica do trabalho,expressa na suposta fragmentao entre trabalho de especialistas e de pro-fessores, no se constitui o problema central. Ao contrrio, pode ser umanecessidade, pois um especialista profissionalmente bem preparado podeter mais xito pedaggico no enfrentamento das desigualdades promovi-das pela escola: as prticas de excluso social, de excluso pedaggica, demarginalizao cultural, de discriminao racial, de produo do fracassoescolar etc. Cabe, pois, perguntar o que ser pior: (a) a escola ter umacoordenadora pedaggica bem formada e competente para prestar aux-

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    lio efetivo s professoras, propiciar condies de xito escolar dos alu-nos, ou (b) fazer uma criana fracassar na aprendizagem porque no hningum na escola capacitado e com formao especfica, para ajudar aprofessora a melhorar seu trabalho e ampliar as chances de incluso dosalunos?

    O dilema posto hoje aos educadores que valorizam a escola e a im-portncia da formao de professores e especialistas : Repetir ou criar?Conservar teses arraigadas ou tentar outros caminhos? O que estamos su-gerindo que a origem do mote da docncia como base da formao detodo educador repercute nas imprecises e ambigidades da Resoluodo CNE. Haver ainda razes para sustentar este mote? Trata-se de um fe-nmeno sociolgico a investigar: O que explica essa fixao, sem nenhu-ma alterao, num discurso produzido h mais de 25 anos? Que razestm levado educadores a prender-se to fortemente a bordes cuja prin-cipal caracterstica a interminvel repetio? O que explica a dificulda-de de segmentos de educadores em romper com essa rede de sugestocoletiva criada por uma associao em torno de uma crena?

    Conseqncias para a formao de professores

    As leis destinam-se a dar forma a modos de estruturao das ativi-dades humanas e sociais instauradas na realidade, e assim regulamentar,por exemplo, um servio pblico em funo de finalidades e aspiraessociais. certo que os problemas da educao bsica em nosso pas noresultam apenas da impropriedade ou ineficcia da legislao, devendo-se considerar outros fatores como: a estrutura e o funcionamento dos r-gos (federais, estaduais e municipais) encarregados das polticas educa-cionais e da gesto do sistema de ensino; as universidades e outrasinstituies formadoras de professores; a insuficiente ou inadequada con-tribuio das associaes e entidades profissionais ligadas aos educadoresetc. A legislao, entretanto, tem tambm um papel significativo no fun-cionamento dos sistemas de ensino e das prticas escolares.

    As imprecises conceituais e ambigidades apontadas na Reso-luo do CNE trazem conseqncias graves para a formao profissional,entre elas: a) a limitao do desenvolvimento da teoria pedaggica de-corrente da descaracterizao do campo terico-investigativo da peda-gogia e dos campos de atuao profissional do pedagogo especialista;b) o desaparecimento dos estudos de pedagogia no curso de pedagogia,

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    levando ao abandono dos fundamentos pedaggicos necessrios refle-xo do professor com relao sua prtica; c) o inchamento de discipli-nas no currculo, provocado pelas excessivas atribuies previstas para oprofessor, causando a superficialidade e acentuando a precariedade da for-mao; d) O rompimento da tradio do curso de pedagogia de formarespecialistas para o trabalho nas escolas (diretor de escola, coordenadorpedaggico), para a pesquisa, para atuao em espaos no-escolares; e) asecundarizao da importncia da organizao escolar e das prticas degesto, retirando-se sua especificidade terica e prtica, na qualidade deatividades-meio, para assegurar o cumprimento dos objetivos da escola.

    A primeira conseqncia que a descaracterizao do campo te-rico da pedagogia e da atuao profissional do pedagogo limita e en-fraquece a investigao no mbito da cincia pedaggica. No se estu-da pedagogia nos cursos de pedagogia, a teoria pedaggica e ainvestigao de formas especficas de ao pedaggica esto ausentes dasfaculdades de educao. Em boa parte delas, quem emite juzos sobrequestes de pedagogia hoje so os socilogos, os cientistas polticos, osespecialistas em polticas educacionais, os psiclogos, no os pedagogos.E, pior, com as mudanas curriculares centradas na docncia, no somais formados os pedagogos para pensar e formular polticas para asescolas, analisar criticamente inovaes pedaggicas, formular teorias deaprendizagem, investigar novas metodologias de ensino, concepes eprocedimentos, avaliao escolar etc. No so mais formados adminis-tradores educacionais, diretores de escola, profissionais para a gesto docurrculo e promoo do desenvolvimento profissional dos professoresna escola, profissionais que ajudem os professores nas suas dificuldadescom a aprendizagem dos alunos. , em parte, por isso que o campo daeducao no tem conseguido sequer um consenso mnimo sobre pol-ticas para a escola bsica, sem conseguir at hoje formular um sistemaintegrado e articulado de formao de educadores.

