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REVISÃO REVIEW 487 1 Departamento de Psicologia, Universidade Federal de Minas Gerais. Av. Presidente Antônio Carlos 6627, Pampulha. 31.270-901 Belo Horizonte MG Brasil. fernandosantana.paiva@ yahoo.com.br 2 Universidade Federal de Juiz de Fora. Participação social e saúde no Brasil: revisão sistemática sobre o tema Social participation and health in Brazil: a systematic review on the topic Resumo O processo de democratização brasilei- ro contribuiu para a emergência de conselhos ges- tores e conferências temáticas no contexto das políticas públicas de saúde. O objetivo do presente artigo foi realizar uma revisão sistemática de li- teratura com o intuito de conhecer os fatores re- lacionados ao processo de institucionalização des- tas arenas democráticas. Foram pesquisadas as se- guintes bases: Lilacs, Ibecs, Medline, Scielo, Paho, Psycinfo, Web of Science, Social Science e Ebsco. Para a composição da amostra de 25 artigos foram associados os seguintes descritores: Social Control, Social Participation, Consumer Participation, Community Participation, Public Participation, Citizen Participation, Political Participation, Par- ticipative Management, Participative Democra- cy, Deliberative Democracy com Health Councils e Health Conferences. Os resultados encontrados sintetizam um conjunto de categorias que tem im- pactado os espaços públicos participativos: repre- sentatividade e capacitação política, relações en- tre os atores sociais, desenho institucional, cultu- ra política, discursos sobre saúde/doença e o de- bate em torno da democracia. Os achados contri- buem para avançarmos na compreensão de tais instituições, favorecendo a construção de alter- nativas comprometidas com o fortalecimento da democracia em nosso país. Palavras-chave Participação social, Conselhos de saúde, Democracia Abstract The process of democratization of Bra- zil contributed to the emergence of management councils and thematic conferences in the context of public health policies. The scope of this article was to conduct a systematic review of the litera- ture in order to establish the factors associated with the process of institutionalization of these democratic areas. The following databases were researched: LILACS, IBECS, MEDLINE, SciELO, PAHO, PsycINFO, Web of Science, Social Science and EBSCO. For the composition of the sample of 25 articles, the following key words were used: Social Control, Social Participation, Consumer Participation, Community Participation, Public Participation, Citizen Participation, Political Par- ticipation, Participative Management, Participa- tive Democracy, Deliberative Democracy with Health Councils and Health Conferences. The results found synthesize a set of categories that has impacted the participatory public spaces: po- litical representation and qualification, relation- ships among the social actors, institutional de- sign, political culture, discourses about health/ disease and the debate about democracy. The find- ings help to move forward in the understanding of such institutions, fostering the construction of alternatives committed to the strengthening of democracy in Brazil. Key words Social participation, Health counsel- ing, Democracy Fernando Santana de Paiva 1 Cornelis Johannes Van Stralen 1 Pedro Henrique Antunes da Costa 2 DOI: 10.1590/1413-81232014192.10542012

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Artigo de revisão

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1 Departamento dePsicologia, UniversidadeFederal de Minas Gerais. Av.Presidente Antônio Carlos6627, Pampulha.31.270-901 Belo HorizonteMG [email protected] Universidade Federal deJuiz de Fora.

Participação social e saúde no Brasil:revisão sistemática sobre o tema

Social participation and health in Brazil:a systematic review on the topic

Resumo O processo de democratização brasilei-ro contribuiu para a emergência de conselhos ges-tores e conferências temáticas no contexto daspolíticas públicas de saúde. O objetivo do presenteartigo foi realizar uma revisão sistemática de li-teratura com o intuito de conhecer os fatores re-lacionados ao processo de institucionalização des-tas arenas democráticas. Foram pesquisadas as se-guintes bases: Lilacs, Ibecs, Medline, Scielo, Paho,Psycinfo, Web of Science, Social Science e Ebsco.Para a composição da amostra de 25 artigos foramassociados os seguintes descritores: Social Control,Social Participation, Consumer Participation,Community Participation, Public Participation,Citizen Participation, Political Participation, Par-ticipative Management, Participative Democra-cy, Deliberative Democracy com Health Councilse Health Conferences. Os resultados encontradossintetizam um conjunto de categorias que tem im-pactado os espaços públicos participativos: repre-sentatividade e capacitação política, relações en-tre os atores sociais, desenho institucional, cultu-ra política, discursos sobre saúde/doença e o de-bate em torno da democracia. Os achados contri-buem para avançarmos na compreensão de taisinstituições, favorecendo a construção de alter-nativas comprometidas com o fortalecimento dademocracia em nosso país.Palavras-chave Participação social, Conselhosde saúde, Democracia

Abstract The process of democratization of Bra-zil contributed to the emergence of managementcouncils and thematic conferences in the contextof public health policies. The scope of this articlewas to conduct a systematic review of the litera-ture in order to establish the factors associatedwith the process of institutionalization of thesedemocratic areas. The following databases wereresearched: LILACS, IBECS, MEDLINE, SciELO,PAHO, PsycINFO, Web of Science, Social Scienceand EBSCO. For the composition of the sample of25 articles, the following key words were used:Social Control, Social Participation, ConsumerParticipation, Community Participation, PublicParticipation, Citizen Participation, Political Par-ticipation, Participative Management, Participa-tive Democracy, Deliberative Democracy withHealth Councils and Health Conferences. Theresults found synthesize a set of categories thathas impacted the participatory public spaces: po-litical representation and qualification, relation-ships among the social actors, institutional de-sign, political culture, discourses about health/disease and the debate about democracy. The find-ings help to move forward in the understandingof such institutions, fostering the construction ofalternatives committed to the strengthening ofdemocracy in Brazil.Key words Social participation, Health counsel-ing, Democracy

