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    UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

    INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E FILOSOFIA

    DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA

    MESTRADO EM PSICOLOGIA

    Polticas da Narrativa. Resduos da Experincia

    Raphael Vaz Rocha

    Orientador: Prof. Dr. Marcelo Santana Ferreira

    Niteri, dezembro de 2014

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    Polticas da Narrativa. Resduos da ExperinciaRaphael Vaz RochaDissertao de Mestrado do Programa de PsGraduao em Psicologia do departamento dePsicologia da Universidade Federal

    Fluminense.

    __________________________________________________________

    Prof. Dr. Marcelo Santana Ferreira (orientador)

    __________________________________________________________

    Profa. Dra. Analice Palombini (UFRGS)

    __________________________________________________________

    Prof. Dr. Luis Antnio Baptista (UFF)

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    Agradecimentos

    Ao Davi, Franco, Maria Liberacy, Jaciara, Maria de Lourdes, Georgina, Arlindo,

    Roberto, Ricardo, Flvio e Arquibaldo, pela coautoria desta pesquisa.

    Ao Romeo que me fez reaprender a dar risadas.

    Cris pelas pequenas revolues desde que a conheci em Paracambi.

    Universidade Federal Fluminense pela acolhida.

    Fundao Capes pelo financiamento desta pesquisa

    Ao professor Marcelo pelo seu testemunho do processo.

    Ao professor Luis Antnio por compartilhar o caminho do seu pensamento e pela

    coragem das suas palavras.

    professora Analice, um bom encontro.

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    Sumrio

    Apresentao ...........................................................................................................7

    Um..........................................................................................................................13

    Dois.........................................................................................................................20

    Trs.........................................................................................................................24

    Quatro.....................................................................................................................24

    Cinco.......................................................................................................................28

    Seis.........................................................................................................................30

    Sete.........................................................................................................................30

    Oito.........................................................................................................................34

    Nove........................................................................................................................37Dez..........................................................................................................................40

    Onze.......................................................................................................................44

    Doze........................................................................................................................47

    Treze.......................................................................................................................50

    Quatorze.................................................................................................................51

    Concluso...............................................................................................................53

    Bibliografia..............................................................................................................57

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    Resumo

    As famlias de um condomnio em Jacarepagu (RJ), estavam resistentes

    quanto chegada de quatro mulheres egressas do manicmio. A posio das

    famlias que moravam no prdio era coerente ao imaginrio popular sobre a loucura,

    ocupado pelo sentido da violncia. Apesar disso, o cotidiano produziu caminhos que

    desacomodaram a experincia confinada em seu sentido.

    Havia chegado o dia da mudana e, no porto do condomnio, o caminho

    de moblia pedia passagem. O sndico do prdio estava de prontido e no teve

    dvidas: colocou-se em frente ao caminho, proibindo o acesso da loucura. O que

    poderia acontecer ao condomnio de classe mdia com a circulao das pacientes?

    Ao percorrer as casas ocupadas pelos egressos de internao psiquitrica opsiclogo deparou-se com a seguinte questo: Como traduzir as experincias, de

    forma que se possa explicitar aquilo que foi vivido?

    Palavras-chaves:narrativas, desinstitucionalizao, loucura, Walter Benjamin

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    Muitos signos so emitidos sem que jamais sejam decifrados. O que existe

    muito mais o trabalho de travessia, de prova, de escuta, de explorao tateante de

    um imenso territrio desconhecido.

    Proust

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    Apresentao

    Alguns anos depois de concludo o curso universitrio, os caminhos do

    psiclogo se encontram aos de homens e mulheres, egressos de internao

    psiquitrica. Entre os anos de 2008 e 2012, havia participado do processo de

    desinstitucionalizao dos manicmios Casa de Sade Doutor Eiras (Paracambi-

    RJ) e Colnia Juliano Moreira (Rio de Janeiro-RJ). Dessa convivncia proliferam

    imagens, gestos, texturas, fotografias e histrias. O desejo de escrever foi se

    engendrando lentamente, como possibilidade de articulao deste conjunto variado

    e disperso; e como tentativa de composio de um texto que pudesse dialogar com

    este acmulo.

    Mas, como traduzir esses acontecimentos?As referncias bibliogrficas utilizadas para abordar a discusso metodolgica

    so anunciadas no captulo um. Durante a maior parte do texto, o leitor encontrar

    citaes de Walter Benjamin, devido aproximao entre as questes formuladas

    pela pesquisa e o pensamento do filsofo alemo. Em especial, buscamos conhecer

    e apropriarmo-nos da posio crtica do autor, em relao produo do sujeito e

    do objeto do conhecimento, assim como, da discusso, a respeito da transmisso

    da histria.

    A importncia de uma pesquisa que se ocupa dos resduos da experincia

    com a loucuraconsiste em sua articulao com o campo da tica e da esttica,

    naquilo que entendemos como uma perspectiva de provocao da alteridade e da

    visibilidade. Isto dito, considerando o isolamento da loucura devido s prticas de

    internao psiquitrica, que no cessaram com o fechamento dos manicmios, pois

    o isolamento tambm est relacionado hegemonia do saber cientfico, em

    detrimento dos saberes e tradies populares. medida que a pesquisa rene

    imagens da loucura, captadas a partir de cenas triviais, e re-significa essas imagens,

    atravs das narrativas, o que a pesquisa vislumbra a abertura de novos sentidos

    e a possibilidade de um reposicionamento tico, diante desta alteridade

    interrompida pelo isolamento.

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    No decorrer do texto, deparamo-nos com imagens que fazem proliferar novos

    sentidos para as experincias aprisionadas no cotidiano. A este respeito, fazemos

    referncia, no captulo sete, s meninas da Colniano prdio de classe mdia em

    Jacarepagu; e no captulo oito, imagem do caminhante diante do desconhecido

    na estao de trem Central do Brasil.

    Neste sentido, possvel dizermos que existe uma relao de proximidade

    entre a pesquisa e o trabalho do fotgrafo alemo, August Sander, relatado por

    Benjamin (1994), no ensaio Pequena Histria da fotografia.

    Sander publicou em 1929, um lbum de retratos com rostos humanos

    representando todas as camadas sociais - do campons ao homem ligado a terra.

    A rigor, no se tratava de um trabalho artstico, como, via de regra, era cultivado

    pelos fotgrafos de sua poca; mas, eminentemente, um trabalho poltico, nosentido, de conduzir o observador - pequeno burgus - a olhar para fora de si.

    Numa sociedade que procura reconhecer-se, em tudo que v; e que desde

    cedo aprendeu a admirar a imagem que reflete no espelho, mais do que a prpria

    obra de arte, o mrito do trabalho de Sander consiste nesta tentativa de provocar o

    reconhecimento da alteridade.

    Em sintonia com a perspectiva de que as fronteiras do eu possam ser

    transtornadas, a pesquisa busca refazer o caminho percorrido por Sander, ou seja,

    atravs das narrativas, atingir a visibilidade capaz de implodir o universo carcerrio

    do cotidiano e dos modelos identitrios.

    Os resduos da experincia com a loucura, de que trata o enunciado da

    pesquisa, consiste no trabalho de rememorao do pesquisador, a respeito do que

    foi vivido com os egressos do manicmio. Trata-se do que ficou de um tempo e um

    espao, por vezes esquecido, por vezes preenchido por formas aparentemente

    secundrias. Ora ocupado por gestos desprovidos de sentido e imagens sem

    contorno, ora por objetos fora de uso, traos biogrficos e lembranas

    involuntrias1.

    Walter Benjamin nos diria, que os fenmenos que so, para alguns, desvios,

    para outros, orientam o percurso(GAGNEBIN, 2011, p.87).

    1Trata-se de uma referncia a Marcel Proust e sua obra Em busca do tempo perdido.

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    A questo dos resduos que orientam o percurso fica mais evidente no decorrer

    da pesquisa, medida que percebemos um modo de olhar movido mais pelas

    sensaes, do que pela identificao de formas existentes.

    Em Rua de mo nica, no aforismo intitulado, Estas plantas so recomendadas

    proteo do pblico,Walter Benjamin dir que o amor se aninha nas rugas do

    rosto2(BENJAMIN, 1995, p.18). A imagem causa-nos espanto, pois, aprendemos a

    procur-lo em outros lugares. Ao dizer que o amor no est l, onde imaginvamos,

    mas refugia-se nas manchas hepticas, roupas gastas e no andar torto; a

    inestimvel contribuio do pensador alemo forjar uma sensibilidade para o

    universo imperceptvel das coisas que se aninhamno cotidiano; deslocando olhares

    e saberes dos seus devidos lugares. Neste sentido, Benjamin se apossa destes

    elementos para a construo de um caminho, na direo da produo doconhecimento.

    Os olhos de Benjamin para as rugas e roupas gastasexpressam a reverncia

    do autor questo do tempo, mais especificamente, a relao que se estabelece

    entre o presente e o passado; fazendo emergir o inacabamento e a vitalidade do

    passado. O aforismo serve-nos de alerta para os riscos do conformismo do olhar

    cristalizado da atualidade (MURICY, 1998).

    2O que solucionado? Todas as questes da vida vivida no ficam para trs, como uma ramagemque nos impedissem a viso? Em desbast-la, em ilumin-la sequer, dificilmente pensamos.Seguimos adiante, a deixamos atrs de ns, e da distncia ela sem dvida abarcvel, masindistinta, sombria e, nessa medida, mais enigmaticamente enredada.Comentrio e traduo esto para o texto assim como estilo e mimese esto para a natureza: omesmo fenmeno sob diferentes modos de considerar. Na rvore do texto sagrado so ambosapenas as folhas eternamente sussurrantes, na rvore do texto profano so os frutos que caem notempo certo.Quem ama no se apega somente aos defeitos da amada, no somente aos tiques e fraquezas deuma mulher; a ele, rugas no rosto e manchas hepticas, roupas gastas e um andar torto prendem

    muito mais duradoura e inexoravelmente que toda beleza. H muito tempo se notou isso. E por qu?Se verdadeira uma teoria que diz que a sensao no se aninha na cabea, que no sentimosuma janela, uma nuvem, uma rvore no crebro, mas sim naquele lugar onde as vemos, assimtambm, no olhar para a amada, estamos fora de ns. Aqui, porm, atormentadamente tensos earrebatados. Ofuscada, a sensao esvoaa como um bando de pssaros no esplendor da mulher.E, assim como os pssaros buscam proteo nos folhosos esconderijos da rvore,refugiam-se assensaes nas sombrias rugas, nos gestos desgraciosos e nas modestas mculas do corpo amado,onde se acocoram em segurana, no esconderijo. E nenhum passante adivinha que exatamenteaqui, no imperfeito, censurvel, aninha-se a emoo amorosa, rpida como uma seta, do adorador(BENJAMIN, 1995, p.18).