    Em segundo lugar, a ausncia da teoria pedaggica na formaodo licenciado empobrece a contribuio da anlise crtica da educaoque se pratica nas instituies de formao e nas instituies escolares. Apedagogia, como cincia da educao auxiliada por diferentes campos doconhecimento, estuda criticamente a educao como prxis social, anali-sando-a, compreendendo-a, interpretando-a em sua complexidade, pro-pondo outros modos e processos para sua concretizao, com vistas construo de uma sociedade justa e igualitria. Franco (2003b) escreve:

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    Subsumir a pedagogia docncia no somente produzir um reducio-nismo ingnuo a esta cincia, como tambm ignorar a enorme complexi-dade da tarefa docente, que para se efetivar requer o solo dialogante e fr-til de uma cincia que a fundamente, que a investigue, compreenda e crieespao para sua plena realizao.

    A terceira conseqncia diz respeito ao recrudescimento da pre-cariedade da formao, com conseqncias para a qualidade do ensino.H dois problemas conexos que podem estar comprometendo a quali-dade da formao de muitos cursos: a) sobrecarga disciplinar no curr-culo para cobrir todas as tarefas previstas para o professor; b) ausnciade contedos especficos das disciplinas do currculo do ensino funda-mental. difcil crer que um curso com 3.200 horas possa formar pro-fessores para trs funes que tm, cada uma, sua especificidade: adocncia, a gesto, a pesquisa, ou formar, ao mesmo tempo, bons pro-fessores e bons especialistas, com tantas responsabilidades profissionaisa esperar tanto do professor como do especialista. Insistir nisso signifi-ca implantar um currculo inchado, fragmentado, aligeirado, levandoao empobrecimento da formao profissional. Para se atingir qualidadeda formao, ou se forma bem um professor ou se forma bem um espe-cialista, devendo prever-se, portanto, dois percursos curriculares arti-culados entre si, porm distintos.

    Em boa parte dos atuais cursos h quase que total ausncia nocurrculo de contedos especficos (de portugus, cincias, matemti-ca, histria etc.), existindo apenas as metodologias. Como formar bonsprofessores sem o domnio desses conhecimentos especficos? Essa exi-gncia se amplia perante as mais atuais concepes pedaggicas, em queo ensino est associado ao desenvolvimento das capacidades cognitivasdos alunos por meio dos contedos, ou seja, aos processos do pensarautnomo, crtico, criativo. No se trata mais de passar conhecimen-tos, mas de desenvolver nos alunos capacidades e habilidades mentaisreferentes a esses conhecimentos. Est sendo requerido dos professoresque dominem os contedos mas, especialmente, o modo de pensar, ra-ciocinar e atuar prprio de cada disciplina, dominar o produto juntocom o processo de investigao prprio de cada disciplina. Como fazerisso sem os contedos especficos?

    A quarta conseqncia refere-se s perdas que sofrero as escolassem a formao especfica de administradores escolares, coordenadorespedaggicos, psicopedagogos no curso de pedagogia. Muitos professo-

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    res e pesquisadores reconhecem o valor de uma gesto escolar compe-tente a servio da aprendizagem dos alunos, incluindo a assistncia pe-daggico-didtica aos professores e alunos. No ser preciso muito es-foro para concluir que h na escola um conjunto de atividades decoordenao e gesto que, pela sua complexidade, requerem formaoespecfica (cf. Libneo, 2005b). Vejamos:

    Coordenao dos procedimentos de elaborao do projeto pe-daggico-curricular e de outros planos e projetos da escola,implicando diagnsticos, prospeces, perfil de aluno a serformado, critrios de qualidade cognitiva e operativa, expec-tativas de formao com relao a competncias cognitivas,procedimentais, ticas.

    Coordenao de todas as aes pedaggicas, curriculares, di-dticas e organizacionais, relacionadas com o desenvolvimen-to do ensino e da aprendizagem.

    Assistncia pedaggico-didtica direta e assessoramento aosprofessores, por meio de observao de aulas, entrevistas, reu-nies de trabalho conjunto entre os professores, atividades depesquisa etc.

    Suporte nas prticas de organizao e gesto, implicando exer-ccio de liderana, criao e desenvolvimento de ambiente detrabalho cooperativo, gesto das relaes interpessoais, aes dedesenvolvimento pessoal e profissional dos professores.

    Criao e coordenao de estrutura de apoio direto a alunoscom dificuldades transitrias nas aprendizagens de leitura, es-crita e clculo, para alm do tempo letivo, e organizao doatendimento a alunos com necessidades educativas especiais.

    Aes de integrao dos alunos na vida da escola e da sala deaula, bem como trabalho com as famlias e a comunidade, re-querendo-se a compreenso e anlise dos aspectos sociocul-turais e institucionais que impregnam a escola.

    Acompanhamento e avaliao do desenvolvimento do projetopedaggico-curricular e dos planos de ensino, da atuao docorpo docente, da aprendizagem dos alunos.