Fernando Santana de Paiva 1

Cornelis Johannes Van Stralen 1

Pedro Henrique Antunes da Costa 2

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Introdução

Nas últimas duas décadas foram instituídos noBrasil espaços públicos de participação e controlesocial em torno das políticas públicas de saúde,conformando os chamados conselhos gestores econferências temáticas. A possibilidade de con-cretização de tais espaços ocorreu a partir da pro-mulgação da constituição de 1988 e a criação doSistema Único de Saúde (SUS) no ano de 1990,onde os conselhos de saúde foram instituídos nastrês esferas governamentais, assim como foi deli-mitada a realização periódica de conferências te-máticas. Estes mecanismos passaram a atuar noprocesso de deliberação política, em aspectos re-lacionados ao planejamento, execução, controle,fiscalização e supervisão dos planos, programas eprojetos a serem implantados a nível local, alémde discutirem sobre a formulação de estratégias eno controle e execução da política de saúde1-3.

Sposati e Lobo4 sinalizam que estes mecanis-mos de controle social na saúde surgiram emmeio às expectativas dos protagonistas da refor-ma sanitária brasileira que apostaram na possi-bilidade de contraposição a uma cultura políticatradicional, marcada por práticas clientelistas eautoritárias, favorecendo o accountability, apos-tando ainda que sua institucionalização termi-naria por se constituir como um espaço de ex-pressão de demandas e expectativas dos váriossegmentos que os compõem. Esta concepção,conforme esclarece Stralen5 baseia-se no fato deque o sistema de saúde envolve vários stakehol-ders e que a sua reestruturação envolve as expec-tativas, as demandas e os comportamentos detodos os atores envolvidos na prestação da aten-ção – de gestores até usuários –, e implica a re-formulação das relações entre estes atores.

A despeito de tais expectativas, é imperiosoanalisar como tais inovações democráticas têmse inserido no contexto sociopolítico e econômi-co nacional nestes últimos 20 anos, a fim de com-preendermos como eles têm cumprido com seuideário resolutivo de vocalização das demandassociais e a democratização das relações sociais epolíticas6,7.

Nesta perspectiva o objetivo do presente ar-tigo foi realizar uma revisão de literatura siste-mática, tendo por finalidade construir um ma-peamento da produção acadêmica em relação àtemática, visando apreender os resultados encon-trados por investigações que intentaram com-preender o processo de institucionalização dosespaços públicos de participação no setor saúdeem nosso país.

Metodologia

Primeiramente procedeu-se a busca de resumosempregando o operador booleano and na asso-ciação entre os seguintes descritores: Social Con-trol, Social Participation, Consumer Participati-on, Community Participation, Public Participati-on, Citizen Participation, Political Participation,Participative Management, Participative Demo-cracy, Deliberative Democracy com Health Coun-cils e Health Conferences. As bases de dados defi-nidas para a busca foram: Lilacs, Ibecs, Medline,Scielo, Paho, Psycinfo, Web of Science, Social Sci-ence e Ebsco. É importante sinalizar que opta-mos por não estabelecer um corte temporal paraa realização desta pesquisa.

O segundo passo se deu a partir da leituraacurada dos resumos encontrados, sendo incluí-dos aqueles que preenchiam os seguintes critéri-os: a) relatos de pesquisas empíricas (de naturezaquantitativa ou qualitativa) sobre conselhos mu-nicipais de saúde e conferências (nacional, esta-dual e municipal) de saúde; b) objetivos, méto-dos e resultados claramente definidos no resu-mo; c) a pesquisa ter sido realizada com conse-lheiros ou demais atores sociais que participemdestas arenas deliberativas; d) artigos publicadosnas línguas portuguesa, inglesa ou espanhola.Foram excluídos os artigos com as seguintes ca-racterísticas: a) trabalhos teóricos, relatos de ex-periências, materiais educativos, teses ou disser-tações; b) resumos sem descrição metodológicacompleta (objetivos, método e resultados); c) pes-quisas realizadas com atores sociais (profissio-nais, usuários ou gestores) que não participamda dinâmica dos conselhos e conferências; d) ar-tigos interessados em comparações entre diferen-tes conselhos gestores de políticas públicas.

A partir da utilização dos descritores supra-citados, foi encontrado um total de 2128 estu-dos. Após o descarte dos resumos duplicados, aleitura pormenorizada de seus resumos e a apli-cação dos critérios indicados, permaneceram 37estudos, os quais foram lidos na íntegra. Posteri-ormente foram excluídos mais 12 trabalhos quenão estavam de acordo com os critérios supraci-tados e, mais adiante, após consultoria com umespecialista na área, incorporou-se mais um ar-tigo, perfazendo assim um total de 26 trabalhos.Entretanto, apenas um deles foi destinado a ana-lisar as conferências de saúde, e por esta razão,optamos em analisar apenas as pesquisas ocu-padas com os conselhos de saúde, sendo então aamostra final composta por 25 artigos de natu-reza empírica. Estes foram tabulados, com dis-

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criminação dos seguintes itens: autores, ano, paíse periódico de publicação, descrição do tema deestudo, metodologia empregada e resultados en-contrados. Este processo, ilustrado na Figura 1,culminou na definição de categorias temáticasidentificadas após análise descritiva e qualitativada amostra bibliográfica. Cumpre destacar quetodo o procedimento de busca ocorreu por meioda avaliação por pares, o que significa que doispesquisadores realizaram ao mesmo tempo abusca nas bases de dados empregando os mes-mos descritores. Em seguida houve a avaliaçãode um terceiro pesquisador, atuando como umjuiz, sendo processada uma discussão com osdemais para a definição dos trabalhos incluídosna amostra final. Ademais, em todo o processodescrito anteriormente foi utilizado como ferra-menta de apoio o programa EndNote X.3, com ointuito de organizar o material encontrado.