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    Alinhando esta sensibilidade com a defesa do sentido poltico e epistemolgico

    da produo de narrativas, a pesquisa vai se constituindo de acordo com a abertura

    de espaos de enunciao e audincia de histrias. Ao caminhar pelas ruas com

    Davi, com Franco, com Arlindo e com Liberacy, tornamos-nos testemunhos de

    acontecimentos que no seriam vistos e que no seriam contados; pois o sentido

    atribudo loucura encobre a viso destas imagens. Ao narr-los, o fazemos no

    sentido de compartilharmos estes acontecimentos, que fazem transtornar modos de

    vidas hegemnicos e prescritivos. Fazemo-lo tambm com o intuito de construirmos

    outros sentidos para estas histrias, que ficaram imobilizadas nas pginas dos

    pronturios. Portanto, as narrativas despontam como uma sada tica para a

    elaborao de outra poltica de pesquisa, que no sucumba informao e

    tcnica.Quando referimo-nos ao testemunho, o fazemos a partir de Jeanne Marie

    Gagnebin e sua releitura do sonho de Primo Levi, no campo de extermnio de

    Auschwitz3. Para Gagnebin, o testemunho aquele que no vai embora, mesmo

    diante de uma situao insuportvel (GAGNEBIN, 2006).

    Sobre a importncia da cidade e de caminhar pelas ruas, h de se buscar o

    entendimento, a que servem estas imagens na pesquisa?

    Se nos contos e romances, a descrio minuciosa do espao fsico utilizada

    para justificar a ao que se desenvolver sucessivamente, pode-se dizer que o uso

    paisagstico das imagens percorre o sentido inverso proposta da pesquisa.

    A aposta poltica e epistemolgica que a pesquisa faz na cidade e no ato de

    caminhar pelas ruas est em sua capacidade de produo de alteridade. A respeito

    da heterogeneidade dos fenmenos que nos fazem mover e retirar-nos de um plano

    estvel, apresentamos, no captulo trs, a imagem do cego mascando chicletes, de

    Clarice Lispector (1983), e, no captulo onze, o gesto de Maria Liberacy em direo

    agncia bancria.

    A relao entre o deslocamento da rigidez da identidade e a cidade

    apresentada por Baudelaire, em A perda da aurola, ao descrever um anjo

    3Osonho de Primo Levi e a discusso de Gagnebin sero apresentados no captulo treze.

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    amedrontado com os cavalos e veculos, apressado, saltando pelas poas de lama

    e incgnito dentro de um bar.

    Ora, ora, meu caro! O senhor! Aqui! Em um lugarmal afamado um homem que sorve essncias,

    que se alimenta de ambrosia! De causar assombro,em verdade. Meu caro, sabe do medo que mecausam cavalos e veculos. H pouco estava euatravessando o boulevar com grande pressa, e eisque, ao saltar sobre a lama, em meio a este caosem movimento, onde a morte chega a galope detodos os lados ao mesmo tempo, minha aurola,em um movimento brusco, desliza de minha cabeae cai no lodo do asfalto. No tive coragem deapanh-la. Julguei menos desagradvel perderminhas insgnias do que me deixar quebrar osossos. E agora, ento, disse a mim mesmo, oinfortnio sempre serve para alguma coisa. Possoagora passear incgnito, cometer baixezas eentregar-me s infmias como um simples mortal.Eis-me, pois, aqui, idntico ao senhor, como v! Osenhor deveria ao menos mandar registrar a perdadessa aurola e pedir ao comissrio que arecupere. Por Deus! No! Sinto-me bem aqui.

    Apenas o senhor me reconheceu. De resto,entedia-me a dignidade. Alm disso apraz-me opensamento que um mau poeta qualquer aapanhar e se enfeitar com ela, sem nenhumpudor. Fazer algum ditoso - que felicidade!Sobretudo algum que me far rir! Imagine X ou Y!No, isto ser burlesco! (BENJAMIN, 1994b,p.144).

    ***

    Alguns pressupostos epistemolgicos do movimento surrealista francs4

    sero apresentados, pois exercem influncia sobre a concepo de escrita a que a

    pesquisa se filiou. A filiao a que nos referimos de compartilhamos a crtica

    centralidade e ao predomnio da razo, na produo do conhecimento.

    O surrealismo como paradigma esttico e epistemolgico privilegia a imagem

    em detrimento do conceito, pois atravs das imagens seria possvel abrir caminhos,

    4Em especial, referimo-nos ao Manifesto Surrealista,de Louis Breton (1924) e aos ensaios de WalterBenjamin: Rua de Mo nica (1995),Imagens do Pensamento(1995), Infncia em Berlim(1995) eO Surrealismo (1994a).

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    que conduzam a territrios, onde a razo ainda no consegue transitar(MURICY,

    1993, p.670). a partir de um contexto de preocupao com a forma de exposio

    do pensamento que Walter Benjamin ir declarar: No tenho nada a dizer. Somente

    a mostrar(BENJAMIN apud MURICY, 1993, p.670). Em consonncia com estes

    enunciados, a pesquisa busca atingir e ser atingida pela experincia sensvel, das

    imagens do dia-a-dia. A este respeito, duas imagens so bastante significativas: o

    uniforme do porteiro, no captulo sete e as fotos do Ricardo, no captulo quatorze.

    No campo da escrita, a diluio do sentido implica a produo de textos com

    menos pretenso em explicar, definir e acomodar as coisas nos seus devidos

    lugares. Para Walter Benjamin, a arte do narrador tambm a arte de contar sem

    a preocupao em explicar, reservando aos acontecimentos a sua fora secreta

    (GAGNEBIN, 1982, p.70). Decorre desse pressuposto, a opo metodolgica deincorporar, redao do texto, toda sorte de fenmenos que cruzarem o campo

    perceptivo, em oposio perspectiva de tom-los como o rebotalho da reflexo.

    No posfcio do livro O Campons de Paris, de Louis Aragon (1996), Jeanne Marie

    Gagnebin (1996) dir que a incluso destes fenmenos habitualmente

    negligenciados pelo saber cientfico - pois se constituem como desvioa saber, os

    pensamentos instantneos, os fatos da vida cotidiana, os sonhos, as reminiscncias

    e as lembranas da infncia; so para os surrealistas, vias de acesso privilegiado

    ao conhecimento.

    Um dos pressupostos da critica ao historicismo, na obra de Benjamin

    (1994a), a descontinuidade da histria. Retomado pelos surrealistas, a

    justaposio das diferentes imagens - do presente atravessado pelo passado - ir

    compor um mosaico que incidir sobre a escrita, no sentido de operar uma

    modificao na forma como o pensamento se constitui.

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    Um

    A partir da chamada modernidade5, o progresso cientfico atingiu o seu

    patamar mais elevado: tornou-se a principal matriz do conhecimento e assumiu o

    estatuto de verdade incontestvel. Em consonncia, assistimos a marginalizao e

    o esquecimento dos saberes e tradies populares. Este processo foi se

    prolongando pelo sculo XX, at o desaparecimento da multiplicidade de narrativas.

    Com isto, a hegemonia do saber cientfico encerrou-nos numa nica verso para os

    acontecimentos, e pouca abertura para novas possibilidades de significados. Neste

    sentido, ao referirmo-nos s experincias com a loucura, o fazemos a partir de

    definies previamente ocupadas de sentido.

    Em uma poca em que os fatos j chegam acompanhados de sentido eexplicao (BENJAMIN 1994a), como traduzir as experincias?

    Por traduo, referimo-nos busca pelas palavras que pudessem explicitar a

    travessia entre o que foi vivido - e o que possvel transmitir, daquilo que foi vivido.

    medida que fazemos passar pelo fio da linguagem o universo infinito dos

    afetos, das imagens e dos gestos, muitas vezes o que se materializa

    irreconhecvel do ponto de vista daquilo que seria o sentido pretensamente original.

    Segundo Calvino (1985), a linguagem diz sempre menos que a totalidade do

    experimentvel. Entretanto - diz o autoristo no deve ser motivo para utilizarmos

    a linguagem de modo aproximativo, casual e descuidado(CALVINO, 1985, p.88).

    Italo Calvino apresentou esta discusso aos alunos da Universidade de Cambridge

    (Massachussets, EUA) em 1985, atendendo a uma encomenda para que

    ministrasse um ciclo de seis conferncias. As conferncias pretendiam definir

    alguns valores literrios que mereciam ser preservados no curso do prximo

    milnio. Na conferncia intitulada Exatido, Calvino diz que devemos exigir das

    palavras o esforo para dar conta, com maior preciso possvel, do aspecto sensvel

    das coisas.

    5Por modernidade, referimo-nos dissoluo do carter nico e incomparvel dos fenmenos e significao de cada coisa, fixada pelo preo (DANGELO 2006, p.55).

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    A respeito do que se materializa irreconhecvel, Jeanne Marie Gagnebin diz

    o que se desenrola entre o incio e o fim de uma escrita no nos pertence

    (GAGNEBIN, 2011, p.84). Neste sentido, escrever no diferente de uma viagem,

    avalia a autora, referindo-se s inmeras situaes que surgem e obrigam tomada

    de desvios.

    Ao permitir que uma palavra que tomou de assalto o texto produza um

    descompasso ou imprima um novo ritmo; que uma lembrana inesperada6conduza

    a escrita para outra direo, mesmo reticente deste caminho, o autor, destronado

    de sua autoridade, estar constituindo uma poltica de escrita.

    A experincia de descentralizao da narrativa constitui para a pesquisa uma

    aposta poltica, de fazer reverberar a polifonia da cidade. Diramos tambm que, ao

    retirar o narrador do seu lugar de soberania e autoridade sobre os acontecimentos,estamos recolocando o problema do eu, presente na discusso da filosofia7.

    Portanto, esta posio no se configura apenas como um recurso lingstico ou

    estilstico, mas ir constituir-se como um contraponto ao isolamento do sujeito

    narrativo, eminentemente ocupado com a esfera privada (BENJAMIN, 1994a).

    A produo de um texto marcado pelo rompimento com a linearidade e com a

    temporalidade dos acontecimentos tem, como contraponto, uma tradio de fazer

    pesquisa e produzir conhecimento mantendo a invisibilidade dos distintos

    acontecimentos e aes que atravessam a escrita.

    A dificuldade em narrar aquilo que foi vivido no se limita escolha das

    palavras adequadas, mas, sobretudo, em encontrar algum que esteja disposto a

    escutar. Se as pessoas esto sem tempo para histrias, conforme se costuma

    repetir, parece-nos que a resposta que produzimos foi habituarmo-nos a reduzir o

    tempo de fala e de escuta, a exemplo do que fez a mdia, com a inveno da notcia.

    6Trata-se de uma referncia a infinitude da lembrana, na obra de Marcel Proust.7A compreenso de como se constitui o verdadeiro eu, aparece na formulao Conhece-te a timesmo, que, para Nietzsche est relacionado a uma exterioridade, ou seja, busca peloconhecimento de todas as coisas. Faze repassar sob teus olhos toda a srie de objetos veneradose talvez, pela sua natureza e sucesso, eles te revelem uma lei, a lei fundamental de teu verdadeiroeu: compara esses objetos entre eles, v como (...) formam uma escala graduada que serviu parate elevares ao teu eu(MURICY, 1993, p.665).

