2014.10.28 Mercado Ético - visões do cárcere a recuperação através da reciclagem

3
SALAS TEMÁTICAS > NEGÓCIOS SUSTENTÁVEIS 28/10/2014 15:22:55 Visões do cárcere: a recuperação através da reciclagem Anderson Mello, Bárbara Barros, Daniela Fragomeni e Letícia Bonato, da UniRitter O Presídio Central de Porto Alegre vive uma situação desconexa. Por trás das grades e do isolamento, a cadeia é um organismo vivo. O local é uma verdadeira cidade, e, como tal, enfrenta problemas de natureza socioambiental como superlotação, violência, moradia precária e exclusão social. Existem lados e percepções que somente os moradores dessa localidade conhecem bem. Os projetos sociais que acontecem lá dentro são exemplos disso. A oportunidade de praticar um ofício, a possibilidade de reintegração e a redução da pena motivam os presos a participarem e mudarem a rotina no cárcere. Ademilson, José Alberto e Roberto Carlos (foi utilizado apenas o primeiro nome dos presidiários por recomendação da Brigada Militar) fazem parte dos 10% que trabalham no presídio, de acordo com relatório do Mutirão Carcerário do Estado do Rio Grande do Sul realizado em 2011 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Eles e outros cinco presos são responsáveis pela reciclagem de parte do lixo produzido pelas galerias do Central. O trabalho rende 80 reais de salário, mas a mudança gerada vale muito mais. “A gente sai uma pessoa melhor pra se reintegrar na sociedade”, acredita Ademilson. Em 2014, segundo o CNJ, a população carcerária chega a mais de 27 mil pessoas no Rio Grande do Sul. Somente no Presídio Central de Porto Alegre são 4.419 homens confinados. O número esconde uma mistura de crenças, personalidades, mentalidades e delitos. Em meio a tanta diversidade concentrada, iniciativas como o Centro de Triagem de Resíduos Sólidos dão uma outra visão de mundo aos que vivem no cárcere. Da galeria à reciclagem

Transcript of 2014.10.28 Mercado Ético - visões do cárcere a recuperação através da reciclagem

SALAS TEMÁTICAS > NEGÓCIOS SUSTENTÁVEIS

28/10/2014 15:22:55

Visões do cárcere: a recuperação através da reciclagem

Anderson Mello, Bárbara Barros, Daniela Fragomeni e Letícia Bonato, da UniRitter

O Presídio Central de Porto Alegre vive uma situação desconexa. Por trás das grades e do isolamento, a cadeia é um organismo vivo. O local é uma verdadeira cidade, e, como tal,

enfrenta problemas de natureza socioambiental como superlotação, violência, moradia precária e exclusão social. Existem lados e percepções que somente os moradores dessa

localidade conhecem bem. Os projetos sociais que acontecem lá dentro são exemplos disso.

A oportunidade de praticar um ofício, a possibilidade de reintegração e a redução da pena motivam os presos a participarem e mudarem a rotina no cárcere. Ademilson, José

Alberto e Roberto Carlos (foi utilizado apenas o primeiro nome dos presidiários por recomendação da Brigada Militar) fazem parte dos 10% que trabalham no presídio, de acordo

com relatório do Mutirão Carcerário do Estado do Rio Grande do Sul realizado em 2011 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Eles e outros cinco presos são responsáveis

pela reciclagem de parte do lixo produzido pelas galerias do Central. O trabalho rende 80 reais de salário, mas a mudança gerada vale muito mais. “A gente sai uma pessoa melhor

pra se reintegrar na sociedade”, acredita Ademilson.

Em 2014, segundo o CNJ, a população carcerária chega a mais de 27 mil pessoas no Rio Grande do Sul. Somente no Presídio Central de Porto Alegre são 4.419 homens

confinados. O número esconde uma mistura de crenças, personalidades, mentalidades e delitos. Em meio a tanta diversidade concentrada, iniciativas como o Centro de Triagem de

Resíduos Sólidos dão uma outra visão de mundo aos que vivem no cárcere.

Da galeria à reciclagem

Tudo o que se consome gera lixo. E na “cidade” Presídio Central não seria diferente. Parte dos resíduos como garrafas PET e vasilhas de plástico são recolhidos nas galerias em

grandes sacos de ráfia para serem levados até o galpão, que fica cerca de 30 metros de distância dos pavilhões, ainda dentro do perímetro do Central, onde é feita a classificação do

material. Todo o processo é realizado por meio da mão de obra dos detentos. De acordo com o sargento Agnaldo Garcia, que supervisiona o serviço, existe uma galeria campeã de

reciclagem. “São duas galerias do pavilhão C, da facção Unidos pela Paz, que são bem organizados e juntam o dobro em relação às outras todas”, informa. Papéis oriundos da

administração e também vindos da Refinaria Alberto Pasqualini da Petrobras são reciclados através de uma picotadeira.