Resultados

Todos os estudos a respeito dos conselhos desaúde datam da última década (anos 2000), oque pode ser explicado pela novidade que taisarranjos democráticos representam. Os periódi-cos nacionais foram os que mais apresentarampublicações (20), seguido da Inglaterra (3), Es-panha (2) e Estados Unidos (1). O método qua-litativo para a realização das pesquisas foi o maisempregado, correspondendo a 19 trabalhos, sen-do a análise documental (principalmente atas dasreuniões), seguida de observação e entrevistascom atores chave as técnicas mais utilizadas.Quatro estudos se valeram de métodos qualita-tivos e quantitativos, ao passo que quatro ou-tras pesquisas empregaram unicamente méto-dos quantitativos (surveys).

A partir dos resultados encontrados, sinteti-zados no Quadro 1, abordaremos cada uma dascategorias, apontando os principais argumentose análises empregados em meio aos diferentesestudos identificados.

Representatividade política

A discussão em torno da representação polí-tica nos conselhos de saúde tem ocupado espaçocentral entre os trabalhos analisados. A este res-peito, Urbinati8 nos esclarece que historicamente,a democratização iniciou-se com o pro-cesso re-presentativo, o qual seguindo a dinâmica de or-ganização social e legal – e a formação de umaligação sem precedentes entre Estado e sociedade

– tem no ideal da representação a possibilidadede que [...] qualquer reivindicação que os cida-dãos tragam para a arena política e queiram tor-nar um tema de representação é invariavelmenteum reflexo da luta para a redefinição das frontei-ras entre as suas con-dições sociais e a legislação8.Ao passo que uma política representacional con-cebe a sociedade democrática como uma malhaintrincada de significados e interpretações dascrenças e opiniões dos cidadãos a respeito dequais são seus interesses, crenças que são especí-ficas, diferenciadas e sujeitas à variação ao longoda vida real das pessoas.

Figura 1. Processo de coleta dos artigos.

Fonte: do autor

Nº de artigos identificados: 2128. LILACS: 524. IBECS: 14. MEDLINE: 807. PAHO: 2. SCIELO: 182. WEB OF SCIENCE: 183. SOCIAL SCIENCE: 152. PSYCINFO: 169. EBSCO: 95

Amostra final darevisão: 25

Nº de estudos excluídos apósleitura dos resumos e aplicação

dos critérios de inclusão eexclusão e descarte dos

duplicados: 2091

Estudos selecionados paraleitura integral: 37

Nº de estudos excluídosapós leitura na íntegra: 12

Incorporação de 1 estudoapós consulta com

especialista

Eliminação de 1 artigorelacionado às

Conferências de Saúde

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O tema da representação tem sido apontadocomo um nó limitador destes espaços públicos,podendo os resultados ser assim sintetizados: a)processo de oligarquização, profissionalização eelitização dos conselheiros de saúde que repre-sentam diferentes setores sociais; b) frágil rela-ção entre os representantes e a base representa-da; c) ausência de regras claras no que se refere àseleção das entidades representativas da socieda-de civil (dificuldade em representar uma socie-dade complexa e com discursos diversos); d)conformação de atores políticos denominadosde “policonselheiros”.

No que se refere ao processo de oligarquiza-ção, profissionalização e elitização dos conselhei-ros, as análises se direcionam para o processo deescolha das entidades que serão representadasno conselho, pelas quais serão indicados os ato-res a compor tal arena. Não se configura clara-mente quais os critérios de elegibilidade de taisentidades, que estão sujeitas a malha social ex-tremamente diversa em nosso país9. Um grupode pesquisadores contribui nesta direção ao si-nalizar o papel dos gestores na definição de quem

participará dos conselhos, uma vez que tendoem conta a prerrogativa da indicação de entida-des, os representantes do poder executivo bus-cam articular parcerias que melhor representemseus interesses. Neste sentido, a proximidade doator estatal com alguns segmentos sociais pode-rá significar suas indicações para a composiçãodo conselho, sendo, portanto, estrategicamenteinseridos nos espaços públicos mais em razão desua aliança com o ator estatal do que de fato porrepresentarem a diversidade existente na esferada sociedade civil10-13.

Ademais encontramos situações apontadaspela literatura de que, especialmente em municí-pios de pequeno porte vem ocorrendo um pro-cesso de formação de “policonselheiros”14. Istorevela que um grupo específico de atores sociaispassa a ocupar todos os diferentes espaços pú-blicos – conselhos gestores –, culminando emcerta profissionalização da função de conselhei-ro. As consequências são os limites que tal qua-dro coloca para o processo de representatividadede interesses coletivos diversos, uma vez que acristalização destas posições nos variados espa-

Categorias

Representatividadepolítica

Capacitação política

Relações estabelecidasentre os atores sociais

Cultura Política

Desenho institucional

Discursos sobreSaúde/Doença

Democracia emdebate: uma mirada apartir dos conselhosde saúde

Síntese dos resultados

Profissionalização dos conselheiros;Distanciamento entre representantes e representados;Ausência de marcadores claros quanto à escolha das entidades representativas

Falta de capacitação técnica e política para participação nos conselhos de saúde.

Relações assimétricas entre atores sociais, permeadas pela valorização de umdiscurso técnico/científico.

Impacto da cultura política tradicional marcada pelo paternalismo,autoritarismo e clientelismo.

Dificuldades de autonomia política e logística dos conselhos;Carência de entendimento sobre os procedimentos e dinâmica defuncionamento dos conselhos.

Divergências entre concepções de saúde de caráter abrangente com a busca porreivindicações marcadas pelo modelo biomédico.