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    No devemos contentar-nos com uma nica justificativa para a indisponibilidade de

    escuta, mas, buscarmos tambm o conhecimento de outros fatores.

    Em Experincia e pobreza, Walter Benjamin (1994a) dir, que tornamo-nos

    mais pobres em experincias comunicveis de boca em boca, devido ao

    desenvolvimento da tcnica. Em sintonia com os marxistas, Benjamin previu

    profundas transformaes sociais, a partir da substituio de um modelo coletivo de

    produo pelo modelo que fragmenta a atividade e organiza o trabalho, com base

    no desempenho isolado do indivduo. Isto significa que, na esteira das

    transformaes do trabalho, tambm foi subtrada uma gama de experincias

    compartilhadas, entre elas: ouvir e contar histrias. A respeito do declnio da

    experincia, podemos pens-lo como a liquidao de uma tradio compartilhada

    por uma comunidade humana, tradio retomada e transformada, em cada gerao,na continuidade de uma palavra transmitida de pai para filho(GAGNEBIN, 2006,

    p.50).

    Retomando a questo da dificuldade em encontrar algum que esteja disposto

    a nos escutar, poderamos dizer que o fato das experincias no serem mais vividas

    coletivamente contribui com este desinteresse?

    Parece-nos que sim, contudo, Walter Benjamin nos incita a ir mais longe. Ainda

    que encontrssemos uma pessoa que viesse a se tornar nossa ouvinte, o que

    diramos? Considerando a barbrie imposta aos milhares de soldados, que

    ocuparam as trincheiras da Primeira Guerra; e o extermnio de quatro milhes de

    judeus pelos nazistas nos campos de Auschwitz, o que possvel transmitir?

    Parece-nos que estes acontecimentos produziram um abalo na linguagem e um

    silncio que ainda no fomos capazes de elaborar. Neste sentido, o que se ope

    narrativa o desaparecimento da esperana (GAGNEBIN, 1982).

    ***

    Para Benjamin, ao descrever o que foi vivido importante que a escrita esteja

    vulnervel ao presente, e que as palavras possam transmitir o apelo para que o

    futuro seja diferente (GAGNEBIN, 1982). Nos seus postulados, lamos que a escrita

    da histria deve incluir os relatos das manifestaes da vida humana , e que o

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    intrprete deve se desviar das camadas de sentido com que a tradio o envolveu.

    (GAGNEBIN, 1982, p.64). Benjamin reclamava da falta de reflexo crtica e do

    conformismo daqueles que descreviam a histria universal (GAGNEBIN, 1982).

    Para Benjamin, a escrita da histria no deveria ser uma descrio do

    passado, tal como os acontecimentos se deram. O historiador que busca a

    fidelidade dos acontecimentos, perde a dimenso da histria como superfcie de

    luta, contada sob a perspectiva dos vencedores. Para Benjamin, o principal

    compromisso que devemos assumir com a escrita da histria, fazer emergir as

    esperanas no realizadas desse passado, inscrevendo em nosso presente um

    apelo por um futuro diferente (GAGNEBIN, 1982).

    ***Considerando a questo da traduo da experincia, medida que o

    pesquisador busca as palavras para contar o que viveu, pode-se dizer, tambm,

    que busca a melhor distncia para realizar a narrativa, de forma que o texto consiga

    transmitir a violncia e o susto do acontecimento8.

    No ensaio sobre a obra de Nikolai Leskov9, a questo da distncia entre o

    narrador e a experincia caracterizada pelo enunciado: a transmisso repassada

    de uma pessoa outra, mais rica do que as narrativas escritas (BENJAMIN,

    1994a, p.198). No mesmo ensaio, uma segunda referncia sobre a relao entre a

    narrativa e a distncia. Desta vez sobre aquele que vem de longe: Quem viaja tem

    muito que contar(BENJAMIN, 1994a, p.198).

    Ora mais prximo, de forma que a transmisso pouco se distinga da narrativa

    oral; ora mais distante, a exemplo daquele que encontra uma pegada e supe que

    8Esta definio de narrativa foi apresentada pelo professor Luis Antnio Baptista, no debate

    intitulado A tica do annimo, ocorrido em outubro de 2012 na Casa de CinciaRJ.9O escritor russo Nikolai Leskov considerado um dos grandes narradores de sua poca. O ensaiosobre o escritor foi uma encomenda da revista Orient et Occident Walter Benjamin, podendo ser

    justificado pelo questionamento: Por que to raro atualmente encontrar um narrador? As narrativasde Leskov tratam de acontecimentos vividos nas cidades que ele conheceu em suas viagensrealizadas na Rssia, mas tambm de coisas banais e cotidianas que lhe foram repassadasoralmente, mas que, ao recont-las, o escritor foi enriquecendo estas histrias. Com astransformaes da vida moderna nas grandes cidades, caracterizadas pelo anonimato, peloisolamento, pela rapidez dos processos de trabalho, pela inveno da imprensa e o aparecimentode outros gneros literrios, como o romance; a arte de narrar tornou-se um exerccio em extino.

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    algum passou por ali; escrever uma tomada de distncia que impe ao narrador

    a renncia do seu posto, onde repousa. Do contrrio, corre-se o risco de ficar

    perseguindo uma projeo de si mesmo, iluso sedutora que nos convida a

    reencontrarmo-nos at mesmo no outro (GAGNEBIN, 1982, p.45).

    A forma como iremos constituir o manejo do ir e vir est entrelaado noo

    de pausa. Aprendemos com Baudelaire que, para enxergar, em algum momento

    preciso abandonar, por um instante, o microscpio e tentar retomar uma distncia

    maior do objeto do texto, como da prpria atividade de elaborao textual

    (BAUDELAIRE apud GAGNEBIN, 1996, p. 257).

    Mas, a prpria percepo de proximidade e distncia sofreu transformaes.

    Nas cidades com grande nmero de habitantes, o excesso de proximidade tornou

    as pessoas cada vez mais distantes. (GAGNEBIN, 2007). J as imagens que nosremetiam ao longnquo e ao sagrado, perderam esta dimenso de profundidade,

    medida que o desenvolvimento das tcnicas de reproduo tornou estas imagens

    disponveis e manipulveis (GAGNEBIN, 2007).

    Dito isto, como transmitir as modulaes e nuances da experincia, se a

    diminuio da distncia e o desaparecimento do longnquo, perfilaram-nas em uma

    mesma superfcie lisa, lado-a-lado com outros objetos? Um desdobramento desta

    questo passarmos a buscar o longnquo, no abismo de uma interioridade sem

    fundo (GAGNEBIN, 2007).

    Esta no uma questo exclusivamente do campo esttico, no sentido de

    termos perdido as referncias que nos tornam capazes de perceber as diferenas

    entre os fenmenos, mas, sobretudo um problema do campo da tica, pois

    passamos a perseguir a semelhana no mundo, mesmo diante do fenmeno nico

    (BENJAMIN, 1995, p.170).

    ***

    E o que dizer dos narradores que penetram a experincia? No ensaio de 1924,

    Livros infantis antigos e esquecidos, Walter Benjamin diz que a criana no se limita

    a descrever as imagens, mas a escrev-las, referindo-se ao contato da criana com

    os livros de gravuras e a imperiosa exigncia de descrever, contida nessas

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    imagens (BENJAMIN, 1995, p.241). Mas, o que ele observa dessa experincia

    sensvel que a criana penetra na imagem e redige dentro dela.

    Em Esconderijos10,aforismo de Infncia em Berlim, o mesmo autor dir que a

    criana que se esconde atrs da porta torna-se a prpria porta (BENJAMIN, 1995,

    p.91). Benjamin insiste no acesso privilegiado da criana linguagem, onde as

    palavras no so instrumentos de comunicao, mas cavernas a serem exploradas,

    nas quais se envolve e desaparece (GAGNEBIN, 2011, p.82).

    Ao apresentarmos os dois fragmentos com experincias de mmesis, no o

    fazemos com o intuito de sugerir que a separao entre o sujeito e o objeto seja

    abolida, mas, para pensar o comportamento mimtico como uma experincia que

    visa o conhecimento e instaura uma relao reconciliada entre sujeito e objeto, no

    qual conhecer no significa mais dominar, mas, atingir, tocar, e ser atingido e tocadode volta. (ADORNO apud GAGNEBIN, 2006, p. 80).

    ***

    O tema do esconderijo reaparece em O coelho da pscoa descoberto ou

    Pequeno guia dos esconderijos (BENJAMIN, 1995, p.237). Este e outros aforismos

    de Walter Benjamin demonstram uma afinidade com o movimento Surrealista

    francs e foram escritos para o ensaio Imagens do pensamento (BENJAMIN, 1995).

    10Conhecia todos os esconderijos do piso e voltava a eles como a uma cama na qual se tem a

    certeza de encontrar tudo sempre do mesmo jeito. Meu corao disparava, eu retinha a respirao.Aqui, ficava encerrado num mundo material que ia se tornando fantasticamente ntido, que seaproximava calado. S assim que deve perceber o que corda e madeira aquele que vai serenforcado. A criana que se posta atrs do reposteiro se transforma em algo flutuante e branco, numespectro. A mesa sob a qual se acocora transformada no dolo de madeira do templo, cujas colunasso as quatro pernas talhadas. E atrs de uma porta, a criana a prpria porta; como se a tivessevestido com um disfarce pesado e, como bruxo, vai enfeitiar a todos que entraremdesavisadamente. Por nada nesse mundo podia ser descoberta. Se faz caretas, lhe dizem que s

    o relgio bater e seu rosto vai ficar deformado daquele jeito. O que havia de verdadeiro nisso pudevivenciar em meus esconderijos. Quem me descobrisse era capaz de me fazer petrificar como umdolo debaixo da mesa, de me urdir para sempre s cortinas como um fantasma, de me encantar portoda a vida como uma pesada porta. Por isso expulsava com um grito forte o demnio que assim metransformava, quando me agarrava aquele que me estava procurando. Na verdade, no esperavasequer este momento e vinha ao encontro dele com um grito de autolibertao. Era assim que mecansava da luta contra o demnio. Com isso, a casa era um arsenal de mscaras. Uma vez ao ano,porm, em lugares secretos, em suas rbitas vazias, em sua bocas hirtas, havia presentes; aexperincia mgica virava cincia. Como se fosse seu engenheiro, eu desencantava aquela casasombria procura de ovos de Pscoa. (BENJAMIN, 1995, p. 237)

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    Ao passarmos das questes referentes infncia para o movimento

    Surrealista; o fazemos, no sentido de entendermos que estas duas experincias

    constroem caminhos que apontam para a abertura do que est aprisionado. A

    professora Martha D`ngelo faz uma sntese dessa relao: os surrealistas

    penetram em domnios onde s os loucos e as crianas costumam circular

    (D`ANGELO, 2006, p.90).