    Intelectuais e militantes do campo educacional que efetivamenteconhecem o cotidiano das escolas compreendero muito bem que a pre-

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    parao para essas tarefas no se viabiliza com uma ou duas disciplinas.Ao contrrio, requer formao especfica, num curso de bacharelado, in-dependentemente de experincia docente prvia, j que as interfaces en-tre profissionais-especialistas e profissionais docentes dar-se-o no emba-te prtico das situaes concretas.

    A quinta conseqncia refere-se secundarizao da organizao egesto nas escolas em decorrncia da destinao do curso de pedagogiaexclusivamente para a formao de professores. A organizao e gesto dasescolas no pode ser um trabalho improvisado, pois ela requisito pararealizar os objetivos da escola. Pesquisas que buscam saber que caracters-ticas distinguem uma escola, quanto ao nvel da qualidade de ensino,mostram que o modo como a escola funciona suas prticas de organi-zao e gesto, a capacidade de liderana dos dirigentes, a assistncia aosprofessores e alunos, a consistncia do projeto pedaggico-curricular, asoportunidades de reflexo e trocas de experincias entre os professores,um currculo bem estruturado e bem coordenado faz diferena comrelao aos resultados escolares dos alunos. So razes suficientes para sevalorizar a formao especfica de diretores de escola e coordenadores pe-daggicos, em funo da ajuda que podem dar aos professores e melhoria da aprendizagem dos alunos. Escreve Paro:

    Se estamos convencidos de que a maneira de a escola contribuir para atransformao social o alcance de seus fins especificamente educacio-nais, precisamos dot-la de racionalidade interna necessria efetivaodesses fins (...). A administrao escolar precisa saber buscar, na naturezaprpria da escola e dos objetivos que ela persegue, os princpios, os m-todos e as tcnicas adequadas ao incremento de sua racionalidade. (Paro,1986, p. 136)

    Conseqncias para o funcionamento das escolas

    As consideraes que vimos fazendo objetivam mostrar que o siste-ma de formao de educadores como um todo, as polticas, as diretrizese a legislao precisam estar a servio da elevao do nvel de qualidadedas escolas. Os problemas da formao profissional de educadores no Bra-sil so institucionais, histricos, legais etc., mas eles resultam de uma pro-blemtica que est em outro lugar: no mundo real e concreto das es-colas, situadas, por sua vez, num mundo em mudana. As pesquisas quetratam da formao profissional revelam uma ferida aberta que o

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    descompasso entre a definio de dispositivos legais e a realidade cotidia-na das escolas. Todos sabem que a escola no Brasil padece de muitas ca-rncias e de muitos problemas crnicos que contribuem para o rebaixa-mento da qualidade do ensino pobreza das famlias, baixo salrio dosprofessores, desvalorizao social da profisso de professor, precrias con-dies fsicas e materiais das escolas, repetncia, defasagem idade-srie es-colar, dificuldades de aprendizagem dos alunos. Constata-se que boa par-te do professorado no tem domnio de contedos e de metodologias,falta-lhes cultura geral de base, tm notrias dificuldades de leitura e pro-duo de textos, esto despreparados para lidar com a diversidade sociale cultural e com problemas tpicos da realidade social de hoje como aviolncia, a influncia das mdias, a indisciplina. So conhecidos tambmoutros fatores que intervm negativamente no trabalho da sala de aulacomo a desmotivao, a rotatividade, o absentesmo e o estresse de pro-fessores. Junto com isso tudo, notria a fragilidade das formas de orga-nizao e gesto da escola, que tornam ainda mais difceis as aes efeti-vas em vista de uma escola e de um ensino de qualidade.

    H outras incidncias do contexto sociocultural em que se situamas escolas, tais como as mudanas no mundo do trabalho, da poltica, datica das relaes sociais. A intensificao da urbanizao e a complexi-ficao da vida na cidade ampliam as responsabilidades da escola na for-mao da cidadania. A democratizao do acesso escolarizao, a mi-grao interna associada expanso urbana desordenada, resultando nadiversidade social e cultural dentro da escola, tornando heterogneas asnecessidades individuais e sociais a atender. Os influxos da sociedade dainformao, em especial dos meios de comunicao, produzem mudan-as comportamentais na juventude e afetam as formas de aprender. Sodesafios de um mundo em mudana que atingem diretamente as escolase o trabalho dos professores.

    No a reformulao legal do curso de pedagogia que trar a solu-o para esses problemas. Todavia, parte das confuses da legislao e dasdificuldades em se obter consenso sobre os formatos curriculares decorreda falta de sensibilidade problemtica que atinge as escolas. Pesquisa-dores, intelectuais, legisladores talvez no estejam sabendo vincular as po-lticas de formao de professores s polticas para a escola e para a apren-dizagem dos alunos, e uma das razes disso est no seu distanciamentodas questes concretas que envolvem o funcionamento da escola e o tra-balho dos professores (cf. Libneo, Oliveira & Toschi, 2005). possvel,

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    ento, que o discurso em defesa da docncia como base para o currculode formao de todos os profissionais da educao e a eliminao das ha-bilitaes tenha prescindido da prtica. Foi to necessrio politicamentedefend-lo, para sustentar a mstica de um movimento, que mais umavez a realidade foi punida por no estar de acordo com a teoria. Tem fal-tado, portanto, no debate sobre a formao de educadores e os lugaresdessa formao, uma fidelidade maior realidade, prtica, quilo queefetivamente acontece nas escolas. As idias no so simplesmente pro-dutos de outras idias, mas so provocadas ou alteradas pela experinciamaterial, pela prova da prtica.