Discussão em relação aos pressupostos da democracia representativa,participativa e deliberativa.

Quadro 1. Principais categorias temáticas e síntese dos resultados.

Fonte: do autor

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ços públicos não contribui para a sublevação deatores historicamente excluídos dos processos dedeliberação e, além disso, a situação em tela sina-liza para a inexistência de uma sociedade civil comhistórico de participação e mobilização social, oque reflete na dificuldade de emergência de atorescoletivos organizados em prol da publicizaçãode seus interesses.

Outro aspecto relevante se refere ao processode afastamento das bases de apoio por parte dosconselheiros. Isto tende a refletir uma lacuna refe-rente à discussão com os representados acercadas decisões tomadas no conselho e ainda a nãodiscussão sobre as reais necessidades dos segmen-tos populacionais a serem vocalizadas nos espa-ços de controle social. Os resultados encontradosreferem-se ao frágil vínculo estabelecido entre re-presentados e representantes, revelando diferen-ças em defesa de propostas comuns no cenárioda sociedade civil, o que contribui para a dificul-dade e mesmo a ausência de uma construção co-letiva de um projeto social e político, orientadospara o fortalecimento do processo de democrati-zação15,16. Encontramos ainda investigações queapontam para o próprio descontentamento dosatores sociais inseridos nos conselhos com res-peito à organicidade da representação. Assim, emalguns casos o ator estatal aponta a fragilidade darepresentação dos conselheiros usuários, que, se-gundo eles, não conseguem vocalizar e proble-matizar as questões junto à comunidade. Em con-trapartida, os representantes dos usuários avali-am que o poder executivo frequentemente tentatransformar o conselho em um espaço burocra-tizado, restrito à aprovação de verbas, onde ape-nas se referenda as propostas apresentadas, nãohavendo possibilidade de que o exercício políticodeliberativo, e, por conseguinte, o de representa-ção de interesses de fato ocorra5,14

Guizardi e Pinheiro17 contribuem com estadiscussão ao salientar que pretender uma [...]igualdade a partir da presença física dos represen-tantes seria supor que ela pudesse superar em simesma um longo processo sócio-histórico engen-drado através de inúmeras desigualdades17. Qua-dro este, que de acordo com Gerschman6 ao pro-por uma análise histórica sobre a conformaçãodos espaços conselhistas considera que [...] a re-presentação da sociedade civil nos conselhos de saúdefoi se tornando, na conjuntura política adversados anos 90, mera virtualidade6, uma vez que ocor-rem disputas de interesses e projetos políticosdiferenciados. Por este motivo os conselhos temse transformado em espaços burocráticos e ocu-pados com a elaboração e execução de projetos

setoriais e de legitimação das práticas governa-mentais.

Frente a este quadro, podemos considerar quepara compreendermos o significado da repre-sentação política no interior dos conselhos desaúde, é importante ter clareza que a existêncialegal de tais arenas não garante imediatamente arepresentação dos interesses coletivos, pois o fatode se ter um espaço de participação, pode nãonecessariamente formalizar os interesses daque-les que estão de alguma maneira sendo represen-tados. E, consequentemente, pode ocorrer umabaixa visibilidade dos conselhos e uma represen-tação conselhista despida da defesa de projetos edemandas criados coletivamente, o que pode re-duzir o fortalecimento das entidades, organiza-ções e movimentos sociais em prol da democra-tização das políticas públicas de saúde15.

Capacitação política

A preocupação com a capacidade (condiçõesem se inserir nas arenas participatórias com ointuito de deliberar sobre os temas e projetos naárea de saúde) dos atores sociais é bastante dis-cutida em meio às pesquisas encontradas. Osresultados têm sinalizado a preocupação com acapacitação para o exercício democrático no in-terior dos conselhos de saúde, em especial, como segmento usuários, o qual é percebido compoucos recursos para exercer o papel deliberati-vo nos conselhos, haja vista a falta de informa-ção, escolaridade, habilidade e clareza acerca dadinâmica e funcionamento dos mesmos18,19.

Estar capacitado surge em meio aos estudosa partir da consideração de aspectos de ordemtécnica, política e logística. No que se refere à ca-pacidade técnica, alguns apontamentos são ma-joritariamente considerados, como a importân-cia do grau de escolaridade e a valorização decerto “perfil”, leia-se, um conjunto de habilida-des para o exercício deliberativo, como capaci-dade argumentativa e conhecimento especializa-do sobre a política de saúde. A ausência ou fragi-lidade com relação a estas habilidades pode difi-cultar a concretização de uma gestão participati-va, conforme discutido por Gonçalves et al.20.Argumento respaldado por Guizardi e Pinhei-ro17, que consideram que [...] a falta de preparopara a função fica explícita na constatação de quequase todas as pessoas que participaram dos conse-lhos afirmam não ter conseguido participar dasdiscussões e questões trabalhadas nesse espaço17. Anoção de capacitação atrelada a conhecimentostécnico-operacionais revela por outro lado o pri-

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vilégio atribuído no interior dos espaços públi-cos ao discurso tecnocrata-especializado. E nestaperspectiva o segmento dos usuários termina porapresentar dificuldades no exercício deliberativo,ao prevalecer uma linguagem técnica, e que, por-tanto dificulta o diálogo entre os segmentos, sen-do encontradas situações de manipulação de taisespaços, uma vez que não havendo tempo e/oucondições técnicas para deliberação, ocorre umapressão para a aprovação imediata de projetoscom argumentos de ordem financeira como ba-lizadores21-23

Em outra direção, alguns poucos trabalhossinalizam que tais arranjos representam um es-paço de aprendizagem democrática, e, portanto,são importantes para o desenvolvimento de umachamada cultura cívica. Labra e Figueiredo24

apresentam este argumento e consideram os con-selhos de saúde como locais de aprendizado depráticas democráticas, de tolerância e de coope-ração, com potencial para o fomento de um cír-culo virtuoso que tende a incutir valores de umacomunidade cívica ao incentivar a acumulaçãode capital social, contribuindo para o fortaleci-mento da democracia. Assim, a falta de capacita-ção não deve ser compreendida como um pro-blema estrutural para a legitimação dos conse-lhos, mas ser analisada a partir de outro prisma,uma vez que os conselhos podem assumir o pa-pel de formadores de sujeitos mais críticos e ca-pazes para o exercício democrático.