    Retomando o aforismo, Benjamin dir que os melhores esconderijos so

    aqueles que esto mais expostos a todos os olhares, e que os ovos de pscoa so

    escondidos de modo que sejam descobertos sem que nada tenha sido removido

    do lugar (BENJAMIN, 1995, p.237). Por ltimo, dir que as pessoas fitam em

    primeiro lugar o que est altura dos olhos; depois olham para cima e s por ltimo

    se preocupam com o que est a seus ps (BENJAMIN,1995, p.237).No nos parece evidente que os lugares mais acessveis aos olhos, reservem

    lugares que possam se tornar bons esconderijos. O pensamento mais corriqueiro

    seria buscarmos os esconderijos em locais pouco iluminados e distantes do nosso

    olhar. A estranha associao entre esconderijo e cotidiano fica menos enigmtica

    medida que aproximamo-nos dos pressupostos do movimento surrealista, a saber,

    que os homens vivem com os olhos fechados para as cenas triviais, para as coisas

    que esto ao seu redor e embaixo dos ps. Nesta perspectiva o cotidiano tido

    como impenetrvel. Se existem coisas escondidas por baixo, por detrs ou

    entrelaado ao cotidiano, o que o movimento surrealista ir vislumbrar poder

    extra-las.

    Nas teses Sobre o conceito de histria, Walter Benjamin (1994a), ir dizer que

    os homens vivem com os olhos no passado, ancorados no entendimento de que,

    l, repousa a salvao. Para Benjamin, passado e presente no esto dissociados.

    Ainda segundo o autor, apropriar-se do passado reconhecer os apelos que ele

    dirige ao presente. Afinal, No existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes,

    que emudeceram?(BENJAMIN, 1994a, p.223).

    Neste sentido, a dificuldade em reconhecer o cotidiano pode ser entendida

    como a impossibilidade de olhar para estes apelos.

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    Dois

    Subiu os degraus da escada acompanhado do temor de que algum

    impedimento adiasse a entrega da declarao. Como era costume, o pedido estava

    carregado de urgncia. Prximo secretaria acadmica, interrompeu os passos. As

    palavras no mural atraam a ateno dos seus olhos. O corredor estava vazio, logo,

    no precisou dividir o espao de leitura com outras pessoas. Olhava atentamente,

    o ttulo de uma das folhas fixadas na parede: Resultado da prova escrita -

    Candidatos aprovados.

    Os olhos acompanhavam os resultados, linha por linha. No chegou a

    terminar a lista. Por volta do quinto colocado, interrompeu a leitura. Provavelmente

    havia perdido o interesse. Os olhos migraram para a lista ao lado. E alipermaneceram. Leu-a de cima para baixo e de baixo para cima. Demorou-se, tantas

    vezes percorreu o nome dos candidatos reprovados na prova escrita.

    Aparentemente a imagem no tinha importncia. O que se pode dizer que

    os alunos aprovados no constituam a sua rea de interesse. Definitivamente os

    pdios e altares estavam ocupados pela embriaguez da dominao (BENJAMIN,

    1995, p.39). Tampouco possvel dizermos que o curso da escrita partiria da

    experincia dos candidatos reprovados.

    A cena teria sido deixada de lado, mas fez lembr-lo dos muros. Ao encontrar

    a loucura fora dos manicmios, deparou-se com os resduos do confinamento em

    muitos lugares. Dentro de uma residncia teraputica viu talheres e copos

    atualizarem a diviso entre eles e ns. Enquanto os moradores11usavam talheres

    e copos de plstico, as pessoas responsveis pelo cuidado, utilizavam talheres de

    metal e copos de vidro. No Caps12encontrou banheiros para pacientes e banheiros

    para os trabalhadores.

    Interrogava-se sobre a cidade que no cessava de produzir dois lados; e

    decidiu conhecer o estatuto dessa diviso.

    11Por moradores, referimo-nos aos egressos de internao psiquitrica que moram nos ServiosResidenciais Teraputicos.12Centro de Ateno Psicossocial

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    Em Dialtica do Esclarecimento Adorno faz uma anlise da gnese do

    pensamento antissemita e fascista, buscando elucidar o que ocorreu em Auschwitz

    (ADORNO apud GAGNEBIN, 2006, p.85). Em linhas gerais, Adorno ir pensar o

    nazismo como expresso de uma sociedade de classes, com papis e identidades

    rgidas, organizada em torno da produo capitalista, submetida a uma sexualidade

    familiar e higinica e com forte rejeio a todos os grupos que desviassem deste

    modelo identificatrio. Essa sociedade encontra na figura de um lder racional, duro

    e intransigente, o representante para declarar a perseguio, a excluso e o dio

    aos grupos que ameaam este modelo.

    A respeito do funcionamento desta engrenagem, Gagnebin ir dizerque a

    sua eficcia est atrelada, sobretudo, construo da figura do inimigo. O inimigo

    pode ser entendido como aquele que representa a angstia e o medo, de que ascoisas escapem ao controle. Sendo assim, alm dos judeus, que exerciam uma

    certa ameaa ao modelo capitalista, foram mandados para os campos de extermnio

    de Auschwitz: homossexuais, bastardos, preguiosos e vagabundos. (ADORNO

    apud GAGNEBIN, 2006, p.85).

    ***

    Em direo ao campo de extermnio, a velocidade do caminho era controlada.

    No deveria ir to rpido, de forma que os judeus pudessem chegar vivos; nem to

    lento, de forma que o prximo embarque de judeus vindos dos guetos da Europa

    atrasasse.

    O caminho da morte, como foi descrito pelos sobreviventes do nazismo, no

    filme Shoah, de Claude Lanzmann (1985), era equipado para o extermnio. Durante

    a partida, um tubo, com uma das extremidades conectada ao escapamento do

    motor e a outra extenso da extremidade conectada ao ba, asfixiava as oitenta

    pessoas que estavam de p e espremidas.

    O veculo comparado aos caminhes que entregam cigarros, relembra um

    sobrevivente. Segundo os poloneses que moravam em casas prximas Igreja,

    onde os judeus aguardavam o embarque nos caminhes, os comboios operavam

    o dia todo e mesmo noite(LANZMANN,1985).

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    ***

    Apesar das questes retornarem e de alguns elementos se repetirem, uma

    parte do que retorna recolocado de outra forma, ficando irreconhecvel do ponto

    de vista de uma correspondncia entre o passado e o presente e do que faz disparar

    as aes de dio, violncia e separao.

    A questo da sexualidade dividida entre uma orientao considerada normal e

    outra anormal foi apresentada por Baptista em O cientista e o pastor entre btulas

    e amoladores de facas: genocdios da diferena (grifo nosso). No texto, somos

    surpreendidos pelo brutal assassinato do vereador Renildo Jos dos Santos, na

    cidade de Coqueiro Seco, em Alagoas, em 1993, praticado por um fazendeiro e dois

    policiais. Diziam que veado desgraadotem que morrer (BAPTISTA, 2013, p.64).

    Em um programa de TV, um pastor e um cientista discutem sobre as causasda homossexualidade. O pastor diz que devemos amar da mesma forma o gay e

    o bandido. J o cientista apresenta dados cientficos que indicam o componente

    gentico como um fator importante na escolha dos parceiros (BAPTISTA, 2013,

    p.62). Os assassinos de Renildo e os nazistas dos campos de Auschwitz no

    participaram do programa de TV, mas tambm buscavam a plenitude do significado

    e no suportavam o transtorno da ambigidade das formas (BAPTISTA, 2013,

    p.65).

    Retomando a discusso de Jeanne Marie Gagnebin (2006), sobre as

    engrenagens que movimentam a rigidez dos modelos hegemnicos, os autores da

    violncia homofbica na cidade de Coqueiro Seco, em Alagoas, identificam, como

    inimigo, o desejo que no sabe dizer o seu nome(BAPTISTA, 2013, p.65).

    ***

    Novamente retomamos a questo do esforo dos homens em erguerem

    estruturas que dividem dois lados e a violncia correspondente ameaa de que

    estas fronteiras sejam desmanchadas. Por mais que se dediquem manuteno

    deste empreendimento, parece-nos que, ainda assim, no conseguiro fazer

    desaparecer a precariedade deste projeto totalitrio.

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    Em um de seus aforismos, de Rua de mo nica,intitulado Material Escolar13,

    Walter Benjamin dir, que por uma pequena brecha no muro, cai um raio de luz no

    gabinete do alquimista e faz relampejar cristais, esferas e tringulos(BENJAMIN,

    1995, p.30).

    Benjamin ir retomar o tema da porosidade em um aforismo, de Imagens do

    Pensamento,intitulado Npoles: O feriado penetra sem resistncia qualquer dia de

    trabalho. A porosidade a lei inesgotvel dessa vida a ser redescoberta. Um gro

    do domingo se esconde em todo dia de semana, e quantos dias de semana nesse

    domingo!(BENJAMIN, 1995, p. 150).

    Walter Benjamin no somente um representante dos perseguidos polticos,

    dos exilados e refugiados, mas tambm algum que passou a vida buscando estas

    frestas, tentando se equilibrar em termos financeiros, afetivos e com as exignciasda prpria sade. Os ltimos sete anos de sua vida foram especialmente difceis,

    devido aos problemas financeiros e de sade, alm da perseguio empreendida

    pelos nazistas aos judeus. Diante da frgil condio de refugiado judeu na Frana,

    s vsperas da Segunda Guerra, Benjamin buscava escapar das tropas alems,

    seguindo em direo Espanha (GAGNEBIN, 1982).

    13 Princpios dos catataus ou a arte de fazer livros grossosI- O desenvolvimento inteiro tem de ser entretecido pela permanente exposio palavrosa do projeto.II- Devem ser introduzidos termos para conceitos que fora dessa definio mesma no aparecemmais no livro inteiro. III- As distines conceituais laboriosamente conquistadas no texto devem, nasnotas s passagens correspondentes, ser novamente apagadas. IV- Para conceitos sobre os quaiss se trata em sua significao geral devem ser dados exemplos:onde, por exemplo, se falar demquinas devem ser enumeradas todas as espcies delas. V- Tudo aquilo que est firmado a priorisobre um objeto deve ser confirmado com uma abundncia de exemplos. VI- Correlaes que podemser expostas graficamente tm de ser desenvolvidas em palavras. Em lugar, por exemplo, dedesenhar uma rvore genealgica, todas as relaes de parentesco devem ser pormenorizadas edescritas. VII- De vrios oponentes aos quais comum a mesma argumentao, cada um deve serrefutado individualmente. A obra mdia do cientista de hoje quer ser lida como um catlogo. Masquando se chegar ao ponto de escrever livros como catlogos? Se o interior ruim penetrou no

    exterior dessa forma, surge ento um excelente texto, em que o valor das opinies cifrado, semque com isso elas fossem postas venda. A mquina de escrever s tornar alheia caneta a modo literato quando a exatido das formaes tipogrficas de seus entrar imediatamente naconcepo de seus livros. Provavelmente sero necessrios ento novos sistemas, comconfigurao de escrita mais varivel. Eles colocaro a inervao dos dedos que comandam no lugarda mo cursiva. Um perodo que, metricamente concebido, posteriormente perturbado em seuritmo, em uma nica passagem, faz a mais bela frase em prosa que se pode pensar. Assim, por umapequena brecha no muro, cai um raio de luz no gabinete do alquimista e faz relampejar cristais,esferas e tringulos (BENJAMIN, 1995, p.30).