Com a ajuda de uma prensa, o trabalho é finalizado em forma de fardos, com cada tipo de item devidamente separado. Assim, ao juntar cerca de 70 fardos ao total, o que equivale a

13 toneladas, o material é revertido em renda. São 5 mil reais por mês que há mais de dois anos vêm sendo investidos em melhorias e ajustes na cozinha geral e no pavilhão onde

ficam os trabalhadores.

O trabalho de cooperação ultrapassa o galpão de reciclagem e chega aos demais presos com o Vale PET, um pequeno pedaço de papel que pode ser utilizado como uma

recompensa pela separação do plástico. O número de garrafas que o preso devolve para a reciclagem é registrado e possibilita a compra de novas garrafas para o consumo. Dessa

maneira, conforme o sargento, a conscientização é incentivada, o que de modo voluntário não aconteceria.

O sistema do Centro de Triagem teve origem em 2011 através de uma parceria entre presídio, Ministério Público e financiamento de 31,5 mil reais do Instituto Vonpar.

Inicialmente, começou suas atividades enviando para a reciclagem uma tonelada de resíduos e avançou dentro da cadeia conforme a demanda e necessidade. Hoje, são 13 toneladas

que saem do Central, um aumento de 1200%, o que comprova o bemsucedido projeto.

A EPR Consultoria, uma empresa júnior do curso de Engenharia de Produção da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), colaborou com a iniciativa. Os estudantes

de engenharia, hoje engenheiros, Cassiano Tonheca e Thomáz Schuch, foram responsáveis por definirem o processo de separação e prensa do Centro, além da logística de coleta e

estoque. Para Tonheca, o projeto é de grande importância para a qualidade de vida no Central, “mediante estrutura adequada foi possível gerenciar de forma melhor os resíduos

gerados pelo presídio e reverter os recursos em benefícios para o Presídio Central”.

Enquanto o relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) apontou em 2009 a casa prisional como a pior do

país, o Centro de Triagem é um projeto que parece mostrar o inverso. A reportagem pode perceber que esse pequeno quadro do organismo do presídio parece ser também a

reciclagem dos presos, como uma verdadeira casa de correção provisória, que devolve os infratores para além dos portões como cidadãos renovados.

As vivências da rua podem gerar possibilidades de recomeço

O número de vagas disponíveis nos projetos sociais do Presídio Central de Porto Alegre (RS) é limitado devido à estrutura. O “currículo” do preso é levado em conta. Os detentos

que estão com a pena no final têm prioridade, mas a ficha policial e o histórico desde que chegou à cadeia são avaliados. As habilidades de cada um também são um fator positivo a

ser considerado. Quem tem vivência da rua, como catadores de material reciclável, sai na frente. Em alguns setores, como o da marcenaria, os trabalhadores trazem o conhecimento

de fora, mas para quem tem vontade de aprender, há projetos de capacitação.

Presos que trabalham no Centro de Triagem do Presídio Central conversam com os estudantes de jornalismo da UniRitter. Foto: Bárbara Barros

Para o tenente Renato Dias, que gerencia alguns projetos como obras e marcenaria, há um aprendizado mútuo entre brigadianos e detentos. “A gente acaba aprendendo coisas que

podem ser usadas na vida particular. Aprendi aqui como colocar piso e fazer massa corrida”, revela.

O preso José Alberto trabalha no galpão do Centro de Triagem não apenas para conseguir dinheiro, mas também para sair do pavilhão e ter contato com um ambiente diferente.

“Aqui é bom de trabalhar, é quieto e não tem aquele monte de gente. É bem melhor do que outros setores e mais organizado”, constata. Ainda que existam registros de mais presos

que gostariam de ingressar nos projetos, a Brigada Militar afirma que nem sempre é possível devido à quantidade limitada de pessoas permitidas por questão de segurança. Até o

momento, os números são animadores: nos últimos dois anos de projeto, nenhum dos detentos que passaram por ali reincidiu.

Se esse tipo de atividade é atraente por reduzir um dia da pena a cada três dias trabalhados, por outro lado, é motivo para comprar briga com alguns detentos. Conforme o capitão e

analista de logística Hermes Volker, integrar os projetos sociais é estar contra algumas regras informais do Central. “Todo trabalhador é visto com outros olhos aqui. Os outros

presos veem como se estivessem contra o sistema deles, então a gente separa”, informa. Volker explica ainda que há um pavilhão especifico para os que trabalham, que é o

pavilhão G. Para evitar conflitos, o extrabalhador também tem um pavilhão separado.

Atividades que ocupam mãos e mentes

Além de sugerir que os próprios presos cuidem do lugar que habitam através da reciclagem, o Presídio Central também possui iniciativas que contribuem para o desenvolvimento

social. Em plena era digital, os detentos compartilham aspectos do seu diaadia através de vídeos no VlogLiberdade e de postagens no blog Direito no Cárcere desde 2011. A

iniciativa foi idealizada pela advogada Carmela Grüne e é parte integrante do projeto Direito no Cárcere. Através dos vídeos é possível acompanhar as atividades culturais e de

integração que contrastam com a realidade atrás das grades superlotadas.

(UniRitter)