Acreditamos que seja necessário um maiorquestionamento acerca da natureza e importân-cia da capacitação para o exercício democrático,ao nos fazermos a seguinte questão: de que capa-citação está-se falando? O que os estudos apon-tam é a dificuldade encontrada pelos atores inse-ridos nestas arenas políticas em atender aos pre-ceitos teórico-legais que embasam o exercício dosconselhos. Ou seja, é consensual afirmar que osconselhos não atingem o ideal deliberativo e con-sequentemente não cumprem a legislação brasi-leira referente ao papel destas arenas de partici-pação social, o que pode remeter-nos a questio-nar a capacidade deles em atingir determinadosideais da democracia deliberativa, pautada pelaargumentação racional entre os atores políticos,a despeito de outras formas discursivas que sãoproduzidas, tendo em vista as diferenças sociaise culturais que existem em nossa sociedade e sereproduzem no espaço conselhista. Ademais, adificuldade dos conselheiros em cumprirem comsuas atribuições, e, portanto, se tornarem inca-pazes, pode também estar relacionada a certasobrecarga de atividades e expectativas com rela-

ção a este espaço público. E, por fim, é curiosoque não encontramos ao longo dos artigos ana-lisados, alguma discussão sobre a capacitação dosprofissionais, prestadores de serviço e represen-tantes do executivo para o exercício deliberativo,fazendo crer que talvez tais segmentos já possu-am alguma capacitação “natural” para o debatedemocrático. Enfim, questões que talvez possamser melhores analisadas posteriormente.

Relações estabelecidasentre os atores sociais

No intuito de provocar alguma reflexão so-bre esta categoria, pode ser relevante resgatar duasquestões importantes. A primeira diz respeito àrelação que historicamente se estabeleceu entreos saberes ditos populares e o saberes de nature-za técnico-científica em nosso contexto sociocul-tural. É atribuído um caráter de maior legitimi-dade aos detentores de um conhecimento siste-matizado e, consequentemente, com maior au-toridade para direcionar e decidir sobre diferen-tes questões, que terminam por exercer maiorautoridade sob aqueles que não o possuem. Emespecial, no campo da saúde, esta situação podeser observada nas relações que se estabelecementre profissionais (detentores de um saber es-pecializado) e usuários, por onde são estabeleci-das hierarquias de saber, atribuindo ao discursoprofissional/especializado maior legitimidadeperante aos saberes oriundos do contexto social.Uma segunda questão nos remete à maneira comque tradicionalmente os diferentes saberes sãoempregados no exercício de tomada de decisõesno âmbito político. Neste contexto, podemosencontrar a valorização da expertise, haja vista autilização de um conhecimento técnico-científicoque legitime decisões e projetos políticos. Associ-ando a valorização do saber especializado emdetrimento aos saberes populares com a tradi-ção política na qual as decisões devem ser toma-das por “notáveis”, configura-se um quadro ondeo poder passa a ser exercido por aqueles que cum-prem tais requisitos: maior conhecimento espe-cializado sobre as questões debatidas.

Os principais achados no tocante às relaçõesque se constroem no interior dos conselhos pa-recem sinalizar que ocorre a utilização de um dis-curso técnico/científico como forma de se esta-belecer relações de subordinação, especialmenteentre o segmento dos profissionais/executivo emrelação aos usuários25. A concretização desta si-tuação está ligada à adoção, conforme sinaliza-do acima, de uma linguagem que tende a margi-

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nalizar das discussões o segmento menos escola-rizado ou aquele menos acostumado ao debate eexercício político, uma vez que determinados sa-beres são mais valorizados e, portanto, mais acei-tos e legítimos entre os atores sociais, o que re-mete a nossa discussão sobre a capacitação rea-lizada no item anterior17,22.

Consequentemente observamos a demarca-ção de diferentes posições de poder no processode deliberação e tomada de decisões, culminan-do em comportamentos marcadamente tidoscomo mera vocalização de demandas e queixasdos usuários, condicionando as decisões de fatoaos argumentos de profissionais especializados,por meio da expertise e/ou pelos atores estataisao se valerem da posição de maior autoridadeperante os demais participantes do conselho. Istopode revelar também a tradicional relação que seestabelece entre Estado e sociedade civil no quediz respeito às discussões sobre políticas públi-cas, haja vista que a população é entendida comomera receptora e beneficiária de ações e serviços,sendo responsabilidade do aparato estatal deci-dir sobre como e quando ofertar tais benefíci-os26. Wendhausen e Caponi22 ainda consideramque as relações existentes no interior do conselhopodem ser marcadas por hipercodificações ideo-lógicas, as quais são utilizadas para silenciar evisam limitar o processo dialógico entre os sujei-tos sociais. Assim como sinalizado anteriormen-te, o discurso técnico (especialmente de profissi-onais e do executivo) diminui as possibilidadesde um debate democrático no interior destas are-nas democráticas, fazendo emergir um conjuntode relações e articulações assimétricas entre osdiferentes atores, a partir de um silenciamentoque ocorre por meio de discursos considerados“verdadeiros” ou “autorizados”. Ao mesmo tem-po, conforme salienta Wendhausen25 a assime-tria encontrada no interior dos conselhos podeser compreendida como o produto das desigual-dades sociais com as quais nos deparamos emnossa realidade sociocultural. E indubitavelmenteestas não serão dissolvidas simplesmente pelainstitucionalização de espaços marcados por umteor democrático e participativo, mas contraria-mente podem ser intensificadas e dificultarem aconsolidação dos conselhos de saúde27.