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    Apesar de todas estas ameaas que o rondavam, escreve as teses Sobre o

    conceito de histria. O ltimo trabalho de Benjamin o testemunho de um

    pensamento que se esquivou da exigncia de cunhar o definitivo.

    Sendo assim, a questo da porosidade, para Benjamin, no se constitui

    apenas como um recurso esttico, mas, sobretudo, uma posio tica. Percorrer os

    escombros e as runas expresso de sua desconfiana em relao viso

    progressista da tradio teleolgica, tanto da filosofia quanto da histria.

    Trs

    Pelas frestas do cotidiano que Ana pde sentir que algo havia se

    desprendido do lugar. Quem nos conta esta histria Clarice Lispector (1983), noconto Amor.A autora apresenta as inquietaes da personagem Ana e as suas

    tentativas de estabilidade, que se mantm por um mnimo equilbrio. Clarice

    Lispector descreve-a como uma mulher diante do esforo em afastar-se do perigo

    de viver; ou, ainda, algum numa tentativa de suplantar a ntima desordem.

    Sentada nos bancos do bonde, em direo ao Humait, Ana depara-se com

    um cego mascando chicletes. No corpo da dona de casa, o gesto do cego produz a

    sensao de que algo havia se desprendido do lugar. As inquietaes provocadas

    pela imagem do cego vo percorrendo as frestas da montagem do que Ana nomeou

    o seu cotidiano: os sonhos, a casa, o marido e os filhos.

    O que vivido como desconforto pela personagem encontra, nas palavras

    da autora, a sua mais bela sntese: O que o cego desencadeara caberia nos seus

    dias? (LISPECTOR, 1983, p.30).

    Quatro

    Dentro do nibus um rdio de pilha altera a monotonia da viagem. Trnsito

    bom nas imediaes do estdio Maracan. O motorista que est saindo de casa

    para o trabalho deve evitar a rua Conde de Bonfim, devido o grande fluxo de carros

    em direo ao centro da cidade: o congestionamento vai da Rua Uruguai at o Largo

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    da Segunda-feira. Prximo praa da Bandeira, o trnsito transcorre com pequenas

    retenes. Os motoristas esto sendo obrigados a fazer um desvio, pois a pista est

    com lama e galhos de rvore. Outros pontos da cidade tambm esto obstrudos,

    devido s fortes chuvas que ocorreram na madrugada de quinta-feira, na cidade do

    Rio de Janeiro. Em direo prefeitura e estao de trem Leopoldina, o trnsito

    lento. Prximo ao prdio do antigo Jornal do Brasil, um acidente envolvendo um

    caminho e um carro obstruiu duas faixas da avenida. O motorista dever dirigir

    com ateno. O Corpo de Bombeiros est no local prestando socorro s vtimas.

    Em direo ponte, trnsito intenso no sentido Niteri.

    Os carros que seguiam em direo ao trabalho faziam o passageiro lembrar-

    se de Paracambi. A cidade no possua veculos suficientes para formar

    congestionamentos. Os caminhos que fizeram-no rememorar o municpio se derampor outra via.

    Em 1874, a fbrica inglesa Brasil Industrial iniciava as suas atividades em

    solo fluminense. A rea escolhida para a atividade txtil foi um latifndio com uma

    importante nascente de gua, na descida da Serra das Araras, em direo capital

    do Rio de Janeiro. A propriedade localizava-se no municpio de Vassouras (RJ). Em

    1960, a vila de casas que havia se formado prximo fbrica emancipou-se,

    tornando-se Paracambi.

    Diminuir a distncia entre a moradia e o trabalho sem dvida era uma

    comodidade para os milhares de trabalhadores da fbrica txtil. Apenas mais tarde

    cogitou-se a hiptese de que a construo da avenida dos operrios como ficou

    conhecida a vila de casas - constitua uma estratgia de controle sobre a vida dos

    trabalhadores, afinal, o maquinrio ingls no podia parar de funcionar.

    Durante noite e dia, os operrios produziam tecido. A sirene marcava o

    instante do incio e do trmino das atividades. Do lado de fora da fbrica tambm

    era possvel escutar o som da sirene. Nas torres de estilo gtico, os alto-falantes

    conduziam o som da sirene por toda a cidade. Por mais que as pessoas estivessem

    assistindo televiso, cozinhando, regando as plantas ou brincando com os filhos,

    eram interrompidas dentro de suas casas. Trs vezes ao dia, os moradores

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    escutavam o som vindo da fbrica. Para alguns, a sirene indicava o incio da jornada

    de trabalho. Para outros, o fim. E assim, sucessivamente os anos foram se

    passando, at que a sirene passou a regular o cotidiano dos habitantes. A fbrica

    que funcionava vinte quatro horas por dia produzia tecidos e uma nova sensibilidade

    na cidade: modos de vida fragmentados pelo alarme sonoro.

    Na dcada de 80, os portes da fbrica foram abruptamente fechados. Os

    produtores de tecido fluminense no suportaram a concorrncia com o mercado

    chins. O desemprego alterou a rotina de Paracambi.

    No lbum de fotografias em preto e branco, vamos pequenos grupos de

    trabalhadores posarem perfilados em frente imponente fabrica inglesa. Diante da

    lente da mquina fotogrfica, formavam duas fileiras: aqueles que se colocavam na

    fileira da frente posicionavam-se levemente abaixados, de forma que aqueles quehaviam se posicionado na fileira de trs, tambm pudessem ser visualizados.

    Estavam com o uniforme de trabalho e exibiam um sorriso discreto.

    Com o fechamento da fbrica, homens e mulheres passaram a ocupar as

    fileiras do seguro-desemprego e do auxlio-doena. Toda uma gerao de teceles

    e trabalhadores que exerciam funes especficas no maquinrio da fbrica de

    tecidos no conseguia trabalho na cidade. Muitas famlias tiveram que sair de

    Paracambi para procurar emprego. Foi um perodo de muito adoecimento e grande

    incidncia de depresso, uso abusivo de bebidas alcolicas e ansiolticos.

    Principalmente entre os chefes de famlia.

    Aps alguns anos, passada a fase mais difcil, os moradores descobriram

    que sentiam mais saudades da sirene do que da linha de produo fabril, pois um

    grande silncio havia se abatido sobre a cidade.

    Na metrpole moderna, as sirenes que regulam o fluxo de trabalhadores so

    mais silenciosas. A ameaa da perda do trabalho e os efeitos devastadores do

    desemprego - neste modelo de vida, ancorado no poder econmico - tornaram

    obsoletos os alarmes sonoros. O trabalho tornado mercadoria e a explorao do

    trabalhador - que passa cada vez mais tempo dentro das fbricas e escritrios -

    esvaziam outras dimenses da vida. Neste contexto, as ruas tornam-se passagem;

    via de acesso entre a casa e o trabalho.

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    ***

    O radialista interrompe as notcias do trnsito e passa a transmitir o noticirio

    da cidade. Apesar dos mltiplos rudos que disputavam a ateno com o rdio,

    escutvamos a notcia de um incndio na zona sul. O jornalista conta que o fogo

    havia destrudo uma cobertura no bairro da Lagoa e o proprietrio do imvel havia

    sido hospitalizado.14O radialista informa que a vtima do incndio era o Secretrio

    de Sade do governo do Estado do Rio de Janeiro. No programa de rdio ouvamos

    que os familiares do secretrio protagonizaram cenas de constrangimento e

    tumulto. Diz o radialista que, ao encontrarem Sergio Crtes dentro da ambulncia

    dos bombeiros, os familiares proibiram que ele fosse conduzido para um hospital

    pblico. Os militares recusaram-se a atender ao pedido da famlia, ou seja, conduzir

    a vtima para um hospital da rede privada. Diante do impasse, o governador doEstado foi acionado. Imediatamente ordenou que o protocolo das viaturas que

    realizam o pronto socorro fosse quebrado. O Secretrio de Sade foi conduzido

    pelos militares para uma clnica em Botafogo.

    Pela janela do nibus, o olhar pretensamente desinteressado assistia s

    engrenagens da cidade em movimento. Um homem de meia idade varrendo a

    calada; os sacos de lixo escorados no poste de luz e os carros apressados. Mais

    uma vez, rel a frase pintada nos muros de Santa Teresa: Ningum manda no que

    a rua diz. Apesar de buscar refgio naquelas imagens, tinha a sensao que

    percorria o tempo e no as ruas.

    Duas passageiras conversavam ao lado. O tema desperta-lhe a ateno.

    Falavam sobre o recolhimento compulsrio das pessoas em situao de rua15.

    Devido distncia do ouvido para as falantes, precisou fazer esforo para escutar.

    Disseram que a prefeitura do Rio de Janeiro com apoio da Polcia Militar iria

    intensificar a operao de recolhimento das pessoas em situao de rua, durante a

    14 Incndio atinge cobertura de Secretrio Srgio Cortes, no Rio. G1.Globo.com, 26/10/2012.

    Disponvel em:

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    conferncia mundial Rio + 20. A conferncia iria reunir os principais chefes de

    Estado mundiais para a discusso sobre o futuro do planeta. Elas diziam que as

    pessoas recolhidas seriam conduzidas para um abrigo pblico. Contam que a

    prefeitura no havia informado a localizao do abrigo.

    O passageiro imaginou que o abrigo no se localizava em Botafogo, prximo

    clnica que atendeu ao Secretrio de Sade. O protocolo para os pobres que

    incomodam o modelo de cidade que persegue o desenvolvimento que sejam

    conduzidos para algum lugar distante. Longe dos olhos dos chefes de Estado. Este

    protocolo no seria quebrado.

    Durante a descida pelo bairro de Santa Teresa, o passageiro olhava para a

    cidade que produz rotas para ricos e pobres.

    Salta do nibus. O peso do corpo passando do calcanhar ponta dos dedos,dispara inmeras sensaes. Antes mesmo do contato dos ps com o cho, j

    estava em movimento.

    Neste processo de substituir o nibus pelos passos foi fazendo algumas

    descobertas. Tantas vezes modificou o seu itinerrio; tantas vezes deparou-se com

    o inesperado; tantas vezes perdeu-se pelo caminho. Andar a cu aberto o fez

    perceber que poderia se descolar dos movimentos montonos que aprisionam a

    experincia cotidiana. A descoberta conferiu ao caminhante o sentimento de

    emancipao diante das rotas previsveis da cidade.

    Cinco

    Costuma-se dizer que o mais difcil na travessia o primeiro passo.