    Os desafios postos pela realidade social precisam ser assumidospelas escolas e pelos professores. Porm, para fortalecer a escola e os pro-fessores so necessrios, tambm, os pedagogos-especialistas, com for-mao especfica. certo que a melhoria do ensino e do trabalho dosprofessores no depende somente da formao de pedagogos-especialis-tas, mas estes profissionais podem proporcionar s escolas uma ajudainestimvel para pensar e atuar com relao definio de objetivos so-ciais e culturais para a escola, capacidades a formar, competncias e ha-bilidades cognitivas, formatos curriculares, metodologias de ensino, pr-ticas de organizao e gesto na escola, nveis de desempenho escolaresperados dos alunos.

    Uma base terico-crtica para uma pedagogia engajada nos pro-blemas reais

    A realidade atual mostra um mundo ao mesmo tempo homog-neo e heterogneo, num processo de globalizao e individualizao,afetando sentidos e significados de indivduos e grupos, criando mlti-plas culturas, mltiplas relaes, mltiplos sujeitos. Se, de um lado, apedagogia centra suas preocupaes na explicitao de seu objeto, diri-gindo-se ao esclarecimento intencional do fenmeno do qual se ocupa,por outro, esse objeto requer ser pensado na sua complexidade.

    Os educadores, tanto os que se dedicam pesquisa quanto os en-volvidos diretamente na atividade docente, enfrentam uma realidadeeducativa imersa em perplexidades, crises, incertezas, presses sociais eeconmicas, relativismo moral, dissolues de crenas e utopias. Pede-se muito da educao em todas as classes, grupos e segmentos sociais,

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    mas h cada vez mais dissonncias, divergncias, numa variedade imensade diagnsticos, posicionamentos e solues. Talvez a ressonncia maisproblemtica disso se d na sala de aula, onde decises precisam ser to-madas e aes imediatas e pontuais precisam ser efetivadas visando a pro-mover mudanas qualitativas no desenvolvimento e na aprendizagem dossujeitos. Pensar e atuar no campo da educao, como atividade social pr-tica de humanizao das pessoas, implica a responsabilidade social e ti-ca de dizer no apenas por que fazer, mas o qu e como fazer. Isso envol-ve necessariamente uma tomada de posio pela pedagogia, na qualidadede dispositivo terico e prtico de viabilizao das prticas educativas.

    O sentido do pedaggico

    intrnseco ao ato educativo seu carter de mediao no desenvol-vimento dos indivduos no interior da dinmica sociocultural de seu gru-po, sendo o contedo dessa mediao a cultura que vai se convertendo empatrimnio do ser humano, isto , os saberes e modos de ao. Trata-se,pois, de entender a educao como assimilao e reconstruo da cultura ea pedagogia como prtica cultural, forma de trabalho cultural, que envolveuma prtica intencional de produo e internalizao de significados paraa constituio da subjetividade. A pedagogia, justamente, opera, viabilizaessa mediao cultural por meio de vrias instituies, agentes e modalida-des, entre elas a educao escolar. Para isso, define objetivos, finalidades,formas de interveno, pelo que d uma direo de sentido, um rumo, aoprocesso educacional, tendo em vista a atuao dos educandos em uma so-ciedade concreta (Libneo, 2003).

    disto que trata a pedagogia: a mediao de saberes e modos deagir que promovam mudanas qualitativas no desenvolvimento e naaprendizagem das pessoas, objetivando ajud-las a se constituremcomo sujeitos, a melhorarem sua capacidade de ao e suas competn-cias para viver e agir na sociedade e na comunidade. Desse modo, todoprofissional que lida com a formao de sujeitos, seja em instituiesde ensino, seja em outro lugar, um pedagogo. Entretanto, na realida-de brasileira, as instituies de ensino formal ganham destacada impor-tncia, razo pela qual crucial saber o que a pedagogia pode fazer pe-las escolas e pelos professores. Muitas condies precisam ser atendidascom relao aos nveis de desenvolvimento e aprendizagem dos alunos, seleo e organizao dos contedos, s formas de estimulao e mo-

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    tivao, ao espao fsico e ambiental, s formas de organizao e gestoda escola e da sala de aula, aos instrumentos de avaliao da aprendiza-gem, aos meios de reduo de dificuldades de aprendizagem etc.