Cultura política

A formação dos conselhos foi pensada comoa possibilidade de conformação de uma novacultura, no sentido de democratizar o processode tomada de decisões na política pública de saú-

de4. A novidade representada por tais arenas secontrapõe a modelos tradicionais que caracteri-zam a práxis política em nosso país. Nesta pers-pectiva, vale resgatar que o projeto da participa-ção e controle social na saúde, materializado viaconselhos e conferências, a despeito de se carac-terizarem como arenas inovadoras da culturapolítica brasileira, tem se deparado com um ar-cabouço político nacional caracterizado por prá-ticas tradicionais como o clientelismo, a patro-nagem, o autoritarismo e o paternalismo28. Estaassertiva nos aponta para um quadro conflitan-te, haja vista que vão se conformando projetospolíticos, mediados por práticas discursivas di-vergentes, mas, que de alguma maneira, se arti-culam e promovem a concretização das práticasobservadas no interior dos mecanismos de ges-tão participativa na saúde.

Um aspecto comumente encontrado é a defe-sa de interesses particulares em contraposição aconformação de um projeto coletivo que subs-tancialize as discussões em torno das políticas nasaúde. O clientelismo se atualiza no interior dosconselhos, sendo possível a observação de trocasde favores ou mesmo certa mercantilização dasquestões e problemas que são até ali direciona-dos. O exercício deliberativo acerca das questõesde saúde pública pode ser substituído pelo favo-recimento de aliados ou eleitores, formando as-sim uma cadeia articulada na defesa de interessesde ordem particular e não pública, sendo refor-çados pela expectativa em se alcançar determina-dos ganhos secundários, como o acesso a servi-ços ou benefícios tais como exames, medicamen-tos e outros procedimentos ofertados pelo SUS,o que pode ser percebido pela população como aalternativa mais viável para a resolução dos pro-blemas encontrados5.

Cornwall29 pôde verificar que as práticas po-líticas sofrem influência da cultura política, anali-sando os significados de contenção e contestaçãooperados pelos partidos políticos (mediadorestradicionais na história da política e no sistemademocrático) no interior dos arranjos participa-tivos na saúde. A autora considera que para umamelhor compreensão a respeito dos conselhos,entendidos como instituições políticas, não se deveignorar a influência dos partidos políticos, bemcomo os demais mecanismos tradicionais de re-presentação, a partir do entendimento das práti-cas empregadas em espaços públicos diversos. Talconsideração levanta uma questão sobre a nãoexistência de “espaços deliberativos puros”, ou seja,sem nenhuma influência externa que possa com-prometer o exercício deliberativo.

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Em contrapartida a convivência de discursose práticas diversas com relação à democracia nointerior dos conselhos nos remete à importânciaem se considerar o contexto sociopolítico sob oqual tais arranjos estão assentados. Nesta dire-ção compreender como os pressupostos da de-mocracia participativa, que defendem a capaci-dade de discussão entre os diferentes grupos so-ciais em busca de soluções para seus problemascoletivos, convivem com práticas políticas mar-cadas pelo clientelismo, autoritarismo e sentimen-tos de patrimônio, pode ser um passo impor-tante para avançarmos com nossa discussão arespeito do potencial democrático dos espaçospúblicos participativos.

Desenho institucional

O desenho institucional pode ser compreen-dido pela conformação de espaços institucionaisque se dão a partir da relação entre sociedadecivil e política, a qual incide na dinâmica e nofuncionamento, na definição de regras e normascom vistas à redução de iniquidades sociais, comreflexos no potencial democratizante dos conse-lhos de saúde. Estes, segundo Avritzer30, são pen-sados como desenhos institucionais de partilhado poder e são constituídos pelo próprio Estado,com representação mista de atores da sociedadecivil e atores estatais, o que insere a noção deinstituições participativas, sob as quais se expres-sam formas diferenciadas de incorporação decidadãos e associações da sociedade civil na deli-beração sobre políticas.

A respeito desta categoria, podemos inicial-mente ressaltar que a estrutura dos conselhos desaúde não apresenta um caráter homogêneo aolongo de nosso país, a depender de fatores deordem social, cultural, política e econômica queinfluenciam a maneira como o conselho será de-senhado. Neste sentido, diferenças quanto aotamanho do município (pequeno, médio ou gran-de porte), o histórico de mobilização social bemcomo a tradição política local irá impactar dire-tamente no desenho institucional dos conselhosde saúde19,31,32. Em pesquisa realizada com maisde cinco mil municípios brasileiros, Moreira eEscorel31 discutem questões relacionadas à es-truturação dos conselhos a partir de três fatores:a) autonomia; b) Organização; c) Acesso. Emrelação ao fator autonomia os resultados encon-trados sinalizam para as dificuldades de ordemestrutural dos conselhos de saúde, concretizadospela ausência de linha telefônica, internet, recur-sos humanos, sede própria para funcionamento

bem como autonomia orçamentária, sendo oquadro mais grave o observado em municípioscom até 50 mil habitantes. A respeito da catego-ria organização, os resultados se mostraram ne-gativos em relação à participação em capacita-ções, existência de comissões internas de funcio-namento, sendo apenas positiva a periodicidadedas reuniões, que é mensal conforme recomen-dado pela resolução 333 do Ministério da Saúde.O acesso foi a dimensão melhor avaliada entreos municípios brasileiros, sinalizando a possibi-lidade no âmbito legal, respaldados pelos regi-mentos internos dos conselhos, dos atores polí-ticos assumirem a presidência do conselho, bemcomo a garantia de participação da populaçãodurante as reuniões ordinárias. Entretanto, valesalientar que ao comparar as diferentes localida-des, os resultados referentes a municípios situa-dos no interior são sempre piores em relaçãoàqueles de caráter mais urbano e industrial, oude grande porte.