    Possivelmente. Sair do lugar haver-se com o risco do desequilbrio. Da

    experincia com a loucura, o caminhante tem vivido a inquietao do encontro com

    a cidade e com o morar. Pequenas distncias entre o limite e as incertezas de

    caminhar por um territrio fronteirio. A casa e a rua, o trabalho e a amizade, a

    clnica e a poltica.

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    Em 2009, andava pelas ruas de Paracambi16com Davi, procura de uma

    padaria para sentar, conversar e se recuperar dos efeitos da tarde de sol: - Me

    conta como anda a sua vida, o que voc est fazendo?. Iriam prosseguir em

    direo senhoria de Davi, pois era o dia de pagamento do aluguel. Ao sarem da

    padaria, com duas latas de refrigerante e mais recompostos do calor, o caminhante

    teve uma surpresa: ele no sabia abrir a latinha.

    Habilit-lo a apropriar-se dos cdigos da cultura produzidos durante o longo

    perodo em que esteve internado seria percorrer o caminho proposto por Lancetti:

    a travessia se faz pelo limiar que vai do exlio cidadania (LANCETTI, 2011). Nos

    percursos que experimentamos, sutis ramificaes se apresentam escapando ao

    contorno da cidadania.

    Seguindo os passos do professor Luis Antnio Baptista, no seu encontro comFranco Fuzzi na Itlia, deparamo-nos com trilhas que no esto no mapa. Apesar

    de estar fora do Lolli17 desde 1982, Franco no consegue fazer amigos.

    cumprimentado nas ruas, recebe elogios, freqenta o bar, mas vive s: gostaria de

    sair com amigos para comer uma pizza ou quem sabe jogar baralho, comer um bom

    churrasco. (BAPTISTA, 2001, p. 75).

    O que o no-saber de Davi e Franco faz estilhaar na cidade saturada de

    sentidos18?

    16Paracambi tornou-se uma referncia em sade mental, devido localizao no seu territrio domaior manicmio privado da Amrica Latina. Fundado em junho de 1963, a Casa de Sade Dr. Eiras,

    mantinha 2.550 leitos psiquitricos. Em 2011, aps dez anos sob interveno tcnica e gerencial dasSecretarias Municipal e Estadual de Sade e da Coordenao Nacional de Sade Mental, a CSDE fechada. As denncias de desnutrio, maus-tratos, torturas e morte de pacientes, alinhados poltica nacional de desinstitucionalizao da loucura, foram disparadores desse processo. Oprograma de desinstitucionalizao do municpio de Paracambi formou uma rede de assistncia,composta por trs Centros de Ateno Psicossocial (CAPS) e vinte Servios ResidenciaisTeraputicos, que acolhem 160 egressos do manicmio.17Franco Fuzzi viveu 32 anos internado no hospital psiquitrico Lolli em mola, Itlia.18 Questo inspirada no livro O veludo, o vidro e o plstico. Desigualdade e diversidade nametrpolede Luis Antnio Baptista (2009).

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    Seis

    Um homem vem me pedir dinheiro. No para comer. Quero dinheiro para o

    aluguel. Para pagar o aluguel do meu apartamento, porque eu no quero morrer

    na rua19(LANZMANN, 1985).

    Adam Czerniakow comeou a escrever na primeira semana da guerra - antes

    da entrada dos alemes em Varsvia - e continuou a faz-lo diariamente at tarde

    do dia em que deu fim a sua vida. No seu caderno deixou registrado o que lhe

    acontecia no dia-a-dia. Podia falar do tempo, de onde tinha ido de manh ou de

    qualquer coisa que acontecesse, por mais que parecesse insignificante.

    O que o narrador, seno esta espcie de cronista dos acontecimentos, que

    no distingue entre os grandes e os pequenos, mas levando em conta que nada doque um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a histria (BENJAMIN,

    1994a, p.223).

    Sete

    A perspectiva de que somos transportados por caminhos previamente

    definidos est presente no pensamento de Walter Benjamin. Para o filsofo, o

    homem moderno conduzido a percorrer a marcha dos vencedores, pois, para

    esta direo que existe o maior nmero de documentos e testemunhas

    (GAGNEBIN, 1982). Benjamin defendia o rompimento desta servido e a renncia

    perspectiva que vislumbra o desenvolvimento. Criticava o historicismo por atribuir

    ao tempo uma direo nica e linear. Por isto, a sugesto do autor era a composio

    de uma concepo de histria a contrapelo.

    A respeito do tempo que desponta em uma direo nica e linear, a

    acomodar os acontecimentos, segundo os interesses dos vencedores; importante

    dizermos que este modo de pensar o tempo - apesar de hegemnico - no se

    constitui nico.

    19 O registro do homem que no queria morrer nas ruas ocorreu no gueto de Varsvia, onde viviamos judeus perseguidos pelo nazismo, antes de serem transportados para os campos de extermnio.

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    No sculo XVI, o desejo mais profundo de alguns jovens franceses

    integrantes de movimentos revolucionrios era interromper o curso do tempo.

    Durante o movimento que se tornou conhecido como a revoluo de julho foram

    disparados, ao mesmo tempo, tiros contra relgios de torres, em vrios pontos de

    Paris20. A segunda imagem que expressa a pretenso de interromper o tempo

    submetido ao capitalismo descrita por Walter Benjamin (1994b p.193), no captulo

    sobre o Flneur, de Charles Baudelaire: Em 1839, era elegante levar consigo uma

    tartaruga ao passear. Isso dava uma noo do ritmo do flanar nas galerias.

    O poeta Baudelaire tambm percorreu o caminho inverso velocidade

    imposta pela industrializao. Um de seus personagens mais citados, o Flneur,

    andava pelas galerias de Paris e ocupava um tempo no contabilizado pelas

    exigncias do capitalismo. Apesar da reurbanizao de Paris, cujo mote era odesenvolvimento e o progresso, e do crescente consumo das mercadorias expostas

    nas vitrines, os passos do Flneur no eram capturados por estes apelos. O

    caminhar deste personagem era investido apenas de curiosidade e ociosidade.

    Neste sentido, os passos imprimiam o tempo das coisas. Baudelaire sabia que este

    tempo estava ameaado e cada vez mais extinto.

    O labirinto tambm era uma expresso deste tempo submetido aos

    acontecimentos. Para o Flneur, a mudana de sua trajetria estava associada

    percepo de que a multido tinha impulsos prprios e alma prpria(BENJAMIN,

    1994b).Baudelaire e seus personagensum pouco heris e um pouco marginais -

    conheciam bem os impulsos para a libertinagem, para o jogo, para as revoltas, para

    a vagabundagem, para a embriaguez e para a prostituio.

    ***

    O ato de pr-se em movimento e a relao com as imagens produzidas neste

    caminhar traziam consigo a possibilidade de deslocamento das prprias narrativas.

    Os passos faziam-no percorrer distncias, mas tambm lhe transportavam para

    20A professora Analice Palombini faz uma associao deste acontecimento com os disparos emdireo ao relgio, que uma emissora de televiso colocou em diversas cidades brasileiras, pararealizar a contagem do tempo que antecedia um grande evento esportivo. O episdio relatado pelaprofessora Analice ocorreu na cidade de Porto Alegre, em 2000.

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    outro lugar. Independente do seu itinerrio estava sempre a caminhar, em mais de

    uma direo.

    Andando pelas ruas, o caminhante comeou a se interessar pelas cores,

    formas e objetos pelo cho. Depois surgiu o interesse pelas cenas e histrias.

    medida que entrava em contato com a polifonia da cidade desmanchava-se o

    projeto contemporneo do indivduo investido de certezas, impermevel em relao

    s prprias verdades e refratrio ao que se localiza fora dos limites do eu. E, assim

    como a criana que, ao se esconder atrs da porta, torna-se a prpria porta

    (BENJAMIN, 1995), ao caminhar, tambm era percorrido pelas ruas, caladas,

    becos e encruzilhadas.

    Se as coisas e objetos so as fronteiras do homem, ao caminhar, os limites

    dos seus contornos eram redefinidos (MURICY, 1993). Ao escutar conhece-te!, ocaminhante recusou tomar o apelo como um mergulho na interioridade do eu. Ao

    contrrio, entendeu que deveria se relacionar com as coisas do mundo. Dizia

    Nietzsche que, para fazer filosofia, era preciso pernas fortes. (MURICY, 1993).

    ***

    Ao percorrer as casas ocupadas pelos egressos de internao psiquitrica,

    surpreendeu-se com a multiplicidade de usos do espao. Deparou-se com

    expresses artsticas e experimentou outras intensidades para o tempo. Apesar do

    esforo em domesticar a heterogeneidade de acontecimentos, o sentimento de

    estranhamento ainda no havia lhe abandonado. Durante o encontro com a loucura

    muitas vezes foi surpreendido com cenas e gestos. Reagiu com desconfiana

    quando descobriu que o desconhecido que havia consertado o sifo do tanque de

    lavar roupas, de uma das casas que ele visitava, era o vizinho.Achava que vizinho

    era uma destas palavras condenadas a desaparecer, como alfaiate, olerite etc.

    Embora o sculo XXI ainda conhea o significado da palavra, o sentido j havia sido

    esvaziado h muito tempo.

    Os vizinhos tambm foram os protagonistas de um acontecimento investido de

    surpresas.

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    As famlias de um condomnio em Jacarepagu estavam resistentes quanto

    chegada de quatro mulheres vindas da Colnia Juliano Moreira. A posio das

    famlias que moravam no prdio era coerente ao imaginrio popular sobre a loucura,

    ocupado pelo sentido da violncia. Apesar disso, o cotidiano produziu caminhos que

    desacomodaram a experincia confinada em seu sentido.

    Havia chegado o dia da mudana. No porto do condomnio, o caminho com

    a moblia pedia passagem. O sndico do prdio estava de prontido e no teve

    dvidas: colocou-se em frente ao caminho, proibindo o acesso da loucura. O que

    poderia acontecer ao condomnio de classe mdia com a circulao das pacientes?

    Aps muita negociao conseguiram cruzar o porto e as moradoras puderam

    ocupar o apartamento que havia sido alugado.

    Algum tempo depois, o porteiro do prdio e o psiclogo se encontraram.Conversaram sobre o ocorrido e o porteiro relatou um acontecimento que havia

    modificado a sua opinio sobre as moradoras recm-chegadas. Contou ao

    psiclogo que a sua esposa estava grvida e que havia colocado uma lista de

    fraldas na portaria do prdio. Disse que trabalha no condomnio h mais de dez

    anos e que conhece todos os moradores. No entanto, as nicas pessoas que

    compraram um presente para o seu filho foram as meninas da Colnia.

    Mais do que confirmar a possibilidade de uma convivncia pacfica, o presente

    ao filho do porteiro fez estremecer a rigidez da identidade conhecida. A delicadeza

    do gesto contrastava com o sentido historicamente atribudo loucura. Mas, a

    importncia da cena que ela faz aparecer a rigidez de outras identidades.