    Que fique claro: um professor tambm um pedagogo e o me-lhor que pode fazer formar, criar e constituir sua prpria pedagogia.A formao permanente do professorado requer uma pedagogia crticaengajada, uma pedagogia que possibilite a compreenso terica dosproblemas, as instrumentalidades de ao docente e a efetiva soluodos graves problemas que atingem o sistema de ensino brasileiro.

    A formao inicial e continuada requer dos professores uma teo-ria capaz de faz-los compreender sua prtica e revitaliz-la, o domniode contedos e de processos formativos, o desenvolvimento de convic-es e atitudes, pelos quais se tornam habilitados a ajudar os alunosem suas aprendizagens. Isso significa fazer pedagogia, ter uma pedago-gia. O que se espera de um professor que, pelos conhecimentos queadquire e pela preparao para a atividade docente prtica, v forman-do um pensamento pedaggico e um modo de agir pedaggico prpri-os. Conforme Franco (2006, p. 27), os saberes da pedagogia podemtornar melhores os professores: O professor que puder construir umanova profissionalidade pedaggica ter mais condies de engajar-secritica e criativamente em seu coletivo profissional e reinventar assimas negociaes polticas de seu ser e estar na profisso.

    Nenhum investigador e nenhum educador prtico podero, pois,evadir-se da pedagogia, pois o que fazemos quando intentamos educarpessoas efetivar prticas pedaggicas que iro constituir sujeitos eidentidades. Um posicionamento pedaggico requer uma investigaodas condies escolares atuais de formao das subjetividades e identi-dades para verificar onde esto as reais explicaes do sentimento defracasso, de mediocridade, de incompetncia, que vai tomando contado alunado. No haver mudanas efetivas enquanto a elite intelectualdo campo cientfico da educao e os educadores profissionais no re-conhecerem algo muito simples: escola existe para formar sujeitos pre-parados para sobreviver nesta sociedade; para isso precisam da cincia,da cultura, da arte, precisam saber coisas, saber resolver dilemas, terautonomia e responsabilidade, saber dos seus direitos e deveres, cons-truir sua dignidade humana, ter uma auto-imagem positiva, desenvol-ver capacidades cognitivas para apropriar-se criticamente dos benefci-os da cincia e da tecnologia em favor do seu trabalho, da sua vida

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    cotidiana, do seu crescimento pessoal. Por isso, no suficiente, quandofalamos em prticas escolares, a anlise globalizante do problemaeducativo, nem basta apenas uma viso poltica. Aos aspectos externosque explicitam fatores determinantes da realidade escolar necessrioagregar os meios educativos, os instrumentos de mediao que so os dis-positivos e mtodos de educao e ensino, ou seja, a didtica, para osquais se necessita do aporte de outros campos de saberes.

    As dimenses de abordagem da pedagogia

    O desenvolvimento terico da pedagogia desde a segunda metadedo sculo XIX, especialmente na Alemanha, mas com repercusso emoutros pases europeus, assegura a validez de se atribuir a ela um sentidoamplo de cincia da educao, ou seja, um campo de conhecimentosque trata da teoria e da prtica da educao e da formao, no restritoao mbito da instruo escolar. Esta afirmao de modo algum vemobscurecer o esforo quase natural dos educadores que buscam a apli-cao de uma pedagogia escola; apenas quer acentuar que a reflexopedaggica ultrapassa uma dimenso apenas metodolgica ou metdi-ca do fazer as coisas na direo do pens-las. Faz-se a crtica subsunoda pedagogia pela docncia em razo de que a pedagogia que traz osprincpios de referncia, sempre reavaliados em face de realidades con-cretas,8 em busca de certos critrios de conduo da ao na qual seengajam os ensinantes e seus formadores, algo que Durkheim (1967)j havia chamado de teoria prtica, expresso tambm utilizada porSuchodolski (1977, p. 27). A pedagogia representa, com relao aosmodos de educar e formar, incluindo o ensino, como que um progra-ma de ao, depois que j foi recolhendo no seu desenvolvimento his-trico tantas idias e experincias, tanta arte e cincia, tanta experien-ciao e reexperienciao. Pedagogia, ento, nem s uma doutrinaeducacional nem s uma prescrio didtica, ela se mover entre a teoriae a prtica, pois que educar e ensinar sempre esto a requerer, ao mesmotempo, um projeto que encarna um ideal do humano e da sociedade de-sejada e um modo de realiz-lo com o outro, seja a criana, o adulto, oaluno, o profissional. Este posicionamento sobre a pedagogia o inc-modo necessrio aos professores mais tendentes ao fazer prtico, paraque a ao docente no perca sua intencionalidade, seus propsitos ti-cos e edificantes, a considerao s caractersticas individuais, sociais e

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    culturais dos alunos. Ou seja, a pedagogia a educao que se pensa e sefaz, com legitimidade para dizer o que melhor fazer quando se educa.Suchodolski escreve que a pedagogia, como cincia terica, investiga os fa-tores modeladores do homem em seu desenvolvimento histrico, isto , porque os indivduos so concretamente o que so e quais so as possibilida-des de modific-los; como cincia prtica, busca as diretrizes sobre comotransformar os indivduos com base na experincia da humanidade e nasnecessidades presentes. E conclui: S por meio da compreenso de comose formam os indivduos podemos adquirir os conhecimentos indispen-sveis para a atividade prtica neste aspecto, (...) criando uma teoria pr-tica e uma prtica terica (...) (1977, p. 27).