Em um estudo de caso realizado por Cotta etal.33 foi encontrado problemas com respeito àestrutura do CMS, como ausência de paridadeentre os representantes e divulgação das reuni-ões, além de ser significativa a baixa publicizaçãodas decisões tomadas no interior dos conselhos,bem como a não avaliação dos documentos degestão. Resultados que vão ao encontro da pes-quisa desenvolvida por Stralen et al.5 no estadode Minas Gerais, ao revelar que a discussão acer-ca da estruturação do conselho, definição de re-gras e atribuições toma parte significativa dasreuniões, o que indica a necessidade de melhorcompreensão dos próprios conselheiros acercado espaço público em que estão inseridos.

Discursos sobre saúde/doença

A discussão sobre as concepções marcadaspor certos reducionismos (médicos, psicológi-cos) a respeito do binômio saúde/doença é ex-tensa na área da saúde. A tradição e a influênciado modelo biomédico marcaram e ainda estãopresentes na produção de conhecimento, forma-ção profissional e planejamento de ações e servi-ços em saúde pública34. Automaticamente, asconcepções calcadas em uma visão curativa emedicamentosa, que prevalece e conformam asrepresentações de profissionais, gestores e inclu-sive da própria população se evidenciam nas dis-cussões e tomadas de decisão operadas pelosconselheiros de saúde, impactando sobremanei-ra a priorização de ações, serviços e resolução dequestões neste campo.

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Wendhausen e Rodrigues35 observaram di-vergências entre os discursos e as práticas dosconselheiros concernentes à questão da saúde,pois a despeito de apresentarem um discurso quese aproxima do preconizado pela OrganizaçãoMundial da Saúde, que a compreende como um“completo estado de bem-estar biopsicossocial”,o mesmo não parece repercutir em suas práticasno interior dos conselhos. Apesar de apresenta-rem um discurso de saúde abrangente, não con-seguem materializá-lo nas discussões e proposi-ções realizadas pelas arenas políticas participati-vas. Os fatores que podem explicar tal dissonân-cia podem estar associados à cultura medicali-zante na qual estamos inseridos, bem como pelahistórica relação estabelecida entre população eserviços de saúde, em que a demanda terminasendo por garantir acesso a medicamentos, pro-cedimentos especializados e atendimento médicoem detrimento a implementação de projetos eações de cunho preventivo e próximo ao ideal dapromoção da saúde36.

Este quadro não favorece que algumas dis-cussões sejam inseridas na agenda, como aque-las relacionadas aos pontos de estrangulamen-tos do sistema de saúde – o financiamento e oplanejamento –, além da própria organização dasredes assistenciais, permanecendo fixados, por-tanto, em pontos que visem atender as deman-das populares pelo viés da cura e medicalização35.Fato que corrobora os achados de Guareschi eJovchelovitch27, que ao analisarem dois conse-lhos locais de saúde, apontam o movimento dosconselheiros (especialmente os usuários) em seinserirem nestes espaços públicos com o objeti-vo de se aproximarem dos médicos e/ou especia-listas a fim de conseguirem mais facilidades deatendimento e acesso a recursos para tratamen-to. Situação que pode contribuir para que taisarenas democráticas se configurem como lócusdestinado para a busca de soluções imediataspara questões de saúde de natureza individual,privativa e orientada pela tradição biomédica.

Neste sentido, a discussão de projetos volta-dos para a aquisição de medicamentos e garan-tia de atendimento médico/especializado à po-pulação tendem a ser privilegiados pelos conse-lhos de saúde, haja vista o caráter emergencialque tais temáticas provocam entre os atores so-ciais. Os conselheiros reproduzem um discursomédico tradicional atrelado a necessidade de seofertar ações e serviços relacionados à cura dedoenças, calcada na epidemiologia tradicional,afastando-se do discurso sanitarista que com-preende a saúde atrelada a questões estruturais

como moradia, trabalho, saneamento, educaçãodentre outras, que praticamente são inexistentesna pauta de discussão dos conselhos de saúde.

Democracia em debate: uma miradaa partir dos conselhos de saúde

O debate sobre os limites da democracia re-presentativa tradicional e o avanço que repre-senta o pensamento sobre uma democracia par-ticipativa e deliberativa é realizado por algunspesquisadores a partir da análise da dinâmica einserção dos conselhos de saúde no cenário polí-tico brasileiro. Encontramos perspectivas quedefendem e apostam na capacidade de a socieda-de civil organizada, a partir do processo de voca-lização de seus discursos, conseguirem impactara atuação do Estado tradicional, contribuindopara sua democratização. Avritzer37 tem sido umimportante defensor desta prerrogativa, e a par-tir de suas análises sobre as experiências originá-rias do Orçamento Participativo, tem buscadodemonstrar a capacidade de capilaridade decor-rente dos processos deliberativos que ocorremnestas arenas democráticas em transformar asrelações entre Estado e sociedade civil no que dizrespeito à tomada de decisões em relação aosgastos públicos.