    As meninas da Colnia no eram as nicas que estavam encobertas por um

    sentido. O homem que h dez anos abria e fechava as portas do prdio havia se

    tornado pai, mas ningum conseguia olhar para isto. S para o uniforme. Apesar do

    apelo, os moradores do prdio no puderam enxerg-lo de outro modo. Aquele

    uniforme era impermevel a outras possibilidades do olhar.

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    Oito

    Sobre a perspectiva de uma metamorfose da percepo, o caminhante se

    lembrou de um acontecimento que fez o eu se desacomodar de sua morada

    conhecida.

    Diante do mapa de lugares e trajetos percorridos regularmente, o caminhante

    localiza a estao de trem Central do Brasil. O prazer de passear pelas ruas do

    centro histrico da cidade do Rio de Janeiro no era o nico motivo da itinerncia

    pela regio. Fazia-o tambm devido utilizao dos trens, no caminho de volta para

    a casa.

    Na centenria estao de trem, viveu o descompasso entre o olho e o seu

    destino previsvel.Todos os dias milhares de pessoas passam pela Central do Brasil. Em sua

    maioria, trabalhadores vindos da periferia em direo aos diversos pontos da cidade

    do Rio de Janeiro. Ao desembarcarem nos ptios da Central, concluem a primeira

    parte do trajeto. A segunda etapa consiste na caminhada em direo s ruas

    paralelas estao de trem, onde se localizam as linhas de nibus que realizam as

    conexes. A partir das 17:00 horas, o fluxo na estao de trem se inverte e

    progressivamente, com o passar das horas, uma multido de pessoas apressadas

    realiza o caminho de volta.

    Certa vez, ao percorrer o ptio da Central do Brasil, o caminhante deparou-se

    com uma pessoa acenando as mos. O gesto do desconhecido atraa o olhar das

    pessoas prximas lanchonete. Aps alguns instantes de observao - apesar da

    distncia entre os dois - no teve dvidas a respeito da motivao que estava

    impressa naquele movimento: o desconhecido desejava que algum lhe trouxesse

    algo para comer, da lanchonete. No se tratava de um pedinte, ao contrrio, tinha

    os traos daquele que vive do seu trabalho. Possivelmente estava disposto a pagar

    pelo alimento que iria ser consumido.

    O desconhecido havia atravessado o limite que separa o ptio e o setor de

    embarque. Um esclarecimento indispensvel a todos aqueles que conhecem

    vagamente a geografia da Central do Brasil, para que a histria no se torne

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    incompreensvel. Ao retornar para a casa, quanto mais prximo o trabalhador estiver

    das portas do trem mais chances de conquistar um banco e realizar a viagem

    sentado. Por isso, ao comprar o bilhete de viagem, os passageiros logo ultrapassam

    a roleta que divide os dois espaos. Antes de cruzar a roleta, localizam-se os

    quiosques de alimentao, a farmcia, o jornaleiro e as lanchonetes. Tendo

    ultrapassado este limite, perde-se o acesso a estes servios.

    Embora o caminhante tenha visto o gesto do desconhecido, no conseguiu

    encontrar a sua melhor fora21, ou seja, aquela que o faria opor-se ao empuxo para

    o futuro. Passou pela cena do desconhecido e deixou-a para trs.

    21Madame Ariane, segundo ptio esquerdaQuem pergunta pelo futuro a benzedeiras abre mo, sem o saber, de um conhecimento interior doque est por vir, que mil vezes mais preciso do que tudo o que lhe dado ouvir l. Guia-o mais apreguia que a curiosidade, e nada menos semelhante ao devotado embotamento com que elepresencia o desvendamento de seu destino que o golpe de mo perigoso, gil com que o corajosope o futuro. Pois presena de esprito seu extrato; observar com exatido o que se cumpre emcada segundo mais decisivo que saber de antemo o mais distante. Signos precursores,pressentimentos, sinais atravessam dia e noite nosso organismo como batidas de ondas. Interpret-los ou utiliz-los, eis a questo. Mas ambos so inconciliveis. Covardia e preguia aconselham oprimeiro, sobriedade e liberdade o outro. Pois antes que tal profecia ou aviso se tenha tornado algoimediato, palavra ou imagem, sua melhor fora j est morta, a fora com que ela nos atinge nocentro e nos obriga, mal sabemos como, a agir de acordo com ela. Se deixamos de faz-lo, ento,e s ento, ela se decifra. Ns a lemos. Mas agora tarde demais. Da, quando inopinadamenteirrompe fogo ou de um cu sereno vem uma notcia de morte, no primeiro o pavor mudo umsentimento de culpa, a informe censura: No fundo voc no sabia? Da ltima vez que falou do morto,no soava diferente o nome dele em sua boca? No lhe faz sinal, do meio das chamas, a noite deontem, cuja linguagem s agora voc entende? E se um objeto que voc amava se perdeu, nohavia j, horas, dias antes, um halo, zombaria ou tristeza em torno dele, que o traa? Como raiosultravioletas a lembrana mostra a cada um, no livro da vida, uma escrita que, invisvel, na condiode profecia, glosava o texto. Mas no impunemente que se intercambiam as intenes, que seentrega a vida ainda no vivida a cartas, espritos, astros, que em um timo a vivem e gastam, paradevolv-la a ns ultrajada; no se defrauda impunemente o corpo do poder que ele tem de medir-secom os fados sobre sua prpria base e vencer. O instante o jugo de Caudium sob o qual o destinose curva a ele. Transformar a ameaa do futuro no agora preenchido, este nico milagre telepticodigno de ser desejado, obra de corprea presena de esprito. Tempos primordiais, em que tal

    procedimento fazia parte da economia cotidiana do homem, davam-lhe, no corpo nu, o mais confivelinstrumento divinatrio. Ainda a Antiguidade conhecia a verdadeira prtica, e Cipio, quase pisa osolo de Cartago tropeando, exclama, abrindo amplamente os braos na queda, a senha de vitria:Teneo te, Terra Africana! Aquilo que quis tornar-se signo terrfico, imagem de infortnio, ele ligacorporalmente ao segundo e faz de si mesmo o facttum de seu corpo. Justamente nisso, desdesempre, os antigos exerccios ascticos do jejum, da castidade, da viglia celebraram seus mais altostriunfos. O dia jaz cada manh como uma camisa fresca sobre nossa cama; esse tecidoincomparavelmente fino, incomparavelmente denso, de limpa profecia, assenta-nos como uma luva.

    A felicidade das prximas vinte e quatro horas depende de que ns, ao acordar, saibamos comoapanh-lo. (BENJAMIN, 1995, p. 63)

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    ***

    No alto da torre, o relgio marcava 23h15min. Preocupado com a partida do

    ltimo trem, o caminhante entra pela Central do Brasil com o passo acelerado. Aps

    comprar o bilhete no guich, atravessa a roleta em direo aos vages. Antes,

    dirige-se at o gradil que separa os passageiros. Ensaiando solicitar ao primeiro

    que se aproximasse que lhe trouxesse algo para comer, buscava o gesto que

    revelasse a sua inteno. Prximo lanchonete e separado pela grade, um susto:

    algo ali havia acontecido. Pequenos vestgios do homem que acenava com as

    mos.

    A imagem imobilizada diante da grade o fez sentir-se como aquele que chega

    em casa e encontra as luvas ou o regalo de uma mulher, que o visitou em sua

    ausncia, e deixou-as numa cadeira (BENJAMIN, 1995). Isto porque adescontinuidade do encontro entre o passado e o presente havia provocado um

    enorme embarao: o que havia acontecido antes, e o que havia acontecido depois?

    Alm disto, sentia-se constrangido por no ter atendido ao pedido do desconhecido,

    quando este lhe acenava.

    Walter Benjamin faz muitas referncias a este fenmeno; em especial, utiliza

    a metfora do relmpago que perpassa veloz, para caracterizar a fugacidade desta

    imagem (BENJAMIN, 1994a). A importncia do acontecimento consiste na

    perspectiva de que o passado dirige um apelo ao presente: o dom de despertar as

    centelhas da esperana (BENJAMIN, 1994a, p.224). Evidentemente este apelo no

    deve ser rejeitado.

    Em Infncia em Berlim, no aforismo Notcias de uma morte,Walter Benjamin

    (1995) ir questionar o uso da expresso djvu; referindo-se as situaes em que

    um estranho acontecimento tem o poder de nos convocar desprevenidos ao frio

    jazigo do passado(Benjamin, 1987, p.89). No aforismo, Walter Benjamin conta-nos

    sobre a noite que o pai lhe visitou em seu quarto, quando Benjamin tinha em torno

    de cinco anos de idade, para comunicar a morte de um parente distante. Benjamin

    conta que apenas anos mais tarde veio ter conhecimento que o pai silenciara,

    naquele quarto, que o parente havia morrido de sfilis.

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    EmAlegorias da dialtica,Ktia Muricy (1998) realiza uma discusso sobre o

    conceito de imagens dialticas, a partir da obra de Walter Benjamin. A proposta de

    Muricy pensar as imagens dialticas, como as imagens do passado, atravessadas

    pelos signos de um acontecimento vivido no presente(MURICY, 1998, p.216). Ao

    retomarmos o aforismo, Notcias de uma morte, o fazemos a partir de Muricy, to

    somente para reafirmar que as lembranas do acontecimento vivido na infncia, ao

    vir tona, quando o autor depara-se com o seu quarto de infncia, sero tratadas

    por Walter Benjamin como imagens dialticas.

    Utilizamos o conceito ao referimo-nos aos apelos do homem separado pela

    grade, reconhecido no momento posterior, quando o passado se fixou como uma

    imagem (MURICY, 1998). Mais importante do que nomear o acontecimento

    entender a tarefa imposta ao presente: resgatar os apelos do passado que ficaramsem reposta e libert-los, isto , reconhec-los, de forma que o futuro possa ser

    diferente (BENJAMIN, 1994).

    O apelo do homem que acenava diante da grade e no pde ser visto

    novamente coloca-nos diante da questo do professor Luis Antonio Baptista, sobre

    o campo de Auschwitz e o assassinato do vereador Renildo Jos dos Santos: O que

    acontecer ao nosso presente quando restos de corpos da Polnia ou de Alagoas

    responderem ao nosso olhar?(BAPTISTA, 2013, p. 65).

    Nove

    Os trabalhadores de Sade Mental implicados com o processo de

    desinstitucionalizao dos manicmios estavam em silncio. Mas, o silncio que

    viviam no era ausncia de palavras. Ao contrrio, o progresso cientfico havia

    ampliado o vocabulrio sobre a loucura. Desde O Alienista, publicado em 1882, a

    loucura havia se capilarizado tanto que, no sculo XXI, encontrvamos uma

    enxurrada de nomes para referirmo-nos experincia descrita por Machado de

    Assis. O silncio dos trabalhadores que retiravam os pacientes da Casa de Sade

    Dr. Eiras e da Colnia Juliano Moreira era de histrias. Como contar as histrias da

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    loucura, aps o que Walter Benjamin (BENJAMIN, 1994a, p.197) nomeou o fim da

    narrativa e o declnio da experincia?