    Sem um programa de ao, sem uma direo de sentido da do-cncia, sem uma teoria prtica orientadora, um professor ter dificulda-de de dizer em razo de que faz uma exigncia ao aluno, atribui umanota, aprova ou desaprova uma conduta.

    Essa compreenso ampla da pedagogia permite, tambm, distin-guir trs dimenses de sua abordagem: a epistemolgica, a dos saberesprticos e a dos saberes disciplinares.9 Trata-se, obviamente, de distin-es teis para anlise e explicitao dos elementos contidos na nature-za da pedagogia.

    A dimenso epistemolgica constri-se pela reflexo crtica sobre oexerccio das prticas e das intencionalidades que impregnam as aes pe-daggicas cotidianas, num processo contnuo de auto-esclarecimento, co-locando a ao pedaggica sob a responsabilidade crtica. A dimenso pr-tica o modo de agir pedaggico articulando saberes e fazeres, isto , ossaberes pedaggicos constitui-se no campo tensional entre o conheci-mento educacional, os saberes da prtica e as solicitaes advindas dasnovas intencionalidades que vo se organizando em processo. Por sua vez,a dimenso disciplinar consolida-se quase que como uma sntese, a partirdos saberes tornados inteligveis pelo exerccio da cincia pedaggica so-bre as prticas, dos saberes tericos constitudos na tradio investigativae das exigncias postas pela sociedade com relao a propsitos formativosdos sujeitos.

    H de se convir que essas dimenses, apesar de conectadas entre si,nem sempre esto em perfeita sintonia, j que procedem de diferentes l-gicas, em tempos diversos e com diferentes intencionalidades. sabido,por exemplo, como polticas curriculares acabam atendo-se exclusivamente

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    aos saberes prticos, desconhecendo a dimenso epistemolgica de umcampo cientfico, ou de como saberes tericos podem no se transformar,necessariamente, em saberes prticos ou mesmo em matrias de ensino. Pi-menta (1999) afirma que os saberes sobre a educao e sobre a pedagogiano geram os saberes pedaggicos. Estes s se constituem a partir da prti-ca que os confronta e os reelabora. Mas os saberes sobre a educao e sobrea pedagogia tambm no so gerados s com o saber da prtica.

    A pedagogia, integrando as trs dimenses mencionadas, poderpreocupar-se com as possibilidades de construo de teorias a partir daprtica, criando estratgias didticas e investigativas que auxiliaro nacomposio de possveis saberes pedaggicos, que podero servir deapoio para a compreenso e a transformao das prticas, em aes cr-ticas, realizadas pelos prprios docentes.

    V-se que h muita coisa a considerar quando se trata de pensar aformao de educadores, seja na pesquisa, seja na docncia, seja na legis-lao. Desconsiderada em sua dimenso epistemolgica, que define seucampo cientfico e profissional, a pedagogia acaba por ser reduzida di-menso metodolgica e procedimental, o que tambm dificulta a com-preenso e a construo da identidade profissional do pedagogo, seja eleprofessor ou especialista. Desprovida de contedos prprios e de mto-dos prprios de produo de saberes, a pedagogia facilmente se converteem tecnologia, em modo de fazer, em fazeres prticos. A capacidade dearticular o aparato terico-prtico, de mobiliz-lo na condio presente,de organizar novos saberes a partir da prtica, essas capacidades em con-junto estruturam aquilo que chamamos de saberes pedaggicos, suportesdos saberes disciplinares. Sendo assim, o curso de pedagogia constitui onico curso de graduao cuja especificidade proceder anlise crticae contextualizada da educao e do ensino na qualidade de prxis social,formando o profissional pedagogo, com formao terica, cientfica, ticae tcnica com vistas ao aprofundamento na teoria pedaggica, na pesqui-sa educacional e no exerccio de atividades pedaggicas especficas.

    Uma legislao mais conseqente para a formao de educadores emcursos de pedagogia e cursos de formao de professores

    Um documento sobre Diretrizes Curriculares Nacionais para oscursos de graduao em pedagogia deveria regulamentar a formao depedagogos-especialistas por meio de estudos tericos da pedagogia, pre-

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    parao para investigao cientfica e para o exerccio profissional no sis-tema de ensino, nas escolas e em outras instituies educacionais, inclu-indo as no-escolares. Em seu exerccio profissional, o pedagogo deve es-tar habilitado a desempenhar atividades relativas a: formulao e gestode polticas educacionais; avaliao e formulao de currculos e de pol-ticas curriculares; organizao e gesto de sistemas e de unidades escola-res; planejamento, coordenao, execuo e avaliao de programas e pro-jetos educacionais para diferentes faixas etrias; formulao e gesto deexperincias educacionais; coordenao pedaggica e assessoria didtica aprofessores e alunos em situaes de ensino e aprendizagem; coordena-o de atividades de estgios profissionais em ambientes diversos; avalia-o e desenvolvimento de prticas avaliativas no mbito institucional enos processos de ensino e aprendizagem em vrios contextos de forma-o; produo e difuso de conhecimento cientfico e tecnolgico docampo educacional; formulao e coordenao de programas e processosde formao contnua e desenvolvimento profissional de professores emambientes escolares e no-escolares; produo e otimizao de projetosdestinados educao a distncia e a mdias educativas como vdeos eoutras; desenvolvimento cultural e artstico para vrias faixas etrias.