A despeito desta aposta na capacidade de-mocratizante centrada na sociedade civil, algunsestudos têm tentado debater tal perspectiva apon-tando os limites desta abordagem de análise so-bre a relação entre Estado e sociedade civil. Oestudo realizado por Schönleitner38 a respeito doimpacto dos conselhos municipais de saúde nademocratização das discussões sobre esta políti-ca setorial em quatro municípios brasileiros (doisna região nordeste e dois na região sul) apontaque para além de uma sociedade civil participati-va, é muito importante considerarmos a articu-lação entre fatores como a cultura cívica, o papeldas instituições políticas tradicionais e o desenhoinstitucional das arenas de participação demo-crática. A questão emergente é que o investimen-to na democracia deliberativa não resolve em si afalta de democracia e, por esta razão, Schönleit-ner38 propõe analisarmos como se dá a interaçãoentre os fatores supracitados em relação ao pro-cesso de consolidação dos espaços deliberativos.Pressupõe uma análise mais acurada dos meca-nismos tradicionais da democracia representati-va, remetendo então a necessidade de se operarmudanças nos modelos tradicionais da políticaconcomitantemente ao investimento em novosarranjos democráticos como os conselhos. A

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análise acerca dos limites da formalização de prá-ticas democráticas pautadas pela participação edeliberação leva o autor a considerar que: umavibrante vida associativa não se traduz automati-camente em um vibrante engajamento político. Asinstituições políticas, ações estatais e as redes derelações horizontais são importantes para compre-endermos o potencial democrático da sociedadecivil, observando se ela é capaz de transformar apolítica, e, consequentemente tornando a práticadeliberativa um resultado, e não uma causa paraconsolidação da democracia39.

Nesta perspectiva, os debates em torno dademocratização das políticas públicas são mar-cados pelos novos arranjos deliberativos e pelosnovos padrões de relações entre Estado e socie-dade civil, que buscam o aprofundamento dademocracia. Ao mesmo tempo tais espaços re-querem um reforço mútuo entre os atores en-volvidos, o que representa a divisão de poderentre um governo comprometido com os ideaisda democracia participativa, assim como da im-portante presença de virtudes cívicas entre os ato-res da sociedade civil, e, por último, a importân-cia de um desenho institucional que possa favo-recer a redução das iniquidades sociais, as quaisimpactam diretamente no exercício democráti-co, conforme discutido anteriormente38,39.

Retomando o estudo de Coelho10, realizadojunto a 31 conselhos locais de saúde na cidade deSão Paulo, é possível problematizarmos o cará-ter pró-democrático atribuído à sociedade civil.De acordo com a autora, os atores sociais inseri-dos nos conselhos de saúde estavam diretamen-te associados aos gestores locais, os quais a par-tir de uma série de articulações buscavam for-matar os conselhos de saúde com antigos alia-dos e atores da sociedade civil que apresentavaminteresse em estar próximos à maquina estatal.Assim, se por um lado a presença de gestorescom um projeto político calcado na participaçãosocial era importante para legitimar a atuaçãodos conselhos, por outro, os procedimentos deeleição dos conselheiros não eram transparen-tes, o que refletia um desenho institucional inca-paz de corrigir as desigualdades de acesso entrerepresentantes da sociedade civil. Coelho10 argu-menta que ao se pensar na potencialidade da so-ciedade civil em democratizar as práticas esta-tais, é importante compreendermos como se dáa organização da sociedade para atender deter-minadas solicitações estatais, ou seja, como emum determinado contexto ocorrem as articula-ções entre tais polos, compreendendo um pro-cesso de coinfluência constante.

Considerações finais

Os resultados expressos pelas diferentes pesqui-sas analisadas apontam para as dificuldades deconsolidação dos conselhos de saúde como es-paços públicos de deliberação participativa. Ascategorias apresentadas: representatividade po-lítica, capacitação política, relações entre os ato-res sociais, cultura política, desenho institucio-nal, discursos sobre saúde/doença, bem como odebate em torno do potencial democrático de taisarenas sinalizam as questões que merecem serprofundamente analisadas no contexto políticocontemporâneo em relação aos conselhos gesto-res na área da saúde.

Ressaltar as dificuldades de concretizaçãodos conselhos pode inicialmente denotar a ideiade fracasso de tais iniciativas. No entanto, o ob-jetivo aqui não é fechar a discussão sob este pris-ma, mas ressaltar a importância destas iniciati-vas, haja vista o poder que possuem em tensio-nar tradicionais relações entre Estado e socieda-de civil. É importante salientar que a despeito dequestões que se mostram impeditivas para o al-cance das expectativas em torno dos espaços con-selhistas, pensamos que, se por uma ótica não sedeve compreender que se constituem como for-ças pró-democráticas per si, não devem ser ana-lisadas a partir de um referencial normativo, cul-minando em seu total descrédito. O debate emtorno das possibilidades democráticas suscita-das pela conformação dos espaços conselhistaspodem colocar dilemas que instiguem futurasinvestigações voltadas para entender o potencialdemocratizante destas e outras formas de orga-nização e mobilização social voltadas para o apro-fundamento democrático no que diz respeito àspolíticas públicas, neste caso o setor saúde, as-sim como em outras esferas da vida social.

Portanto, o quadro que as pesquisas sinali-zam pode direcionar para a elaboração de dife-rentes perguntas e tentativas de compreensão detais espaços, uma vez que passado pouco maisde 20 anos de institucionalização legal de taismecanismos, faz-se justificável uma análise con-juntural que permita contribuir para se pensarnestes e mesmo em outros mecanismos que temintentado contribuir para o fortalecimento deprojetos em prol da emancipação social em nos-so país.

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Colaboradores

FS Paiva participou de todo o processo de cons-trução do artigo. CJV Stralen participou da con-cepção, orientação e revisão final do artigo. PHACosta contribuiu com a coleta e organização domaterial empírico.

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Artigo apresentado em 08/05/2012Aprovado em 27/06/2012Versão final apresentada em 03/07/2012

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