    Quando a mulher cruzou o porto de sada do manicmio apenas com as

    roupas do corpo, pouco se sabia sobre ela. A primeira vista parecia-nos algum

    alienado de sua humanidade. No tinha documentos ou uma certido de

    nascimento. Consigo apenas vestgios da sua histria. Dentro de uma pasta

    arquivada no armrio de ferro, informaes desarticuladas constituam a memria

    oficial do que havia acontecido: o nmero da matrcula, anotaes sistemticas de

    procedimentos e consultas, o diagnstico de esquizofrenia e a prescrio de

    medicamentos.

    Se nos manicmios o apagamento da histria uma prtica instituda, somos

    levados a acreditar que isto se deve menos perversidade dos trabalhadores queprotagonizam estes atos do que reverncia que os homens do nosso tempo

    prestam tcnica. Apesar do risco de que a idia possa transmitir um certo

    reducionismo, em linhas gerais, o enunciado faz referncia questo da

    desvalorizao da experincia, entendida como a transmisso repassada de uma

    pessoa outra; e a sua gradativa substituio pelo conhecimento tcnico

    (GAGNEBIN, 1982,). Neste sentido que se pretende estabelecer a conexo entre

    a inexistncia de narrativas que pudessem contar a histria da mulher e um modo

    de produzir cincia que opera mensurando e codificando as histrias singulares, a

    partir de tipologias clnicas que transformam as experincias humanas em

    informao sobre a doena e diagnstico.

    Um fato ocorrido em um CAPS do Rio de Janeiro22ir recolocar este problema.

    Durante a reunio de equipe, os participantes so informados que o paciente Jorge

    da Silva23havia sido internado em uma emergncia psiquitrica. As expresses do

    grupo no deixavam dvida: ignoravam quem era o referido. Algum pede o

    pronturio. Abrem e procuram o CID24, impresso nas primeiras pginas e lem o

    22O fato foi narrado por um aluno da Universidade Federal Fluminense (UFF) em 2012, durante ocurso de ps-graduao em Psicologia.23Nome fictcio24Classificao Internacional das Doenas

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    diagnstico. A equipe logo o identifica: aquele paranico que faz uso de drogas,

    lembram?. O espanto seguinte ainda maior: o pronturio tinha a foto do paciente.

    A partir destes enunciados e imagens, tomaremos a fabricao de corpos sem

    materialidade e sem histria como um resduo da tcnica cientfica (BAPTISTA,

    2000).

    No manicmio judicirio Heitor Carrilho (RJ), outro episdio ir compor o

    extenso espectro de acontecimentos onde o predomnio da tcnica se impe em

    detrimento da experincia (BENJAMIN,1994a). A psicloga buscava conhecer a

    histria de um paciente, com longo regime de institucionalizao. Durante a leitura

    do pronturio25, ela conta que apenas uma informao lhe saltou aos olhos: ele

    gostava de fotografar. Todo o restante das pginas havia sido preenchido com

    informaes repetitivas, que no lhe diziam nada sobre aquela pessoa.Do silncio das histrias de vida - transformadas em informaes sobre a

    doena e diagnstico - passando pelo silncio dos saberes e tradies populares

    sobre a loucura - soterrados pelo triunfo da psiquiatria e da psicologia, - possvel

    dizermos que a modernidade havia reduzido a loucura a uma experincia cientfica.

    Neste sentido, tornvamo-nos cada vez mais pobres em histrias, pois os fatos j

    chegavam acompanhados de explicaes (BENJAMIN, 1994a, p.203) e eram

    apresentados em verso nica.

    ***

    No livro Fbrica de Interiores (BAPTISTA, 2000), o leitor conduzido a uma

    reunio clnica do Hospital Psiquitrico Pedro II (RJ), onde uma estagiria do curso

    de psicologia descreve, ao supervisor, as suas impresses sobre a paciente durante

    a entrevista diagnstica. Aps fazer a dissertao do atendimento, a aluna

    surpreendida com a pergunta do supervisor: Qual a cor dos olhos da paciente?

    Uma vez confinadas pela rigidez do enquadramento e dos papis previamente

    definidos; parece-nos que o supervisor buscou nos olhos da paciente a porosidade

    da cena: uma tentativa de recolocar o que havia de inacabado naquele encontro.

    Assim como um gro do domingo se esconde em todo dia de semana(BENJAMIN,

    25KNIJNIK,C. Cacos urbanos: gesto, cidade e narrao. Dissertao de Mestrado (UFF), 2009.

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    1995, p.150), os olhos eram a fresta, encoberta pelos fluxos centrados na tcnica e

    nos procedimentos. Em outras palavras, o que poderia ser extrado daquele

    encontro, alm do que j estava estabelecido?

    Antes do desenvolvimento dos transportes pblicos modernos, nem se podia

    imaginar a possibilidade de ficarmos longos minutos, talvez longas horas, perto de

    outra pessoa, de poder olh-la o tempo todo sem que esse olhar fosse respondido

    e correspondido (SIMMEL apud BENJAMIN, 1994b).

    Para onde os olhos da paciente levariam as convices cientficas, produtoras

    de invisibilidade?

    Dez

    Em um pequeno restaurante na Lapa, o caminhante sentou-se mesa aps

    escolher os alimentos e a quantidade que iriam ao prato. No almoo self-service

    havia arroz, feijo, carne assada, batata-frita, legumes e notcias do telejornal. Alm

    de sua presena nas residncias brasileiras, os televisores tornaram-se item

    obrigatrio nos estabelecimentos que comercializam comida.

    Entre uma garfada e outra assistia as imagens da tv, naquela tarde de sol. O

    apresentador do telejornal anuncia:Alm da mendicncia, da prostituio, do roubo,

    da violncia e das manifestaes populares, os moradores de Copacabana tero

    que se preocupar com a queda de corpos pela janela. O apresentador conta que

    dois cachorros foram atirados pela janela de um apartamento, no sexto andar, por

    volta das 18:00 horas26. Diz que os corpos dos animais poderiam ter atingido

    crianas e idosos que caminham pela calada neste horrio. No telejornal o

    apresentador diz que os moradores do prdio, ao chegarem em casa, foram

    surpreendidos com os cadveres de um pastor alemo e de um poodle, estirados

    na calada, prximo portaria. Os ces pertenciam me do homem que atirou os

    animais pela janela. O apresentador diz que o episdio foi registrado na delegacia

    26 Mdico joga dois ces do sexto andar de prdio. Veja.com, 23/05/2013. Disponvel

    em:.Acesso: 01/08/2014.

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    de polcia do bairro; e que, no depoimento, o mdico que atirou os ces pela janela

    alegou problemas mentais.

    O caminhante levantou-se em direo ao caixa para pagar a sua refeio.

    Enquanto revirava a carteira simultaneamente sacudia a cabea em sinal de

    reprovao. O caminhante no acreditava que os cachorros atirados pela janela

    constituam uma ameaa para as pessoas que andavam pelas ruas. Pensou que o

    maior risco representado pelos ces ainda era uma mordida. Lembrou de outras

    matrias apresentadas pela mdia, caracterizando as ruas como um espao

    perigoso. Digo, muito perigoso27. No entanto, inegvel que estvamos diante de

    uma questo importante: a conscincia da fragilidade da existncia.

    Atribuir s ruas este sentido algo to antigo quanto a prpria histria da

    formao das cidades. Um relatrio policial de 1798 sobre a cidade de Paris faz aseguinte indicao: quase impossvel manter os bons costumes numa populao

    amontoada, onde cada um , por assim dizer, desconhecido de todos os demais, e

    no precisa enrubescer diante dos olhos de ningum(BENJAMIN, 1994b, p.187).

    Em Charles Baudelaire: um lrico no auge do capitalismo, de Walter

    Benjamin, encontramos, no captulo sobre o Flneur, uma valiosa descrio do

    entrecruzamento de foras produzidas em uma cidade:

    IO inferno uma cidade muito semelhante a LondresUma cidade, populosa e fumacenta;Com todos os tipos de pessoas arruinadasE pouca ou nenhuma diversoPouca justia e ainda menos compaixo.

    IIL existe um palcio e uma canalizaoUm tal de Cobbett e um tal de Castlereagh

    Toda sorte de corporaes desonestasCom toda sorte de artifcios contraCorporaes menos corruptas que elas.

    27Durante uma temporada no Rio de Janeiro, a mdia ocupou os noticirios com a questo dasbalas perdidas, dos bueiros que explodiam e da epidemia do crack.

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    IIIL h um....que perdeu o juzoOu o vendeu, no se sabe a quemEle circula devagar como um fantasma curvadoE embora quase to sutil quanto a fraude

    Torna-se sempre mais rico e mais horrvel.IVL existe uma chancelaria; um rei;Uma malta industrial; uma corjaDe ladres, eleitos por si prpriosPara representar ladres parecidos;Um exrcito; e uma dvida pblica.

    VUm esquema de papel moedaQue simplesmente quer dizer:

    Abelhas guardai vossa cera- dai-nos o melE no vero plantaremos floresPara o inverno.

    VIL h grandes rumores de revoluoE grandes perspectivas para o despotismoSoldados alemes-acampamentos-confusoTumulto-loterias-fria-fantasmagoriaGin-suicdio e metodismo

    VIIImpostos tambm sobre vinho e poE carne e cerveja e queijo e chCom os quais so mantidos nossos patriotas,Que antes de cair na cama,Engolem dez vezes mais que todos os outros.

    IXL esto advogados, juzes, velhos beberresMeirinhos, chanceleresBispos, grandes e pequenos vigaristasVersejadores, panfletistas, especuladores da BolsaHomens com glrias guerreiras

    XFiguras cujo ofcio encostar-se s damasE flertar com elas, transfigur-las e sorrir para elas

    At que tudo o que divino numa mulher

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    Se torne atroz, ftil, insinuante e desumanoCrucificado entre um sorriso e um choro(BENJAMIN,1994b, p. 228-229).

    O homem diante de uma cidade populosa e fumacenta, com pessoas

    arruinadas, soldados alemes, e no meio fria e ao tumulto das ruas, enxerga dois

    modelos para seguir: assiste distncia o que se passa nas ruas, conforme o conto

    de Hoffmann, intitulado Ajanela de esquina do primo; ou vive os acontecimentos da

    rua como expresso da alteridade, conforme o conto O homem na multido, de

    Edgar Allan Poe.

    O primeiro observador, instalado em seu ambiente domstico, examina a

    multido com seu par de binculos. O personagem que encarna o primo se sente

    acima desta multido, conforme sugere seu posto de observao no apartamento.A posio do primo em relao aos acontecimentos que acontecem do lado

    de fora da janela nos faz lembrar a posio das pessoas diante da televiso.

    Sentado em sua poltrona, possvel acompanhar tudo o que se passa ao redor do

    mundo, sem precisar abandonar o