    Em ligao direta com esse curso especfico de pedagogia, os cur-sos destinados formao de professores para a educao bsica tambmdevem ser oferecidos nas faculdades de educao, entendendo ser o ma-gistrio indubitavelmente uma atividade pedaggica. Entretanto, essescursos j esto regulamentados pelas Resolues n. 1 e 2/2002 do CNE,atendendo ao artigo 62 da Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacio-nal (Lei n. 9.393/96). So dois cursos na mesma instituio, articuladosentre si, porm com uma estrutura curricular distinta.

    As faculdades de educao podero oferecer outras modalidadesde cursos de especializao ou aperfeioamento para professores das re-des pblicas e privadas de ensino. Devem criar um espao institucionalque assegure a presena de professores das escolas pblicas em cursos eeventos formativos, possibilitando a relao teoria e prtica para os pro-fessores em exerccio e para os alunos da formao inicial, como formade ajud-los na iniciao aprendizagem da profisso docente.

    Os termos da legislao aqui proposta atribuiriam ao curso depedagogia as seguintes caractersticas:

    A formao dos profissionais da educao para atuao na edu-cao bsica e em outras instncias de prtica educativa, far-se-

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    exclusivamente em faculdades de educao, que oferecerocurso de pedagogia desdobrado em bacharelado em pedagogiae em cursos de licenciatura.

    O bacharelado em pedagogia destina-se formao de profissi-onais de educao no-docentes voltados para os estudos teri-cos da pedagogia e o exerccio profissional no sistema de ensi-no, nas escolas e em outras instituies educacionais, inclusiveno-escolares, conforme habilitaes a definir.

    Os cursos de licenciatura destinam-se formao de professo-res para a educao infantil e as sries iniciais do ensino funda-mental, e, em mdio prazo, para toda a educao bsica.

    Tanto o bacharelado em pedagogia quanto os cursos de licencia-tura podero oferecer, ao final do curso, habilitaes conexas, ten-do em vista favorecer modalidades flexveis de formao confor-me necessidades detectadas no mbito do funcionamento internodas escolas e de outras instituies educacionais no-escolares.

    So previstas, no interior da faculdade de pedagogia, modalidades di-versas de formao continuada, promovendo alternncia entre a formaoinicial e a formao profissional contnua, envolvendo alunos dos cursos eprofessores das redes de ensino. Um centro de formao continuada comessas caractersticas desenvolveria, em carter sistemtico, assistncia peda-ggico-didtica aos professores das redes de ensino, coordenao de ativida-des de estgio, estrutura de apoio didtico e tecnolgico (vdeo, cinema,internet, uso de computadores, equipamentos de som e imagem), bibliote-ca e centro de documentao disposio de professores e alunos, oficinas,exposies e feiras, publicao de peridicos de cunho pedaggico-didtico.

    Com esse entendimento, somente faz sentido existir uma faculda-de de educao (faculdade de pedagogia) se ela tiver, tambm, o cursode pedagogia voltado aos estudos especficos da cincia pedaggica, para,entre outras habilitaes, formar pedagogos-especialistas para a escola. E, claro, que forme tambm professores para a educao infantil e o ensi-no fundamental e para toda a educao bsica. O curso de pedagogia ofe-recer, portanto, trs habilitaes: bacharelado em pedagogia, licenciatu-ra em educao infantil e licenciatura em anos iniciais do ensinofundamental. E, quando a formao de professores for levada ainda maisa srio, que na faculdade de pedagogia sejam oferecidas todas as licencia-turas da educao bsica.

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    Este posicionamento torna explcita a integrao das trs dimen-ses da pedagogia. Sua epistemologia, fundada na tradio terica e nossaberes da prtica, funde-se com as condies histricas atuais, para for-necer os elementos de elaborao da legislao, particularmente das Di-retrizes Curriculares Nacionais para os cursos de pedagogia. esse cami-nho que poderia abrir espaos polticos e institucionais para a retiradado pedagogo do limbo profissional e identitrio em que se encontra e desua falsa e inconsistente identificao como professor. Com efeito, o esfa-celamento dos estudos no mbito da cincia pedaggica, com a conse-qente subsuno do especialista no docente, e a improcedente identifi-cao dos estudos pedaggicos com uma licenciatura talvez sejam doisdos mais expressivos equvocos tericos e operacionais da legislao, her-dados dos movimentos de reformulao dos cursos de formao do edu-cador, no que se refere formao do pedagogo.

    O posicionamento que nos move a crena no poder social e polti-co da escola, tendo como base o direito de todos, em condies iguais deoportunidades de acesso aos bens culturais, ao desenvolvimento das capa-cidades individuais e sociais, formao da cidadania, conquista da dig-nidade humana e da liberdade intelectual e poltica, enfim, das justas li-berdades. Este um trabalho para professores e para pedagogos-especialistas,e nessa direo que os cursos de formao precisam caminhar.

    Recebido e aprovado em agosto de 2006.

    Notas

    1. inteiramente oportuna e lcida a declarao de voto do conselheiro Francisco Cordo,contrria redao do artigo 14 da Resoluo do CNE onde se l: O prembulo do Projetode Resoluo anexo ao Parecer CNE/CP n. 5/2005 claramente define que este regulamenta oart. 62 da LDB, isto , formao de docentes em cursos de licenciatura para atuar na Educa-o Bsica. O referido Parecer no disciplina o art. 64 da LDB, que trata da formao de ou-tros profissionais de educao que no os professores. (...) Julgo muito mais adequada,para contemplar as preocupaes, em relao ao art. 64 da LDB, a supresso pura e simplesdo referido art. 14 do Projeto de Resoluo anexo ao Parecer CNE/CP n. 5/2005. A emendaretificativa proposta pela Comisso Bicameral de Formao de Professores transforma ocurso de pedagogia em um curso genrico e desfigurado, sem condies de contribuirefetivamente tanto para a valorizao dos professores e da sua formao inicial quanto parao aprimoramento da Educao Bsica no Brasil.

    2. Cf. captulo III da obra Pedagogia e pedagogos, para qu?, de Jos Carlos Libneo, Cortez,1998 (2005).

    3. Registre-se, para ilustrao, que uma Comisso de Especialistas de ensino de pedagogia, em1995, traduzindo as idias da ANFOPE, assim define o pedagogo: Profissional habilitado a

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    atuar no ensino, na organizao e na gesto de sistemas, unidades e projetos educacionais ena produo e difuso do conhecimento, em diversas reas da educao, tendo a docnciacomo base obrigatria de sua formao e identidade profissionais.

    4. Por exemplo, o curso de pedagogia, da Faculdade de Educao da Universidade Federal deGois, conforme Resoluo CCEP n. 207/1984, estabelece em seu artigo 1: O curso de gra-duao em pedagogia, que conferir o grau de Licenciado, destina-se formao de professo-res para o ensino das matrias pedaggicas no 2 grau e para o exerccio do magistrio nassries iniciais do ensino de 1 grau.

    5. No demais reiterar que considero inadequada a expresso pedagogo para designar o pro-fessor, e apenas o professor, institucionalizando equivocadamente a designao de pedagogo aoprofissional formado no curso definido pela Resoluo.

    6. Cumpre registrar que, desde o incio dos debates promovidos pelo MEC e por associaes in-dependentes de educadores, por volta de 1980, sobre a reformulao dos cursos de pedagogia,os documentos dos educadores, a par de entender a natureza do curso como formao do pro-fessor, tambm o analisam e discutem como espao de permanente reflexo crtica, tendo umafuno terica de transmisso, crtica e construo de conhecimento sobre a cincia da educa-o, a importncia da pedagogia para as demais licenciaturas e a pertinncia da discusso so-bre as habilitaes (II Encontro Nacional, CONARCFE, 1986; IV Encontro, Documento Final,CONARCFE, 1989). Entretanto, o cunho pedaggico-cientfico das discusses foi se perdendo apartir dos anos de 1990. Com efeito, mesmo reconhecendo o papel destacado das associaesde educadores, especialmente aps a criao da Comisso Nacional pela Reformulao dos Cur-sos de Formao do Educador, na discusso poltica da formao expressa em temas como a de-fesa da autonomia universitria, a gratuidade do ensino, a democratizao dos rgos decisriosdo MEC, a democratizao das formas de gesto, a ampliao de recursos financeiros para a edu-cao, no se pode dizer que tiveram xito com relao consolidao da base comum nacional,da consolidao legal das recomendaes pedaggicas e curriculares, da efetiva institucionalizaodas mudanas pretendidas no sistema de ensino sobre uma poltica unitria de formao deeducadores e da melhoria qualitativa da formao nos cursos de pedagogia.

    7. Movo-me nesta argumentao com a apropriao livre de algumas idias de Paro, 1986.

    8. Suchodolski escreve que a pedagogia a cincia que investiga a realidade educacional mutvel,o que significa que o objeto de suas investigaes historicamente mutvel (1977, p. 12).

    9. As idias expressas a seguir foram baseadas em texto ainda no publicado, no qual so apre-sentadas essas trs abordagens da pedagogia (Franco, Libneo & Pimenta, 2006).

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